Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
90/18.0NJLSB.L1.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO CLEMENTE LIMA
Descritores: REVISTA EXCECIONAL
RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
HOMICÍDIO
ÓNUS DA PROVA
RESPONSABILIDADE PELO RISCO
Data do Acordão: 10/27/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - Para que estejam preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito e culposo, nos termos do disposto no artigo 8.º, n.os 1 e 2 da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro, impõe-se que o lesado prove que o acto foi praticado durante o exercício das funções e por causa delas.
II - A mera coincidência espácio-temporal dos factos com a função do agente e a utilização no crime de homicídio de uma arma de serviço não são circunstâncias suficientes para concluir que o acto praticado é funcional.
III - Da mesma forma, a responsabilidade pelo risco, prevista nos artigos 500.º e 501.º, do CC, exige que o acto de gestão privada tenha sido praticado pelo agente do Estado, no exercício da sua função.
Decisão Texto Integral:



Processo n.º 90/18.0NJLSB.L1.S1

Processo de Revista Excepcional

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:

I

1. Por acórdão proferido em 09.03.2019, no Juiz …. do Juízo Central Criminal …….., do Tribunal Judicial da Comarca …….., foi decidido absolver o demandado Estado Português do pedido de indemnização civil apresentado pela Assistente, AA.

2. Inconformada com o acórdão proferido, a Assistente interpôs recurso para o Tribunal da Relação ……. que, por acórdão de 10.03.2021, decidiu, no que interessa aos presentes autos, nos seguintes (transcritos):

«2. Negar provimento ao recurso interposto pela assistente/demandante AA e, consequentemente, confirmar a absolvição do Estado Português do pedido de indemnização civil contra o mesmo deduzido.»

3. Não se conformando com o acórdão do Tribunal da Relação ……., no segmento em que manteve a absolvição do demandado Estado Português do pedido cível por si formulado, a Assistente interpôs recurso de revista excepcional, nos termos do disposto nos artigos 400.º, n.º 3, do Código de Processo Penal e 672.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código de Processo Civil, aplicável por força do previsto no artigo 4.º, do Código de Processo Penal, concluindo as motivações nos seguintes (transcritos) termos:

«(i) Nesta revista excecional está em causa a questão de saber em que situações poderá ser civilmente responsabilizado o Estado Português, quando um seu funcionário, agente ou representante, estando ao seu serviço, pratica um facto ilícito doloso, no exercício das suas funções e, presumivelmente, por causa desse exercício;

(ii) O presente recurso é importante para a melhor aplicação do direito, já que importa definir com rigor o quadro legal em que o Estado poderá vir a ser responsabilizado civilmente por atos dolosos praticados por um seu funcionário, agente ou representante, mormente explicitando-se o recorte normativo do conceito “…no exercício da função administrativa e por causa desse exercício…”, designadamente quando o ato ilícito por aquele praticado se insere no elenco funcional da competência que lhe estava adstrita;

(iii) Mais importa esclarecer, nesses casos, a quem compete o ónus da prova de demonstrar que se tratou de um ato pessoal do mencionado funcionário, agente ou representante;

(iv) Acresce que a matéria em apreço é de enorme relevância social, já que se projeta no direito de indemnização de inúmeras vítimas de crimes dolosos praticados nessas mesmas condições e que se repetirão potencialmente numa plêiade de casos futuros, contribuindo assim para a certeza e segurança da aplicação do direito;

(v) A presente revista excecional tem como fundamento a violação de Lei substantiva, porquanto tanto a sentença proferida pelo Juízo Central Criminal ……. como o Acórdão proferido pelo Excelentíssimo Tribunal da Relação …….., não opera à correta interpretação e aplicação do disposto nos artigos 3.º e 8.º, n.ºs 1 e 2 da Lei n.º 67/2007, de 31.12 e o artigo 342.º, n.º 2 do CC;

(vi) Motivo pelo qual deverá ser a mesma admitida nos termos do disposto no artigo 672.º, n.º 1, alíneas a) e b) do CPC, aplicado por força do previsto no artigo 4.º do CPP;

(vii) A responsabilidade civil extracontratual do Estado (bem como das demais pessoas coletivas públicas), por facto ilícito e culposo, tem como pressuposto que tal facto tenha sido praticado pelo titular do órgão ou pelo agente no exercício de funções e por causa desse exercício, ou seja, excluem-se do âmbito da responsabilidade administrativa os atos lesivos que tenham sido praticados, por titulares de órgãos e agentes, fora do exercício de funções ou, no exercício de funções, mas não por causa desse exercício, e, que por isso, se devam qualificar como atos pessoais dos seus respetivos autores materiais (que não envolvem qualquer responsabilidade direta do Estado, mas apenas a responsabilidade individual do agente que, como tal, se encontra sujeita ao regime de direito privado, a exercer nos tribunais comuns);

(viii) Desconhecendo-se completamente se o facto ilícito decorreu de um ato da vida privada ou pessoal do Arguido, mas sabendo-se que o exercício da função de sentinela à casa de apoio ao paiol importava a utilização e o manuseamento de uma espingarda G-3, devidamente municiada com munições reais, deve-se presumir que o disparo dessa arma de fogo no desempenho dessa mesma atividade foi motivado pelo exercício dessa função, já que o ato de disparar aquela arma integra o quadro geral da respetiva competência ou função que lhe estava adstrita;

(ix) Por outro lado, o comitente deve ser responsabilizado pelos factos ilícitos praticados pelo comissário, desde que esse facto tenha, com as funções deste, uma conexão adequada;

(x) Assim, sempre que as funções do comissário, segundo um critério de experiência, favoreçam ou aumentem o perigo da verificação de certo dano, deverá o comitente arcar com a respetiva responsabilidade;

(xi) Por outras palavras: deverá entender-se que um facto ilícito foi praticado no exercício da função confiada ao comissário quando, quer pela natureza dos atos a que foi incumbido, quer pela dos instrumentos ou objetos que lhe foram confiados, ele se encontra numa posição especialmente adequada à prática de tal facto;

(xii) Donde, independentemente do dolo ou negligência, a factualidade considerada provada no acórdão recorrido, enquadra-se inequivocamente no disposto nos n.ºs 1 e 2, do artigo 8.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro, ou, subsidiariamente, no disposto no artigo 500.º, n.ºs 1 e 2 do Código Civil;

(xiii) Destarte, a prova de que o ato foi praticado sem ser por causa do exercício dessas funções, competiria ao Estado Português, e tal não veio a suceder, pois desconhecem-se os motivos que estiveram na génese daquele disparo, o qual, até poderia ter ocorrido no âmbito de uma invasão do posto de sentinela ou do incumprimento de uma ordem de parar dada pelo sentinela;

(xiv) A prova de que o facto ilícito ocorreu dentro das finalidades funcionais emerge inequivocamente da prova indireta efetuada, já que o exercício da tarefa de sentinela importava o manuseamento de uma espingarda G-3 devidamente municiada com munições reais, que foi precisamente o que veio a suceder no caso em apreço;

(xv) Tudo isto significa que o demandado cível Exército Português deverá ser solidariamente responsabilizado com o aqui Arguido pelo pagamento dos danos peticionados, considerando que se conclui que os seus órgãos ou agentes praticaram, por ação ou omissão, no exercício das suas funções e por causa desse exercício, atos de gestão ilícitos e culposos e que foram estes que provocaram os danos sofridos pelo soldado BB;

(xvi) A decisão recorrida violou o disposto nos artigos 342.º, n.º 2, 497.º, 500.º e 501.º do Código Civil e artigos 3.º e 8.º, n.ºs 1 e 2 do Dec. Lei n.º 67/2007, de 31.12.

4. O demandado Estado Português apresentou resposta ao recurso, exarando as seguintes (transcritas) conclusões:

«1. Veio AA interpor Recurso Excecional de Revista do Douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação …….., que em nosso modesto entendimento e salvo melhor opinião, deve ser liminarmente rejeitado porque a questão jurídica que suscita, atenta á produção de prova produzida no presente processo, não é complexa e não levanta dúvidas doutrinais que justifiquem a sua (re) apreciação pelo Supremo Tribunal de Justiça.

2. Segundo o atual ordenamento Jurídico Civil e Administrativo, reiteramos que não existe fundamento legal para que o Estado Português seja condenado no pagamento integral do Pedido de Indemnização Cível deduzido pela Recorrente em consequência do disparo fatal que vitimou o seu filho, BB, quando resultou univocamente provado que o arguido CC, cometeu um crime de homicídio doloso.

3. Esse ato ilícito, grave e doloso, não se consta seguramente do elenco das suas funções pelo que consequentemente, tem de ser o arguido a arcar sozinho o pagamento da quantia indemnizatória, ficando prejudicada definitivamente qualquer responsabilidade do Estado Português.

4. A circunstância do Tribunal a quo não ter apurado “a génese” do ato ilícito não obrigava o Julgador “a presumir” que o ato foi praticado no “exercício das suas funções do Arguido” pelas razões que reiteramos nas motivações e alegações apresentadas na Resposta apresentada pelo Estado Português ao Recurso interposto para o Tribunal da Relação.

5. Contrariamente ao entendimento da Recorrente, o Tribunal a quo apurou com especial mérito e rigor, todas as circunstâncias concretas essenciais em que foi praticado o ato ilícito pelo Militar, designadamente, quem, onde, em que momento, de que forma, tendo inclusive conseguido determinar sem quaisquer dúvidas, o quê que o arguido estava a fazer e o quê que não estava a fazer.

6. O desconhecimento da “génese” não constitui, por isso, no nosso modesto entendimento, um elemento determinante na dinâmica da prática deste ato ilícito particularmente grave e doloso, até porque como bem entendeu o Colectivo de Juízes na 1ª Instância e o Tribunal da Relação, o arguido até podia não ter em mente qualquer motivação concreta.

7. É pacífico nos doutos Acórdãos proferidos que o desconhecimento da “génese” do ato ilícito, não é, nem foi um elemento que, por si só ou articulado com a restante prova, fosse determinante para inverter a absolvição do Estado Português.

8. Com é igualmente pacífico que o ato de cometer um crime de homicídio doloso, não consta comprovadamente do elenco funcional do arguido ou de um militar Português ao serviço do Exército Nacional.

9. Por conseguinte e independentemente do apuramento ou não da “génese” do ato ilícito, a questão jurídica suscitada pela Recorrente é irrelevante, já que existe um entendimento UNÁNIME e UNIFORME que um Militar Português, Agente do Estado, quando comete um homicídio DOLOSO, não atua no exercício das suas funções e por causa das suas funções, requisitos esses absolutamente determinantes e essenciais para que o Estado Português fosse solidariamente responsável com o Arguido no pagamento de qualquer quantia indemnizatória.

10. Salvo respeito por opinião diversa, no presente processo, os Julgadores das duas Instâncias não cometerem qualquer erro e em total sintonia, fizeram um rigoroso e exigente enquadramento jurídico dos factos apurados, não existindo qualquer necessidade de (re) apreciação, porque na Doutrina e na Jurisprudência, também existe consenso em reconhecer que o cometimento de um homicídio doloso não consta do elenco das funções do militar.

11. No presente processo, resultou claramente provado que, CC não cometeu um ilícito doloso e grave no exercício das suas funções administrativas ou por causa desse exercício, ainda que o Estado Português lhe tivesse confiado uma arma, cujo objectivo também, não se destinava a praticar homicídios dolosos.

12. Os Venerandos Desembargadores não se limitaram a “um Juízo denegatório, sem a suficiente escalpelização dos motivos que levaram ao resultado” porque como existe um entendimento pacífico que o homicídio doloso cometido pelo Arguido não constitui a função de qualquer militar em Portugal, não tinham que reiterar exaustivamente às razões pelas quais mantiveram a absolvição do Estado Português.

13. Acresce ainda que, como se não fosse suficientemente pacífico considerar que o cometimento de um crime de homicídio doloso é um ato de natureza pessoal totalmente descontextualizado das funções de um militar, veio o Tribunal a quo reforçar ainda mais a sua certeza, quando apurou que, muito embora CC estivesse de serviço como sentinela á casa do Paiol no Regimento dos Comandos, estava a trocar mensagens amorosas de cariz romântico e aproximação com a sua namorada, atividade essa que igualmente não tem qualquer conexão com as suas funções.

14. O Estado Português pugna pela rejeição do presente recurso, já que a admissibilidade do Recurso está condicionada à verificação de certos pressupostos específicos contidos no Artigo 672º n.º 1. do CPC, a avaliar pela formação de juízes, sem perder de vista que nessa atividade de verificação, há que ter em conta o pedido, a causa de pedir da lide e a matéria de facto assente pelas instâncias.

15. Salvo melhor opinião, o Estado Português considera que a questão jurídica suscitada no presente processo:

-não revela seguramente elevado grau de complexidade ou controvérsia na doutrina e/ou jurisprudência, nem reveste ineditismo ou novidade que aconselham a apreciação pelo Supremo Tribunal de Justiça;

- não revela necessidade fundamental de obtenção de um resultado que sirva de guia orientadora;

- não faz perigar a eficácia do direito ou duvidar da capacidade das instâncias jurisdicionais para afirmar a sua afirmação;

- e finalmente, não extravasa as fronteiras do concreto processo e das partes nelas envolvidas.

16. A interpretação e o enquadramento jurídico dos factos assentes que a Recorrente fez no Recurso de Apelação para o Tribunal da Relação ……. e no presente Recurso é idêntico, insistindo novamente na nossa modesta opinião em vão, que a circunstância do Tribunal a quo, não ter apurado “a génese” do disparo mortal de BB, levanta duvidas e contrariedades doutrinais no enquadramento jurídico do ato ilícito cometido pelo Arguido, devendo na sua perspectiva e em consonância com a doutrina que evoca, ser interpretado como um acto “presumivelmente” executado no exercício das suas funções e por causa desse exercício, devendo por isso, o Estado Português ser condenado solidariamente com o arguido no pagamento do pedido de indemnização cível.

17. Na sua preceptiva, errada, vem solicitar a (re) apreciação do Supremo Tribunal de Justiça relativamente aos conceitos de “Atos pessoais, Atos funcionais”, “Atos no exercício da função administrativa e por causa desse exercício “quando o ato ilícito praticado por órgão ou agente do Estado se insere no elenco funcional da competência que lhe estava adstrita e não se conheça a “génese” do disparo fatal.

18. Como já referido, a questão jurídica cuja apreciação suscita, não gera complexidade ou sequer controvérsia, porque resulta claramente dos pontos 33, 34, 35, 37 e 38 da factualidade provada no douto Acórdão proferido pelo Tribunal a quo, que o arguido cometeu um crime de homicídio doloso, ato esse que não corresponde ao elenco das funções de um Militar em Portugal, sendo também pacifica a doutrina e a Jurisprudência que, no caso de ilícitos cometidos com dolo e com culpa grave, como é o caso de homicídio doloso, o Estado Português só pode ser responsabilizado quando o ato ilícito do agente seja praticado no exercício das suas funções administrativas e por causa das suas funções e apenas em caso de “culpa leve” a Lei Administrativa admite que se presume que foi cometido no exercício das suas funções.

19. A actuação do militar do Regimento dos Comandos não preencheu comprovadamente os dois requisitos legais essenciais prescritos na Lei Administrativa n.º 67/2007 de 31 de Dezembro, ficando por isso definitivamente prejudicada a responsabilidade solidária do Estado Português conforme decidido e bem, duplamente. (Página 133 do Acórdão da Relação).

20. A questão jurídica que a Recorrente aqui expõe, porque não é de elevada complexidade nem contravertida, não tem de ser (re) apreciada pelo Supremo Tribunal de Justiça, nem tem a virtualidade de alterar o sentido dos Doutos Acórdãos proferidos.

21. Acresce ainda que, como CC ao longo de todo o julgamento nunca alegou que disparou “no exercício e por causa do exercício das suas funções” por isso e contrariamente ao entendimento da Recorrente, não tinha de constar da factualidade provada ou não provada que o ato ilícito era funcional ou pessoal, todavia e porque o Pedido de Indemnização se insere num Processo-Crime , o Tribunal a quo conseguiu extrair da prova produzida em sede de julgamento um juízo probatório de certeza que o ilícito decorria da vida pessoal do Arguido, porque num processo-crime vinga o poder de investigação oficiosa da verdade material independentemente das alegações das partes.

22. O Colectivo de Juízes conseguiu, assim, com total certeza e segurança alcançar “um juízo probatório negativo” segundo o qual CC não cometeu um ato ilícito “no exercício das suas funções nem por causa das suas funções”, juízo esse que a Recorrente não impugnou no seu recurso de apelação para o Tribunal da Relação.

23. Conformando-se definitivamente com este “Juízo probatório negativo “, não pode a Recorrente tentar contornar uma convicção duplamente assente com uma “alegada complexidade” no uso de presunções legais e interpretação de conceitos jurídicos, cujo enquadramento jurídico mostra-se claro e intocável.

24. O presente recurso da Recorrente não pode servir de “derradeira tentativa”, para alterar juízos probatórios assentes por via dos quais o Estado Português foi absolvido do pagamento do pedido de indemnização cível em virtude do ato ilícito doloso, grave, cometido pelo Arguido não ter qualquer conexão com o exercício das suas funções e não ter sido cometido por causa desse exercício.

25. O Supremo Tribunal de Justiça, seguramente, não deixará de concordar que o cometimento de um crime de homicídio doloso não integra as funções de um militar no Estado Português.

26. Reiteramos que face á prova considerada provada nos pontos supra referenciados, salvo melhor opinião, não vislumbramos qualquer vazio probatório que justificasse o recurso à quaisquer presunções referenciadas pela Recorrente no presente Recurso.

27. No caso concreto, a Responsabilidade Extracontratual do Estado Português, foi afastada e bem, ainda que o arguido fosse agente do Estado, estivesse no seu local e horário de trabalho e lhe tivesse sido confiada pelo Exercício Português uma arma.

28. Os Julgadores foram assertivos e respeitadores da Lei Administrativa n.º 67/2007, de 31 de Dezembro e da Lei Civil, designadamente, o disposto no artigo 500.º, n.ºs 1 e 2 do Código Civil.

29. Consequentemente, deve o presente recurso ser rejeitado por falta de preenchimentos dos requisitos legais contidos no Artigo 672º e 674º do Código de Processo Civil, mantendo-se na íntegra o Douto Acórdão Proferido pelo Tribunal da Relação ……... que absolveu o Estado Português no pagamento do pedido cível deduzido pela Recorrente, fazendo, Vossas Excelências a Costumada Justiça!»

5. Continuaram-se os autos à Formação Cível, com vista à apreciação preliminar sumária, nos termos do artigo 672.º, n.º 3 do Código de Processo Civil, tendo sido proferido o acórdão que precede, julgando verificados os pressupostos de admissibilidade da revista excepcional.

6. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência para decisão.

II

7. Tendo o Tribunal da Relação ……... julgado improcedente o recurso no que respeita à impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto, os factos que se devem ter por assentes, no que aqui releva, são os seguintes (transcrição):
“1. O arguido CC é Soldado do Exército Português, frequentou o …… Curso de Comandos e conhecia o Soldado BB (pertencente ……….. Curso de Comandos) desde Novembro de 2016.

2. Ambos estiveram em missão na República Centro Africana (RCA) para integrar a 2.ª FND (Força Nacional Destacada) /MINUSCA (Missão Multidimensional Integrada das Nações Unidas para a Estabilização na República Centro-Africana) em Bangui no período compreendido entre 04-09-2017 e 05-03-2018.

3. Após regressar da missão, BB ingressou na …. Companhia até Setembro de 2018, momento em que ingressou na Companhia de Formação, tendo como função atribuída auxiliar na formação, em concreto na parte de tiro de combate.

4. Em 18 de Setembro de 2018, o Soldado BB viu averbado na sua ficha de matrícula um louvor fazendo referência, além do mais, à sua “reconhecida postura disciplinada, aprumada e atenta, possuidor de um assinalável espírito de camaradagem e contagiante boa disposição (E)”.

5. No dia 21 de Setembro de 2018, o arguido estava escalado para o serviço no Posto de Sentinela na “Casa de Apoio ao Paiol” das 17H30 às 19H30.

6. Nesta data, o Oficial de Dia ao Regimento de Comandos era o Tenente DD e o condutor de Dia ao Regimento de Comandos era o 1.º Cabo EE.

7. O Posto da “Casa de Apoio aos Paióis” visa garantir a segurança da área, sendo que o militar que nesse local e hora estiver a desempenhar funções está devidamente armado com uma espingarda automática G-3, com um carregador municiado com 16 munições reais e 1 de salva de calibre 7,62mm.

8. Nesse mesmo dia, o Soldado FF estava escalado para o serviço no Posto da “Casa de Apoio aos Paióis”, para o turno das 15H30 às 17H30, tendo passado o serviço ao arguido Soldado CC que estava escalado para o turno seguinte.

9. O arguido executava o serviço que lhe foi distribuído nesse dia com a espingarda automática G-3, com o número de série ……., e um carregador municiado com 16 munições reais e 1 de salva de calibre 7,62mm.

10. Segundo a NEP (norma de execução permanente) datada de 13 de Março de 2018 o carregador deverá ser introduzido na arma sem munição na câmara.

11. Nesse dia 21 de setembro de 2018, o Soldado BB almoçou com o 2.º Cabo GG, Soldado FF e Soldado HH, onde falaram sobre as férias que este tinha tido na ……., demonstrando estar feliz e sem sinais de tristeza, depressivo ou infeliz, manifestando junto do Cabo GG o seu desejo de ingressar na GNR.

12. Após o almoço, cerca das 14h05m, BB ausentou-se do regimento de Comandos na sua viatura pessoal, da marca ………, cor ……., do ano de ….., com a matrícula …….., regressando cerca das 16h29m.

13. Pelas 18h23m, o Soldado BB dirigiu-se de uma forma descontraída à Casa da Guarda de Apoio ao Paiol, onde estava de serviço o arguido Soldado CC.

14. Considerando as funções que estava a desempenhar, o arguido encontrava-se com uma arma afecta, uma espingarda automática G-3, com um carregador municiado com 16 munições reais e 1 de salva, todas de calibre 7,62mm.

15. Entre as 18H16 e as 18H48, o Soldado BB e o seu melhor amigo Soldado II, trocaram mensagens escritas via WhatsApp, intervaladas em médias entre minuto e meio a três minutos, sempre de teor descontraído e bem-disposto, conversando sobre o futuro, e exibindo em várias das mensagens “emojis” de “riso/gargalhada”.

16. Entre as 18h48 e as 18h56, por motivos não apurados, o arguido empunhou a espingarda automática G-3 que lhe estava adstrita em função do serviço de sentinela à Casa do Paiol que estava a executar, e encostou-a ao peito de BB quando este se encontrava no exterior da Casa do Paiol.

17. Em acto contínuo, o arguido disparou a arma que empunhava, tendo atingindo a vítima na região peitoral esquerda, que redundou na sua morte.

18. O invólucro recolhido da munição que atingiu a vítima pertence ao mesmo lote que as munições encontradas no interior do carregador da espingarda automática G-3 que veio a ser apreendido naquele local.

19. Pelas 18:56:26 o arguido CC através do seu telemóvel com o n.º …….. ligou para o telemóvel de serviço do Oficial Dia ao Regimento de Comandos – Tenente DD, com o n.º …….., a informar que havia um “homem ferido” e que precisava que ligassem para o 112, o que este fez obtendo a resposta de que teria de ser quem estava no local a ligar.

20. Pelas 18:58:14 o Oficial de Dia – Tenente DD ligou novamente ao arguido referindo-lhe que teria de ser ele a ligar para conseguir dar as instruções ao INEM, mas que se encontravam a caminho do local, referindo-se a ele e ao Condutor de Dia.

21. E pelas 18:59:20 é efetuada a chamada para o INEM pelo arguido, apesar de CC não ter pronunciado qualquer palavra durante os 25 segundos iniciais da chamada.

22. Simultaneamente, dirigem-se, numa viatura militar à Casa da guarda de Apoio ao Paiol, quer o Oficial de Dia quer o Condutor de Dia, e apenas quando ambos chegam ao local é que o último agarrou o telemóvel do arguido e iniciou conversa com o INEM referindo ao seu interlocutor “militar ferido, com gravidade por disparo de arma de fogo acidental, com perfuração do pulmão, ou seja, o projétil entrou e saiu, têm de vir com urgência para o local”.

23. Cerca das 19H11, a viatura dos Bombeiros ……. entrou no Regimento de Comandos e dirigiu-se à Casa da guarda de Apoio ao Paiol onde realizaram as manobras de suporte básico de vida não lhes tendo sido comunicado no local qualquer detalhe dos factos ocorridos que levaram àquele ferimento.

24. Pelas 19H19, a VMER entrou no Regimento de Comandos e dirigiu-se à Casa da guarda de Apoio ao Paiol, sendo a equipa chefiada pela médica Dr.ª JJ, a qual questionou diversas pessoas sobre os factos ocorridos, quer nesse momento, quer já no momento em que procedia às manobras de suporte avançado de vida, não obtendo qualquer resposta, mas apenas silêncio, por parte de todos aqueles que se encontravam no local.

25. A médica da VMER solicitou que afastassem a arma do corpo para proceder às manobras necessárias com a vítima, o que foi feito pelo 1.º Cabo KK.

26. Pelas 19H22, o Coronel LL – Comandante do Regimento de Comandos - dirigiu-se à Casa da guarda de Apoio ao Paiol, tendo poucos minutos depois falado a sós com o arguido.

27. Após tal conversa, o arguido Soldado CC recebeu indicações do Coronel LL – Comandante do Regimento, para que este fosse tomar banho e comer qualquer coisa.

28. Nesse momento, o arguido agarrou o carregador da G3, levando-o consigo e entregou-o ao Soldado FF que se encontrava no exterior da Casa do Paiol, considerando que a PSP pretendia que o mesmo assinasse uns papéis, o que ainda fez antes de se ausentar.

29. O Soldado FF guardou o referido carregador no bolso do seu camuflado.

30. Em consequência da actuação do arguido, o Soldado BB viria a falecer pelas 19H42, sendo a causa de morte lesões traumáticas torácicas provocadas pela acção de natureza contuso-perfurante do aludido projéctil de arma de fogo, existindo dois orifícios: um de entrada (com bordos irregulares e ovalada, com orla escoriada e enegrecida) localizada na região peitoral esquerda, superior e medialmente ao mamilo e de saída (com bordos irregulares e ligeiramente evertidos) na região dorso-lombal, localizado a nível da região paravertebral dorsal esquerda.

31. O projétil que vitimou o Soldado BB descreveu um trajeto de frente para trás, de cima para baixo e ligeiramente da direita para esquerda.

32. A Polícia Judiciária Militar é informada da ocorrência pelas 19h30 pelo Tenente Coronel MM, deslocando-se de imediato para o Regimento de Comandos …….., juntamente com a equipa do Laboratório de Policia Técnica e Cientifica da PJM, onde chegam cerca das 20h15.

33. A morte do Soldado BB deveu-se às lesões traumáticas torácicas provocadas por ação de natureza contuso-perfurante do aludido projéctil.

34. Ao atuar do modo descrito, o arguido CC sabia e quis disparar um tiro na zona do coração da vítima, o que lhe provocou perfuração do pulmão esquerdo, o que fez com intenção de matar e sabendo que qualquer disparo naquela zona conduziria necessariamente à morte do visado, como viria a ocorrer.

35. Mais sabia o arguido da qualidade de militar da vítima, da sua própria condição de militar em serviço de guarda a um paiol, e bem assim que o local em que cometeu os factos era uma Unidade Militar e que a arma que utilizava era uma arma de cariz militar, com capacidade acrescida e provocar danos atento o calibre militar da mesma, não se inibindo ainda assim de actuar.

36. No dia 28 de Novembro de 2018, pelas 19H45, na ……….., o arguido CC tinha na sua posse, em concreto no seu quarto, dentro de um armário, dentro de uma caixa com a inscrição “NIKE”:

a. 4 (quatro) munições reais de calibre 7,62mm com o lote FNM 93-9 (o mesmo lote que da munição que vitimou mortalmente o Soldado BB);

b. 3 (três) munições de salva, de calibre 7,62mm, com o lote FNM 94-4;

c. 1 (uma) munição de salva, de calibre 7,62mm, com o lote FNM 83-7;

d. 1 (uma) munição de salva, de calibre 7,62mm, com o lote MEN 86-42;

e. 1 (uma) munição real, 5,56mm, com o lote FNM 02-23;

f. 5 (cinco) munições de salva, 5,56mm, com o lote CBC90;

g. 1 (uma) granada de mão de instrução ativa e não deflagrada ARGES PRHGR 85;

h. 1 (um) tubo de cartão (vazio) de acondicionamento de Morteiro M50A260MM.

37. O arguido CC não tinha qualquer autorização que lhe permitisse ter na sua posse as munições reais e de salva bem como a granada que sabia que detinha no interior da sua residência.

38. Em todas as suas condutas o arguido atuou de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que eram proibidas e punidas por lei.

Mais se provou (pedido de indemnização civil):

39. BB nasceu em ….. de Maio de 1995.

40. BB é filho da assistente AA, nascida em ….. de Março de 1968.

41. O pai de BB faleceu em 25. de Abril de 2017.

42. BB faleceu no estado de solteiro e não tinha filhos.

43. Em virtude do disparo realizado pelo arguido, o corpo de BB foi projectado para o chão.

44. Aí ficando imobilizado, em completa agonia, sangrando abundantemente do peito.

45. Tendo plena consciência do que lhe estava a acontecer.

46. E percepcionando a sua morte iminente.

47. BB sentiu dores quando foi baleado e tombou no chão.

48. E continuou a sentir dores quando ficou prostrado no chão a aguardar a chegada dos meios de socorro e quando foi alvo de manobras de suporte básico de vida.

49. BB dedicava muito amor, afecto e carinho à sua mãe.

50. A sua falta provocou e vai continuar a provocar por toda a vida da assistente uma profunda tristeza, consternação e pesar.

51. Sendo uma lacuna na sua vida que jamais será preenchida.

52. A assistente anda deprimida e desorientada.

53. BB causava alegria e orgulho na respectiva família.

54. À data da sua morte, BB era militar do Exército e auferia anualmente o vencimento bruto de € 10.238,76.

55. Fora do Regimento dos Comandos, BB residia então apenas com a respetiva mãe.

56. A mãe de BB era viúva, não tinha então qualquer emprego e beneficiava da ajuda financeira deste filho para suportar todas as suas obrigações.

57. BB apoiava a sua mãe mensalmente com a entrega de uma importância em dinheiro não inferior a € 100,00.

58. A mãe de BB viu-se privada deste rendimento e deixou de conseguir satisfazer integralmente as suas despesas.

59. Viu-se obrigada a fazer restrições na sua vida e a pedir dinheiro emprestado a familiares e amigos.

60. O Exército Português suportou integralmente as despesas do funeral do soldado BB.

61. Em 1968, a Esperança Média de Vida à nascença era de 70 anos para as mulheres.

62. Em 1995, a Esperança Média de Vida à nascença era de 71 anos para os homens.

Mais se provou (contestação do Estado Português):

63. Em 21 de Setembro de 2018, BB era militar do Exército Português (Comandos).

64. Tinha celebrado contrato para prestação de serviço militar em 12 de Outubro de 2015 com a duração de 24 meses, renovável anualmente até ao limite máximo de 6 anos.

65. O arguido declarou então conhecer os seus direitos e deveres, os objectivos nacionais das Forças Armadas, a organização do Exército e o Regulamento de Disciplina Militar.

66. Frequentou, com sucesso, o curso de Comandos, através do qual recebeu formação sobre os deveres inerentes à sua carreira militar, especialidade, função e condutas a adoptar no interior do Regimento.

67. O arguido conhecia o teor das Normas de Execução Permanente, nomeadamente as que prescreviam que:

a. “A área do paiol é uma área de segurança de classe 1” à qual apenas podem aceder as pessoas devidamente identificadas, habilitadas e autorizadas” (NEP n.º 02.04, de 15Out17);

b. “A segurança física do paiol é de 24 horas” (NEP n.º 02.12, de 10Jan18);

c. “Para a segurança física do paiol, os militares vão equipados com espingarda automática com carregadores sinalizados” (NEP n.º 02.12, de 10Jan18).

68. A área da casa do paiol está classificada como área de segurança “Classe 1” e corresponde à zona militar mais crítica e mais perigosa de todo o Regimento em virtude de aí estarem guardadas as armas, munições, explosivos, granadas e minas do Regimento.

69. Trata-se de área restrita a pessoal identificado, credenciado e autorizado.

70. No local existia uma placa de segurança com a indicação expressa “Área de Segurança Classe 1”.

71. No dia 21 de Setembro de 2018, entre as 17h30 e as 19h30, BB não estava ao serviço.

72. Deslocou-se ao posto de sentinela na casa de apoio ao paiol sem conhecimento ou autorização superiores.

73. Bem sabendo que violava aquela NEP.

74. Em 21 de Setembro de 2018, a assistente vivia na Madeira e o soldado BB vivia no Continente.

75. A assistente tinha mais dois filhos além do soldado BB.

76. A assistente não ficou só e desamparada com o falecimento do soldado BB, tendo recebido reconforto dos outros filhos que atenuou a sua dor e desgosto.

77. No início do seu contrato, o soldado BB estava muito empenhado e satisfeito com a sua carreira militar.

78. Quando esteve em missão na República Central Africana em 2017, o soldado BB recebia mensalmente a retribuição base no valor de € 583,58, o suplemento da condição militar no valor de € 147,76 e o suplemento de missão no valor de € 2478,76, no total ilíquido de € 3240,57.

79. Quando não estava em missão no estrangeiro, o soldado BB recebia apenas mensalmente a retribuição base no valor de € 583,58 e o suplemento da condição militar no valor de € 147,76.

80. Era a perspectiva de realizar missões no estrangeiro que o incentivava muito a continuar no Exército Português e a manter o seu contrato até final.

81. No exame aleatório à urina efectuado em 19 de Junho de 2018, foi-lhe detectada presença de canabinóides.

82. BB planeava a sua admissão na Guarda Nacional Republicana ou numa empresa de segurança, a saída do Exército Português e o regresso à Madeira.”


8. O recurso é restrito à parte do acórdão relativo ao pedido de indemnização civil formulado pela Assistente contra o Estado Português, ao abrigo do disposto nos artigos 400.º, n.º 3, do Código de Processo Penal e 672.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código de Processo Civil, aplicável por força do previsto no artigo 4.º, do Código de Processo Penal.
As questões invocadas pela Recorrente – a Assistente AA – sintetizam-se em saber se o Estado Português é responsável civilmente pelo ilícito criminal perpetrado pelo arguido:
a) nos termos do artigo 8.º, n.os 1 e 2 da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro;

b) subsidiariamente, por via do disposto nos artigos 500.º e 501.º do Código Civil.

Vejamos.

9. A Assistente formulou pedido de indemnização civil contra o arguido CC e contra o Estado Português nos termos do qual pediu a respectiva condenação solidária: a) no pagamento de uma indemnização por danos não patrimoniais sofridos pela vítima BB, no valor global de € 120.000,00; b) no pagamento de uma indemnização por danos não patrimoniais sofridos pela assistente no valor global de € 40.000,00; c) no pagamento de uma indemnização por danos patrimoniais sofridos pela assistente no valor global de € 18.000,00; e d) no pagamento dos juros de mora legais desde a notificação do pedido de indemnização civil até integral pagamento.

No acórdão proferido pelo Juízo Central Criminal ……, entendeu-se que (transcrição):

«o arguido estava no exercício das suas funções militares de sentinela quando disparou mortalmente contra o soldado BB que se deslocou à Casa da Guarda do Paiol.

Contudo, não ficou provado que o arguido tivesse morto BB por causa desse exercício de funções, isto é, para prosseguir qualquer finalidade inerente às suas funções no Serviço de Piquete.

(…)

O homicídio doloso dos presentes autos corresponde a um ato pessoal do arguido que ultrapassa os seus limites funcionais e, por isso, não merece que o Estado se responsabilize, ainda que solidariamente, com o seu agente, protegendo o direito dos cidadãos.»

Por sua vez, o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação …….. confirmou a referida decisão, tendo considerado que (transcrição):

«Na realidade, para se poder afirmar que o disparo mortal e, consequentemente o ilícito criminal, foi cometido por causa do exercício das funções que, naquele momento e local, o arguido estava a desempenhar teria de se dar como provado exactamente isso, pela positiva, ou seja, teria de constar no elenco da factualidade considerada provada, que o Arguido tenha disparado no exercício das suas funções ou por causa desse exercício. Como não consta que o soldado BB tivesse sido baleado mortalmente no exercício das suas (arguido) funções ou por causa delas, o que, aventando hipótese, poderia decorrer de a situação de contacto e interacção entre os dois intervenientes em confronto ter sido em resultado de uma entrada, ou tentativa de entrada, na casa da guarda ou no paiol por parte da vitima e que o arguido teria ultrapassado as normas de procedimento que se mostram exaradas no documento (reservado) de fls. 487 e seguintes (NEP 02.22), mais especificamente o constante do seu anexo F, a fls. 507 dos autos.

O tipo de intervenção dado como provada por parte do arguido não se integra claramente naquele quadro normativo.»

Vem a Recorrente, no recurso de revista excepcional apresentado, alegar que (transcrição)

«parece ser indubitável concluir-se que integra o elenco das funções de um sentinela ao paiol a utilização daquela arma de fogo, servindo-se para o efeito das munições constantes do carregador que também lhe foram entregues (16 munições reais e 1 de salva de calibre 7,62mm) pelas chefias militares, instrumentos esses necessários para o exercício específico daquela função militar, a qual se estende 24 horas por dia, atento ao risco e ao grau de perigosidade daquele local.

Ou seja, desconhecendo-se o motivo pelo qual foi perpetrado esse facto ilícito (o disparo), mas sabendo-se que o exercício da função de sentinela ao paiol importava precisamente o manuseamento/utilização daquela espingarda G-3 e o eventual disparo dessa arma de fogo - porquanto tinha sido igualmente entregue ao arguido um carregador devidamente municiado com munições reais (sendo aliás esses - a espingarda G-3 e o carregador municiado – dois dos instrumentos de trabalho entregues ao arguido para o desempenho dessa tarefa), terá que se presumir que o disparo dessa arma de fogo, no desempenho da atividade de sentinela, foi motivado pelo exercício dessa função.

(…)

O ato praticado pelo arguido é manifestamente ilícito e foi praticado por um agente do Estado, no momento do exercício das suas funções e por causa delas. Independente do dolo ou negligência, é uma situação que se enquadra inequivocamente no disposto no n.º 1, do artigo 8.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro.»

10. Estabelece o artigo 22.º da Constituição da República Portuguesa que «o Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem.»

O artigo 22.º da Constituição da República Portuguesa prevê, assim, um princípio geral da responsabilidade do Estado e demais entidades públicas, o qual é «assumido constitucionalmente como instrumento fundamental de proteção dos particulares num Estado de Direito. A sua principal função é reparadora, garantindo aos lesados “o ressarcimento dos danos causados pelos atos praticados pelos titulares dos órgãos, funcionários e agentes do Estado e de entidades públicas” (Ac. n.º 236/04). Nesta primeira dimensão, o direito de indemnização impõe-se como um postulado intrínseco da efetividade da tutela jurídica condensada no direito do respetivo titular naqueles casos, pelo menos, em que se verifica a sua violação (Ac. n.º 385/05)»[1].

Tal princípio encontra-se vertido, nomeadamente, na Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, que aprovou o regime da responsabilidade civil extracontratual do estado e demais entidades públicas.

O artigo 1.º, desse diploma, prescreve nos seguintes termos:

«1 – A responsabilidade civil extracontratual do Estado e das demais pessoas colectivas de direito público por danos resultantes do exercício da função legislativa, jurisdicional e administrativa rege-se pelo disposto na presente lei, em tudo o que não esteja previsto em lei especial.

2 – Para os efeitos do disposto no número anterior, correspondem ao exercício da função administrativa as acções e omissões adoptadas no exercício de prerrogativas de poder público ou reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo.

3 – Sem prejuízo do disposto em lei especial, a presente lei regula também a responsabilidade civil dos titulares de órgãos, funcionários e agentes públicos por danos decorrentes de acções ou omissões adoptadas no exercício das funções administrativa e jurisdicional e por causa desse exercício.»    

Tal seja, e no que respeita à responsabilidade extracontratual do Estado por facto ilícito, a Lei estabelece uma divisão entre os casos em que o agente atuou com culpa leve, em que o Estado é exclusivamente responsável pelo seu ressarcimento – artigo 7.º – ou com dolo ou culpa grave – artigo 8.º – situação em que o Estado é solidariamente responsável, sendo esta última a juridicamente enquadrável no caso sub judice.

Dispõe o artigo 8.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro:

«1 - Os titulares de órgãos, funcionários e agentes são responsáveis pelos danos que resultem de acções ou omissões ilícitas, por eles cometidas com dolo ou com diligência e zelo manifestamente inferiores àqueles a que se encontravam obrigados em razão do cargo.

2 - O Estado e as demais pessoas colectivas de direito público são responsáveis de forma solidária com os respectivos titulares de órgãos, funcionários e agentes, se as acções ou omissões referidas no número anterior tiverem sido cometidas por estes no exercício das suas funções e por causa desse exercício.»

Assim, «a responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas por actos ilícitos, praticados pelos seus órgãos e agentes, assenta na verificação dos seguintes dos seguintes pressupostos que são: (1) o facto, que é um acto de conteúdo positivo ou negativo, consubstanciado por uma conduta de um órgão ou seu agente, no exercício das suas funções e por causa delas; (2) a ilicitude, traduzida na violação por esse facto de normas legais e regulamentares ou dos princípios gerais aplicáveis e os actos materiais que infrinjam estas normas e princípios ou ainda as regras de ordem técnica e de prudência comum que devam ser tidas em consideração (o conceito de ilicitude vertido artigo 6º do Decreto-Lei nº 48051, de 21.11.1967, é mais amplo do que o civilístico); (3) a culpa, como nexo de imputação ético-jurídico que liga o facto ao agente, não sendo necessária uma culpa personalizável no próprio autor do acto, bastando uma culpa do serviço, globalmente considerado, que é apreciada nos termos do artigo 487.º do Código Civil, que é o da “diligência de um pai de família, em face das circunstâncias de cada caso”; (4) o dano, lesão ou prejuízo de ordem patrimonial ou não patrimonial, produzido na esfera jurídica de terceiros; e (5) o nexo de causalidade entre o facto e o dano»[2].

«O artigo 8.º ocupa-se, no essencial, dos casos em que há responsabilização pessoal e directa dos agentes da função administrativa, isto é, das hipóteses em que o dever de indemnizar a que haja lugar por facto ilícito da função administrativa tenha por sujeito passivo o indivíduo a quem seja imputável o ato ou a omissão causadores do dano. (…) A noção de “titular de órgão, funcionário ou agente” para que apela o n.º 1 do artigo 8.º é assumidamente funcional, abrangendo qualquer pessoa individual que, independentemente do tipo de vínculo que a una a determinada pessoa coletiva responsável pelo exercício da função administrativa, e independentemente de a sua associação a esse exercício ser regular ou meramente ocasional, sirva esse exercício, ou seja, atue em exercício da função administrativa.»[3].

É, assim, necessário, que esteja em causa, desde logo, i) uma actuação de um órgão ou uma pessoa, enquanto agentes da função administrativa; ii) um facto, que se traduz numa acção ou omissão, praticado no exercício das suas funções e por causa delas.

Se é unânime que o Arguido, derivado das funções que desempenhava enquanto soldado do Exército Português, era agente da função administrativa, importa averiguar se o facto praticado em causa nos presentes autos preenche, ainda, o requisito cumulativo de ter ocorrido no exercício das suas funções e por causa delas.

Tal seja, «devem estar em causa ações ou omissões adotadas no exercício de prerrogativas de poder público ou reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo»[4], ou seja, teremos de estar perante actos funcionais do agente, aos quais se contrapõem os actos pessoais.

A propósito desta questão esclarece Marcello Caetano[5]:

«Para que a Administração fique constituída em responsabilidade civil é indispensável, nos termos do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 48 051 (…), que o facto ilícito tenha sido praticado por órgãos ou agentes de uma pessoa colectiva de direito público «no exercício das suas funções e por causa desse exercício»: resulta com efeito, do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 48 051 (…) que a responsabilidade compete exclusivamente aos titulares dos órgãos e aos agentes, a título pessoal, «se tiverem excedido os limites das suas funções».

Importa, por conseguinte, abrir uma distinção entre actos funcionais e actos pessoais.

São actos funcionais todos aqueles que, embora ilícitos, sejam praticados durante o exercício das funções do seu autor e por causa desse exercício; pelos danos que produzirem é responsável a pessoa colectiva de direito público a que pertença o órgão ou agente.

São actos pessoais todos os outros, isto é, os que forem praticados fora do exercício das funções do seu autor ou que, mesmo praticados durante tal exercício e por ocasião dele, não forem todavia praticados por causa desse exercício; pelos danos que produzirem é responsável, única e exclusivamente, a pessoa do seu autor.

Em que casos se pode dizer, de uma maneira geral, que um órgão ou um agente se comportam, na prática de um facto ilícito, dentro dos limites das suas funções ou, pelo contrário, excedendo esses limites?

(…) interessa averiguar (…) se o facto ilícito foi ou não praticado no exercício das funções do seu autor e por causa desse exercício.

(…) O que importa é delimitar objectivamente as funções do autor do facto ilícito e verificar se ele o praticou no exercício de tais funções e por causa desse exercício.

(…) há que averiguar se o autor do facto ilícito procedeu ou não no exercício das suas funções e por causa desse exercício, quer dizer, se o facto praticado representou o legítimo exercício da competência para fins de interesse público ou, antes, um abuso de autoridade com excesso do que no caso exigia o cumprimento das funções.

Em qualquer dos casos o facto terá sido ilícito; mas no primeiro a ilicitude foi como que um acidente da actividade profissional do órgão ou agente administrativo, ao serviço da pessoa colectiva de direito público, ao passo que no segundo o autor do facto ilícito exorbitou das suas funções, servindo-se delas para prosseguir os seus próprios fins».

Neste mesmo sentido, Carlos Cadilha refere que são de excluir do âmbito da responsabilidade administrativa os actos praticados no exercício de funções, mas não por causa desse exercício, que, como tal, serão de qualificar como actos pessoais dos seus respetivos autores materiais, «pelos quais o funcionário responderá segundo o regime de direito privado, como qualquer outro cidadão, por se tratar de actos praticados no domínio da sua vida privada»[6].

Importará, assim, apreciar, casuisticamente, se o facto ilícito ocorreu não só no desempenho das funções mas também por causa dele, consubstanciando um legítimo exercício da competência do agente, uma vez que, se assim não for, tais actos encontram-se excluídos do presente regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas.

Retomando ao caso dos presentes autos, resulta assente (do julgamento sobre a matéria de facto sedimentado nas instâncias) que no dia 21 de Setembro de 2018 o arguido estava escalado para o serviço no Posto de Sentinela na «Casa de Apoio ao Paiol», das 17 horas e 30 minutos às 19 horas e 30 minutos.

Nesse circunstancialismo, e considerando as funções que estava a desempenhar, o arguido encontrava-se com uma arma afecta – uma espingarda automática G-3, com um carregador municiado com 16 munições reais e 1 de salva, todas de calibre 7,62 mm.

Encontra-se ainda provado que entre as 18 horas e 48 minutos e as 18 horas e 56 minutos, por motivos não apurados, o arguido empunhou a espingarda automática G-3 que lhe estava adstrita em função do serviço de sentinela à Casa do Paiol que estava a executar, e encostou-a ao peito de BB quando este se encontrava no exterior da Casa do Paiol.

Em acto contínuo, o arguido disparou a arma que empunhava, tendo atingindo a vítima na região peitoral esquerda, que redundou na sua morte.

Conforme resulta dos factos provados, afigura-se inequívoco que o facto ilícito teve lugar no exercício do cargo de militar do arguido.

Como tal, há uma coincidência espácio-temporal entre as funções exercidas pelo arguido e o disparo que atingiu mortalmente o ofendido, estando verificado que a conduta do agente ocorreu no exercício das suas funções.

Mais resulta assente que o objeto utilizado para perpetração do crime de homicídio em que o arguido foi condenado foi, precisamente, a arma de fogo que lhe havia sido entregue para desempenho da sua actividade de sentinela.

Sucede, contudo, que resulta expressamente do elenco factual que os factos ocorreram por motivos não concretamente apurados.

A Recorrente entende que, em face disso, e não se tendo logrado provar qualquer circunstância pessoal que tivesse conduzido à atuação do arguido, importa presumir que o disparo dessa arma de fogo, no desempenho da atividade de sentinela, foi precisamente motivado pelo exercício da sua função.

Acrescenta, ainda, que a circunstância de estarmos perante um ato doloso e exterior às funções do sentinela consubstanciaria matéria de exceção, a provar pelo demandado cível Estado Português, pelo que esse non liquid - inerente ao facto de se desconhecerem os motivos – não pode servir para afastar a responsabilidade do aqui demandado.

Ora, o artigo 342.º, n.º 1 do Código Civil prevê que «Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado» e, no n.º 2, que «A prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita.»

Em face deste normativo legal, ao autor compete, salvo no que respeita às presunções legamente previstas, provar os factos constitutivos do seu direito, o que, no caso da responsabilidade civil, se traduz na alegação e prova do facto, ilícito, culposo, gerador de danos, bem como do nexo de causalidade.

Assim, e contrariamente ao invocado pela Recorrente, era a esta que, enquanto lesada, incumbia o ónus de provar que o acto teve lugar no exercício das funções do arguido e por causa das mesmas, por serem factos constitutivos do seu direito.

Como tal, sendo tais factos da sua conveniência provar, não consubstanciavam matéria de defesa por exceção[7], inexistindo qualquer inversão do ónus da prova nos termos formulados.

Paralelamente, alega a Recorrente que «sabendo-se que o exercício da função de sentinela à casa de apoio ao paiol importava a utilização e o manuseamento de uma espingarda G-3, devidamente municiada com munições reais, deve-se presumir que o disparo dessa arma de fogo no desempenho dessa mesma atividade foi motivado pelo exercício dessa

função, já que o ato de disparar aquela arma integra o quadro geral da respetiva competência ou função que lhe estava adstrita».

No entanto, e à semelhança do que entendeu o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação  ……., julga-se imprescindível que haja prova positiva desse facto, não sendo de concluir, sem mais, que se tratou de um acto funcional, apenas porque praticado no local, durante o serviço e com a arma que lhe foi adstrita.

Na verdade, afigura-se perfeitamente plausível avançar com a possibilidade teórica de terem sido motivos pessoais que conduziram à prática do crime, nomeadamente um desentendimento entre as partes totalmente estranho às funções que desempenhavam, não se podendo concluir, apenas pelo circunstancialismo espacial e pelo objeto utilizado, que assim não foi.

Nesta senda, da factualidade assente não é possível fazer a ponte lógica pretextada pela Recorrente, no sentido de concluir, sem qualquer dúvida, que a actuação do agente correspondeu a um acto funcional, não resultando dos factos apurados o mínimo contexto que sustente essa posição, nomeadamente quanto à necessidade de a arma estar a ser usada naquele momento - ou sequer que justifique a circunstância de estar carregada, em contrariedade com as normas impostas -, uma vez que inexiste qualquer estado de guerra ou rebelião que o explique, não estando a decorrer um treino ou manobra militar, programa ou exercício de tiro, ou regular manutenção da arma.

O que temos é, apenas, um absoluto vazio (um non liquet) quanto aos concretos factos que antecederam e motivaram a prática do crime, não podendo concluir-se, de forma alguma, como pretende a recorrente, que o disparo ocorreu por causa das tarefas atribuídas ao arguido no cumprimento da sua função de sentinela, senão através de um longo nexo causal que não se integra no conceito jurídico aqui em causa (não é suficiente apenas saber que disparou porque tinha acesso a uma arma que lhe foi entregue pelas suas funções, é necessária a prova positiva de que disparou por causa das suas funções, no quadro do exercício dos seus deveres administrativos[8]).

Desta forma, dos autos nada nos indica que foi pelo seu serviço de militar que o disparo ocorreu, pelo que a única conclusão necessária a que chegamos é que o disparo foi deflagrado por ocasião das suas funções enquanto tal, desconhecendo-se se também o foi em virtude das mesmas[9].

Nesta medida, face aos factos apurados, não é possível «presumir» que existiu essa ligação funcional.

Mais se refira que é a própria Constituição da República Portuguesa, no artigo 22.º, que exige essa conexão estreita entre os actos de violação de direitos ou interesses dos particulares e a relação do serviço, o que consubstancia pressuposto material da responsabilidade civil das entidades públicas.

Assim, não estando provado que o homicídio doloso dos presentes autos corresponde a um ato funcional do arguido, não pode o Estado ser solidariamente responsabilizado com o mesmo, nos termos do artigo 8.º, n.os 1 e 2 da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro.

11. A Assistente pugna ainda pela aplicação subsidiária do regime de responsabilidade objectiva do Estado, enquanto comitente.

Refere a recorrente (transcrição):

«(…) foi o exercício dessa atividade de sentinela que potenciou a ocorrência do facto ilícito, sendo líquido que esse facto ilícito e danoso foi praticado pelo arguido, ainda que intencionalmente ou contra as instruções daquele, no exercício da função que lhe foi confiada, logrando assim aplicação o disposto no artigo 500.º, n.º 1 e 2 do Código Civil.

Estão assim preenchidos os requisitos legais que o artigo 500.º do Código Civil exige para a responsabilização do comitente, tanto mais que, a atuação em causa – vigilância a um paiol – insere-se no exercício de atividade de gestão privada. Na realidade, se bem que a atividade relacionada com as obrigações militares é efetivamente uma atividade relacionada com a gestão pública do ente público respetivo, já a concreta atividade de implementação de tarefas de vigilância, distribuição de armas e munições medidas atinentes a essa função em si mesma já será uma atividade de gestão privada (ou, pelo menos, o que na doutrina se designa por ato neutro)».

Já o acórdão proferido pelo Juízo Central Criminal  ……. entendeu que:

«(…) para que o Estado possa responder como comitente pelos danos causados pelos seus agentes, é necessário que o Estado actue desprovido de poderes de autoridade, como no exemplo de um militar que conduz um veículo na via pública para ir comprar material de escritório.

(…) uma vez que o arguido não estava a assegurar qualquer actividade de gestão privada do Exército, fica igualmente inviabilizada a responsabilidade solidária do Estado, devendo o mesmo ser igualmente absolvido, desta feita à luz das próprias normas de Direito Civil.»

Estabelece o artigo 500.º, do Código Civil «1. Aquele que encarrega outrem de qualquer comissão responde, independentemente de culpa, pelos danos que o comissário causar, desde que sobre este recaia também a obrigação de indemnizar.

2. A responsabilidade do comitente só existe se o facto danoso for praticado pelo comissário, ainda que intencionalmente ou contra as instruções daquele, no exercício da função que lhe foi confiada.»

Por sua vez, o artigo 501.º do Código Civil prescreve que «o Estado e demais pessoas colectivas públicas, quando haja danos causados a terceiro pelos seus órgãos, agentes ou representantes no exercício de actividades de gestão privada, respondem civilmente par esses danos nos termos em que os comitentes respondem pelos danos causados pelos seus comissários».

«O Estado e demais pessoas colectivas públicas estão obrigados a indemnizar os eventuais lesados quer por danos causados no exercício de uma actividade de gestão pública quer por prejuízos causados por uma actividade de gestão privada.

São, contudo, diferentes as vias judiciais a que se deve recorrer, como é diferente o regime jurídico aplicável.

Resultando os danos de uma actividade de gestão pública os pedidos de indemnização feitos à Administração são apreciados pelos Tribunais Administrativos e o regime de responsabilidade é o previsto no Dec-Lei nº 48051 de 21.11.1967.

Se os danos resultarem de uma actividade de gestão privada os pedidos feitos contra o Estado ou autarquias locais deverão ser formulados nos Tribunais Judiciais e o regime de responsabilidade é o constante do Código Civil, designadamente dos artigos 501º e 500º. (…)» [10].

Nesta medida, são actos de gestão pública «os decorrentes do exercício de um poder público, integrando a realização de uma função pública compreendida nas atribuições do ente público, reguladas por normas de direito público, relevando a actividade em que se insere a actuação e não a qualificação de acto isolado integrante da causa de pedir»[11].

Por seu turno, são actos de gestão privada «de modo geral, aqueles que, embora praticados pelos órgãos, agentes ou representantes do Estado ou de outras pessoas colectivas públicas, estão sujeitas às mesmas regras que vigorariam para a hipótese de serem praticados por simples particulares; são actos em que o Estado ou pessoa pública intervém como simples particular, despido do seu poder público»[12].

«O direito privado regula as relações jurídicas estabelecidas entre particulares ou entre particulares e o Estado ou outros entes públicos, mas intervindo o Estado ou esses entes públicos em veste de particular, isto é, despidos de "imperium" ou poder soberano" - Prof. Mota Pinto Teoria Geral, pág. 16.

Nem sempre a Administração surge com a mesma roupagem perante os particulares: umas vezes aparece em posição de desigualdade e outras vezes de igual para igual.
Na primeira hipótese a Administração actua em situação de privilégio, de supremacia, não necessitando de socorrer-se da via judicial para satisfazer as necessidades que a lei lhe impõe realizar; satisfá-las com a sua própria força e autoridade, ainda que contra a vontade dos particulares, eventualmente discordantes
- Prof. Afonso Queiró, Direito Administrativo, pág. 66/67; na segunda hipótese a Administração tem a posição de um simples particular e a sua acção é regulada pelo direito privado, isto é, sem qualquer privilégio.»[13].

Ora, invoca a Recorrente que o Estado Português deverá ser responsabilizado nos termos dos referidos normativos legais.

Sucede, contudo, que, à semelhança do que sucede no artigo 8.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro, as pessoas colectivas públicas só responderão, independentemente de culpa, nos termos do artigo 501.º do Código Civil, quando sobre os autores do facto recaia a obrigação de indemnizar e quando o facto haja sido praticado no exercício da função[14].

De facto, não é por a Lei se referir a «actos de gestão privada» que deixa de existir a necessidade de consubstanciarem actuações do ente administrativo enquanto tal, embora praticadas pelos seus órgãos, agentes ou representantes despidos de poder público.

Impõe-se a existência de tal nexo causal funcional, sendo que os actos que sejam praticados para além dessas atribuições administrativas não poderão integrar-se no aludido normativo legal.

Como tal, e em conformidade com todas as considerações acima, para as quais se remete, da factualidade provada não resulta que o arguido tenha praticado qualquer ato de gestão privada em representação do Estado pelo que, necessariamente, o demandado Estado Português não responde civilmente pelos danos causados, decaindo integralmente o recurso da assistente/demandante.

12. Em conclusão e em síntese:

- Para que estejam preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito e culposo, nos termos do disposto no artigo 8.º, n.os 1 e 2 da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro, impõe-se que o lesado prove que o acto foi praticado durante o exercício das funções e por causa delas.

- A mera coincidência espácio-temporal dos factos com a função do agente e a utilização no crime de homicídio de uma arma de serviço não são circunstâncias suficientes para concluir que o acto praticado é funcional.

- Da mesma forma, a responsabilidade pelo risco, prevista nos artigos 500.º e 501.º do Código Civil, exige que o acto de gestão privada tenha sido praticado pelo agente do Estado, no exercício da sua função.

III

13. Nestes termos e com tais fundamentos, decide-se:

a) Negar provimento ao recurso interposto pela Assistente/demandante e, consequentemente, confirmar a absolvição do Estado Português do pedido de indemnização civil contra o mesmo deduzido;

b) Condenar a Assistente no pagamento das custas processuais, fixando-se a taxa de justiça em 5 (cinco) unidades de conta.

Lisboa, 27 de Outubro de 2021

António Clemente Lima (Relator)

Margarida Blasco

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[1] Miranda, Jorge e Medeiros, Rui, “Constituição Portuguesa Anotada”, Universidade Católica Editora, Volume I, 2.ª ed., anotação ao artigo 22.º, página 345.

[2] Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 15-12-2016, processo n.º
09594/13, disponível em
www.dgsi.pt.
[3] Coimbra, José Duarte, in “O Regime de Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas: Comentários à Luz da Jurisprudência”, Coordenadores: Carla Amado Gomes, Ricardo Pedro e Tiago Serrão, AAFDL Editora, 2017, página 493.
[4] Silveira, João Tiago, in “O Regime de Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas: Comentários à Luz da Jurisprudência”, Coordenadores: Carla Amado Gomes, Ricardo Pedro e Tiago Serrão, AAFDL Editora, 2017, página 412.
[5] “Manual de Direito Administrativo”, Volume II, 10.ª Edição, 4.ª Reimpressão, 1991, páginas 1228 a 1230.
[6] Cadilha, Carlos Alberto Fernandes, “Regime da Responsabilidade Civil do Estado e demais Entidades Públicas Anotado”, Coimbra Editora, 2..ª Edição, anotação ao artigo 7.º, página 141.
[7] Neste sentido, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15.05.2014, processo n.º 01504/13, disponível em www.dgsi.pt.
[8] Veja-se, aliás, o exemplo que é indicado como se tratando de um acto fora das funções administrativas, por Diogo Freitas do Amaral, in “Curso de Direito Administrativo”, Volume II, 3.ª ed., 2016, páginas 588 e 589, ao explicar que será acto pessoal do seu autor, aplicando-se o regime de responsabilidade civil do Código Civil aos autores das ações ou omissões das quais resultaram danos, não havendo lugar a responsabilidade da Adminitração, a hipótese de um agente da polícia que, atuando enquanto tal, aproveita uma situação de desordem pública para atingir com o seu cassetete o amante da mulher, que não estava envolvido na desordem – praticou o facto durante o exercício das suas funções, com uma arma que lhe havia sido entregue por causa delas mas os motivos que levaram à prática do acto vão para além das mesmas, consubstanciando um acto pessoal.
[9] À semelhança, aliás, da situação ocorrida no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, processo n.º 04587/08, de 26-03-2015, disponível em www.dgsi.pt, em que o ofendido, contratado da Força Aérea, foi atingido mortalmente por um disparo de uma pistola distribuída e manuseada por um dos Cabos de Serviço que aí se encontrava, sendo que tais circunstâncias – coincidência espácio-temporal de funções administrativas de ambos os envolvidos e o falecimento ter ocorrido em virtude da deflagração de uma arma de serviço não foi suficiente para se considerar que o facto havia ocorrido por causa dessas funções.
[10] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 6 de maio de 2003, processo n.º 02A1987, disponível em www.dgsi.pt.
[11] Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 24 de janeiro de 2002, processo n.º 048274, disponível em www.dgsi.pt.
[12] Varela, João Antunes, “Das Obrigações em Geral”, Volume I, 10.ª edição, páginas 648 e 649.
[13] Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 19 de outubro de 2006, processo n.º 1802/06-2, disponível em www.dgsi.pt.
[14] Neste sentido, Varela, João Antunes, “Das Obrigações em Geral”, Volume I, 10.ª edição, página 650.