Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
20228/21.9T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: FERREIRA LOPES
Descritores: AÇÃO POPULAR
INDEFERIMENTO LIMINAR
PETIÇÃO INICIAL
PRESSUPOSTOS
CITAÇÃO
CONTESTAÇÃO
PRINCÍPIO DA ESTABILIDADE DA INSTÂNCIA
RECURSO PER SALTUM
CONHECIMENTO PREJUDICADO
Data do Acordão: 05/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Sumário :
I - A tramitação da acção popular, nos termos da Lei nº 89/95 de 31.08., prevê a possibilidade do indeferimento liminar da petição quando o julgador entenda que é “manifestamente improvável a procedência do pedido, ouvido o Ministério Público e feitas as averiguações que o julgador tenha por justificadas ou que o autor ou o Ministério Público requeiram” (art. 13º);

II – O indeferimento liminar da petição já não é possível depois de citado o réu e da apresentação por este da contestação.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça




AA, intentou a presente acção popular contra Banco Bilbao Vizcaya Argentaria, S.A.Sucursal em Portugal e BB, pedindo a condenação dos RR a:

A - Reconhecerem que realizaram as operações constantes no documento 1 na conta que o Autor tinha aberto junto do 1.º Réu, assim como realizaram operações semelhantes, embora em datas e horas diferentes, na conta que os Autores Populares tinham aberto junto do 1.º Réu;

B Reconhecerem que realizaram as operações de Equity Total Return Swaps constantes no documento 1 e outras realizadas em nome dos demais Autores Populares fora de mercado regulamentado, actuando por conta própria, como contraparte do Autor e dos demais Autores Populares respectivamente e sabendo que estes não eram investidores institucionais, e que estes não autorizaram ou confirmaram, por escrito, tais operações;

C Reconhecerem que procediam ao desvio da informação dos movimentos de conta, nomeadamente, mas não exclusivamente extractos de movimentos de conta, para endereço diferente do previsto no contrato, in casu, para a morada das próprias instalações do 1.º Réu, onde o 2.º Réu prestava serviço;

D Reconhecerem que realizaram todas as operações constantes no documento 1 e outras realizadas em nome dos demais Autores Populares sem cumprirem o disposto no CVM 325, 326, 327 e 346 e o Regulamento da CMVM 12/2000 artigos 53 e 71, nomeadamente, mas não exclusivamente, quanto ao registo das ordens;

E Reconhecerem que o comportamento supra descrito, tido com o Autor e demais Autores Populares, é ilícito;

F Reconhecer que agiram com culpa e consciência da ilicitude no que respeita aos factos supra referidos, seja quanto ao Autor, como quanto aos Autores Populares;

G Reconhecerem que com esse comportamento lesaram gravemente os interesses do Autor e dos demais Autores Populares, nomeadamente sonegando-lhes os elementos de prova que estes deviam dispor (registo fonográfico e/ou registo escrito das ordens e/ou confirmação escrita das ordens e extratos de movimentos de conta) e assim sujeitando o Autor e os Autores Populares às operações por si realizadas, como se as mesmas tivessem sido efetivamente ordenadas pelo Autor e Autores Populares e sem hipótese de afastarem tal presunção por via da prova documental.

Em consequência, devem os RR ser condenados a pagarem:

I- pagar ao Autor e aos Autores Populares:

a) uma indemnização por todos os danos que causaram na esfera jurídica e patrimonial do Autor e dos Autores Populares devido ao comportamento ilícito supra descrito;

Sendo no caso do Autor possível de concretizar, neste momento, a indemnização a pagar, o que se faz do seguinte modo:

i. ao Autor quantia de 1.286.868 euros, valor igual ao reclamado no processo 2383/09...., mas aqui a título de indemnização pelos factos supra mencionados, nomeadamente, mas não exclusivamente, nos artigos 39 a 52;

ii. 71.632,40 euros pelos factos que constam no processo 27652/20...., mas aqui a titulo de indemnização pelos factos supra mencionados, nomeadamente, mas não exclusivamente, nos artigos 39 a 52, mas apenas no caso da acção relativa ao processo 27652/20.... não proceder devido à dificuldade do Autor fazer nesse processo prova do que no mesmo alega devido ao comportamento ilícito dos Réus;

iii. 177.785,97 euros e respectivos juros de mora, relativo aos valores que resultaram da condenação decorrente da decisão judicial no processo 2383/09...., onde se inclui a condenação do Autor (ali também autor) ao pagamento de uma indeminização 65.438,55 euros correspondente ao valor dos honorários e das despesas que o ali réu (aqui 1.º Réu) alegadamente suportou com a tal acção e custas de parte na quantia de 14.102,60 euros;

iv. 200.000 euros a titulo de danos morais de grande gravidade e que resultaram da lesão da tranquilidade, do bem-estar físico e psíquico, da honra e reputação, tudo devido ao comportamento ilícito dos Réus, que levaram a que o nome do Autor constasse na central de responsabilidade do Banco de Portugal como incumpridor, que fosse condenado no processo 27652/20.... supra referido na forma descrita, que fosse alvo de um processo de execução promovido pelo 1.º Réu no âmbito desse processo, o que levou obviamente a um grande sofrimento físico e moral, perda de consideração social, inibições e complexos de ordem psicológica, vexame, perda de sono e perda de vontade de viver;

v. assim como o valor total dos custos suportados pelo Autor na execução das operações, nomeadamente, mas não exclusivamente, as comissões de intermediação cobradas pelo 1.º Réu ao Autor e a serem apurados em execução de sentença, mas que se estimam, em comissões de intermediação pagas pelo Autor ao 1.º Réu, em 61.101 euros (em apenas dois anos entre 04.01.2002 e 22.03.2004) tendo em conta o constante nos documentos disponibilizados pela CMVM.

b) os juros que se vencerem à taxa legal aplicável a cada momento contados desde a data do vencimento da obrigação de indemnizar até integral pagamento.

c) em custas, procuradoria e demais legal.

E no caso dos pedidos em I supra não procederem, no todo ou em parte, devem os Réus serem condenados a:

J - indemnizar o Autor e demais Autores Populares em restituição por equivalente em dinheiro à que resultaria da reconstituição natural (in natura) da situação que tinham nas suas contas se nenhuma das ordens em crise (não registadas nos termos do CVM, do Regulamento da CMVM 12/2000 e do contrato entre as partes, não confirmadas ou autorizadas por escrito e cujos extratos de movimento de conta nunca tenham sido enviados para a morada do Autor e demais Autores Populares) tivessem sido executadas pelos Réus e a apurar em execução de sentença caso a caso;

E no caso dos pedidos em J supra não proceder, devem os Réus serem condenados a:

L - indemnizar o Autor e demais Autores Populares em valor equivalente aos juros calculados em função das datas valores dos depósitos efetuados pelo Autor e demais Autores Populares nas suas contas até á integral restituição pedida em J supra;

M - indemnizar o Autor e demais Autores Populares em valor equivalente a todas as comissões, despesas e outros encargos cobrados pelo 1.º Réu com a execução das operações em crise.

i. Sendo no caso do Autor possível de concretizar, neste momento, a indeminização a pagar nos termos do pedido em M supra, que é de 61.101 euros, relativo a encargos que constituem na sua grande maioria comissões cobradas pelo 1.º Réu na conta 44782 titulada pelo Autor entre 04.01.2002 e 22.03.2004 (aproximadamente dois anos) pela execução das operações em crise.

E no caso de qualquer um dos pedidos supra procederem, deve o 1.º Réu ser condenado a:

N- enviar a sentença que vier a ser proferida a todos os seus clientes e/ou ex-clientes, potenciais Autores Populares e nessa qualidade titulares dos interesses identificados, para que estes, querendo, façam valer os seus direitos nos termos da Lei 84/95 artigo 22.


*


Sem precedência de despacho liminar, foram os Réus citados, tendo apresentado contestação na qual, na parte que interessa, defenderam:

- Não se mostram preenchidos os requisitos da acção popular, uma vez que o Autor não visa acautelar qualquer interesse difuso;

-  O Autor pede a condenação dos Réus a pagar uma indemnização “por todos os danos que causaram na esfera jurídica e patrimonial do Autor e dos Autores Populares devido ao comportamento ilícito supra descrito” e afirma que no seu caso já é possível concretizar a indemnização a pagar, correspondente aos alegados prejuízos acima elencados. Ora, os

supostos prejuízos cuja indemnização o Autor reclama para si decorrem de ter perdido a acção que correu termos sob o n.º 2383/09.... e de o BBVA ter executado a respectiva sentença, bem como de antever que irá perder a acção que corre termos sob o n.º 27652/20.....


*

Cumprido o contraditório e foi ouvido o Ministério Público sobre a possibilidade de não se verificarem os requisitos para a presente acção popular.

A instância foi julgada válida e fixado em €60.000,00, o valor da causa (art. 303º/3 do CPC).

Seguidamente foi proferido despacho que considerando não se verificarem os pressupostos da acção, decidiu indeferir a petição inicial, com a consequente absolvição dos RR da instância.

Foi ainda o Autor condenado nas custas, fixadas “em 2/10 das custas que normalmente seriam devidas, nos termos do artigo 20.º, n.º 3 da Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto”.


Decisão assim justificada:

“(…)  os alegados prejuízos cuja indemnização o Autor reclama para si decorrem de ter perdido a acção que correu termos sob o n.º 2383/09.... e de o BBVA ter executado a respectiva sentença, bem como de o Autor poder vir a perder a acção que corre termos sob o n.º 27652/20.....

Assim, os supostos prejuízos que o Autor alega ter sofrido não decorrem dos alegados ilícitos cometidos pelos Réus - não envio de extractos, desvio de correspondência, realização de operações não autorizadas e não confirmadas por escrito - , mas do facto de o Autor não ter conseguido fazer valer os seus supostos direitos em juízo num processo já transitado em julgado e noutro ainda a decorrer.

Assim, é evidente que não existe uma fonte comum entre os alegados direitos indemnizatórios do Autor e os direitos que, hipoteticamente, poderiam assistir a clientes do BBVA que tivessem deixado de receber alguns extractos ou de confirmar por escrito algumas operações. Par além disso, resulta que os Réus têm perante o Autor múltiplas defesas pessoais específicas, tal como os Réus argumentam na sua contestação (excepção de caso julgado, autoridade de caso julgado, prescrição e compensação).

Dito isto, a pretensão formulada pelo Autor extravasa o âmbito do direito de acção popular.

Não está, pois, aqui em causa, um conjunto de interesses materiais solidariamente comuns aos membros de uma comunidade e cuja titularidade se mostra indivisível através de um processo de apropriação individual; estão em causa, à luz do pedido formulado no requerimento inicial e da causa de pedir que lhe subjaz, não interesses difusos, mas bens privados, que não dispensa uma análise individualizada da situação de cada um dos respectivos titulares.

Não se verificando os pressupostos da acção popular, não resta senão concluir pelo indeferimento da petição inicial.”


Inconformado, o Autor interpôs recurso de revista per saltum.


Remata a sua alegação com as seguintes conclusões:

1ª. Os recorrentes, autores populares, interpõe o presente recurso por entenderem que o tribunal que o tribunal a quo não fez a melhor e mais correta interpretação do direito quanto às questões mencionadas supra em §1 ao decidir, por intermédio de uma sentença:

a. indeferir a petição inicial e consequentemente absolver os réus da instância, por considerar que não estão reunidos os pressupostos da ação popular; e

b. condenar o autor interveniente em custas que fixou em 2/10 das custas que normalmente seriam devidas, nos termos do artigo 20 (3) da lei 83/95.

2ª. O presente recurso vem na modalidade da revista per saltum, por recair apenas sobre a matéria de direito, o que é feito nos termos e ao abrigo nos artigos 627, 629 (1), 631, 637, 639, 672, 675, 678 (1) ex vi artigo 644 (1,a) e 678 (3) todos do CPC.

3ª. Os autores têm legitimidade para interpor o presente recurso acompanhado das respetivas alegações sob a matéria de direito (cf. artigo 631 do CPC) e estão em tempo de o fazer (cf. artigo 638 do CPC).

4ª. Os recorrentes, mui respeitosamente, discordam da douta sentença pelas razões vertidas nos §§ 2, 3, 4 e 5 supra, para onde se remete para uma completa compreensão e evitando aqui uma repetição fastidiosa e prolixa do que aí se encontra de forma resumida.

5ª. Mas que, resumindo ainda mais, se estriba no facto dos autores terem um interesse pretensamente partilhado por todos os clientes dos réus, nas mesmas condições – afetados pelo comportamento ilícito destes (causa de pedir escorada de forma depurada nos factos) - e o direito de serem indemnizados pelos danos provocados por esses comportamentos.

6ª. Entendem, desse modo, que na presente lide estamos perante a defesa de interesses coletivos (que se prendem com os pedidos), não revelando a causa de pedir ou o pedido quaisquer particularidades derivadas da multiplicidade dos factos que caraterizam as relações entre os autores populares e aos réus ou um qualquer pleito abusivo do direito da ação popular que possam interromper o direito de ação popular.

7ª. Isto porque a definição do objeto da causa (pedido e causa de pedir) é conforme configurado pelos autores - a forma de processo (ação popular), tal como acontece com outros pressupostos processuais (i.e. legitimidade ativa ou passiva, competência do tribunal, instância, etc.) é tal como configurada pelos autores no articulado inicial.

8ª. Assim, atentos à causa de pedir exaltada no § 2 supra, para onde se remete, evitando aqui a sua extensa repetição, e ao pedido, transcrito no que releva no § 3 supra, também para onde se remete, é inequívoco que estão preenchidos os requisitos do direito de ação popular nos termos da lei 83/95 e do artigo 31 do CVM.

9ª. Isto porque, a situação é a descrita nos factos (§ 2 supra) e que resultou numa lesão em massa aos autores populares derivado do comportamento ilícito dos réus - comum a todos os autores.

10ª. Assim, o lastro de individualização tem de ser abstraído, pois não se trata, no processo, de atacar as condições precisas e particulares que diferem para cada um dos autores populares em razão do seu perfil e negócio na altura concretizado, onde as datas, os montantes e os subjacentes das operação são irrelevantes.

11ª. O que se ataca é a realização de operações de compra e venda de Equity Total Return Swaps, fora do mercado regulamentado e nas quais atuou por conta própria e como contraparte do autor e dos demais autores populares, de forma ilícita e a falta de envio de extratos com a movimentação da conta, cujo 2.º Réu desviava para as instalações do 1.º Réu, no ..., onde trabalhava, prática comum a todos os autores populares.

12ª. Por fim, como sustentado no § 6 supra, douta sentença decidiu mal relativamente às custas pelo autor e que fixou em 2/10 das custas que normalmente seriam devidas, nos termos do artigo 20 (3) da lei n.º 83/95.

13ª. O artigo 20 (1) da lei 83/95, referido pela Meritíssima Juíza a quo, encontra-se revogado (cf. artigo 25 (1) - norma revogatória - do decreto-lei 34/2008.

14ª.  O regime atual de custas processuais na ação popular resulta da conjugação do artigo 4 (1, b) e (5) do decreto-lei 34/2008.

15ª. Sendo que o pedido não foi manifestamente improcedente – o tribunal apenas concluiu que não estavam verificados os pressupostos da ação popular, não deve o autor interveniente estar isento de custas.

16ª. Trata-se, como se disse na nota preambular, de matéria de direito, cujo Vossas Excelências, Venerandos Conselheiros, é que melhor que ninguém podem aplicar para que se faça a necessária justiça.


Termos em que, deve o presente recurso ser julgado procedente e em consequência ser revogada a douta sentença recorrida, substituindo-se por outra que determine a descida dos autores à primeira instância e o prosseguimento da ação como ação popular.


Caso Vossas Excelências, Venerandos Juízes Conselheiros, assim não entendam, deve a ação seguir apenas na parte que diz respeito aos autores populares, cindindo-se os mesmos do autor interveniente.


Se nenhum dos casos supra cair no entendimento de Vossas Excelências, Venerandos Juízes Conselheiros, deve ser a sentença reformada no que toca às custas, substituindo-se por outra que isento o autor das mesmas.

A causa tem o valor de 60.000 euros, tal como fixado na douta sentença

Nos termos e para os efeitos do disposto da Lei 83/95 artigo 20(1)(2), bem como ao abrigo do Regulamento das Custas Processuais, artigo 4(b), aprovado pelo Decreto-Lei 34/2008, com as alterações mais recentes constantes do Decreto-Lei 126/2013, o autor está isento de pagamento de taxas de justiças.



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Os Réus contra alegaram e apresentaram recurso subordinado, tendo formulado as seguintes conclusões:

1ª. Face ao teor do recurso subordinado apresentado e do pedido subsidiário de ampliação do objeto do recurso, que convocam uma apreciação da matéria de facto pelo Tribunal ad quem, deverá o douto Tribunal a quo julgar o recurso per saltum inadmissível e ordenar a respetiva tramitação como apelação e remessa para o Tribunal da Relação de Lisboa.

2ª. Como concluiu o Tribunal a quo, na presente ação não se encontram verificados os pressupostos da admissibilidade da ação popular.

3ª. O Recorrente não pretende a tutela de interesses difusos, mas sim a tutela enviesada dos seus interesses individuais que nada têm que ver com os dos demais Autores populares.

4ª. O Autor pretende ser indemnizado por montantes que foi condenado a pagar em ações passadas ou cuja improcedência antecipa, bem como de danos morais que alega ter sofrido na sequência dessa condenação!

5ª. Consequentemente, o Autor e os demais autores populares não compõem uma classe ou grupo titular do mesmo interesse difuso ou individual homogéneo.

6ª. Acresce que as questões de facto alegadas pelo Autor não são comuns aos demais autores populares e convocam uma apreciação individualizada da situação de cada um destes.

7ª. Além do mais, a possibilidade de invocação de defesas pessoais distintas a propósito dos autores populares é uma manifestação da heterogeneidade dos interesses em causa, inviabilizando a ação popular.

8ª. Ora, na presente ação os Réus invocaram múltiplas defesas pessoais específicas perante o Autor, a saber: as exceções de caso julgado, autoridade de caso julgado, litispendência e prescrição. Além disso, os Réus podiam e podem ainda invocar perante o Autor a figura da compensação, atento o crédito adveniente da procedência do pedido reconvencional no proc. n.º2393/09...., e que apenas não invocaram por ora atenta a total falta de cabimento desta ação.

9ª. Considerando o exposto e a postura processual e extra-processual do Autor, sempre seria justificado qualificar a sua conduta e, em particular, a pretensão que apresenta nesta ação como abusivas, nos termos e para os efeitos do art. 334.º do CC.

10ª. Quanto às potenciais defesas pessoais a invocar a respeito de cada um dos demais Autores populares, haveria que apurar, por exemplo, as datas dos factos ocorridos em relação a cada cliente e as datas em que cada cliente teria tido conhecimento desses factos, já que, sem conceder, tudo isso poderia ter relevância para a prescrição de eventuais direitos.

11ª. Em suma, o Autor pretende submeter à apreciação do Tribunal relações heterogéneas, o que obsta à admissibilidade da ação popular.

12ª. Pelo exposto, deve o Tribunal ad quem confirmar na íntegra a decisão recorrida de indeferimento da Petição Inicial e a consequente absolvição dos Réus da instância.

13ª. Em qualquer caso, conforme alegado na Contestação, não estando em causa a tutela de interesses difusos ou interesses individuais homogéneos, o Autor carece de poderes de representação dos demais Autores populares, termos em que nunca teria legitimidade popular.

Do pedido subsidiário aposto nas alegações de revista


14ª. O Recorrente peticiona que, caso o Tribunal ad quem não revogue a decisão recorrida, a ação prossiga “apenas na parte que diz respeito aos autores populares, cindindo-se os mesmos do autor interveniente”.

15ª. A modificação da instância que o Recorrente agora sugere carece em absoluto de fundamento legal (cf. arts. 261.º e 262.º do CPC).

16ª. Mesmo que assim não fosse, o Recorrente continuaria a carecer de legitimidade popular, pressuposto fundamental para o recurso à tutela popular.

17ª. Subsidiariamente e sem conceder, caso a ação viesse a prosseguir operando-se a “cisão” peticionada pelo Autor, sempre teriam de ser considerados excluídos do objeto da ação todos os pedidos de indemnização relativos ao Autor.

Ampliação do objeto do recurso: da responsabilidade do Recorrente pelo pagamento de custas

18ª.  A presente ação foi julgada improcedente ao abrigo do art. 13.º da Lei  83/95 por não se encontrarem verificados os respetivos pressupostos fundamentais e, além do mais, consiste numa instrumentalização abusiva dos recursos dos tribunais, carecendo a pretensão do Autor de qualquer fundamento.

19ª. Ou seja, a improcedência da ação era e sempre seria manifesta.

20ª.  Assim, requer-se que a condenação em custas do Autor seja reapreciada e seja este condenado no pagamento das custas nos termos gerais, ao abrigo do art. 4.º, n.º 5 do RCP.

21ª. Além disso, sempre deveria o Tribunal, nos termos do art. 21.º da Lei  83/95,atribuiraos Réus um montante de procuradoria correspondente aos honorários de advogados que os Réus efetivamente despenderam com a presente ação, fixando-se prazo para a apresentação da correspondente prova.


Recurso subordinado:

Da omissão de pronúncia sobre o pedido de condenação por litigância de má fé.

22ª. Na sua Contestação, os Recorridos alegaram que o Recorrente litiga de má-fé nos termos do disposto no art. 542.º, n.º 2, alíneas a), b), c) e d), do CPC.

23ª. O Tribunal a quo não proferiu decisão sobre a matéria de facto alegada a este respeito (designadamente nos arts. 1.º a 48.º e 361.º e seguintes) e, em suma, não se pronunciou sobre este pedido de condenação.

24ª. A ausência de decisão de facto e de direito a este respeito configura uma nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. d) do CPC, que ora se invoca em sede de recurso subordinado, ao abrigo do art. 633.º e 615.º, n.º 4 do CPC.

Subsidiariamente,

25ª. Caso se entenda que a ausência de pronúncia a este respeito não configura uma nulidade por omissão de pronúncia, mas sim uma decisão de  improcedência, ainda que implícita (o que apenas se equaciona por dever de patrocínio), desde já se argui que a decisão a quo padece de erro de julgamento quanto a esta parte, devendo o presente recurso subordinado ser admitido e julgado com este fundamento.

Subsidiariamente: da ampliação do objeto do recurso

26ª.  Caso não se admita o recurso subordinado supra formulado (o que apenas se equaciona por dever de patrocínio), desde já se argui a nulidade da sentença a quo por omissão de pronúncia sobre o pedido de condenação do Recorrente por litigância de má-fé para efeitos de ampliação do objecto do recurso, ao abrigo do art. 636.º, n.º 2 do CPC.

27ª. Em consequência da admissão   do recurso subordinado ou, subsidiariamente, da ampliação do objeto do recurso, já em sede de apelação, deverá o douto Tribunal da Relação apreciar e julgar procedente o pedido de condenação do Recorrente em litigância de má-fé ou, caso entenda necessária a produção de prova adicional, ordenar a baixa dos autos ao Tribunal a quo para o efeito, nos termos do art. 665.º n.º 2 a contrario ou do art. 636.º, n.º 3 do CPC.


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Objecto do recurso:

- Admissibilidade do recurso per saltum;

- A decisão de indeferimento da petição inicial;

- Recurso subordinado:

- Condenação em custas.


Fundamentação de direito.

Da admissibilidade do recurso per saltum.

O art. 678º do CPC, prevê a possibilidade de recurso directamente ao Supremo Tribunal de Justiça das decisões referidas no nº1 do art. 644º - além de outras, a decisão proferida em 1ª instância que ponha termo à causa – desde que, cumulativamente:

a) O valor da causa seja superior à alçada da Relação;

b) O valor da sucumbência seja superior a metade da alçada da Relação;

c) As partes nas suas alegações suscitem apenas questões de direito;

d) As partes não impugnem, no recurso da decisão prevista no nº1 do art. 644º, quaisquer decisões interlocutórias.

No caso em análise, verificam-se todos os requisitos enunciados, pelo que nada obsta à interposição do recurso per saltum.

Se a sentença ajuizou bem ao indeferir a petição inicial.

O direito de acção popular está expressamente consagrado no art. 52º, nº3 da Constituição da República Portuguesa, nos seguintes termos:

É conferido a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o direito de acção popular nos casos e termos previstos na lei, incluindo o de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização, nomeadamente para:

a) promover a prevenção ou a perseguição judicial das infracções contra a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida, a preservação do ambiente e do património cultural;

b) Assegurar a defesa dos bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais

A concretização e tradução práticas, no campo do direito processual, do direito de petição e acção popular, consta da Lei nº 83/95 de 31 de Agosto.


Diz o art. 1º, sob a epígrafe “Âmbito da presente lei”:

1. A presente lei define os casos e termos em que são conferidos e podem ser exercidos o direito de participação popular em procedimentos administrativos e o direito de acção popular para a prevenção ou a perseguição judicial das infracções previstas no nº3 do art. 52º da Constituição.

2. Sem prejuízo do disposto no número anterior, são designadamente interesses protegidos pela presente lei a saúde pública, o ambiente, a qualidade de vida, a protecção do consume de bens e serviços, o património cultural e o domínio público.

Nos termos do nº1 do art. 2º “são  titulares do direito procedimental  participação popular e do direito de acção popular quaisquer cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos e as associações e fundações defensoras dos interesses  previstos no artigo anterior, independentemente de terem ou não interesse directo na demanda.”

Importa ainda referir que o art. 13º prevê um caso especial de indeferimento liminar da petição inicial, “quando o julgador entenda que é manifestamente improvável a procedência do pedido, ouvido o Ministério e feitas preliminarmente as averiguações que o julgador tenha por justificadas ou que o autor ou o Ministério Público requeiram.”

É sabido que objecto de uma acção popular são os interesses difusos, ou colectivos. 

Nas palavras do Professor Miguel Teixeira de Sousa, “o objecto de uma acção popular são os interesses difusos, onde podem incluir-se quer os interesses difusos “stricto sensu”, quer os interesses colectivos, quer ainda os respectivos interesses individuais homogéneos (…).

Os interesses difusos são interesses que possuem uma dimensão individual e supra-individual, o contrário dos interesses individuais, que só possuem uma dimensão individual, pertencem exclusivamente a um ou alguns titulares.

Os interesse particulares homogéneos são aqueles em não existem situações individuais particularizadas, mas tão só situações jurídicas genericamente consideradas. (“A Legitimidade Popular na Tutela dos Interesses Difusos”).


Expostas estas breves noções, atentemos no caso sub judice.

O Autor propôs a presente acção alegando, no essencial, o seguinte:

Celebrou em 23.05.2001, com o BBVA Midas, Sociedade Financeira de Corretagem, um contrato de abertura de conta, de registo de depósitos e valores mobiliários;

Pelo menos desde Janeiro de 2003, o 1º Réu não remeteu ao Autor os extractos da conta, tanto de valores mobiliários como de dinheiro, ficando assim o Autor em “black out”  total relativamente à sua conta;

O 1º réu realizou na conta do Autor operações de compra e venda de Equity Total Return Swaps, fora do mercado regulamentado;

As referidas operações não foram solicitadas, autorizadas, ou confirmadas pelo Autor;

Ao agir do modo descrito, o 1º Réu violou várias disposições, que indica, do CVM;

De tudo isto resultaram para o Autor os prejuízos que indica na petição e de que pretende ser ressarcido;

Alegou ainda que há outros clientes da Ré nas mesmas condições do Autor e que também se encontram lesados.

A petição foi indeferida, por se ter entendido que “é manifestamente improvável a procedência do pedido”, ao abrigo do art. 13º da Lei nº 85/95.

Sucede que o despacho de indeferimento liminar foi proferido depois da citação dos Réus e da apresentação da contestação onde pugnaram pela improcedência da acção e a condenação do Autor como litigante de má fé.

Com a citação do réu, o acto de propositura da acção ganha eficácia em face do réu, que com ela fica constituído como parte, e a instância estabiliza nos seus elementos subjectivos e objectivos (art. 260º do CPC).

O indeferimento liminar, como se lê no Manual de Processo Civil, (Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio da Nora), pag. 258, justifica-se por razões de economia processual.

Não vale a pena prosseguir a acção, sujeitando o réu a incómodos e a despesas, se pela simples leitura da petição o juiz se persuadir de que não pode conhecer do mérito da causa ou de que a pretensão do autor não pode prosperar.

 Por conseguinte, não há lugar a indeferimento liminar depois do réu ser citado e apresentar contestação.

Donde a decisão recorrida não poder manter-se, impondo-se a sua anulação, devendo seguir o processo, nos termos previstos no art. 15º da citada Lei nº 83/95.

Com esta decisão, fica prejudicado o conhecimento das restantes questões, a saber, apreciação do recurso subordinado no qual se invoca a nulidade da sentença por omissão de pronúncia quanto à litigância de má fé e a condenação em custas.

           

Decisão

Pelo exposto, acorda-se em anular a sentença e determinar a remessa dos autos à 1ª instância para prosseguimento da acção.

Custas pelo vencido a final.


Lisboa, 11.05.2023


Ferreira Lopes (Relator)

Manuel Capelo

Nuno Ataíde das Neves