Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06P2321
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: ARMINDO MONTEIRO
Descritores: TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTE
BUSCA
BUSCA DOMICILIÁRIA
CONSENTIMENTO
CARTÃO DE TELEMÓVEL
MÉTODOS PROIBIDOS DE PROVA
NULIDADE INSANÁVEL
NULIDADE SANÁVEL
Nº do Documento: SJ200609200023213
Data do Acordão: 09/20/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I - O art. 174.º do CPP regulamenta os pressupostos gerais das buscas, as quais devem ser autorizadas ou ordenadas pela autoridade judiciária competente, ressalvando-se desta exigência os casos:
- de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, quando haja fundados indícios da prática iminente de crime que ponha em grave risco a vida ou a integridade de qualquer pessoa;
- em que os visados consintam, desde que o consentimento do visado fique, por qualquer forma, documentado;
- aquando de detenção em flagrante por crime a que corresponda pena de prisão.
II - Por seu turno, no art. 51.º do DL 15/93, de 22-01, consideram-se equiparados a casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada as condutas que integrem os crimes, entre outros previstos naquele diploma, de tráfico de estupefacientes, designadamente no seu art. 21.º.
III - O regime jurídico das buscas domiciliárias é sujeito ao regime especialmente vertido no art. 177.º do CPP, cujo n.º 1 preceitua que a busca em casa habitada ou numa sua dependência fechada só pode ser ordenada ou autorizada pelo juiz e efectuada entre as 07h00 e as 21h00, sob pena de nulidade.
IV - Nos casos de tráfico de estupefacientes, visto aquele art. 51.º do DL 15/93, de 22-01, a busca em casa habitada ou numa sua dependência fechada também pode ser ordenada pelo MP ou pelos órgãos de política criminal, mas, por força do art. 177.º, n.º 2, do CPP, por remissão para o n.º 5 do art. 174.º do mesmo diploma legal, a realização dessa diligência é, sob pena de nulidade, imediatamente comunicada ao juiz de instrução e por este apreciada em ordem à sua validação.
V - Estabelece-se aqui uma excepção ao regime jurídico da autorização judicial prévia ou do consentimento do visado, já que a gravidade e celeridade dos interesses a proteger, com o consequente perigo social e colectivo, se não compadecem com a demora de obtenção da autorização ou consentimento, sobrelevando aqueles ao valor individual de inviolabilidade do domicílio.
VI - A intervenção judicial a posteriori ao acto consumado de busca é apenas homologatória.
VII - Igual regime se seguirá quando o visado consentir na busca, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 177.º, n.º 2, 174.º, n.º 4, al. b), e 174.º, n.º 5, todos do CPP.
VIII - O regime tutelar consagrado em relação a casa habitada ou sua dependência, na hipótese de busca, mostra-se exigível como forma de acautelar o direito à inviolabilidade do domicílio, previsto no art. 34.º, n.º 1, da CRP, exprimindo tal conceito, na óptica, sempre uniforme, do TC, aquela área que tem por objecto a habitação humana, aquele espaço
fechado e vedado a estranhos, onde recatada e livremente se desenvolve toda uma série de condutas e procedimentos característicos da vida privada e familiar, ou seja, um núcleo restrito sob o signo da intimidade, de protecção da vida privada, da liberdade e da segurança individual, onde se desenrola a vivência essencial, no aspecto existencial, da pessoa.
IX - Uma garagem fechada - e não um espaço aberto, inserto num espaço mais amplo de garagens de um condomínio - como é a natureza daquela onde foi efectuada a busca nos autos, é um espaço fechado dependente da casa, local ocupante de uma relação de complementaridade com aquela - foi arrendada conjuntamente com o apartamento pelo arguido - concorrendo ambas para a realização dos fins próprios do domicílio, sem ser, no entanto, isoladamente, considerada domicílio.
X - Conjugadamente casa e garagem, enquanto espaço fechado dela dependente, merecem a tutela cominada na lei processual penal, penal e constitucional, para a busca domiciliária, não já, no caso de garagem, por se tratar de domicílio stricto sensu - em cuja intromissão indevida se não configura crime de violação de domicílio, nos termos dos arts. 190.º e 378.º
do CP -, mas por imperativo legal.
XI - Uma coisa é a garagem, enquanto espaço dependente da casa, merecer da mesma tutela para a casa - acessorium principale sequitur -, outra coisa é aquela ser ou não domicílio, que não é.
XII - Diversamente, quando a garagem se apresenta como um espaço físico não dependente da casa a busca é não domiciliária, sujeita às regras dos arts. 251.º e 252.º do CPP, embora dependente da validação ulterior do juiz, ou, como também se entende, apenas do MP, por, opina-se, não se incluir na competência do juiz em inquérito - arts. 268.º e 269.º do CPP.
XIII - Tendo o arguido dado o seu consentimento para a realização da busca à sua residência, e tendo estado presente aquando da sua efectivação, designadamente na garagem, sem oposição manifestada no acto (só meses depois), não se pode considerar que a garagem é
parte dissociada da autorização, que assim se restringia apenas ao apartamento.
XIV - Mas ainda que, porventura, se considerasse a garagem parte dissociada da autorização, estando-se ante a indiciação do crime de tráfico de estupefacientes, com alguma dimensão, de que era suspeito o arguido, tornando-se a diligência de busca e apreensão (de 90 kg de cocaína) verdadeiramente necessária para sua comprovação, correndo-se sério risco de desaparecimento desse elemento, fundamental à configuração do crime, cessando a sua utilidade, pela mais que previsível sonegação posterior, se na data não fosse efectuada pela PJ (órgão de polícia criminal), mostrava-se inteiramente proporcionada a diligência, imperativa à aquisição, recolha e conservação da prova, que a posteriori foi homologada
pela autoridade judiciária.
XV - Sobre a leitura do cartão de telemóvel sem o consentimento do arguido, a lei constitucional - art. 34.º, n.º 4, da CRP - proíbe toda a ingerência nas telecomunicações, salvo os casos previstos em matéria de processo criminal.
XVI - O cartão do telemóvel é o repositório de mensagens, a respectiva caixa de correio, que as recebe até serem inutilizadas pelo seu destinatário; a mensagem uma forma de telecomunicação, por meio diferente do telefone, à qual se aplicam as regras sobre as escutas telefónicas, por força do art. 190.º do CPP.
XVII - Aquela mensagem reveste a forma de telecomunicação (electrónica), conceito que se mostrava delineado no art. 2.º da Lei 91/97, de 01-08, revogada pela Lei 5/2004, mas que se alcança do art. 2.º, n.º 1, al. a), da Lei 41/2004, de 18-08 (Lei das Comunicações Electrónicas, definindo o tratamento de dados pessoais e a privacidade no sector das
comunicações electrónicas), enunciando a comunicação electrónica enquanto informação trocada ou enviada entre um número finito de pessoas mediante um serviço de comunicações electrónicas acessível ao público.
XVIII - A sua intercepção em tempo real, como algo incorpóreo, ocorrendo «num lapso de tempo localizado», que começa e cessa quando se «entra e sai de uma rede de comunicações» (Pedro Verdelho, Apreensão de Correio Electrónico em Processo Penal, in RMP, Ano 25.º, 2004, p. 157 e ss.) é uma interferência numa comunicação electrónica,
interferência que, sem a devida autorização judicial, não pode deixar de constituir clara ofensa às normas sobre escutas, nos termos dos arts. 187.º, n.º 1, e 188.º do CPP, aplicáveis por força do art. 190.º do mesmo diploma legal, que para aqueles remete, importando aquela crime de violação de telecomunicações - art. 194.º, n.º 2, do CP.
XIX - Defende, porém, aquele autor que após a cessação da transmissão as «mensagens deixam de ter a essência de uma comunicação em transmissão para passarem a ser antes uma comunicação já recebida, que terá porventura a mesma essência da correspondência», em nada se distinguindo de uma «carta remetida por correio físico», assimilando-se à
correspondência em forma digital. E tendo sido já recebidas, «se já foram abertas e porventura lidas e mantidas no computador a que se destinavam, não deverão ter mais protecção que as cartas em papel em que são recebidas, abertas ou porventura guardadas numa gaveta, numa pasta ou num arquivo», visto o disposto no art. 194.º, n.º 1, do CP. E a concluir afirma que «serão meros documentos escritos que podem sem qualquer reserva ser apreendidos numa busca».
XX - Mas, escreve o mesmo autor (op. cit. p. 160), se as mensagens não foram lidas pelo seu destinatário, a devassa, a partir da apreensão, está sujeita à ordem prévia de apreensão pelo juiz competente; e, escreve, ainda, se o órgão de polícia criminal se aperceber de mensagens naquelas condições deve «apresentar o computador (ou outro eventual suporte
onde estiver registada a informação) ao Ministério Público que o deverá apresentar ao juiz de instrução, para que este seja o primeiro a tomar conhecimento do correio». Em qualquer dos casos incumbe ao juiz ordenar ou não a junção de cópia do correio em causa ao processo.
XXI - Discorda-se da conclusão daquele autor no caso de as mensagens já terem sido lidas, porque, quer as mensagens tenham sido lidas ou não pelo destinatário, o que nem sempre se torna de destrinça fácil, sobretudo se e quando algum do software de gestão de correio electrónico possibilita marcar como aberta ou não aberta uma mensagem, por vontade do seu destinatário, independentemente de ter sido ou não lida, aquele tem sempre o direito a não ver essa correspondência que lhe foi endereçada devassada por alguém, sem sua autorização, constituindo a leitura dessa correspondência intromissão absolutamente ilegítima nela, atentado ao direito à inviolabilidade da mesma, consagrado no art. 34.º, n.º
4, da CRP.
XXII - A mensagem (vulgo SMS) tem um específico destinatário e, enquanto arquivada no cartão do telemóvel, assiste àquele o direito a não ver o teor daquela divulgado, o que não sucedeu no caso vertente quando a PJ procedeu à leitura do cartão telemóvel sem prévia autorização judicial ou validação daquela.
XXIII - O juiz que tiver autorizado a leitura é mesmo, à face da lei, o primeiro a tomar conhecimento do teor da correspondência apreendida para a juntar ao processo, se for relevante para a prova, ou inutilizá-la, no caso contrário, nos termos do n.º 3 do art. 179.º do CPP, o que realça a importância da intromissão na esfera de correspondência dirigida a qualquer cidadão.
XXIV - Nos termos do art. 126.º do CPP, os métodos proibidos de prova são de duas categorias, consoante a disponibilidade ou indisponibilidade dos bens jurídicos violados: os absolutamente proibidos, pelo uso de tortura, coacção ou em geral ofensas à integridade física ou moral - n.ºs 1 e 2 -, que não podem em caso algum ser utilizados, mesmo com o consentimento dos ofendidos, e os relativamente proibidos - n.º 3 -, que respeitam ao uso
de meios de prova com intromissão na correspondência, na vida privada, domicílio ou telecomunicações, sem consentimento do respectivo titular.
XXV - A locução “sem o consentimento do respectivo titular” tem sido usado como pedra de toque para o estabelecimento da dicotomia prova absolutamente nula e prova relativamente nula. Se o consentimento do titular afasta a nulidade, então esta não é insanável e o decurso do prazo de invocação preclude o direito à declaração de invalidade do acto e dos que dela dependerem, no caso vertente até 5 dias sobre a notificação de encerramento de inquérito - n.º 3 do art. 120.º do CPP.
XXVI - Os métodos absolutamente proibidos de prova, por se referirem a bens absolutamente indisponíveis, determinam que a prova seja fulminada de nulidade insanável, a qual está consagrada na expressão imperativa “não podendo ser utilizadas”, usada no art. 126.º, n.º 1, do CPP.
XXVII - Com efeito, há casos de atentados extremos à pessoa humana em que os direitos fundamentais comportam uma dimensão tal que, em vista da protecção do cidadão ante o Estado e como forma de assegurar a sua subsistência e a convivência em segurança e polidireccionada dos cidadãos, com respeito pela dignidade respectiva e o justo equilíbrio entre a contribuição de todos e cada um para o bem comum, os meios de prova obtidos com violação daqueles é intolerável. Há, no entanto, outros em que, mediante certos condicionalismos, não repugna admitir a sua violação, abandonando o legislador ordinário aquela tutela absoluta e incontornável, para cair numa inadmissibilidade meramente relativa de tais meios de prova, como forma de salvaguardar «valores de irrecusável prevalência e transcendentes aos meros interesses da perseguição penal» nas palavras do Prof. Costa Andrade, in Sobre os Meios de Prova em Processo Penal, p. 45 (cf., ainda, Conde Correia, in RMP, Ano 20.º, Julho/Setembro, 1999, n.º 79, p. 53, e Manuel Monteiro Guedes Valente, op. cit . p. 121).
XXVIII - Essa nulidade relativa resulta do facto de a proibição de utilização não se compendiar entre as nulidades insanáveis - art. 119.º do CPP -, atendendo a lei, quanto a tal meio de prova poder ser usado, à vontade do seu titular, ao seu consentimento , segundo o princípio
volenti non fit injuris, dependente de arguição do interessado, em prazo fixado por lei - art.120.º, n.º 3, al. c), e 121.º do CPP (cf. Maia Gonçalves, in Meios de Prova, Jornadas de Direito Processual Penal - O Novo Código de Processo Penal, 1989, p. 115).
XXIX - Os métodos de proibição absoluta ou relativa de prova constituem limites, obstáculos absolutamente ou relativamente intransponíveis à descoberta da verdade, e têm a ver com a inadmissibilidade ou admissibilidade da sua valoração no processo, com a consequência da
nulidade insanável da prova ou a simples anulabilidade, respectivamente.
XXX - No caso dos autos, com a leitura dos 2 cartões de telemóvel, em inquérito, cometeu-se nulidade não insanável, por se não compendiar entre as nulidades insanáveis do art. 119.º do CPP: o órgão de polícia criminal, a PJ, procedeu à apreensão e leitura dos cartões em 03-02-2005, mas desacompanhada de autorização judicial, sem suporte legal; o arguido
interveio no processo logo em 03-02-2005, pelo que a nulidade de tal meio de prova, derivada daquela leitura e da prévia apreensão sem autorização judicial, deveria ser arguida até 5 dias sobre o encerramento do inquérito, nos termos das als. a) e c) do n.º 3 do art. 120.º do CPP, o que não sucedeu, não obstante a constituição de advogado em 17-02-2005.
De resto, o arguido foi notificado, pessoalmente, da acusação em 07-09-2005 e o seu advogado em 02-09-2005, mas só em 30-09-2005 invocou a nulidade da leitura das mensagens gravadas nos cartões e em 05-12-2005, em julgamento, a derivada das apreensões, mostrando-se exaurido o prazo legal em que o podia fazer, pelo que se mostra sanada a nulidade realmente cometida quanto à leitura dos dois cartões e sua apreensão.
XXXI - A tese da inadmissibilidade relativa de tal meio de prova, ou seja da intercepção da correspondência, sem consentimento do visado, que acolhemos, pode reputar-se dominante no seio da jurisprudência. Porém, ao nível da doutrina, e em contraposição à opinião de Maia Gonçalves, os Profs. Teresa Beleza e Germano Marques da Silva (in A Prova, Apontamentos de Direito Processual Penal, 1992, II vol., p. 151-152, e Curso de Processo Penal, 2.ª ed., Ed. Verbo, 1999, II vol., p. 116 e ss., respectivamente) têm entendido que se o legislador quisesse considerar o regime das nulidades previsto no art. 118.º e ss. do CPP ter-se-ia referido a elas nesse lugar sistemático, interpretando o termo “nulas” no sentido de
em caso algum poderem ser valoradas, do conhecimento oficioso, até ao trânsito em julgado.
XXXII - De todo o modo, no caso dos autos, a leitura das mensagens, a reputar a prova respectiva absolutamente nula, em caso algum podendo ser valorada, nem por isso se comunica (essa nulidade) a outros meios de prova, designadamente à busca e apreensão de droga, tornada possível pelo recurso a meio lícito; esse «veneno», no contexto global da prova, não leva à “vinculação normativa do fruto à «árvore envenenada»” (cf. Prof. Costa Andrade, Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, pág. 61), apresentando-se essa prova com a demais bastante para convencer e fundamentar a condenação imposta.
Decisão Texto Integral:

Acordam em audiência na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça :

Em processo comum com intervenção do tribunal colectivo sob o n.º ../05.4JAPRT , do Tribunal Judicial de Ílhavo , foi , com outra , submetido a julgamento AA , vindo , a final , a ser condenado como autor material de um crime de tráfico de estupefacientes , p . e p . pelo art.º 21.º n.º 1 , do Dec.º-Lei n.º 15/93 , de 22/1 , na pena de 6 anos e 6 meses de prisão .

I . Inconformado com o teor da decisão proferida interpõs o arguido recurso para a Relação de Coimbra que aquela confirmou , de novo interpondo recurso para este STJ , apresentando na motivação as seguintes conclusões :

È integrante do crime de tráfico de estupefacientes a verificação de intuito lucrativo , pelo que não ocorrendo está em causa a sua condenação .

Também não é razoável condenar alguém sem que o traficante conheça o valor da mercadoria suposta e ilicitamente a transaccionar , circunstância que ocorria com o arguido , que não pode ser condenado .

Assim mostra-se violado o princípio da presunção de inocência do arguido e o de que não há pena sem culpa formada –art.ºs 29.º . 32.º e 205.º , da CRP .

A condenação assentou no recurso a provas irregularmente obtidas , desde logo numa busca não autorizada ou ordenada pelo Juiz , nos termos do art.º 177.º , do CPP .

A autorização concedida pelo arguido não é um dos casos em que o juiz possa ser substituído pelo visado , por estarem em causa os direitos à privacidade e intimidade , que , apenas , podem ser condicionados e supervisionados , em casos particulares , pelo juiz.

Mas ainda que o visado pudesse substituir-se ao juiz , o imóvel objecto da busca não pertencia ao arguido nem de facto nem de direito .

Não podia a busca ser autorizada pelo recorrente , devendo reputar-se nula , nos termos do art.º 177 .º , do CPP .

A busca realizada na garagem pela mesma razão não podia ser validada pelo consentimento do arguido .

Sendo a garagem uma edificação separada do domicílio, com entradas autónomas e acesso permitido a terceiros , deveria obter-se uma autorização autónoma para o efeito , o que não sucedeu .

A busca é nula por ausência de autorização do juiz competente constatando-se violação da privacidade fora das hipóteses legais –art.ºs 177.º , do CP e 34.º n.º 2 , da CRP :

Sendo nulas as buscas as apreensões nulas são , tanto mais que se não verificou , “ a posteriori” uma validação expressa por despacho do competente juiz , não bastando um acto tácito , havendo uma violação do art.º 178.º , do CPP .

Igualmente se mostram nulas as supostas provas obtidas através da recolha de dados dos telemóveis , visto que o foram sem autorização do juiz , quer se entenda que são correspondência aberta quer se pugne pelo entendimento de que devem ser tratados no âmbito das chamadas telefónicas .

O acesso aos telemóveis é restrito ao conhecimento do código pessoal de acesso , pelo que não são equiparadas a mensagens aí obtidas a correspondência aberta .

É impossível , de resto , por falta de registo de horas , datas e números, concluir que ainda não haviam sido lidas pelo arguido .

Devia ter havido , dada a equiparação desses dados informativos a comunicações , um despacho de um juiz a autorizar a respectiva recolha , nos termos dos art.ºs 187.º , 188.º , 189 .º e 190 .º , do CPP .

Devem esses elementos ser reputados nulos visto estar em causa o direito à inviolabilidade do domicílio e ao sigilo de correspondência e restantes meios de comunicação , cujas restrições são apenas consentidas nas condições enunciadas no CPP e no respeito pela autorização de um juiz

Até porque nunca foi estabelecida uma relação de propriedade entre o recorrente e os telemóveis

Deve considerar-se que não estão redigidos os pressupostos para a condenação do arguido ou atenuar-se especialmente a pena .

II O Exm.º Procurador Geral -Adjunto na Relação defendeu o acerto da decisão recorrida e , neste STJ , o Exm.º Procurador Geral-Adjunto requereu que se designasse dia para o julgamento .

III. Colhidos os legais vistos , cumpre decidir , considerando que , com pertinência ao arguido , se provaram os factos seguintes :

Em Dezembro de 2004 , o arguido AA arrendou um apartamento , com garagem fechada , sito na Av. ..., n.º 111.º , 1.º , direito , na Barra , com o propósito de ali vir a guardar substâncias estupefacientes .

No início de Fevereiro de 2005 , o arguido AA deslocou-se a Espanha para Portugal , a fim de diligenciar pela armazenagem , na referida garagem , de cocaína e pela sua posterior distribuição por locais não apurados .

Com vista a efectuar os contactos necessários tinha consigo os telemóveis com os n.ºs ... e ... e um outro , da marca Nokia , modelo 100 , sem qualquer cartão .

No dia 2 de Fevereiro por volta das 14h40 , o arguido mantinha guardados no interior da garagem em questão três fardos , com noventa embalagens , de um quilograma cada , contendo cocaína , seis sacos de serapilheira rasgados e vazios , semelhantes aos que envolviam os “ fardos “ , um x-acto , um alicate e uma pá com cabo em madeira .

O arguido conhecia as características do produto que detinha , destinando-o à distribuição e venda a terceiros , bem sabendo que a sua detenção e venda eram proibidas e punidas pela lei penal .

O arguido agiu de forma voluntária , consciente e livre .

O arguido vivia e trabalhava há mais de 15 anos na cidade de Marbella , em Espanha , exercendo a actividade profissional de vendedor de automóveis , actividade essa que se ressentia pela dificuldade em vender automóveis em segunda mão .

O arguido não tem antecedentes criminais .

IV. A primeira questão a abordar respeita à invocada nulidade da busca domiciliária que , segundo o arguido , não foi autorizada pelo juiz , ao qual não pode aquele substituir-se nos termos do art.º 177.º , do CPP , uma vez que o imóvel não lhe pertence , nem de facto nem de direito .

Por outro lado , a garagem sendo uma edificação separada do domicílio com entradas autónomas e acesso permitido a terceiros deveria ser objecto de uma autorização de busca autónoma , com requisitos próprios , que não foi obtida no caso vertente .

Vejamos :

O art.º 174.º , do CPP , regulamenta os pressupostos gerais das buscas , as quais devem ser autorizadas ou ordenadas pela autoridade judiciária competente , ressalvando-se desta exigência os casos :

a) De terrorismo , criminalidade violenta ou altamente organizada , quando haja fundados indícios da prática iminente de crime que ponha em grave risco a vida ou a integridade de qualquer pessoa ;

b) Em que os visados consintam , desde que o consentimento do visado fique , por qualquer forma , documentado ; ou

c) Aquando de detenção em flagrante por crime a que corresponda pena de prisão .”

Por seu turno no art.º 51.º , do Dec.º-Lei n.º 15/93 , de 22/1 , consideram-se equiparados a casos de terrorismo , criminalidade violenta ou altamente organizada as condutas que integrem os crimes , entre outros previstos naquele diploma , de tráfico de estupefacientes , designadamente no seu art.º 21.º .

O regime jurídico das buscas domiciliárias é sujeito ao regime especialmente vertido no art.º 177.º , do CP , cujo n.º 1 preceitua que a busca em casa habitada ou numa sua dependência fechada só pode ser ordenada ou autorizada pelo juiz e efectuada entre as 7 e as 21 horas , sob pena de nulidade .

Nos casos de tráfico de estupefacientes , visto aquele art.º 51.º , do Dec.-Lei n.º 15/93 , de 22/1 , a busca em casa habitada ou dependência fechada dela dependente também pode ser ordenada pelo M.º P.º ou órgãos de política criminal , mas , por força do art.º 177.º citado , seu n.º 2 , por remissão para o n.º 5 , do art.º 174.º , também citado , a realização dessa diligência é , sob pena de nulidade , imediatamente comunicada ao juiz de instrução e por este apreciada em ordem à sua validação .

Estabelece-se aqui uma excepção ao regime jurídico da autorização judicial prévia ou do consentimento do visado , já que a gravidade e celeridade dos interesses a proteger , com o consequente perigo social e colectivo , se não compadecem com a demora de obtenção da autorização ou consentimento , sobrelevando aqueles ao valor individual de inviolabilidade do domicílio .

A intervenção judicial , “ a posteriori” , ao acto consumado de busca é , apenas , homologatória .

Igual regime se seguirá quando o visado nela consentir , nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs 177.º n.º2 , 174.º n.º 4 b) e 174.º n.º 5 , do CPP . .

O arguido prestou o seu consentimento na busca sob a forma seguinte .” declaro que autorizo que los inspectores de la policia judiciária do Porto efectuen una busca domiciliária a mi residencia en Av... n.º 111 , 1.º Barra –Aveiro , em 2 de Fevereiro de 2005 –fls 28 e 29 do processo “ .

Na posse destes elementos vem a propósito ter presente que o regime tutelar consagrado em relação a casa habitada ou sua dependência , na hipótese de busca , se mostra exigível como forma de acautelar o direito à inviolabilidade do domicílio , prevista no art.º 34.º n.º 1 , da CRP , exprimindo tal conceito , na óptica , sempre uniforme , do TC , aquela área que tem por objecto a habitação humana , aquele espaço fechado e vedado a estranhos , onde recatada e livremente se desenvolve toda uma série de condutas e procedimentos característicos da vida privada e familiar , como se escreveu no AC. n.º 452 /89 , in DR , I Série , de 22/7 , ou seja um núcleo restrito sob o signo da intimidade , de protecção da vida privada , da liberdade e da segurança individual , onde se desenrola a vivência essencial , no aspecto existencial , da pessoa .

Uma garagem fechada –não assim um espaço aberto , inserto num espaço mais amplo de garagens de um condomínio -como é a natureza daquela onde foi efectuada a busca , é um espaço fechado dependente da casa , local ocupante de uma relação de complementaridade com aquela –foi arrendada conjuntamente com o apartamento pelo arguido -concorrendo ambas para a realização dos fins próprios do domicílio , sem ser , no entanto , isoladamente , considerada domicílio.

Quando a lei alude a busca dependências fechadas da casa , não exige a sua discriminação expressa e naquelas se consideram imperiosamente as garagens , ponderou-se nos Acs. da Rel .Lisboa , de 21.2.95 e 13.1 2000 , in CJ , anos XX e XXV, TI , págs . 163 e 137 , respectivamente

Conjugadamente casa e garagem enquanto espaço fechado dela dependente , merecem a tutela cominada na lei processual penal , penal e constitucional , para a busca domiciliária , por imperativo legal , não já por se tratar de domicílio “ stricto sensu” , já por a identificação do domicílio se não reportar pela referência em regra à garagem , quer por não ser aí que o seu utente desenvolve o núcleo essencial da sua vida, em cuja intromissão indevida se não configura crime de violação de domicílio , nos termos dos art.ºs 190.º e 378.º , do CP , até por isso se não enquadrando no conceito de domicílio .

Uma coisa é a garagem , enquanto espaço dependente da casa merecer da mesma tutela para a casa –acessorium principale sequitur -, outra coisa , mas diversa é o ser ou não domicílio , como nos parece que não o é .

Do que se não tem dúvidas é que sendo espaço físico não dependente da casa então a busca é uma busca não domiciliária , sujeita às regras dos art.ºs 251.º e 252 .º , do CPP , porém dependente da validação ulterior do juiz , ou , como também se entende , apenas do M.º P.º , por não , opina-se , se incluir na competência do Juiz em inquérito –art.ºs 268.º e 269.º , do CPP .

Em 3.2.2005 o arguido esteve presente à busca , que abrangeu toda a habitação , composta por dois quartos , sala , cozinha , duas casas de banho , despensa e uma garagem individual ( sublinhado nosso ) , tendo aí sido encontrada o produto estupefaciente ; a própria PJ considerou , no auto de fls. 29 , a garagem integrante do domicilio .

V. Como faz questão de salientar o acórdão recorrido , norteando-se já a investigação na data da busca para a indiciação de um evidente e já significativo crime de tráfico de estupefacientes , estava dispensada a prévia autorização do visado com aquela diligência , apenas cabendo , para a perfeição formal de tal acto de inquérito, a imediata comunicação ao M.º JIC , para validação .

Do exposto se ilaciona que a intervenção do juiz nesta fase processual é a de controlar a legalidade , e , bem assim , garantir direitos fundamentais dos cidadãos , in casu a inviolabilidade do domicílio , ou seja uma função com dimensão garantística e não de valoração das provas .

Este STJ , no seu Ac. de 25.1.96 , in P.º n.º 48.505 , decidiu que a busca domiciliária , em caso de tráfico de estupefacientes , sendo este crime equiparado à criminalidade violenta , pode ser feita sem precedência de autorização judicial , sujeita àquela posterior validação .

E assim aconteceu em termos processuais , pois logo em 3.2.2005 , consumada a busca , o Exm.º Magistrado do M.º P.º apresentou o arguido para interrogatório judicial , acompanhando –o o expediente probatório alcançado , e , na sequência , o M.º JIC ordenando a sua prisão preventiva , tacitamente validou a busca , na qual se ancorou para impõr aquela medida coactiva em 4.3.2005 –cfr. Fls . 129 .

À falta de pronúncia explícita se deve equiparar a implícita , desde que ,pelos seus termos , a validação da busca resulte , inequivocamente , como resulta dos autos .

VI. De resto a autorização da efectivação da busca à garagem resulta do próprio visado , do seu consentimento , não se opondo , de imediato , à diligência , com o que a ela , implicitamente , aquiesceu , só meses depois se insurgindo contra ela , e que esse consentimento é válido não se suscitam dúvidas de qualquer espécie por provir de quem tem o poder de dispõr daquela , por contrato de arrendamento celebrado e ser o atingido pela diligência –cfr. , neste sentido , Manuel G. Valente , Revistas e Buscas , 2.ª ed. , Almedina , pág. 119 e segs .

O termo visado comporta , pois , um sentido amplo , abrangendo todo aquele que possa ser afectado no direito que se visa acautelar com a imposição do consentimento , não bastando a mera disponibilidade mercê de uma ligação acidental e intitulada com o local -Cfr. Ac. deste STJ , de 8.2.95 , in CJ , STJ , I , Ano III , 194 e no BMJ 444, 363 .

Mais uma razão para se considerar válida a busca , a que o arguido , de pronto , não reagiu nem mesmo quando , em 17.2.2005 , constituiu advogado .

VII Mas ainda que , porventura , se considerasse a garagem parte dissociada da autorização , ou seja que a autorização concedida se restringisse apenas ao apartamento , estando-se ante a indiciação do crime de tráfico de estupefacientes , com alguma dimensão , de que era suspeito o arguido , respeitante a um dos estupefaciente mais perniciosos em difusão , tornando-se a diligência de busca e apreensão ( de 90 Kgs. de cocaína) verdadeiramente necessária para prova da sua comprovação , correndo-se sério risco de desaparecimento desse elemento , fundamental à configuração do crime , cessando a sua utilidade , pela mais que previsível sonegação posterior , se na data não fosse efectuada pela PJ (órgão de polícia criminal) , mostrava-se inteiramente proporcionada a diligência , imperativa à aquisição , recolha e conservação da prova .

No acto da busca foi cumprida , substancialmente , a sua validação , a intervenção homologante , “ a posteriori” , da autoridade judiciária , ou seja do juiz de instrução , nos termos do art.º 174.º , n.º 5 , do CPP , confirmativa da sua legalidade , pela forma já descrita em V, parte final .

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VIII. Sobre a leitura do cartão de telemóvel sem o consentimento do arguido a lei constitucional- art.º 34.º n.º 4, da CRP –proibe toda a ingerência nas telecomunicações , salvo os casos previstos em matéria de processo criminal .

O cartão do telemóvel é o repositário de mensagens , a respectiva caixa de correio , que as recebe até serem inutilizadas pelo seu destinatário , a mensagem uma forma de telecomunicação , por meio diferente de telefone , à qual se aplicam as regras sobre as escutas telefónicas por força do art.º 190.º , do CPP .

Revestindo a mensagem uma forma de telecomunicação (electrónica ) , conceito que se mostrava delineado no art.º 2.º , da Lei n.º 91/97 , de 1/8 , revogada pela Lei n.º 5/2004 , mas que se alcança do art.º 2.º n.º 1 al.a) , da Lei n.º 41/2004 , de 18 de Agosto , ( Lei das Comunicações Electrónicas , definindo o tratamento de dados pessoais e a privacidade no sector das comunicações electrónicas ) enunciando a comunicação electrónica enquanto informação trocada ou enviada entre um número finito de pessoas mediante um serviço de comunicações electrónicas acessível ao público .

A sua intercepção em tempo real , como algo incorpóreo , ocorrendo “ num lapso de tempo localizado , “ que começa e cessa quando se “ entra e sai de uma rede de comunicações “ , para utilizar as palavras do Exm.º Procurador Adjunto , Dr. Pedro Verdelho no seu estudo , “ Apreensão de Correio Electrónico em Processo Penal “ , in RMP , ANO 25 , 2004 , págs . 157 e segs . ) é uma interferência numa comunicação electrónica , interferência que , sem a devida autorização judicial , não pode deixar de constituir clara ofensa às normas sobre escutas nos termos dos art.º 187.º n.º 1 e 188 .º , do CPP , aplicáveis por força do art.º 190.º , do CPP , que para aqueles remete , importando aquela crime de violação de telecomunicações –art.º 194.º n.º 2 , do CP .

Aquele Exm.º Magistrado , em tal estudo , faz contudo questão de ponderar que , após a cessação da transmissão , e citando , “ As mensagens deixam de ter a essência de uma comunicação em transmissão para passarem a ser antes uma comunicação já recebida , que terá porventura a mesma essência da correspondência “ , “ em nada se distinguindo de uma “ carta remetida por correio físico” , assimilando-se à correspondência em forma digital .

E tendo sido já recebidas , “ se já foram abertas e porventura lidas e mantidas no computador a que se destinavam , não deverão ter mais protecção que as cartas em papel em que são recebidas , abertas ou porventura guardadas numa gaveta , numa pasta ou num arquivo “ , visto o disposto no art.º 194.º n.º 1, do CP .

E a concluir afirma que “ serão meros documentos escritos que podem sem qualquer reserva ser apreendidos numa busca “ –Estudo citado , pág. 159 .

Mas , escreve aquele autor , (op. cit . pág. 160) , se as mensagens não foram lidas pelo seu destinatário , a devassa , a partir da apreensão , está sujeita à ordem prévia de apreensão pelo juiz competente ; e , escreve , ainda , que se o órgão de polícia criminal se aperceber de mensagens naquelas condições , deve “ apresentar o computador (ou outro eventual suporte onde estiver registada a informação ) ao Ministério Público que o deverá apresentar ao juiz de instrução , para que este seja o primeiro a tomar conhecimento do correio “ .

Em qualquer dos casos incumbe ao juiz ordenar ou não a junção de cópia do correio em causa ao processo .

Divergimos da conclusão daquele autor no caso de as mensagens já terem sido lidas , porque , quer as mensagens tenham sido lidas ou não pelo destinatário , o que nem sempre se torna de destrinça fácil , sobretudo se e quando algum do “ software” de gestão de correio electrónico possibilita marcar como aberta ou não aberta uma mensagem , por vontade do seu destinatário , independentemente de ter sido ou não lida , aquele tem sempre o direito a não ver essa correspondência que lhe foi endereçada devassada por alguém , sem sua autorização , constituindo a leitura dessa correspondência intromissão absolutamente ilegítima nela , atentado ao direito à inviolabilidade da mesma , consagrado no art.º 34.º n.º 4 , da Constituição .

IX. A mensagem (vulgo SMS) tem um específico destinatário e enquanto arquivada no cartão do telemóvel , assiste àquele o direito a não ver o teor daquela divulgado , o que não sucedeu no caso vertente quando a Polícia Judiciária , procedeu à leitura do cartão telemóvel , sem prévia autorização judicial ou validação daquela .

O juiz que tiver autorizado a leitura é mesmo à face da lei o primeiro a tomar conhecimento do teor da correspondência apreendida para a juntar ao processo se for relevante para a prova ou inutilizá-la , no caso contrário , nos termos do n.º 3 , do art.º 179.º , do CPP , o que realça a importância da intromissão na esfera de correspondência dirigida a qualquer cidadão .

Outra questão : do art.º 126.º , do CPP , resulta que os métodos proibidos de prova são de duas categorias , consoante a disponibilidade ou indisponibilidade dos bens jurídicos violados: os absolutamente proibidos e os relativamente proibidos ; aqueles , pelo uso de tortura , coacção ou em geral ofensas à integridade física ou moral , na forma dos n.ºs 1 e 2 , nunca podem em caso algum ser utilizados , mesmo com o consentimento dos ofendidos ; os últimos –n.º 3- meios relativamente proibidos de prova respeitam ao uso de meios de prova com intromissão na correspondência , na vida privada , domicílio ou telecomunicações , sem consentimento do respectivo titular.

Esta locução “ sem o consentimento do respectivo titular” tem sido usado como pedra de toque para o estabelecimento da dicotomia prova absolutamente nula e prova relativamente nula .

Se o consentimento do titular afasta a nulidade , então esta não é insanável e o decurso do prazo de invocação preclude o direito à declaração de invalidade do acto e dos que dela dependerem , no caso vertente até 5 dias sobre a notificação de encerramento de inquérito - n.º 3 , do art.º 120.º , do CPP –cfr. BMJ 416 , 536 e segs. e Ac. da Rel. Lisboa , de 21.2.95 , in CJ , XX , TI , 165 .

O legislador constitucional , escreve Conde Correia , in Contributo para a análise da inexistência e das nulidades processuais penais “, Studia Juridica , 44 , Coimbra , 1999, 194 , “ …consagrou um regime de invalidades segundo o qual quanto maior for a gravidade do vício de que enferma o acto , maior deve ser a sanção processual aplicável e menor a possibilidade de sobrevivência do acto ser praticado (…) e em que os casos mais graves são enumerados expressa e restritivamente , ao lado de uma cláusula geral válida para outras situações “

Os métodos absolutamente proibidos de prova , por se referirem a bens absolutamente indisponíveis , determinam que a prova seja fulminada de nulidade insanável , a qual está consagrada na expressão imperativa “não podendo ser utilizadas “ em uso no art.º 126.º n.º 1 , do CPP .

Há casos de atentados extremos à pessoa humana em que os direitos fundamentais comportam uma dimensão tal que , em vista da protecção do cidadão ante o Estado e como forma de assegurar a sua subsistência e a convivência em segurança e polidireccionada dos cidadãos , com respeito pela dignidade respectiva e o justo equilíbrio entre a contribuição de todos e cada um para o bem comum , de tal modo que os meios de prova obtidos com violação daqueles é intolerável ; há no entanto, outros em que , mediante certos condicionalismos , não repugna admitir a sua violação , abandonando o legislador ordinário aquela tutela absoluta e incontornável , para cair numa inadmissibilidade meramente relativa de tais meios de prova , como forma de salvaguardar “ valores de irrecusável prevalência e transcendentes aos meros interesses da perseguição penal “ nas palavras do Prof. Costa Andrade , in Sobre os Meios de Prova em Processo Penal , pág. 45 ; cfr. ainda Conde Correia , in R M .º P.º , Ano 20 , Julho /Setembro , 1999, n.º 79, pág. 53 e Manuel Monteiro Guedes Valente , op. cit . pág. 121 , que seguimos , com a devida vénia , de perto .

Essa nulidade relativa resulta do facto de a proibição de utilização não se compendiar entre as nulidades insanáveis –art.º 119.º , do CPP -, atendendo a lei , quanto a tal meio de prova poder ser usado , à vontade do seu titular , ao seu consentimento , segundo o princípio “ volenti non fit injuris” , dependente de arguição interessado , em prazo fixado por lei-art.º 120 .º n.º 3 c) e 121.º , do CPP. Esta a posição suatentada por Maia Gonçalves , in Meios de Prova ; Jornadas de Direito Processual Penal -O Novo Código de Processo Penal , 1989 , pág. 115 e o citado AC. deste STJ , de 8.2.95 .

X. Os métodos de proibição absoluta ou relativa de prova constituem limites, obstáculos absolutamente ou relativamente intransponíveis à descoberta da verdade , e têm a ver com a inadmissibilidade ou admissibilidade da sua valoração no processo , com a consequência da nulidade insanável da prova ou a simples anulabilidade , respectivamente

Cometeu-se , pois , quanto à leitura dos 2 cartões de telemóvel , em inquérito , nulidade não insanável , por se não compendiar entre as nulidades insanáveis do art.º 119.º , do CPP .

O órgão de polícia criminal , a Polícia Judiciária , procedeu à apreensão e leitura dos cartões em 3.2.2005 –cfr . fls. 42, 44 e 45. , mas desacompanhada de autorização judicial , sem suporte legal .

O arguido interveio no processo logo em 3.2.2005 , pelo que tal nulidade de tal meio de prova , derivada daquela leitura e aprévia apreensão , sem autorização judicial deveria ser arguida até 5 dias sobre o encerramento do inquérito , nos termos do n.º 3 , do art.º 120.º n.º 3 a) e c ) , do CPP . –cfr. BMJ 416 , 536 e segs e Ac. da Rel. Lisboa , de 21.2.95 , in CJ , XX , TI , 165 -, o que não sucedeu , não obstante a constituição de advogado em 17.2.2005 .

De resto o arguido foi notificado , pessoalmente , da acusação em 7 de Setembro de 2005 –fls. 662 - e o seu advogado em 2 de Setembro de 2005 ( fls. 660 e 661) só em 30 de Setembro de 2005 invocou a nulidade da leitura das mensagens gravadas nos cartões ( fls. 687) e, em 5 de Dezembro de 2005 , em julgamento , a derivada das apreensões , mostrando-se exaurido o prazo legal em que o podia fazer , pelo que se tem de mostrar sanada a realmente cometida quanto à leitura dos dois cartões e sua apreensão .

A tese da inadmissibilidade relativa de tal meio de prova , ou seja da intercepção da correspondência , sem consentimento do visado , pode reputar-se dominante no seio da jurisprudência –cfr. os Acs. deste STJ , de 8.2.95 citado já , bem como os de 11.3.93 , P.º n.º 43512 e de 23.4.1992 , porém ao nível da doutrina , e em contraposição à opinião de Maia Gonçalves , perfilam-se os Profs . Teresa Beleza e Germano Marques da Silva , in A Prova , Apontamentos de Direito Processual Penal , 1992 , II Vol . 151-152 e curso de Processo Penal , 2.ª ed. , Ed. Verbo , 1999 , II , 116 e segs . , respectivamente para quem se o legislador quisesse considerar o regime das nulidades previsto no art.º 118.º e segs . do CPP ter-se-ia referido a elas nesse lugar sistemático , interpretando o termo “ nulas “ , no sentido de em caso algum poderem ser valoradas , de conhecimento oficioso e até ao trânsito em julgado .

Inclinamo-nos para a tese da nulidade sanável como decorre dos termos da lei e da jurisprudência seguida neste STJ .

XI . Aliás a leitura destes , a reputar a prova respectiva absolutamente nula , em caso algum podendo ser valorada , nem por isso essa nulidade se comunica a outros meios de prova , designadamente à busca e apreensão de droga , tornada possível pelo recurso a meio lícito ; esse “ veneno “ , no contexto global da prova , não leva à “ vinculação normativa do fruto à “ àrvore envenenada “ –cfr. Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal , pág. 61 do Prof. Costa Andrade -, apresentando-se essa prova com a demais bastante para convencer e fundamentar a condenação imposta.

A prova produzida convence que o arguido , arrendatário da garagem onde foi encontrada a cocaína era o seu dono , com exclusão de outrem , conhecendo o carácter ilícito dessa posse e , assim , se mostrando incurso no crime por que foi condenado .

O arguido labora em erro quando erige em elemento da acção típica do crime de tráfico de estupefacientes o intuito de obtenção de lucro ou o conhecimento do valor do estupefaciente ilegalmente detido , irrelevante sendo tal arguição .

Por fim não menos incompreensível se torna a petição de atenuação especial da pena , totalmente desacompanhada da verificação e alegação dos pressupostos de facto e de direito de que a faz depender o art.º 72.º , do CP .

XII . Termos em que , neste STJ , se nega provimento ao recurso , confirmando-se a decisão recorrida .

Taxa de Justiça : 15 Uc,s . Procuradoria : ½ .

Supremo Tribunal de Justiça, 20 de Setembro de 2006

Armindo Monteiro (Relator)

Sousa Fonte

Santos Cabral

Oliveira Mendes