Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
93/09.5TAABT.E1.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: ARMINDO MONTEIRO
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
ARMA PROIBIDA
COACÇÃO
CONSENTIMENTO
CÚMULO JURÍDICO
GRAVIDEZ
IMAGEM GLOBAL DO FACTO
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PENA ÚNICA
Data do Acordão: 05/22/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO EM PARTE
Área Temática:
DIREITO PENAL - CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / ESCOLHA E MEDIDA DA PENA / PUNIÇÃO DO CONCURSO DE CRIMES - CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A LIBERDADE PESSOAL / CRIMES CONTRA A AUTODETERMINAÇÃO SEXUAL.
Doutrina:
- Bettiol, Sobre a Presunção legal, Escritos Jurídicos, 1996, I, 344.
- Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito Penal, ed. Verbo, 1992, 252.
- Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, p. 291; citado por Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código Penal, 196.
- Heloísa Pinto, A Sexualidade na Escola, Ed. Summus, S. Paulo, 1997, 46.
- Iescheck, Tratado de Derecho Penal, Parte Geral, 4.º ED, p. 668 e segs..
- Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, p.283.
- Tereza Beleza, citada in Comentário Conimbricense do Código Penal, TI, 541.
Legislação Nacional:
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 22.º, 23.º, 31.º, N.º 1, D), 38.º, N.ºS 1, 2 E 3, 40.º, 42.º, 71.º, 73.º, N.º1, ALS. A) E B), 77.º, N.º 1 E 2, 154.º, N.ºS 1 E 2, E 155.º, N.º 1, AL. A), 171.º, N.ºS 1 E 2, 177.º, N.º 4.
LEI Nº 5/2006, DE 23 DE FEVEREIRO, NA REDACÇÃO INTRODUZIDA PELA LEI N.º 17/2009, DE 06 DE MAIO; - ARTIGO 86.º, N.º 1, AL. D), COM REFERÊNCIA AOS ARTIGOS 2º, Nº 1, AL. E) E Z), 3º, N.º 1 E 2, AL. H), E 4º, Nº 1, DO MESMO DIPLOMA LEGAL.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 06-10-2010, PROFERIDO NO P.º N.º 107/08.6GTBRG.S1, DISPONÍVEL IN WWW.DGSI.PT
Sumário : I  -   Nos crimes de abuso sexual o bem jurídico protegido é a liberdade de autodeterminação sexual, lesada sempre que, à luz dos n.ºs 1 e 2 do art. 171.º do CP, o menor de 14 anos é vítima de acto sexual de relevo, que pode consistir, tipificadamente, em cópula, coito anal, oral ou introdução vaginal ou anal de partes de corpo ou de objectos.

II -  O consentimento da vítima não possui virtualidade para eximir o agente da responsabilidade criminal, por a lei partir do pressuposto, próximo da constatação natural, que o menor, por regra, não possui o desenvolvimento psicológico suficiente para compreender as consequências, por vezes graves, deles emergentes, que podem prejudicar gravemente o desenvolvimento da sua personalidade física e psíquica, no aspecto do livre desenvolvimento da personalidade na esfera sexual.

III - Dessa incapacidade natural resulta que o crime é concebido como de perigo abstracto resultante da presunção implicitamente inscrita na lei, juris et de jure, com razoável correcção, do prejuízo físico e psíquico, para a pessoa da criança, na sua dimensão integral, que os actos sexuais de relevo podem provocar.

IV - A agravante da gravidez é imputável ao agente criminoso que manteve cópula sem uso de preservativo.

V - A pena de conjunto repousa numa valoração da totalidade dos factos, que fornece a ilicitude global, sendo decisiva para essa avaliação a conexão e o tipo de conexão entre os factos e se eles representam, também, uma manifestação da personalidade, na vertente de uma mera pluriocasionalidade, de um trajecto de vida puramente ocasional e não enraizado, ou, ao invés, uma carreira criminosa, uma propensão que aquela ilicitude e culpa exacerba.

VI -      O arguido foi condenado na pena de 4 anos de prisão quanto a cada um dos 3 crimes de abuso sexual de criança do art. 171.º, n.ºs 1 e 2 do CP, na pena de 6 anos de prisão quanto a 1 crime de abuso sexual de criança agravado dos arts. 171.º, n.ºs 1 e 2, e 177.º, n.º 4, do CP, na pena de 1 ano de prisão quanto a cada um dos 2 crimes de coacção, na forma tentada, dos arts. 154.º, n.ºs 1 e 2, e 155.º, n.º 1, al. a), do CP e na pena de 1 ano de prisão quanto a 1 crime de detenção de arma proibida do art. 86.º, n.º 1, al. d), da Lei 5/2006, de 23-02.

VII - O arguido agiu com o intuito de satisfação incontrolada dos apetites sexuais, não olhou à idade das ofendidas (ambas com 13 anos) e aplicou um clima de constrangimento posterior à consumação dos crimes de abuso sexual de criança, que envolveu violência física e psíquica sobre as ofendidas, com o propósito de reatar uma relação não desejada.

VIII - Em face das sentidas necessidades de prevenção geral e especial, justifica-se a aplicação ao arguido, de 22 anos à data dos factos, da pena única de 9 anos de prisão.

Decisão Texto Integral:

Acordam em  conferência na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça :

Em processo comum com intervenção do tribunal colectivo foi submetido a julgamento no P.º n.º 93/09.5TAABT.E1, do Tribunal Judicial de Abrantes , AA , nascido a ... , vindo a final , a ser condenado :

- na pena de prisão de 4 anos, quanto a cada um dos 3 crimes de abuso sexual de criança, p. e p. pelos artigos 171.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, sendo 2 cometidos na pessoa da ofendida BB e um na pessoa da ofendida CC ;

- na pena de prisão de 6 anos, quanto ao crime de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelos artigos 171.º, n.ºs 1 e 2, e 177.º, nº 4, do Código Penal, cometido na ofendida BB ;

- prisão de 1 ano, quanto cada um dos 2 crimes de coacção, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 22.º, n.º 1 e 2, al. a), 23.º, 154.º, n.º 1 e 2 e 155.º, n.º 1, al. a), todos do Código Penal, praticados na pessoa da BB e CC

- prisão de 1 ano, quanto ao crime de detenção de arma proibida, p. e p nos termos dos artigos 86º, nº 1, al. d), da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, na redacção introduzida pela Lei n.º 17/2009, de 06 de Maio, com referência aos artigos 2º, nº 1, al. e) e z), 3º, n.º 1 e 2, al. h), e 4º, nº 1, do mesmo diploma legal.

c) Condenar o arguido AA na pena única de 10 (dez) anos de prisão, operando o cúmulo jurídico das penas supra impostas;

O arguido , inconformado com o teor do decidido interpõs recurso para a Relação , que confirmou o acórdão de 1.ª instância , pelo que , ainda irresignado , recorreu para este STJ , apresentando as seguintes conclusões :

1ª Na determinação da medida da pena deve atender-se às circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depõem a favor ou contra o agente - n.° 2 do art. 71° do Código Penal.

2ª Depõe a favor do arguido, em matéria de crimes sexuais, a sua juventude, o comportamento da vítima, ainda que muito mais jovem, a motivação da sua actuação criminosa e as circunstâncias em que esta ocorreu.

3ª Relevam no caso dos autos as facilidades, para efeitos de atenuação, e a experiência revelada pela BB na prática de tais actos, bem como a intenção do arguido em manter uma relação de namoro e não querer um aproveitamento ocasional para satisfazer os seus apetites sexuais.

4ª O facto de não serem conhecidas consequências do comportamento do arguido na vida futura da jovem, nem sendo de presumir, dada a sua colaboração, que elas possam vir a ocorrer, também deve ser considerado na medida da pena, atenuando-a.

5ª As condições da vida do arguido, oriundo de uma família numerosa e de modesta condição sócio-económica, disfuncional e carente de competências e com hábitos alcoólicos, fazendo com que o arguido revelasse dificuldades de aprendizagem e problemas comportamentais, não devem provocar a sua exclusão social, mas devem ser motivo para uma oportunidade de se lhe mostrar caminhos de vida que o arguido desconhecia.

6ª A pena aplicada afasta-o, porventura de forma irremediável, pela sua duração, dessa possibilidade,

Pelo que

7ª Sem prejuízo do castigo merecido e da função preventiva que deve ser demonstrada, deve ser reduzida ao mínimo legal que se mostre adequado ao cumprimento daqueles fins.

O Tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos:
1) A menor BB nasceu em ....de 1995.
2) Em data não concretamente apurada, mas situada no mês de Outubro de 2008, o arguido AA travou conhecimento com a BB, através do envio de mensagens de texto escritas para o telemóvel desta.
3) No dia 30 de Outubro de 2008, junto do Tribunal de Castelo Branco, porque a BB ali se havia deslocado, o arguido AA travou conhecimento pessoal pela primeira vez com a mesma e logo conheceu a idade dela.
4) O arguido iniciou uma relação de namoro com a ofendida caracterizada pela troca de carinhos e beijos na boca, sempre correspondidos por esta.
5) Com o desenrolar da relação amorosa, o arguido AA logrou convencer a ofendida BB a manter consigo relações sexuais, falando-lhe no amor que sentia por ela.
6) Assim, em data não concretamente apurada, mas situada no mês e Novembro de 2008, o arguido passou a relacionar-se sexualmente com a ofendida BB, mantendo relações sexuais de cópula completa com aquela.
7) Esse relacionamento sexual entre o arguido e ofendida BB repetiu-se por, pelo menos, três vezes, em momentos não concretamente apurados e locais distintos, prolongando-se entre Novembro de 2008 e 14 de Fevereiro de 2009, nas localidades de ... e ....
8) O arguido, com vista a manter relações sexuais com a BB, convencia-a a passar fins-de-semana consigo, utilizando para o efeito a residência de uma familiar sita na Rua ..., em ....
9) Ali, o arguido deitou-se na mesma cama que a ofendida BB, colocava-se sobre esta, introduzia o pénis na vagina da ofendida e realizava movimentos próprios da cópula, friccionando o seu pénis repetidamente, até ejacular.
10) O arguido sabia que praticava com a BB actos de natureza sexual e assim a molestava na sua autodeterminação sexual, mais sabendo que a mesma tinha treze anos de idade, mas não se absteve de agir do modo descrito, o que quis e fez, com o propósito de satisfazer os seus apetites sexuais.
11) O arguido AA sabia e quis-se aproveitar da jovem idade da BB, para persistir no relacionamento sexual com aquela.
12) Quando a ofendida BB não se podia deslocar até ..., o arguido dirigia-se para a residência desta sita na Rua ....
13) Ali, a ofendida BB saia de casa, entrava para interior do veículo conduzido pelo arguido, que depois o dirigia para locais ermos, onde após mantinham relações sexuais de cópula completa.
14) Numa dessas ocasiões, o arguido AA e a BB não usaram preservativo enquanto mantiveram relações sexuais de cópula completa, pelo que esta engravidou.
15) A BB realizou uma interrupção voluntária da gravidez em 14 de Janeiro de 2009.
16) O arguido sabia que havia engravidado a BB, tendo-se mostrado agastado com a interrupção voluntária da gravidez levada a cabo pela ofendida, pois dizia pretender formar família com esta.
17) A BB foi então acolhida no Lar Dr. ..., em ..., de forma a ser salvaguardada do contacto com o arguido AA.
18) Porém, o arguido que não se conformou com o fim da relação, e procurou manter o contacto com a BB.
19) Foi inicialmente correspondido pela BB que lhe enviava também mensagens e usava os telemóveis de outras jovens do Lar para contactar com o arguido.
20) Porém, a dada altura, o arguido começou a enviar mensagens de texto para o telemóvel indicado pela BB, com o fito de a amedrontar e de a obrigar a encontrar-se consigo.
21) Numa dessas ocasiões, o arguido AA enviou uma mensagem de texto para o telemóvel da ofendida BB onde lhe dizia “mato os teus pais se não vieres ter comigo ou acabes o namoro”, “tenho uns amigos em ... que vão atrás da tua família”.
22) O arguido quis criar um estado de medo e de ansiedade na ofendida, de forma a obrigá-la a manter o relacionamento consigo.
23) Como a BB não se mostrou colaborante, o arguido, no dia 25 de Março de 2009, dirigiu-se para a cidade de ... a fim de a avistar.
24) Ali, cerca das 08 horas e 30 minutos, na Avenida ..., o arguido abordou a ofendida BB quando esta se dirigia para a escola agarrou-a pelo braço disse-lhe: “se não ficares aqui comigo para falarmos, eu bato-te ou corto-te o pescoço com uma navalha que tenho aqui”, ao mesmo tempo que procurou arrastar a BB para o interior do seu veículo.
25) Nestas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido fazia-se acompanhar de uma navalha com lâmina em aço de sete centímetros de comprimento e que exibiu à BB.
26) Assustada com os actos do arguido, a ofendida gritou por socorro tendo sido a intervenção de um terceiro que logrou separar o arguido da ofendida e evitar que este a levasse consigo.
27) O arguido agiu com o propósito de causar medo à ofendida, por forma a determiná-la a reatar a relação de namoro com ele, sabendo que tal conduta era adequada a causá-lo e a levar a ofendida a agir do modo pretendido, o que quis.
28) Por força da sua relação com a BB, o arguido conheceu a CC.
29) A CC nasceu em ... de 1995.
30) O arguido sabia que a CC era colega de escola da BB e também sabia que aquela apenas tinha 13 anos de idade.
31) O arguido sabendo que a CC era conhecedora do fim da sua relação com a ofendida BB, utilizou este estratagema para se aproximar daquela, enviando-lhe mensagens para o seu telemóvel.
32) A dada altura, passou a encontrar-se pessoalmente com ela, nomeadamente junto da localidade do ....
33) No dia 2 de Agosto de 2009, cerca das 23 horas, o arguido deslocou-se até à casa dos avós da CC, sita na Rua ..., n.º ..., ..., onde esta residia.
34) A CC abriu-lhe a porta e ambos dirigiram-se ao quarto da CC onde mantiveram relações sexuais de cópula completa um com o outro.
35) O arguido desta forma logrou manter com a CC relação sexual de cópula completa e assim satisfazer os seus impulsos sexuais.
36) O arguido sabia que a CC apenas tinha 13 anos de idade e que se fazia valer da sua maior idade para lograr concretizar os seus desejos libidinosos.
37) Após este dia, o arguido, com frequência quase diária, enviava mensagens de texto para o telemóvel da ofendida CC, com avisos para que não contasse nada do que tinha acontecido.
38) No dia 23 de Novembro de 2009, cerca das 01 hora, o arguido logrou introduzir--se na habitação dos avós da ofendida CC, supra identificada, e já no interior do quarto desta, novamente a ameaçou para que não contasse nada sobre o que havia sucedido.
39) Para esse efeito o arguido exibiu um objecto semelhante a uma arma de fogo à ofendida, querendo insinuar que o usaria caso esta relatasse o acontecido entre ambos.
40) O arguido agiu com o propósito de causar medo à ofendida, por forma a determiná-la a manter o silêncio, sabendo que tal conduta era adequada a causá-lo e a levar a ofendida a agir do modo pretendido, o que quis.
41) Não obstante, a ofendida CC manteve o seu propósito e no dia seguinte relatou os factos aos seus familiares e às autoridades.
42) No dia 22 de Fevereiro de 2010, o arguido tinha no interior do seu quarto na residência sita no Largo ..., n.º ..., em ..., uma pistola de acção simples com cano difusor de gases, de marca “RECK”, modelo “PK GS”, de calibre 8 milímetros K, com platinas de cor castanha e o respectivo carregador, sem número de serie.
43) Tinha igualmente uma pistola de acção simples com cano de difusor de gases, da marca “F.T – Made in Italy”, modelo “GT 28”, calibre 8 milímetros, com carregador.
44) Mais tinha o arguido, no referido quarto, duas munições percutidas, da marca “MFS”, de calibre 8 milímetros, próprias para uso em arma de alarme ou lançadora de gases do mesmo calibre.
45) Tais armas não se encontravam manifestadas nem registadas, nem são susceptíveis de o ser, nem o arguido é titular de licença de uso e porte de arma de qualquer natureza.
46) O arguido tinha em seu poder as mencionadas armas que, pelas suas características, sabia ser de detenção e uso proibidos por lei.
47) O arguido agiu de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo da censurabilidade e punibilidade das suas condutas.
48) Quis, nas descritas circunstâncias, manter relações sexuais de cópula completa com a BB e a CC, apesar de conhecer as respectivas idades, coagi-las por meios violentos e pela ameaça de uso de meios violentos as ofendidas, e deter as mencionadas armas.
49) O arguido AA é o mais velho de seis irmãos, sendo oriundo de uma família de muito modesta condição sócio-económica. A dinâmica e estrutura familiar sempre se caracterizaram pela disfuncionalidade e carência de competências, quer pessoais, quer sociais. Esta instabilidade foi agravada pelo registo de hábitos alcoólicos por parte da mãe do arguido. Registou dificuldades de aprendizagem e problemas comportamentais, a nível escolar, bem como absentismo, tendo apenas concluído o 4.º ano de escolaridade. Em termos laborais, não possuí qualquer qualificação, tendo exercido várias actividades indiferenciadas e por curtos períodos de tempo, nomeadamente no corte de lenha, na construção civil, nas campanhas agrícolas e na distribuição de publicidade. Antes de ser preso, vivia com os progenitores e irmãos, em casa que pertencia aos avôs maternos, com precárias condições de habitabilidade. Encontra-se desempregado há cerca de um ano e meio. No meio comunitário de residência, é referenciado como um indivíduo muito instável e agressivo e conotado com a prática de actividades ilícitas.
50) Foi condenado em penas de multa e prisão, pela prática de crimes de condução sem habilitação legal, ameaça, furto simples, desobediência e roubo, nos termos certificados a fls. 816 a 830. Sofreu e sofre pena de prisão.

Colhidos os legais vistos , cumpre decidir :

O poder cognitivo deste STJ , restrito , a aferir do contexto conclusivo , à medida da pena única , parte , desde logo , da consideração de que o arguido praticou 4 crimes de abuso sexual, sendo três , um dos quais qualificado , na pessoa da ofendida BB e um na pessoa da ofendida CC

Nestes crimes o bem jurídico protegido é a liberdade de autodeterminação sexual , lesada sempre que , à luz do art.º 171.º n.ºs 1 e 2 , do CP , o menor de 14 anos é vítima de acto sexual de relevo , que pode consistir,  tipificadamente , em cópula , coito anal , oral ou introdução vaginal ou anal de partes de corpo ou objectos

E mesmo que consentida a cópula , como o foi pelas ofendidas , o consentimento da vítima não possui virtualidade para eximir o agente da responsabilidade criminal , por a lei partir do pressuposto , próximo de constatação natural , por regra , salvo os casos de aquisição da consciência sexual mais cedo , de que o menor vítima daqueles actos não possui o desenvolvimento psicológico suficiente para compreender as consequências , por vezes graves ( é o que se chama de inocentia consilii), deles emergentes, podendo prejudicar gravemente o desenvolvimento da sua personalidade física e psíquica, no aspecto do livre desenvolvimento da personalidade na esfera sexual

É benéfico que o processo de desenvolvimento da liberdade sexual das crianças se exercite de forma sadia , sem pressas ou sobressaltos , de risco incontrolável , se bem que dificilmente se conceba a sua evolução em ambiente asséptico , totalmente puro , à margem de influência do meio, no dizer de Heloísa Pinto , in A Sexualidade na Escola , Ed. Summus , S. Paulo , 1997 , 46 .

Dessa incapacidade natural resulta que o crime é concebido como de perigo abstracto resultante da presunção implicitamente inscrita na lei, “ juris et de jure “, “ com razoável correcção “ ,  do prejuízo físico e psíquico, para a pessoa da criança  , na sua dimensão integral , que os actos sexuais de relevo , segundo o enunciado o legal , podem  provocar –Cfr. Tereza Beleza , citada in Comentário Conimbricense do Código Penal , TI , 541 .

Essa presunção legal de ausência valorativa redunda num abrandamento da prova baseada em regras da experiência em que a lei deduz de um facto outro e antecipa o procedimento lógico necessário para estabelecer uma relação interfactual, recorrendo a parâmetros abstractos de valoração , segundo Bettiol, in Sobre a Presunção legal , Escritos Jurídicos , 1996 , I , 344.

Alguns países inscrevem esta presunção “ juris et de jure “ no seu ordenamento jurídico , caso do art.º 224.º , do CP brasileiro , do direito norueguês e mesmo no direito americano , reportando-a . à menoridade da vítima , não vale mesmo um “ consentimento informado “ .

No direito brasileiro reina divergência na jurisprudência e doutrina , apesar da consagração legal da presunção com aquela dimensão , admitindo a sua relatividade sempre que a menor de 14 anos aja livre e conscientemente dos seus actos e consequências , cedendo à impunibilidade do acto .

A experiência sexual anterior não elide tal presunção porque o que se trata é , face ao acto sexual de relevo , a punir , de proteger a criança , e não recriminá-la pelo seu passado .

Por outro lado inexiste a figura da compensação de culpa entre a vítima e lesante em matéria penal ( art.ºs 570.º e 572 .º , do CC)  onde o consentimento afasta a ilicitude nos termos do art.º 31.º n.º 1 d) , do CP , sendo eficaz se referente a interesses jurídicos livremente disponíveis , de forma a não ofender os bons costumes , prestado de forma livre , por qualquer meio que traduza uma vontade séria , livre e esclarecida do titular daquele interesse , visto o que preceitua no art.º 38.º n.ºs 1 , 2 e 3 , do CP .

O interesse da livre autodeterminação sexual de menor de 14 anos não está na sua disponibilidade, respeita a bens supraindividuais , ofende os bons costumes , pela reprovação moral ou opinião comum , no dizer de Cavaleiro de Ferreira , Lições de Direito Penal , ed Verbo , 1992 , 252 , vista a ponderação global do  grau de gravidade da lesão e a sua irreversibilidade , critério de que se deve lançar mão para aferir daquela ofensa , no dizer do Prof. Figueiredo Dias , citado por Paulo Pinto de Albuquerque , Comentário ao Código Penal , 196 .

Logo, pois , irrelevante o invocado consentimento

E a idade do arguido , de 22 anos na data dos factos, não o beneficia , visto que eram crianças de 13 anos, de idade , por si conhecida , impendendo sobre si , por esse diferencial etário , um juízo crítico , um dever de contenção do seu apetite sexual , da sua lascívia , em nome de cuja satisfação pura e simplesmente se movia , querendo aproveitar-se , sabendo da proibição dos seus actos , da jovem idade da BB e da CC para persistir no seu  relacionamento sexual com ambas , mantendo cópula completa repetida , com relação à BB e uma vez só com relação à CC,  deu-se como provado .

O Colectivo afastou , assim , o seu propósito no envolvimento com a menor BB de formar família , pese embora ter sido essa a razão invocada ao tentar reatar o seu envolvimento quando a menor lhe põs termo , logo enviando mensagem electrónica para o telemóvel daquela ameaçando matar os pais e fazer mal à sua família com recurso a terceiros , caso não fosse ao seu encontro ou reiniciasse o namoro

Como a BB não anuiu , o arguido, no dia 25 de Março de 2009, dirigiu-se a ... , onde havia sido recolhida em instituição a fim de a ser preservada da influência do arguido , e quando esta se dirigia para a escola agarrou-a por um braço e ameaçou-a , dizendo-lhe ,  “se não ficares aqui comigo para falarmos, eu bato-te ou corto-te o pescoço com uma navalha que tenho aqui”, ao mesmo tempo que procurou arrastar a BB para o interior do seu veículo , sendo portador de uma navalha com lâmina em aço de sete centímetros de comprimento e que exibiu à BB, a quem provocou medo, só com o auxílio  de terceiro , a quem pediu socorro, dele  conseguindo libertar-se
Em 2 de Agosto de 2009, cerca das 23 horas,  na Rua ... , ... , casa dos avós da CC, onde residia, o arguido introduziu-se no quarto daquela menor , mantendo relações de cópula com aquela , e , a partir daí , passou a dirigir-lhe , quase diariamente , mensagens , com avisos para que não contasse nada do que tinha acontecido , repetindo essa atitude , ao introduzir-se em 23 de Novembro de 2009, cerca das 01 horas, na habitação dos avós da ofendida CC, supra identificada, e já no interior do quarto da menor exibiu um objecto semelhante a uma arma de fogo à ofendida, querendo insinuar que o usaria caso esta relatasse o acontecido entre ambos., com o intuito de provocar medo à ofendida, como provocou , e determiná-la a manter o silêncio , que a menor quebrou, denunciando-o às autoridades policiais , logo no dia imediato .
Este comportamento adequa-se , de pleno , à personalidade do arguido descrito no meio comunitário como propenso à violência , agressivo e muito instável , conotado com a prática de actividades ilícitas, tendo sofrido já condenações, em penas de multa e prisão, pela prática de crimes de condução sem habilitação legal, ameaça, furto simples, desobediência e roubo, nos termos certificados a fls. 816 a 830, tendo estado já preso .

Enquadrado nesse estilo personalístico violento , o arguido tinha no interior do seu quarto na residência sita no Largo ..., n.º ..., em ..., uma pistola de acção simples com cano difusor de gases, de marca “RECK”, modelo “PK GS”, de calibre 8 milímetros K, com platinas de cor castanha e o respectivo carregador, sem número de serie e igualmente uma pistola de acção simples com cano de difusor de gases, da marca “F.T – Made in Italy”, modelo “GT 28”, calibre 8 milímetros, com carregador e , ainda , duas munições percutidas, da marca “MFS”, de calibre 8 milímetros, próprias para uso em arma de alarme ou lançadora de gases do mesmo calibre.
Tais armas não se encontravam manifestadas nem registadas, nem são susceptíveis de o ser, nem o arguido é titular de licença de uso e porte de arma de qualquer natureza , sabia ser de detenção e uso proibidos por lei.


Punha , agora , em crise a segurança colectiva , a tranquilidade pública , antes a liberdade de autodeterminação sexual da pessoa .

Sem  fundamento por não constar no elenco dos factos provados a alegação da experiência sexual da BB; menos acertado ainda a ausência de consequências do relacionamento sexual com a menor BB , pois que dele derivou a sua gravidez , esta funcionando como agravante qualificativa , nos termos do art.º 177.º n.º 4 , do CP , exacerbando  a moldura penal de metade , nos seus limites máximo e mínimo , ou seja entre 4 anos e meio e 15 anos de prisão , interrompida , entretanto , por aborto .

A agravante da gravidez é imputável ao agente criminoso porque manteve cópula sem uso de preservativo , devendo admitir como possível aquela consequência que a sua diferença de idade e experiência de vida , razoavelmente , fazem conjecturar e a que não pode eximir-se .

E o aborto, genericamente ,  traz consequências muito prejudiciais à mulher que o pratica , entre elas a esterilidade, hemorragias , perfuração de órgãos internos , infecções, como peritonites , etc, isto ao nível físico , do lado psicológico é frequente a depressão , o sentimento de culpa , a tendência para o suicídio e a baixa de autoestima .

Na fixação da pena única o julgador opta por  um critério especial , valorando ,nos termos do art.º 77.º .ºs 1 e 2 , do CP  , em conjunto , os factos e a personalidade do agente .

Trata-se de um critério que acresce ao geral emergente da conjugação dos art.ºs 40.º e 71 .º , do CP , forma de subtrair o julgador a uma actividade puramente “ mecânica ou arbitrária “  , no dizer do Prof. Figueiredo Dias , in Direito Penal Português –As Consequências Jurídicas do Crime , pág. 291 , cedendo a uma pura visão atomística , a um puro somatório material das penas , que se não confunde com o sistema de acumulação material , ou o de absorção puro em que a moldura de concurso repousa na pena concreta do crime mais grave nem com o princípio da exasperação , em que a pena é agravada pelo concurso

O sistema adoptado entre nós é o assente na princípio da acumulação em que a pena é apurada numa moldura em função da imagem global do facto , valorando-o na globalidade e na personalidade do agente ( Cfr .Paulo Pinto de Albuquerque , in Comentário do Código de Processo Penal , pág..283) enquanto manifestação de conformidade ou desconformidade com a ordem jurídica instituída e a sua condição de ser normativamente vinculado .

A pena de conjunto , que não é uma elevação esquemática ou arbitrária da pena disponível , segundo Iescheck, Tratado de Derecho Penal , Parte Geral , 4.º ED , pág. 668 e segs , seguido , de resto , pelo Prof. Figueiredo Dias , in op. e loc . cit., repousa , pois ,  numa valoração da totalidade dos factos , que fornece  a ilicitude global, sendo decisiva para essa avaliação a conexão e o tipo de conexão entre os factos e  se representam , também , uma manifestação  da personalidade , na vertente  de uma  mera pluriocasionalidade , de um trajecto vital puramente ocasional , não enraizado , ou , ao invés ,  uma “ carreira “ criminosa , uma propensão que aquela ilicitude e culpa exacerba –cfr. Acórdão do STJ de 06-10-2010, proferido  no  P.º n.º 107/08.6GTBRG.S1,  disponível in www.dgsi.pt.-

Quer dizer que o julgador constrói, nessa operação, uma pena nova , baseado numa nova culpa e ilicitude emergentes da valoração dos factos tendo presente a sua globalidade e o modo como se articulam com a sua personalidade , em vista a surpreender , nesse novo horizonte contextual , assim emergente , se se posicionam numa linha de simples acidentalidade no “ iter vital “ do condenado ou pelo contrário são tradução de uma tendência criminosa , fundando , nesta hipótese , maior severidade na dosimetria concreta da moldura da pena de concurso , em nome de exacerbada prevenção especial , prevenindo a reincidência , sem descurar as expectativas comunitárias na afirmação da lei e tutela dos bens ou valores jurídicos ínsitos nos tipos legais de incriminação , que nos crimes por que foi condenado se situam num patamar elevado , já pela sua importância e violação frequente, construida a partir do enorme desprezo pela pessoa humana revelado no abuso  sexual de seres inexperientes e indefesos .

A moldura penal abstracta da pena de concurso tem como limite mínimo a pena de 6 anos de prisão e máxima a de 21  anos de prisão ; as parcelares para os crimes de abuso sexual de criança são de 3 a 10 anos e 4 anos e meio a 15 anos ( art.ºs 171.º n.ºs 1 e 2 e 177.º n.º 4 , do CP) , para o crime de coacção , em forma tentada , nos termos dos art.ºs 22.º , 23.º , 73.º n.º1 a) e b) , 154.º n.º 1 e 155.º n.º 1 , parte final , prisão de um mês a 3 anos e 6 meses e o de detenção de arma proibida nos termos dos art.ºs  86º, nº 1, al. d), da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, na redacção introduzida pela Lei n.º 17/2009, de 06 de Maio, com referência aos artigos 2º, nº 1, al. e) e z), 3º, n.º 1 e 2, al. h), e 4º, nº 1, do mesmo diploma legal , com a pena de 4 anos de prisão ou multa até 480 dias .

Tudo visto e ponderado :
É grave o conjunto global dos factos  , em particular os abusos sexuais  de criança , que geram no tecido social repulsa e séria reprovação ética e moral , a sua reiteração , o “ animus” que lhes presidiu , de satisfação incontrolada dos apetites sexuais , não olhando à idade das ofendidas , ambas com13 anos ( ele Maios 9 anos ) , a BB acabada de os perfazer , sendo muito duvidoso , até , que  não tenha tido cópula tendo ela , ainda 12 anos , dúvida factual de que beneficia , denotando o arguido revelar propensão para abuso de crianças , o clima de constrangimento posterior à sua consumação envolvendo violência física e psíquica sobre as ofendidas no propósito de reatar uma relação não desejada .

Essa violência naquelas duas modalidades , com a exibição de armas e ameaça pessoal e de familiares , revestiu-se de maior intensidade sobre a BB do que sobre a CC , de todo o modo não deixando de reflectir uma personalidade profundamente dissociada do direito , nenhuma atenuante  ocorre em seu favor .

A detenção de armas proibidas , de emissão de gases , em condições ilegais , pondo em perigo a segurança individual e colectiva , tudo com perfeita consciência da violação da lei denota um estilo de vida de marginalismo à lei ; o dolo é muito intenso e reiterado , a ilicitude revela-se em grau elevado , enquanto expressão da sua violação à lei e desvalor do seu resultado

O seu comportamento anterior é mau; no seu passado  criminal inscrevem-se condenações por vários ilícitos , que o levaram à prisão , o que a associar àqueles por que foi condenado nos presentes autos alicerça uma densificada pluriocasionalidade, que reclama vigorosa reeducação para o direito , para a defesa da sociedade , prevenção futura de crimes , reinserção futura do arguido, preparando-o para conduzir a sua vida de modo socialmente responsável ( art.º 42.º , do CP ) face às muito sentidas necessidades de prevenção geral e especial , justificando-se , no entanto , uma muito ligeira redução da pena para 9 ( nove ) anos de prisão , que se tem por mais justa , ainda dando resposta , em termos de tutela , “ efectiva e consistente” , no ensinamento do Prof. Figueiredo Dias , in Direito Penal Português , As Consequências Jurídicas do Crime , pág. 229 ,  aos bens jurídicos em confronto e às expectativas comunitárias na força e validade da lei , cuja aplicação é confiada aos tribunais .

Termos em que se provê, em parte , ao recurso , condenando-se o arguido na pena única de 9 ( nove ) anos de prisão .

Sem tributação .

Armindo Monteiro (Relator)
Santos Cabral