Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
835/09.9TBPTM.C.E1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: RAIMUNDO QUEIRÓS
Descritores: INSOLVÊNCIA
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
GARANTIA
RECONHECIMENTO
ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
LISTA DE CRÉDITOS RECONHECIDOS E NÃO RECONHECIDOS
IMPUGNAÇÃO
DIREITO DE RETENÇÃO
EXTEMPORANEIDADE
Data do Acordão: 04/09/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO FALIMENTAR – VERIFICAÇÃO DE CRÉDITOS / RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS / RELAÇÃO DE CRÉDITOS RECONHECIDOS E NÃO RECONHECIDOS / IMPUGNAÇÃO DA LISTA DE CREDORES RECONHECIDOS.
Doutrina:
- Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa Anotado, 3.ª edição, Lisboa, Quid Juris, 2015, p. 258, 521 e 525;
- Maria do Rosário Epifânio, Manual de Insolvência, Almedina, 2012, p. 12.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGOS 128.º, N.º 1, ALÍNEA C), 129.º E 130.º.
Sumário :
I - O credor que pretenda fazer-se valer de garantia de que o seu crédito sobre a insolvência beneficie, deverá, no requerimento em que reclama a verificação do crédito, indicar tal garantia, conforme exigido pelo art. 128.º, n.º 1, al. c), do CIRE;

II - A falta de tal indicação no requerimento de reclamação do crédito, ou no prazo fixado para o efeito na sentença declaratória da insolvência, impede o credor de fazer-se valer de eventual garantia, se não reconhecida pelo administrador da insolvência;

III - A impugnação da lista de credores reconhecidos só pode ter como fundamentos os indicados no art. 130.º do CIRE, não permitindo o preceito a invocação de elementos novos, designadamente a indicação de garantia de que o crédito reconhecido eventualmente beneficie, anteriormente não indicada, e cuja consideração venha a determinar uma alteração da classificação do crédito;

IV - Não tendo o credor invocado o direito de retenção no prazo fixado para a reclamação de créditos, mostra-se extemporânea a respectiva invocação, acompanhada pela alegação de factualidade nova, em momento posterior à apresentação pelo administrador da insolvência da relação de créditos a que alude o art. 129.º do CIRE.
Decisão Texto Integral:

Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça

I. Relatório

1. Por sentença de 29-05-2009, transitada em julgado, foi declarada a insolvência de AA, S.A., tendo sido designado o prazo de 30 dias para a reclamação de créditos.

O credor BB reclamou a verificação de um crédito no montante de € 125 000, alegando que celebrou com a ora insolvente, no dia 17-02-2003, um contrato-promessa de compra e venda de uma fracção autónoma de edifício em construção, tendo procedido ao pagamento da quantia de € 62 500 a título de sinal e não tendo a promitente-vendedora diligenciado pela celebração da escritura nos termos e prazo acordados, pelo que perdeu o interesse na compra da fracção autónoma, pretendendo lhe seja reconhecido o direito à resolução do contrato, por incumprimento imputável à promitente-vendedora, e ao recebimento da quantia de € 125 000, correspondente ao dobro do sinal prestado.

Decorrido o prazo fixado para as reclamações, o Sr. Administrador da Insolvência apresentou relação de créditos reconhecidos e não reconhecidos, tendo incluído na lista de créditos reconhecidos o crédito reclamado pelo credor BB, no montante de € 125 000, classificado como crédito comum, com a proveniência seguinte: sinal em dobro por força de contrato-promessa de compra e venda que tem por objecto uma fracção (T2) - 1º andar … - Lote … do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob a ficha n.º ....

O credor BB apresentou, em 24-08-2009, requerimento no qual, alegando que a fracção autónoma prometida vender lhe foi entregue em Agosto de 2005, na sequência do que a mobilou e celebrou contratos de fornecimento de electricidade, gás e água, invoca que o seu crédito goza de direito de retenção sobre a fracção autónoma prometida vender, peticionando seja tal direito de retenção considerado na graduação de créditos.

Notificada do aludido requerimento, a credora CC, C.R.L. pronunciou-se no sentido do indeferimento do reconhecimento do direito de retenção aí invocado, sustentando que tal direito só pode ser invocado no requerimento de reclamação de créditos, cujo prazo havia já decorrido, acrescentando que o aludido credor, além de não o ter invocado, também não demonstrou ou provou atempadamente tal direito.

O Sr. Administrador da Insolvência pronunciou-se no sentido de não dever o crédito em causa ser classificado como garantido por direito de retenção.

Foi realizada tentativa de conciliação, constando da respectiva acta despacho no qual se consignou, além do mais, o seguinte:

(…) A CC concorda em considerar o documento apresentado por BB de fls. 578 e seguintes como uma impugnação portanto sendo considerado o seu requerimento datado de 11-01-2018 como resposta à mesma (…).

Realizada a audiência final, foi proferida sentença na qual se classificou o crédito de BB como privilegiado por via da garantia adveniente do direito de retenção de que beneficia.

2. Inconformada, a credora CC, C.R.L. interpôs recurso desta decisão, para o Tribunal da Relação de Évora, pugnando para que seja revogada, na parte em que reconheceu que o crédito de BB beneficia de direito de retenção e o classificou como privilegiado, e substituída por outra que indefira tal reconhecimento e mantenha a classificação de tal crédito como comum, terminando as alegações com a conclusão que se transcreve:

“O apelado para além de ter reclamado extemporaneamente o direito de retenção não é consumidor na acepção que o AUJ adotou ao interpretar a al. f) nº 1 do art. 755º do CC, simplesmente porque não detém a qualidade de consumidor definida no nº1 art. 2º da Lei 24/96 de 31/07 (Cfr art.1 nº 2 al a) da Directiva): a sua aquisição e afectação nada teve a ver com o consumo, visando antes a obtenção do pagamento de dívida comercial, não se encontrando numa situação de fraqueza ou debilidade que é pressuposto do conceito de consumidor que o legislador pretendeu prever, daquele particular que investe suas poupanças contraindo uma dívida de largos anos numa situação de clara desprotecção perante o credor hipotecário, muito pelo contrário: na qualidade de contabilista de empresa do grupo da insolvente encontrava-se numa posição de clara vantagem, porque estava precavido das deficiências e da solvência da empresa, pelo que não pode o mesmo beneficiar no âmbito do processo de insolvência em que nos situamos, do direito de retenção previsto no art. 755º nº1 al. f) do CC, mostrando-se inteiramente injustificado e abusivo que se lhe aplique a respectiva medida de protecção, que tem por fundamento e exigência o princípio da igualdade.”

2.1 O credor BB apresentou contra-alegações, defendendo a manutenção do decidido e arguindo a litigância de má fé pela apelante.

3. O Tribunal da Relação de Évora revogou a decisão recorrida, com fundamento na extemporaneidade da invocação do direito de retenção pelo credor BB e, em consequência, classificou o crédito deste credor como comum.

4. Desta decisão, o apelado BB, intentou recurso de revista, formulando as seguintes conclusões:

A —A credora ora Recorrida — CC, CRL — após ter apresentado o seu recurso para o Tribunal da Relação de Évora, veio restringir, por requerimento e expressamente, o âmbito do mesmo, passando a pretender apenas o conhecimento da questão da interpretação do direito de retenção. A afirmação, a esse respeito restritivo, é clara: "3. O que a ora reclamante requer é APENAS uma interpretação divergente da norma (al. f) do nº 1 do art. 755º CC", deixando cair a questão da extemporaneidade da apresentação do requerimento no qual o aqui Recorrente pretendia a verificação e graduação do potencial crédito que havia invocado como sendo privilegiado por gozar do direito de retenção.

 B — Tendo essa questão prescindida transitado em julgado, por efeito dessa desistência, não podia o Tribunal da Relação de Évora conhecer da mesma, uma vez que a ela passou a gozar da força do caso transitado em julgado — sendo assim o acórdão manifestamente nulo por violação do princípio basilar da imutabilidade das decisões judiciais transitadas em julgado (art. 6152 nº 1, al. e), segunda parte, do Código de Processo Civil).

Sem minimamente prescindir do exposto,

 C — Nos termos do disposto nos arts. 102º e 106º do CIRE, assistia, prima facie, ao administrador de insolvência o direito potestativo de cumprimento ou de não cumprimento do contrato-promessa sub judice.

D — A reclamação de créditos apresentada pelo Recorrente, encontrando-se assim condicionada ao exercício desse direito, apresentava-se como meramente provisória, tendo então o aqui Recorrente manifestado que o seu desejo seria o de se considerar incumprido o contrato-promessa e receber o sinal prestado em dobro, nada mais lhe sendo exigível face a essa precariedade.

E —Ao ter reconhecido o crédito do Recorrente, na lista de credores, com indicação do valor do sinal em dobro, a administrador de insolvência adotou a decisão tácita de não pretender cumprir o contrato-promessa, incumbindo-lhe o dever de averiguar a qualificação desse crédito o que, manifestamente, não fez, porquanto reconheceu o crédito apenas como comum.

F — A decisão de incumprimento do contrato-promessa fez, na sequência do douto entendimento resultante do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 4/2014, despoletar o direito de retenção inerente ao crédito que o administrador de insolvência fez reconhecer na lista provisória de credores.

G — Assim sendo, não concordando o aqui Recorrente com a qualificação do seu crédito — da exclusiva responsabilidade do administrador de insolvência — assistia-lhe, nos termos do disposto no art. 130º CIRE, o direito de manifestar a sua oposição a essa qualificação, não havendo qualquer limitação a que, nesse contexto, aduzisse factos e provas que sustentassem a diferente qualificação do crédito: no caso, crédito privilegiado por gozar do direito de retenção.

 H — A declaração de insolvência não permite a aplicação automática dos arts. 801º e 808º do Código Civil, sendo sempre necessário que o administrador de insolvência opte, na hipótese, pelo incumprimento do contrato (em detrimento da sua execução).

I — O aqui Recorrente cumpriu o prazo legal previsto no art. 130º para a impugnação da qualificação jurídica do crédito que lhe foi fixada pelo administrador de insolvência.

J - Mesmo que se entendesse, por absurdo, que o Recorrente não poderia suscitar, em resposta à listagem dos credores (e implícita decisão do administrador de não cumprir o contrato-promessa), factos que lhe conferissem o reconhecimento e graduação do seu crédito como privilegiado ao abrigo do direito de retenção, sempre tal direito lhe assiste, nos termos legais de direito processual, por se tratar, não de um pedido novo, mas de uma concretização ou um complemento à reclamação de créditos inicial, a qual, na ausência de decisão do administrador ao abrigo do disposto no art. 106º CIRE, sempre teria natureza provisória.

L- Não está vedado, pela lei processual civil, antes pelo contrário, segundo a sua aplicação ao CIRE nos termos do art. 172 deste diploma, que até à decisão final do apenso de reclamação de créditos (com a verificação e graduação), possa haver desenvolvimentos que configurem, nos termos do disposto no art. 2732 do anterior Código de Processo Civil (então vigente) a alteração simultânea do pedido e da causa de pedir, não havendo convolação para relação jurídica diversa da previamente alegada, sendo apenas um seu desenvolvimento natural e plenamente justificado, seja pela necessidade de realização da justiça material no caso concreto, seja pela definição da posição do administrador da insolvência face ao cumprimento ou não cumprimento do contrato-promessa.

M- Por força do disposto no art. 17º do CIRE, sendo aplicável subsidiariamente a todo o processo de insolvência as normas do Código de Processo Civil, tendo o ora Recorrente alegado, dentro do prazo de impugnação da lista de credores, factos que se traduzem num desenvolvimento natural da reclamação de créditos (por natureza provisória, no caso do Requerente, como visto), sempre os factos alegados poderiam e deveriam, ao abrigo do princípio estruturante do ordenamento processual português, da descoberta da verdade material, como meio para a plena realização da Justiça, ser apreciados, incumbindo "ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer" (art. 265º, nº 3 do anterior Código de Processo Civil") — e, naturalmente, é-lhe lícito conhecer de factos alegados dentro do prazo de impugnação da lista provisória de credores

N— É entendimento jurisprudencial superior que, atenta a peculiar natureza do processo de insolvência há a consequente possibilidade de se considerarem processualmente adquiridos factos que, embora não expressamente alegados pela parte em certo requerimento, possam resultar da globalidade do processo de liquidação universal do património do insolvente por nele estarem retratados ou documentados, atento também o reforço do princípio da inquisitoriedade que resulta da norma contida no art. 11º do CIRE.

O— E que, por outro lado, não se compagina sequer com as regras vigentes no domínio do actual processo civil — e com a atenuação das rígidas preclusões que vigoravam anteriormente à reforma da 1995/96 — permitindo há muito a norma que constava do art. 264º, nº 3, do CPC (que corresponde ao actual art. 5º do Código vigente) a não aquisição processual de factos que (sendo substantivamente relevantes, por condicionarem decisivamente a procedência da pretensão deduzida) se devam qualificar como concretizadores ou complementares do núcleo essencial da causa de pedir invocadas.

P — Essas diligências foram mesmo tomadas no processo quando o tribunal, por despacho de Agosto de 2014, solicitou expressamente elementos ao aqui Recorrente para ponderação e análise do alegado direito de retenção, ao qual este respondeu por requerimento enviado a juízo a 9 de Setembro de 2014.

Q — Vigora para todo o processo de insolvência, ao abrigo do disposto no art. 17º CIRE (que termina a aplicação subsidiária das normas do Código do Processo Civil), o princípio da primazia da verdade material em detrimento de restrições ou limitações de mera forma (art. 5º do Código de Processo Civil actualmente em vigor).

 R — Tendo a origem do crédito resultado, não da insolvência ou de uma pretensão de recebimento do sinal em dobro por parte do ora Recorrente, mas acima de tudo da posição que tacitamente o Administrador da Insolvência — nos termos do disposto no art. 106º CIRE — adoptou quanto ao não cumprimento do contrato, não se vislumbra que, não concordando o credor ora Recorrente com a qualificação desse crédito, não possa aduzir factos e prova que contrariem essa qualificação, sendo isso até mais um direito, do que até um desenvolvimento permitido da reclamação de créditos previamente apresentada (e legalmente provisória porque dependente da tomada de posição do Administrador quanto ao cumprimento do contrato).

S - É pacífico, a nível jurisprudencial, como até resulta do douto acórdão de uniformização de jurisprudência acima indicado, que, muito embora o direito de retenção nasça com a tradição do bem, o crédito garantido por tal direito surge ou é despoletado com o incumprimento do contrato-promessa (da responsabilidade legal opcional exclusiva do administrador de insolvência — art. 106º CIRE).

T — É também entendimento jurisprudencial, no sentido da prossecução da justiça de verdade material, que um crédito relacionado e graduado na lista provisória de credores, não só pode como deve ser modificado na lista definitiva, se assim o determinarem os elementos de que disponha o administrador, independentemente da ocorrência ou não de circunstâncias supervenientes — aliás, ainda antes do julgamento, o administrador da insolvência veio a refazer a lista de credores, passando a incluir o crédito do ora Recorrente como privilegiado ao abrigo do direito de retenção.

U — Mesmo que o acima exposto não fosse de proceder, não se consegue aceitar nem compreender, porque violador de lei expressa (art. 508º do anterior Código de Processo Civil, actualmente art. 590º), que sendo manifesto que o aqui Recorrente ao ter apresentado o requerimento sub judice após a fixação da listagem provisória de credores, no mesmo pretendia fazer valer um crédito seu com garantia privilegiada (direito de retenção), não se tenha, caso se entendesse (como ora entendeu) que o mesmo era extemporâneo por alegar factualidade não vertida na reclamação de créditos, aproveitado tal requerimento para efeitos de discussão judicial de um crédito privilegiado.

V — Houve violação do princípio do aproveitamento dos actos processuais, pelo que, a não ser admitido o requerimento apresentado pelo ora Recorrente como impugnação da lista de credores, sempre deveria o mesmo ser convidado a efectuar a respectiva correcção para uma reclamacão/verificacão ulterior de créditos por estar plenamente em tempo, e uma vez ser perceptível a pretensão do mesmo e apenas ser necessário dirigir o pedido, nos termos do disposto no art. 146º CIRE contra a massa insolvente, os credores e o devedor.

X - Resulta dos autos que, mesmo não tendo sido ordenada tal reparação ou ajustamento do requerimento para reconhecimento do crédito privilegiado do aqui Recorrente, o apenso de reclamação de créditos desenvolveu-se no sentido em que todas as partes contra as quais se deveria ter apresentado uma reclamação/verificação ulterior de créditos tiveram conhecimento — por notificação judicial — daquele requerimento e sobre ele se puderam pronunciar e, mais, após tais notificações, chegou-se mesmo à elaboração de despacho saneador sobre a matéria e à sua discussão em audiência de julgamento com intervenção de todos os interessados na discussão desse crédito que se pretendia ver reconhecido como privilegiado.

Z - Assim sendo, em última instância, tendo em conta o exposto, deveria, no mínimo, ter sido reconhecido o crédito, por efeito de aplicação da sentença proferida em primeira instância sobre o mesmo com intervenção de todos os interessados), como privilegiado no âmbito, reitera-se, mínimo, de reclamação/verificação ulterior de créditos - Nada mais sendo, então, necessário para que se pudesse fazer justiça real e concreta, como efectivamente foi, sendo, consequentemente, de aproveitar, no todo, o julgamento e a decisão judicial proferida sobre o crédito”.

4.1 A Apelante CC contra-alegou defendendo a manutenção do acórdão da Relação.

II- Apreciação do Recurso

1. Objecto do recurso:

         Em face das conclusões das alegações do recorrente, cumpre apreciar as seguintes questões:

- Da nulidade do acórdão do Tribunal da Relação do Porto pelo vício previsto no artigo 615º, nº 1, al. e) do Código de Processo Civil.

- Da extemporaneidade da invocação do direito de retenção pelo credor BB.

- Da classificação do crédito deste credor.

2. Fundamentação.

2.1 Da matéria de facto

Encontra-se fixada a seguinte matéria de facto:

1. O “DD, S.A.” requereu a insolvência de “AA, S.A.” em 04.03.2009, tendo sido proferida sentença de insolvência a 29.05.2009, transitada em julgado.

2. O objecto social da insolvente é a construção civil e obras públicas, nomeadamente a realização de empreitadas de construção civil e obras públicas, a venda de materiais de construção e a execução de infra-estruturas e redes internas de instalações técnicas; compra, venda e revenda de imóveis adquiridos para esse fim; construção e exploração de empreendimentos industriais e turísticos; aluguer de bens imóveis e bens móveis, nomeadamente equipamentos.

3. Nos presentes autos foram apreendidos os seguintes imóveis:

- Prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o número …, inscrito na matriz sob o artigo …, relativamente se encontra averbada uma hipoteca voluntária para garantia do capital de 250 000,00 euros, a favor do EE, SA.

– Prédio urbano, denominado por Lote …, descrito na Conservatória de Registo Predial … sob o número …, inscrito na matriz sob o artigo ..., relativamente se encontra averbada uma hipoteca voluntária a favor da FF, para garantia do capital de 465 000,00 euros; hipoteca voluntária a favor da mesma instituição bancária para garantia das obrigações pecuniárias assumidas ou assumir pela sociedade até ao montante de 700 000,00 euros; hipoteca voluntária a favor da mesma instituição bancária para garantia das obrigações pecuniárias assumidas ou assumir pela sociedade até ao montante de 200 000,00 euros.

– Prédio urbano denominado por Lote …, descrito na Conservatória de Registo Predial ...sob o número ..., inscrito na matriz sob o artigo ..., relativamente se encontra averbada uma hipoteca voluntária a favor da FF, para garantia do capital de 465 000,00 euros; hipoteca voluntária a favor da mesma instituição bancária para garantia das obrigações pecuniárias assumidas ou assumir pela sociedade até ao montante de 700 000,00 euros; hipoteca voluntária a favor da mesma instituição bancária para garantia das obrigações pecuniárias assumidas ou assumir pela sociedade até ao montante de 200 000,00 euros.

– Prédio urbano denominado por Lote …, descrito na Conservatória de Registo Predial ...sob o número ..., inscrito na matriz sob o artigo ..., relativamente se encontra averbada uma hipoteca voluntária a favor da FF, para garantia do capital de 465 000,00 euros; hipoteca voluntária a favor da mesma instituição bancária para garantia das obrigações pecuniárias assumidas ou assumir pela sociedade até ao montante de 700 000,00 euros; hipoteca voluntária a favor da mesma instituição bancária para garantia das obrigações pecuniárias assumidas ou assumir pela sociedade até ao montante de 200 000,00 euros.

– Prédio urbano denominado por Lote …, descrito na Conservatória de Registo Predial ... sob o número …, inscrito na matriz sob o artigo …, relativamente se encontra averbada uma hipoteca voluntária a favor da FF, para garantia do capital de 465 000,00 euros; hipoteca voluntária a favor da mesma instituição bancária para garantia das obrigações pecuniárias assumidas ou assumir pela sociedade até ao montante de 700 000,00 euros; hipoteca voluntária a favor da mesma instituição bancária para garantia das obrigações pecuniárias assumidas ou assumir pela sociedade até ao montante de 200 000,00 euros.

- Prédio urbano denominado pela fracção “…” descrito na Conservatória do Registo Predial de ...  sob o número … – …, inscrito na matriz sob o artigo ..., relativamente ao qual se encontra averbada hipoteca voluntária a favor da CC do Algarve, CRL, para garantia do capital de 380 000,00 euros.

- Prédio urbano denominado pela fracção “…” descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número … – …, inscrito na matriz sob o artigo …-…, relativamente ao qual se encontra averbada hipoteca voluntária a favor da CC do Algarve, CRL, para garantia do capital de 380 000,00 euros.

- 1/2 do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número …, inscrito na matriz sob o artigo …, relativamente ao qual se encontram averbadas duas hipotecas voluntárias a favor do EE, SA, uma para garantia do capital do capital de 300 000,00 euros e outra para garantia do capital de 150 000,00 euros.

– Fracção autónoma designada pela letra “…”, descrita na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número 0..., inscrita na matriz sob o artigo …, relativamente à qual se encontra averbada uma hipoteca voluntária a favor da CC, para garantia e todas e quaisquer responsabilidades assumidas ou assumir, provenientes de todas e quaisquer obrigações bancárias, até ao capital de 200 000,00 euros.

– Prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial ...sob o número …, inscrito na matriz sob o artigo … da secção B, relativamente ao qual se encontram averbadas duas hipotecas voluntárias constituídas a favor da CC, CRL, a primeira para assegurar o capital de 250 000,00 euros e segunda para assegurar um capital de 155 000,00 euros.

– Prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número …., inscrito na matriz sob o artigo …, relativamente ao qual se encontram averbadas três hipotecas voluntárias a favor da FF.

– Prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número ..., inscrito na matriz sob o artigo … secção …, relativamente ao qual se encontram averbadas três hipotecas voluntárias a favor da CC, SRL, primeira para garantia de empréstimo de capital de 1 350 000, 00 euros ( C4) a segunda para garantia de empréstimo da capital de 300 000,00 euros (C5), e a terceira para garantia de empréstimo de capital no valor de 118 560,00 euros (C1).

– Fracção autónoma designada pela letra “…”, descrita na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o número …, inscrita na matriz sob o artigo ….

– Fracção autónoma designada pela letra “…”, descrita na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o número …, inscrita na matriz sob o artigo ...

- Também foram apreendidos os bens móveis que constam do auto de apreensão – fls. 99 a 105 – do apenso de apreensão de bens.

Impugnação deduzida pelo credor CC Algarve

4. A 8 de Março de 2004 foi celebrado um acordo denominado “Contrato promessa de compra e venda” entre GG e “AA, S.A.” que teve por objecto a fracção autónoma designada pela letra “…”, descrita na Conservatória do Registo Predial de ... com o número ... e inscrita na matriz sob o artigo ....

5. Na cláusula terceira do acordo referido em 4 refere-se “O preço é de 132.000,00 Euros (…), o qual será pago da seguinte forma: A) A título de sinal e princípio de pagamento, os segundos outorgantes entregarão, com a assinatura do presente contrato, à primeira outorgante a quantia de (…) 40.000,00 € (Quarenta Mil Euros), da qual lhes é conferida a correspondente quitação. B) O remanescente, correspondente à quantia de 92.000,00 € (…) que será pago em pagamentos parcelares até à data outorga da escritura de compra e venda, deduzidos dos valores da contribuição autárquica referidos no ponto 3, da cláusula sexta.”

6. Na cláusula quarta do acordo referido em 4 refere-se “1. A escritura definitiva de compra e venda deverá ser outorgada até ao dia 30 de Outubro de 2005, podendo o prazo ser prorrogado por mais 30 dias, desde que por motivo não imputável às partes.”

7. Na cláusula quinta do acordo referido em 4 refere-se “Constitui obrigação dos segundos outorgantes a marcação da escritura de compra e venda em qualquer Cartório Notarial do Algarve, devendo para o efeito a primeira outorgante entregar toda a documentação necessária para a escritura, em tempo oportuno, sendo posteriormente notificada da hora, data e local de celebração da mesma.”

8. No início de Julho de 2004 a insolvente AA autorizou o reclamante GG a ocupar a fracção objecto do acordo referido em 4, entregando-lhe as chaves da mesma.

9. A partir do início de Julho de 2004 o reclamante GG mandou instalar e inspeccionar o gás em seu nome na fracção objecto do acordo referido em 4, bem como mandou instalar a electricidade e o contador de água nessa fracção em seu nome.

10. O reclamante GG adquiriu mobílias para a fracção objecto do acordo referido em 4.

11. A partir de Agosto de 2004 o reclamante GG passou a habitar na fracção objecto do acordo referido em 4 e foi efectuando entregas por conta do referido acordo.

12. Em 10 de Março de 2004 entregou um cheque no montante de 5.000,00 euros.

13. Em 15 de Abril de 2004 entregou um cheque no montante de 5.000,00 euros.

14. Em 8 de Setembro de 2004 entregou um cheque no montante de 6.282,66 euros.

15. Em 16 de Novembro de 2004 entregou um cheque no montante de 14.010,39 euros.

16. Em 6 de Março de 2007 entregou cheque no montante de 14.187,50 euros.

17. Em 6 de Março de 2007 entregou cheque no montante de 13.395,45 euros.

18. Em 30 de Maio de 2007 entregou cheque no montante de 2.417,22 euros.

19. Em 21 de Novembro de 2007 entregou o montante de 31.765,61 euros tendo sido emitido recibo da AA denominado “Reforço de Sinal”.

20. A falta de agendamento da escritura relativa ao acordo denominado “Contrato promessa de compra e venda” celebrado entre GG e “AA, S.A.” a 08.03.2004 não se deveu a omissão do credor GG.

21. A “AA, S.A.” não facultou ao credor GG a documentação necessária para o agendamento da escritura relativa ao acordo denominado “Contrato promessa de compra e venda” celebrado entre GG e “AA, S.A.” a 08.03.2004.

22. O credor GG tentou obter junto dos administradores da “AA, S.A.” a documentação necessária para o agendamento da escritura relativa ao acordo denominado “Contrato promessa de compra e venda” celebrado entre GG e “AA, S.A.” a 08.03.2004.

23. Em 2007 foi dito ao credor GG que caso acabasse de efectuar a entrega do valor ainda em falta por conta do acordo denominado “Contrato promessa de compra e venda” celebrado entre GG e “AA, S.A.” a 08.03.2004, poderia obter todos os documentos necessários para agendar a escritura.

24. Tendo o credor GG procedido à entrega da totalidade do valor por conta do acordo denominado “Contrato promessa de compra e venda” celebrado entre GG e “AA, S.A.” a 08.03.2004, ainda assim os documentos necessários para agendar a escritura não chegaram a ser entregues pelos administradores da AA.

Impugnação deduzida pelo credor BB

25. O reclamante BB passou a habitar o imóvel objecto do acordo denominado “Contrato promessa de compra e venda” celebrado entre este e “AA, S.A.” a 17 de Fevereiro de 2003, desde Agosto de 2005.

26. O acordo referido em 25 teve por objecto a fração que constitui a verba nº 7 do auto de apreensão, descrita na Conservatória do Registo Predial sob o número ... e inscrita na matriz sob o artigo ….

27. O reclamante BB mobilou o imóvel objecto do acordo denominado “Contrato promessa de compra e venda” celebrado entre este e “AA, S.A.” a 17 de Fevereiro de 2003.

28. O reclamante BB acordou o fornecimento de gás, electricidade e água para o imóvel objecto do acordo denominado “Contrato promessa de compra e venda” celebrado entre este e “AA, S.A.” a 17 de Fevereiro de 2003.

3. O Direito.

3.1 Da nulidade do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora.

O Recorrente BB alega que a  Recorrida – CC, CRL – após ter apresentado o seu recurso para o Tribunal, da Relação de Évora, veio restringir o âmbito do mesmo, passando a pretender apenas o conhecimento da questão da interpretação do direito de retenção. Pelo que tendo essa questão prescindida transitado em julgado, por efeito dessa desistência, não podia o Tribunal da Relação de Évora conhecer da mesma, uma vez que a ela passou a gozar da força do caso transitado em julgado. Deste modo, defende que o acórdão é nulo por violação do princípio basilar da imutabilidade das decisões judiciais transitadas em julgado (art. 615º, nº 1, al. e), 2ª parte do Código de Processo Civil).

Todavia, não lhe assiste razão. Vejamos:

A causa de nulidade invocada pelo recorrente, prevista no artigo 615.°, n° 1, al. e), 2ª parte, do CPC, ocorre quando o juiz condene em objecto diverso do pedido, ultrapassando os limites da condenação definidos pelo artigo 609.°, n.° 1, do citado Código, o qual dispõe que a sentença não pode, designadamente, condenar em objecto diverso do que se pedir.

Se analisarmos as conclusões das alegações do apelante CC, apresentadas no Tribunal da Relação, delas emerge, na conclusão final, o seguinte: “O apelado para além de ter reclamado extemporaneamente o direito de retenção não é consumidor na acepção que o AUJ adotou ao interpretar a al. f) n° 1 do art. 755° do CC, simplesmente porque não detém a qualidade de consumidor definida no n°1 do art. 2º da Lei 24/96 de 31/07 (Cfr art. 1º, n° 2 al. a) da Directiva)...”.

De citado teor resulta que a CC alegou dois fundamentos no seu recurso. O primeiro relativo à extemporaneidade da invocação do direito de retenção pelo credor BB. O segundo relativo à classificação do crédito como privilegiado.

 Como é sabido, o recurso é delimitado pelas conclusões da respectiva alegação e, no caso dos autos, a apelante cumpriu o ónus de formular as suas conclusões, sendo que numa delas alega expressamente a extemporaneidade da invocação do direito de retenção por parte do credor BB.

E a circunstância de vir posteriormente no seu requerimento, em que se pronunciou quanto à improcedência da alegada má fé, apoiar-se no segundo dos dois fundamentos que invocou, tal facto não pode ser interpretado como restrição do objecto do recurso, já que o mesmo havia sido fixado nas conclusões da suas alegações.

Assim, no caso presente, o acórdão da Relação não condenou em objecto diverso do que se pediu, antes tendo apreciado as questões suscitadas no recurso de apelação.

Acresce ainda que o Tribunal não está vinculado à interpretação das partes relativamente ao regime jurídico aplicável à relação jurídica em apreciação, o qual resulta da lei e não de qualquer acordo das partes. Com efeito, o objecto do recurso engloba, para além das questões das disponibilidade das partes, todas as questões que ao tribunal de recurso é legítimo conhecer em face da decisão recorrida.

Não podemos esquecer que “o processo de insolvência é um processo universal e concursal destinado a obter a liquidação de todo o património do devedor insolvente, por todos os seus credores. É um processo concursal (concursus creditorum), uma vez que todos os credores são chamados a intervir no processo, independentemente da natureza do seu crédito (embora, depois, os poderes processuais ou substantivos que lhes correspondam sejam diferentes), por um lado e, por outro lado, porque está imbuído do princípio da proporcionalidade das perdas dos credores (princípio da par conditio creditorum), por forma a que, perante a insuficiência o património do devedor, por todos sejam repartidas de modo proporcional as perdas (art. 176º do CIRE)”[1].

Por isso, não está na disponibilidade das partes definir, por acordo, a tempestividade ou a natureza dos créditos reclamados, impondo essa definição aos restantes credores.

Deste modo, o Tribunal da Relação tinha poderes para apreciar o conjunto do regime jurídico aplicável ao caso objecto de litígio, designadamente a questão da extemporaneidade da invocação do direito de retenção por parte do credor BB, pelo que não se verifica a arguida nulidade.

Nestes termos, improcedem as alegações neste segmento.

3.2 Da Extemporaneidade da invocação do direito de retenção pelo credor BB

O Tribunal da Relação considerou extemporânea a invocação pelo credor do direito de retenção, porque os elementos integradores do direito de retenção não foram tempestivamente indicados e apresentados no prazo fixado para a reclamação de créditos.

O Recorrente discorda desta decisão, alegando a fundamentação constante das conclusões das suas alegações, que aqui se dão por reproduzidas. 

Vejamos se lhe assiste razão:

Dispõe o artigo 128.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (na redacção dada pelo DL n.º 53/2004, de 18-03, em vigor à data da sentença que declarou a insolvência), no seu n.º 1, o seguinte:

 “Dentro do prazo fixado para o efeito na sentença declaratória da insolvência, devem os credores da insolvência, incluindo o Ministério Público na defesa dos interesses das entidades que represente, reclamar a verificação dos seus créditos por meio de requerimento, acompanhado de todos os documentos probatórios de que disponham, no qual indiquem: a) A sua proveniência, data de vencimento, montante de capital e de juros; b) As condições a que estejam subordinados, tanto suspensivas como resolutivas; c) A sua natureza comum, subordinada, privilegiada ou garantida, e, neste último caso, os bens ou direitos objecto da garantia e respectivos dados de identificação registral, se aplicável; d) A existência de eventuais garantias pessoais, com identificação dos garantes; e) A taxa de juros moratórios aplicável. Acrescenta o n.º 2 que o requerimento é endereçado ao administrador da insolvência e apresentado no seu domicílio profissional ou para aí remetido por via postal registada e esclarece o n.º 3 que a verificação tem por objecto todos os créditos sobre a insolvência, qualquer que seja a sua natureza e fundamento, e mesmo o credor que tenha o seu crédito reconhecido por decisão definitiva não está dispensado de o reclamar no processo de insolvência, se nele quiser obter pagamento”.

Decorre do nº 1 deste preceito que a reclamação de créditos constitui um ónus do credor ao afirmar que os credores da insolvência devem reclamar os seus créditos, e do n.º 3, ao esclarecer que mesmo o credor que tenha o seu crédito reconhecido por decisão definitiva não está dispensado de o reclamar no processo de insolvência, se nele quiser obter pagamento. Acresce que o n.º 1 do artigo 129.º do citado código admite o reconhecimento, pelo administrador da insolvência, não apenas dos créditos reclamados, mas também daqueles que constem dos elementos de contabilidade do devedor ou sejam por outra forma do seu conhecimento. Porém, tal não dispensa o credor de reclamar o seu crédito, se quiser obter pagamento no processo de insolvência, dado que o crédito pode não ser apreciado caso não tenha sido reclamado.

 Estatui ainda o n.º 1 do citado artigo 128.º que a reclamação deverá ser praticada no prazo fixado para o efeito na sentença declaratória da insolvência, através de requerimento no qual sejam indicados os elementos elencados nas várias alíneas do preceito, destinados a individualizar e classificar o crédito, designadamente a sua natureza comum, subordinada, privilegiada ou garantida, e, neste último caso, os bens ou direitos objecto da garantia e respectivos dados de identificação registral, se aplicável, conforme decorre da alínea c).

Deste regime decorre que o credor que pretenda fazer-se valer de alguma garantia de que o seu crédito beneficie deverá, no requerimento em que reclama a verificação do crédito, indicar essa garantia.

Este entendimento é defendido por Luís A. Carvalho Fernandes/João Labareda (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa Anotado, 3.ª edição, Lisboa, Quid Juris, 2015, p. 258), afirmando que resulta do artigo 128.º, n.º 1, al. c), que “os credores sempre deverão informar o administrador da insolvência das garantias de que beneficiam, se quiserem delas tirar partido”. Adiantam ainda estes autores (ob. cit. p. 521) que a reclamação se faz por requerimento, devendo nele os credores da insolvência “fornecer todos os elementos para individualizar e caracterizar o crédito, exigidos nas várias alíneas do n.º 1 do artigo 128.º “, acrescentando (ob. cit., p. 525) que “a falta ou insuficiência desses elementos pode, na prática, consoante a sua relevância, determinar o não reconhecimento do crédito ou o seu reconhecimento com características que, de facto, não correspondam ao crédito em causa”.

Resulta do probatório que, após a declaração insolvência de AA, S.A., proferida por sentença de 29.05.2009, o credor BB (ora Recorrente) reclamou um crédito no montante de € 125 000, correspondente à devolução em dobro do sinal prestado no âmbito de contrato-promessa de compra e venda celebrado no dia 17-02-2003 com a insolvente, relativo à aquisição de fracção autónoma de um edifício em construção, acrescentando que lhe assiste o direito à resolução do contrato, por incumprimento imputável à promitente-vendedora.

Todavia, na referida reclamação não invocou a existência de qualquer garantia, designadamente o direito de retenção sobre a fracção autónoma prometida vender, nem juntou quaisquer elementos relativos a esse direito.

Na sequência das reclamações apresentadas o Sr. Administrador da Insolvência elaborou a relação de créditos reconhecidos e não reconhecidos, fazendo constar da lista de créditos reconhecidos o crédito reclamado pelo ora Recorrente, no montante de € 125.000, o qual classificou como crédito comum.

Posteriormente, através de requerimento apresentado em 24-08-2009, o ora Recorrente, alegou que a fracção autónoma prometida vender lhe foi entregue em Agosto de 2005 e que entretanto a mobilou e celebrou contratos de fornecimento de electricidade, gás e água, invocando que o seu crédito goza de direito de retenção sobre a fracção autónoma prometida vender, peticionando seja tal direito de retenção considerado na graduação de créditos.

Resulta do probatório que o direito de retenção não foi invocado pelo credor, ora Recorrente, no requerimento de reclamação de créditos, nem no prazo fixado para o efeito na sentença declaratória da insolvência. Esse direito apenas veio a ser invocado pelo credor em momento posterior à apresentação pelo Sr. Administrador da Insolvência da relação de créditos reconhecidos e não reconhecidos, na qual foi o crédito reclamado classificado como crédito comum, sem qualquer menção a uma eventual garantia.

Como analisamos, o regime estabelecido no art.º 128º do CIRE impõe ao credor, que pretenda fazer-se valer de alguma garantia de que o seu crédito beneficie, o ónus de a indicar (assim como o de juntar os elementos que a caracterizam) no requerimento em que reclama a verificação do crédito. Deste modo, a falta de tal invocação no aludido requerimento, ou no prazo fixado para o efeito na sentença declaratória da insolvência, impede o credor de fazer-se valer dessa eventual garantia, por incumprimento do indicado ónus.

Alega o Recorrente que cumpriu o prazo legal previsto no art.º 130º do CIRE para a impugnação da qualificação jurídica do crédito que lhe foi fixada pelo administrador de insolvência e, por tal facto, ainda estaria em tempo de ver reconhecida a pretendida garantia.

Não podemos aceitar tal entendimento. Vejamos a fundamentação do acórdão recorrido, que aqui subscrevemos integralmente:

O artigo 130.° do CIRE, sob a epígrafe “Impugnação da lista de credores reconhecidos”, permite, no seu n.°1, a qualquer interessado, nos 10 dias seguintes ao termo do prazo fixado no n.°1 do artigo anterior, impugnar a lista de credores reconhecidos através de requerimento dirigido ao juiz, com fundamento na indevida inclusão ou exclusão de créditos, ou na incorrecção do montante ou da qualificação dos créditos reconhecidos.

Analisando este preceito, verifica-se que a impugnação da lista de credores reconhecidos só pode ter algum dos fundamentos aí indicados, a saber: a indevida inclusão ou exclusão de créditos, ou a incorreção do montante ou da qualificação dos créditos reconhecidos. Não permite o preceito a invocação de elementos novos, designadamente a indicação de alguma garantia de que o crédito reconhecido eventualmente beneficie, anteriormente não indicada, e cuja consideração venha a determinar uma alteração da classificação do crédito.

No caso presente, a falta da tempestiva indicação pelo credor apelado do direito de retenção em causa determinou o reconhecimento do crédito como comum, sem menção a qualquer garantia, em conformidade com os elementos constantes do requerimento de reclamação de créditos. Ora, não invoca o apelado, no seu requerimento de 24-08-2009, qualquer incorreção quanto à qualificação do seu crédito, nos termos em que foi reconhecido na lista de credores, pretendendo fazer alterar a classificação operada por via da alegação de elementos anteriormente não apresentados, concretamente através da invocação de uma garantia de que pretende fazer-se valer. Porém, não tendo o credor cumprido o ónus de indicação de tal garantia no prazo fixado para a reclamação de créditos, não poderá fazer-se valer da mesma.

Como tal, não tendo o direito de retenção sido invocado no prazo fixado para a reclamação de créditos, mostra-se extemporânea a respetiva invocação, acompanhada pela alegação de factualidade nova, em momento posterior à apresentação pelo Sr. Administrador da Insolvência da relação de créditos a que alude o artigo 129.º do CIRE”.

Assim, na esteira do entendimento seguido pelo Tribunal recorrido, o direito de retenção em caso de insolvência do promitente-vendedor, como é o caso em apreço, para ser reconhecido, terá de ser invocado no requerimento da reclamação do crédito no prazo facultado para o efeito na sentença declaratória da insolvência, sob pena de não o sendo, não ser reconhecido para efeito de concurso e graduação.

O requerimento de fls 578 e segs, onde o Recorrente vem a invocar o direito de retenção, que anteriormente não reclamou, traduz-se uma extemporânea reclamação autónoma. Não sendo esse o momento nem o meio próprio para reclamar uma garantia, nem se alicerça em nenhum dos fundamentos taxativamente previstos no art.º 130º do CIRE: da indevida inclusão ou exclusão do seu crédito, incorrecção do montante ou qualificação do seu crédito.

Neste entendimento, bem andou o Tribunal da Relação ao julgar extemporânea a invocação pelo credor do direito de retenção e que não deveria o tribunal a quo ter apreciado a questão da existência de tal direito. 

Nestes termos, também, nesta parte, improcede a revista.

3.3 Classificação do crédito do credor BB

Na sequência da decisão apreciada no ponto anterior, com a conclusão de que, face à extemporaneidade da invocação do direito de retenção, o tribunal não poderia ter apreciado a questão da existência deste direito, importa classificar o crédito do Recorrente como comum.

Deste modo, também nesta parte, improcede a revista.

Em conclusão:

I - O credor que pretenda fazer-se valer de garantia de que o seu crédito sobre a insolvência beneficie, deverá, no requerimento em que reclama a verificação do crédito, indicar tal garantia, conforme exigido pelo artigo 128.º, n.º 1, al. c), do CIRE;

II – A falta de tal indicação no requerimento de reclamação do crédito, ou no prazo fixado para o efeito na sentença declaratória da insolvência, impede o credor de fazer-se valer de eventual garantia, se não reconhecida pelo administrador da insolvência;

III - A impugnação da lista de credores reconhecidos só pode ter como fundamentos os indicados no artigo 130.º do CIRE, não permitindo o preceito a invocação de elementos novos, designadamente a indicação de garantia de que o crédito reconhecido eventualmente beneficie, anteriormente não indicada, e cuja consideração venha a determinar uma alteração da classificação do crédito;

IV – Não tendo o credor invocado o direito de retenção no prazo fixado para a reclamação de créditos, mostra-se extemporânea a respectiva invocação, acompanhada pela alegação de factualidade nova, em momento posterior à apresentação pelo administrador da insolvência da relação de créditos a que alude o artigo 129.º do CIRE.

III. Decisão

Nestes termos, acorda-se em negar provimento ao recurso, mantendo-se integralmente o acórdão recorrido.

Custas pelo Recorrente

Lisboa, 02/04/2019

Raimundo Queirós (Relator)

Ricardo Costa

Ana Paula Boularot

________________

[1] Maria do Rosário Epifânio, Manual de Insolvência, Almedina, 2012, p.12.