Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
18858/12.9T2SNT.L1.S2
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO JOAQUIM PIÇARRA
Descritores: CONTRATO DE COMPRA E VENDA
VEÍCULO AUTOMÓVEL
CONTRATO DE CRÉDITO AO CONSUMO
NULIDADE DO CONTRATO
OBRIGAÇÃO DE RESTITUIÇÃO
Data do Acordão: 05/17/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / NULIDADE E ANULABILIDADE DO NEGÓCIO JURÍDICO / EFEITOS DA DECLARAÇÃO DE NULIDADE E DA ANULAÇÃO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS.
Doutrina:
- Karl Larenz/Manfred Wolf, Allgemeiner Teil des Bürgerlichen Rechts, 8. Auf., C. H. Beck, München, 1997, p. 825 e ss..
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 289.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 635.º, N.º 4 E 639.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 07-07-2009, PROCESSO N.º 6773/04.4TVLSB, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I - A celebração de negócios que vêm a ser declarados nulos revela-os existentes como eventos e, por isso, não está ao alcance da ordem jurídica tratar esses actos realizados como se estes não houvessem realmente ocorrido, mas apenas recusar-lhes a produção dos efeitos jurídicos que lhes vão implicados.

II - Ainda que nulos, os contratos não deixaram, apesar de tudo, de produzir efeitos fácticos, tornando-se assim necessário, na decorrência desse vício inquinador, repor a situação fáctica de acordo com a situação jurídica (ineficácia originária desses negócios).

III - Havendo um contrato de crédito ao consumo cujo produto mutuado se destinou ao pagamento do preço de um veículo vendido por terceiro ao mutuário e tendo o montante mutuado sido directamente entregue ao vendedor, a nulidade dos contratos não obriga o mutuário – que nada recebeu em virtude do mútuo – a restituir o montante mutuado, nos termos do art. 289.º do CC.

IV - A obrigação de restituição terá de recair sobre quem beneficiou da transferência patrimonial operada por efeito do mútuo, ou seja, a vendedora do veículo automóvel, que recebeu o montante mutuado directamente da financiadora.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



Relatório


I AA e mulher, BB, instauraram acção declarativa contra Instituição Financeira de Crédito – CC, SA e DD - Comércio de Automóveis, Lda, alegando, em síntese, que:

Em 2007, foi celebrado com a ré CC um contrato de mútuo, para aquisição de veículo automóvel que compraram à ré DD.

O montante mutuado foi entregue directamente à vendedora, assumindo eles o pagamento das 96 prestações devidas, no montante mensal de €422,85, o que foram fazendo até tomarem conhecimento de que o veículo não era pertença da ré vendedora.

Nessa altura tinham já pago, através do EE, a importância de €24.525,30.

Apesar da nulidade da compra e venda, por ser o veículo alheio, e do mútuo associado, a ré continua a exigir o pagamento das prestações.

Com tais fundamentos, concluíram por pedir que:

- se decrete a nulidade do contrato de venda do veículo celebrado entre os AA. e a 2ª ré;

- se decrete a nulidade do contrato de mútuo celebrado entre os AA. e a 1ª ré;

- se condene a 1ª ré a restituir aos AA. todas as quantias cobradas por efeito do contrato de mútuo com os mesmos celebrado, em valor não inferior a € 24.525,30;

- se condene a 1ª ré a abster-se de remeter ao Banco EE, para cobrança por débito directo as quantias relativas às prestações de amortização do contrato de mútuo celebrado entre os AA e a 1ª ré.

Citadas as rés, apenas a CC contestou, excepcionando a sua ilegitimidade e sustentando a validade do mútuo, desse modo pugnando pela improcedência da acção e consequente absolvição do pedido.

Os Autores responderam à excepção, pugnando pela sua inverificação.

Foi proferido saneador a refutar a arguida ilegitimidade, seguido da definição do objecto do litígio e enunciação dos temas de prova.

O processo seguiu a normal tramitação e, finda a audiência final, foi proferida sentença, datada de 17/07/2016, a decidir o seguinte:

a) declarar a nulidade do contrato de compra e venda do veículo de Marca Volkswagen, modelo Passat, com a matrícula ...-AQ-... com a consequente obrigação de devolução/restituição de tudo quanto foi prestado, seja a entrega do veículo - já efectuada - por parte dos Autores, seja a devolução do preço de € 34 500, recebido pela 2ª Ré, por parte desta, prestação esta em que a mesma vai condenada.

b) declarar a nulidade do contrato de crédito com o nº 0001…4 celebrado entre os Autores e a 1.a Ré, em 30-08-2007, com a consequente obrigação de devolução/restituição de tudo quanto foi prestado, seja o montante do mútuo no montante de € 29.500,00 - por parte dos Autores - seja o montante das prestações cobradas pela 1ª Ré aos Autores até ao momento, efectuando-se a respectiva compensação entre as mesmas;

c) condenar-se a 1a Ré CC, S.A. a abster-se de remeter ao Banco EE, para cobrança por débito directo, as prestações de amortização do contrato de crédito ora declarado nulo.

Inconformados, apelaram os Autores, sem êxito, tendo a Relação de Lisboa, na improcedência do recurso, confirmado a sentença e, persistindo irresignados, interpuseram recurso de revista excepcional admitido pela formação prevista no artigo 672º, n.º 3, do Cód. Proc. Civil (cfr. fls. 493 a 497).

Os Recorrentes finalizaram a sua alegação, com as conclusões[1] que, na íntegra, se transcrevem:

1. O acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, de que se recorre, está em completa contradição com o acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, em 07/07/2009, no âmbito do processo 6773/04,4TVLSB.S1, 6ª Secção, de que se junta cópia como Doc. 2, e que se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

2. Com efeito no acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça no âmbito do processo n.° 6773/04.4TVLSB.S1 (Doc. 2) decidiu-se que: Havendo um contrato de crédito ao consumo cujo produto mutuado se destinou ao pagamento do preço de um veículo vendido por terceiro ao mutuário e tendo o montante mutuado sido directamente entregue ao vendedor, a nulidade dos contratos não obriga o mutuário - que nada recebeu em virtude do contrato de mútuo - a restituir o montante mutuado, nos termos do artigo 289° do Código Civil.

3. No acórdão fundamento, em face da nulidade do contrato, decidiu-se que estávamos perante uma situação contratual complexa, em que o crédito foi concedido para financiar o pagamento de um bem vendido - automóvel - tendo sido o montante mutuado entregue directamente pela entidade financiadora à entidade vendedora do bem adquirido.

4. Assim, considerou-se no acórdão fundamento ser de aplicar o disposto no artigo 12° do Decreto Lei n.° 359/91 que estipula no seu n.° 1 que se o crédito for concedido para financiar o pagamento de um bem vendido por terceiro, a validade e eficácia do contrato de crédito depende da validade e eficácia do contrato de compra e venda, sempre que exista qualquer tipo de colaboração entre o credor e o vendedor na preparação ou na conclusão do contrato de crédito.

5. Conforme se refere no acórdão fundamento (Doc. 2) a nulidade do mútuo acarreta a nulidade da compra e venda.

6. Mais se refere no acórdão fundamento (Doc. 2) que a consequência da nulidade dos contratos, nos termos do artigo 289° do Código Civil, é a dever ser restituído tudo o que houver sido prestado ou se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.

7. Mais se refere no acórdão fundamento que tendo a entidade credora entregue ao vendedor do veículo o montante mutuado, e nada tendo sido entregue ao mutuário, será a entidade vendedora quem terá que restituir o mesmo montante recebido e não o mutuário que nada recebeu da entidade credora.

8. Conclui o acórdão fundamento (Doc. n.° 2) que, por força da norma do artigo 289° do Código Civil, nenhuma obrigação de restituir onera o mutuário, pois nada recebeu, pelo que nada tem a restituir.

9. Mais se refere no acórdão fundamento (Doc. n.° 2) que não se pode retirar de um contrato de mútuo nulo, a consequência que não seja a prevista do artigo 289° do Código Civil e não qualquer outra consequência resultante das cláusulas do mesmo contrato, precisamente porque é nulo.

10. Conclui assim o acórdão fundamento que não tendo o mutuário recebido o montante mutuado não tem de restituir o que nunca possuiu ou deteve.

11. Na sentença e no acórdão de que se recorre, embora se considere que a Ré CC, SA, entregou directamente à Ré DD, Lda., o montante mutuado, não se extrai daí as devidas consequências condenando a Ré DD, Lda. a restituir o valor por si recebido à Ré CC, SA, antes se condena os Autores, mutuários, que nada receberam da Ré CC, SA, a devolver a quantia mutuada.

12. Ao contrário do referido no acórdão da Relação de que recorre a pretensão dos Autores não é questão nova, de que não caiba conhecer.

13. No petitório formulado os Autores requereram que fosse declarada a nulidade do contrato de venda do veículo celebrado com a Ré DD, Lda. bem como que fosse declarada a nulidade do contrato de mútuo celebrado entre os Autores e a Ré CC, SA, mais tendo requerido que a Ré CC fosse condenada a restituir aos Autores todas as quantias cobradas por efeito do contrato de mútuo.

14. Com o devido respeito não competia aos Autores solicitarem a condenação da Ré DD, Lda. a devolver à Ré CC, SA, a quantia que havia recebido desta. Tal pedido incumbia à Ré CC, SA, e não aos Autores,

15. Ao contrário do que ocorre no acórdão fundamento» na sentença e no acórdão de que se recorre, perante a mesma situação jurídica - nulidade de contrato de crédito para aquisição de um veículo automóvel - o efeito que se retira de tal nulidade é diametralmente oposto.

16. Com efeito na sentença e no acórdão de que se recorre, ao contrário do que acontece no acórdão fundamento, condena-se o mutuário, e não a entidade vendedora, na devolução da quantia mutuada.

17. É, pois, manifesta a contradição entre o acórdão que se pretende impugnar (Doc. 1) e o acórdão fundamento (Doc. 2), sendo que essa oposição é manifesta e é relativa a questões apreciadas e não meramente implícitas ou pressupostas.

18. Existe uma perfeita identidade, em ambos os casos, do núcleo central da situação de facto e de normas jurídicas aplicadas, sendo, no entanto, as conclusões retiradas diametralmente opostas, sendo que ambas as decisões em confronto assentam em idêntico quadro normativo.

19. A questão a decidir no presente recurso trata-se assim de uma questão que se poderá suscitar na generalidade das situações em que se invoca a nulidade de um contrato de crédito, cujo montante foi entregue pela entidade financiadora directamente à entidade vendedora.

20. Atenta a decretada nulidade do contrato de venda do veículo com a matrícula ...-AQ-... celebrado entre os Autores e a Ré DD - Comércio de Automóveis, Lda.;

21. Atenta a decretada nulidade do contrato de mútuo celebrado entre os Autores e a Ré Instituição Financeira de Crédito -CC, S.A. que esteve na base da aquisição do veículo com a matrícula ...-AQ-...;

22. Deve a Ré Instituição Financeira de Crédito - CC, S.A., ser condenada a restituir aos Autores o montante de €24.525,30, referente às quantias cobradas por efeito do contrato de mútuo com os mesmos celebrado para a aquisição da viatura com a matrícula ...-AQ-...;

23. Deve a Ré Instituição Financeira de Crédito - CC, S.A, abster-se de remeter ao Banco EE, para cobrança por débito directo, as quantias relativas às prestações de amortização do contrato de mútuo celebrado entre os Autores e a Ré Instituição Financeira de Crédito - CC, S.A.;

24. A matéria de facto dada como provada e não provada não merece da parte dos Autores qualquer censura razão pela qual o presente recurso apenas versa matéria de direito.

25. A invalidade do contrato de compra e venda celebrado entre os Autores e a Ré DD, Lda. terá que determinar a invalidade do contrato de crédito celebrado entre os Autores e a Ré CC, S.A., dado que no presente caso existiu uma colaboração entre o credor e o vendedor na preparação e conclusão do contrato de crédito - Artigo 12°, n.° 1 do D.L. n,° 359/91, de 21 de Setembro.

26. A referida colaboração pode ser ocasional, dado que a nulidade tem efeito retroactivo, implicando o dever de restituição das prestações efectuadas - artigo 289° do Código Civil.

27. No caso em apreço, conforme se retira dos pontos 3, 4, 5, 6, 7, 8, 29, 30, 31, 34, 35 e 36 dos factos provados, existiu uma colaboração entre a Ré DD, Lda. e a Ré CC, S.A., quer na preparação, quer na conclusão do contrato de crédito ao consumo celebrado para a aquisição da viatura com a matrícula ...-AQ-....

28. Consequentemente a nulidade do contrato de compra e venda do veículo com a matrícula ...-AQ-..., celebrado entre os Autores e a Ré DD, Lda, determina a nulidade do correspondente contrato de crédito ao consumo celebrado com a Ré CC, S.A.

29. A Directiva n.° 2008/48/CE, do Parlamento e do Conselho, de 23 de Abril, relativa a contratos de crédito aos consumidores, transposta para o nosso ordenamento jurídico pelo DL n.° 133/2009 de 02 de Junho, veio instituir uma mais eficaz protecção do consumidor em caso de contratos coligados, configurando uma migração das vicissitudes de um contrato para o outro.

30. Nos termos do n.° 2 do Artigo 18° do DL n.° 133/2009, a invalidade ou a ineficácia do contrato de compra e venda repercute-se, na mesma medida, no contrato de crédito coligado, pelo que não se poderá deixar de concluir, ao contrário do que foi decidido pelo Tribunal "a quo", que a nulidade do contrato de compra e venda acarreta automaticamente a nulidade do contrato de crédito ao consumo por via da coligação de contratos.

31. Ao decidir como decidiu o Tribunal "a quo" violou o disposto no artigo 12°, n.° 1 do DL n.° 359/91, de 21 de Setembro, o disposto no artigo 289° do Código Civil, a Directiva Comunitária n.° 2008/48/CE do Parlamento e do Conselho e o n.° 2 do artigo 18° do DL n.° 133/2009 de 02 de Junho.

32. Os Autores não devem ser condenados a restituir à Ré CC S.A. o preço de venda a contado, compensando-se tal quantia com as prestações já pagas pelos Autores até à presente data.

33. A nulidade tem efeito retroactivo, gerando uma relação jurídica de liquidação, no âmbito da qual surge o dever reciproco de restituição das prestações efectuadas - artigo 289° do Código Civil.

34. No mútuo, o dever de restituição das prestações efectuadas implica a devolução pelo mutuante ao mutuário das prestações por este pagas, quer respeitem à amortização do capital, quer respeitem a juros remuneratórios.

35. No caso concreto não impende sobre o mutuário o dever de restituição ao mutuante do capital mutuado.

36. No caso concreto estamos perante contratos a favor de terceiro, tendo sido estipulada a obrigação de entrega do capital mutuado a um terceiro.

37. Sendo assim, não se pode deixar de considerar que o dever de restituição impende sobre esse terceiro, e não sobre os Autores» ou seja tal dever de restituição, ao contrário do decido na sentença "a quo" impende sobre a CC, Lda., e não sobre os Autores.

38. Conforme referido trata-se de uma relação de liquidação, o que implica a realização das prestações precisamente em sentido inverso (a repristinação das prestações).

39. Tendo sido a R. DD, Lda. quem recebeu o valor de €34.500 da R. CC, S.A., é sobre a R. DD, Lda. que impende o dever de restituição à Ré CC, S.A. do capital mutuado.

40. Tanto assim é que, fazendo um paralelismo com o instituto do enriquecimento sem causa sempre se teria que considerar que o enriquecimento ocorreu na esfera jurídica da DD, Lda. e não da esfera jurídica dos Autores.

41. Deverá a Ré CC, S.A. ser condenada na restituição aos Autores das prestações por estes pagas ao abrigo do contrato de crédito, que nos termos dos factos dados como provados (Facto 33) se cifram no montante de €24.525,30.

42. Dado que o capital mutuado foi entregue à Ré DD, Lda., (contrato a favor de terceiro) a devolução do capital mutuado só poderá ser exigida pela Ré CC, S.A. à Ré DD, Lda.

43. Com efeito, no caso dos contratos de compra e venda e mútuo coligados, a obrigação de restituição da quantia mutuada em caso de nulidade do contrato de mútuo cabe ao vendedor, a quem foi entregue pelo mutuante tal quantia, e não ao mutuário (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no âmbito do processo n.° 14148/09.2T2SNT-A.L 1 -6, disponível em www.dgsi.pt).

44. No mesmo sentido veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no âmbito do processo n.° 10300/2008-7, disponível em www.dgsi.pt, onde se refere que "da nulidade do contrato de compra e venda (que impõe que as partes devam repor a situação anterior à celebração do contrato, restituindo tudo o que tiver sido prestado) ocorre a restituição do preço, sendo certo que tal obrigação apenas impenderá sobre quem o mutuante pagou, ou seja, no caso, sobre a entidade vendedora."

45. No mesmo sentido veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no âmbito do processo n,° 3820/2008-8, disponível em www.dgsi.pt, onde se refere que "sendo o crédito concedido para financiar o pagamento do veículo vendido por terceiro (que colaborou com o credor na preparação e na conclusão do contrato de crédito), a validade e eficácia do contrato de compra e venda depende da validade e eficácia do contrato de crédito".

46. No mesmo sentido veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no âmbito do processo n.° 6773/04.4TVLSB.S1, disponível em www.dgsi.pt, onde se refere que "Havendo um contrato de crédito ao consumo cujo produto mutuado se destinou ao pagamento do preço de um veículo vendido por terceiro ao mutuário e tendo o montante mutuado sido directamente entregue ao vendedor, a nulidade dos contratos não obriga o mutuário - que nada recebeu em virtude do contrato de mútuo - a restituir o montante mutuado, nos termos do artigo 289 do Código Civil".

47. No mesmo sentido veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido no âmbito do processo n.º 15/08.OTBCDR-A.P2, disponível em www.dgsi.pt, onde se refere que "Servindo o crédito para financiar o pagamento de um bem vendido por terceiro ao mutuário e tendo o montante mutuado sido entregue directamente ao vendedor, a nulidade dos contratos não obriga o mutuário a restituir o montante mutuado, já que nada recebeu".

48. No mesmo sentido veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no âmbito do processo n.° 08B3798, disponível em www.dgsi.pt, onde se refere que "A nulidade do mútuo implica a obrigação de restituição aos consumidores das quantias por estes pagas ao mutuante, apesar de este ter pago a totalidade do capital ao fornecedor do serviço."

49. Ao decidir como decidiu o Tribunal "a quo" violou o disposto no artigo 12°, n,° 1 do DL n.° 359/91, de 21 de Setembro, o disposto no artigo 289° do Código Civil, a Directiva Comunitária n,° 2008/48/CE do Parlamento e do Conselho e o n.°2 do artigo 18° do DL n.° 133/2009 de 02 de Junho.

Não foi oferecida contra-alegação e, colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II - Fundamentação de facto

As instâncias consideraram provados os factos seguintes:

1. Em Setembro de 2007 o Autor celebrou com a Ré CC, S.A. um contrato a que denominaram "Contrato de Crédito" para aquisição de um veículo automóvel, no valor de € 29 500, pelo prazo de 96 meses, com a mensalidade de € 422,85, vencendo-se a 1ª dessas mensalidades em 05-10-2007 e a última em 05-09-2015, com vista à aquisição do veículo automóvel com a marca Volkswagen, modelo Passat, contrato esse a que foi atribuído o n.º 0001…4.

2. Não obstante não constar do referido contrato de crédito, o Autor destinava tal crédito à aquisição do veículo com a matrícula ...-AQ-....

3. O veículo foi adquirido no stand da 2ª Ré DD e perante o gerente desta, tendo a sua aquisição sido negociada com FF, sócio gerente da DD, o qual conduziu, igualmente, a celebração do contrato de mútuo celebrado entre o Autor e a Ré CC.

4. A assinatura do "Contrato de Crédito" ocorreu no stand da DD, perante o gerente desta.

5. Tendo-lhes sido entregue aos autores um exemplar do contrato com as assinaturas em branco que os mesmos preencheram e devolveram a FF.

6. Aquando da celebração do contrato de mútuo, nem em qualquer outro momento das negociações, esteve presente qualquer funcionário ou representante da CC.

7. Não tendo sido explicado aos autores as condições e termos do contrato de crédito celebrado com a CC, S.A., nem pelo gerente da DD - FF - nem por qualquer funcionário daquela.

8. Aquando da entrega do veículo aos Autores não lhes foram entregues os documentos originais do veículo, assegurando-se a sua entrega posterior.

9. Sem qualquer explicação por parte da DD, em início de 2008 esta ainda não havia enviado aos Autores os documentos do veículo.

10. Desde a entrega do veículo que os Autores circulavam sem os documentos do mesmo.

11. Decorrido cerca de um ano sobre a aquisição do veículo com a DD e sobre a celebração do "contrato de crédito" com a Ré CC, os Autores continuavam a circular com a viatura sem os respectivos documentos.

12. Pagando desde o início as prestações devidas pelo contrato de mútuo celebrado com a 1ª Ré.

13. Descontentes e incomodados com a circunstância de circularem com um veículo sem documentos e sem o registo de propriedade a seu favor, o Autor contactou o gerente da 2ª Ré com o propósito de devolver o veículo.

14. Por este foi proposto que os Autores adquirissem um novo veículo e contratassem um novo mútuo.

15. A 2ª Ré através do seu gerente mediou a operação de aquisição de uma segunda viatura e assumiu a responsabilidade, perante o Autor, de liquidar o 1º mútuo.

16. Através de contactos e diligências promovidas pela 2ª Ré os Autores assinaram um segundo contrato de crédito no montante de € 27 680,00 pelo prazo de 84 meses, contrato esse com o n.º 81-12467, com vista à aquisição da viatura Volkswagen, modelo Passat, com a matrícula ...-DP-....

17. Com a entrega do veículo Passat ...-AQ-..., a 2.ª Ré, através do seu gerente FF, assumiu perante o Autor a responsabilidade de liquidar o primeiro contrato de mútuo celebrado entre os AA. e a CC S.A., ficando os Autores convictos de que daí em diante apenas ficariam responsáveis pelo pagamento das prestações resultantes do contrato celebrado com o Deutsch Bank.

18. O contrato com o Deutsch Bank, referido em 16, iniciou-se em Janeiro de 2009, ficando os Autores responsáveis pelo pagamento de 84 prestações no valor de € 421,57, vencendo-se a primeira em 05-02-2009 e a última em 05-01-2016.

19. Com a entrega da viatura ...-AQ-... confiaram os Autores que a 2ª Ré liquidaria o contrato de crédito celebrado com a 1ª Ré, nos termos em que se havia comprometido.

20. Em Novembro de 2009 o Autor foi interpelado pela 1.ª Ré para o pagamento das mensalidades em atraso referentes aos meses de Agosto e Setembro de 2009.

21. As prestações do referido contrato, nos termos do mesmo, eram pagas mediante débito directo sobre a conta bancária, titulada pelos Autores, com o NIB 003…4, no banco EE.

22. Nesse momento constataram os Autores que a 1ª Ré continuava a cobrar as prestações do contrato de mútuo, mediante aviso de cobrança na mencionada conta bancária.

23. Consultada a 1ª Ré CC, S.A. informou os Autores de que o contrato de crédito não havia sido liquidado, razão pela qual persistiriam os débitos mensais sobre a referida conta.

24. Tentado o contacto com a 2ª Ré e com o seu gerente, este nunca mais atendeu telefonemas ao Autor, nunca mais compareceu na sede, não tendo sido possível localizá-lo.

25. O Autor consultou o registo de propriedade do veículo ...-AQ-... tendo constatado que o mesmo nunca se encontrou registado a seu favor, nem a favor da DD.

26. Em Outubro de 2009 o Autor apresentou queixa-crime contra a 2.ª Ré e respectivo gerente.

27. O Autor comunicou estes factos à 1ª Ré, invocando perante a mesma a nulidade do contrato de venda do veículo e a consequente nulidade do contrato de mútuo, através de notificação judicial avulsa em Julho de 2010.

28. Não obstante a 1ª Ré persistiu na cobrança, por débito directo, das prestações de amortização do mútuo.

29. Os Autores assinaram uma proposta de crédito junto da 1ª Ré, proposta essa que lhes foi apresentada pelo legal representante da DD, nas instalações do seu stand.

30. Os Autores entregaram ao legal representante da 2ª Ré toda a documentação necessária à apreciação da proposta de crédito, não tendo em momento algum tido qualquer contacto com a Ré CC, S.A. ou com qualquer funcionário da mesma.

31. A proposta de crédito foi enviada pela 2ª Ré para a 1ª Ré que aprovou o crédito e pagou directamente àquela o preço de aquisição da viatura.

32. Desde Setembro de 2007 que os Autores se encontram a pagar as prestações de um contrato de crédito para aquisição de uma viatura que nunca chegou a estar em nome deles e que foi por estes entregue à vendedora, que por sua vez terá vendido a terceiros.

33. Desde Setembro de 2007 até à data de propositura da presente acção os Autores pagaram € 24.525,30 de prestações devidas pelo contrato de crédito.

34. O contrato de crédito referido em 1. teve como única finalidade servir de financiamento à aquisição do veículo ...-AQ-....

35. Aquando quer da proposta do contrato de crédito, quer da assinatura do mesmo não foi explicado aos Autores, pela 1ª Ré ou pela 2ª Ré, o seu conteúdo, clausulado, obrigações e direitos, tendo apenas lhes sido referido pela 2ª Ré o valor da prestação mensal e duração do contrato.

36. Aquando da assinatura do contrato por parte dos Autores não foi entregue a estes qualquer cópia do mesmo, o qual foi enviado pela 2ª Ré para os serviços da 1ª Ré para ser completado e assinado por esta.


III – Fundamentação de direito

A apreciação e decisão da revista passam, atentas as conclusões da alegação dos Recorrentes (artigos 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1, do Cód. de Proc. Civil), pela análise e resolução da única questão jurídica por eles colocada a este Tribunal e que consiste em saber se a nulidade do celebrado contrato de mútuo associado ao financiamento da compra do veículo automóvel determina, por força do artigo 289º, nº. 1, do Código Civil, a restituição pelos Autores/Recorrentes à Ré CC do montante mutuado, ainda que a compensar com o que liquidaram através das prestações mensais pagas.

As instâncias convergiram no tocante à qualificação dos aludidos contratos, referindo tratar-se de uma compra e venda financiada em que o mútuo é enquadrável na figura de contrato de crédito ao consumo, dado ter por exclusivo objetivo possibilitar a compra, por parte dos Autores (ora, Recorrentes) de veículo automóvel e concluíram também convergentemente que os dois contratos são nulos, a compra e venda, nos termos do artigo 892º do Cód. Civil, e o mútuo, por força do artigo 7º, n.º 1, do DL 359/91, de 21 de Setembro.

Essas questões não vêm questionadas no âmbito do recurso e encontram-se já definitivamente fixadas, faltando apenas definir parte dos efeitos invalidantes da compra e venda do veículo automóvel e do contrato de mútuo. Nessa operação, deve atentar-se que os efeitos decorrentes do vício inquinador (nulidade) desses contratos, conquanto tipicizado pelos mais drásticos predicados de neutralização dos negócios (artigo 289º, n.º 1, do Cód. Civil), não autoriza a ilação de que os referidos negócios jurídicos constituam um nada, tal como se pura e simplesmente não tivessem acontecido[2].

Como é óbvio, a celebração desses negócios revela-os existentes como eventos e, por isso, não está ao alcance da ordem jurídica tratar os actos realizados como se estes não houvessem realmente ocorrido, mas apenas recusar-lhes a produção dos efeitos jurídicos que lhe vão implicados. Não é, assim, exacta a ideia de que, mercê da nulidade contratual, tudo se passa como se os contratos não tivessem sido celebrados ou produzido quaisquer efeitos. Bem ao invés os aludidos contratos constituem algo que na realidade aconteceu e teve evidente repercussão no subsequente relacionamento jurídico das partes.

Ainda que nulos, os dois contratos não deixaram, apesar de tudo, de produzir efeitos fácticos, tornando-se assim necessário, na decorrência desse vício inquinador, repor a situação fáctica de acordo com a situação jurídica (ineficácia originária desses negócios).

Na repristinação/liquidação da relação existente entre as partes e resultante da declaração de nulidade negocial, deve, em primeiro lugar, ser restituído tudo o que tiver sido prestado e, se ainda possível, a restituição deve ser feita em espécie ou, no caso de impossibilidade, deve ser restituído o valor correspondente (artigo 289º, n.º 1, do Cód. Civil). No fundo, as deslocações patrimoniais operadas, com base na validade dos contratos, devem realizar-se, agora constatada a sua invalidade, em sentido inverso, repondo, tanto quanto possível, a situação anterior à celebração.

Além disso, se da nulidade resultarem obrigações de restituição recíprocas, devem ser cumpridas simultaneamente, podendo cada uma das partes sustar a restituição que lhe incumbe, enquanto a outra não cumprir (artigo 290º do Cód. Civil).

Aplicando tais regras ao caso vertente, temos que os Autores/Recorrentes terão de restituir o veículo automóvel à Ré vendedora (a DD), o que fizeram, e receber desta a parte do preço que pagaram, ou seja, como se vê do ponto 33. do elenco factual provado, a quantia de € 24.525,30. Por sua vez, aquela Ré (a DD) terá de restituir à Ré CC o montante mutuado que dela recebeu directamente.

É certo que o mútuo nulo foi celebrado entre a Ré CC e os Autores/Recorrentes, pelo que, em principio, seria sobre estes que deveria recair a obrigação de restituição do montante mutuado. Porém, tratando-se de compra de veículo automóvel realizada com recurso a crédito em que, como se vê do ponto 31. do elenco factual provado, o montante obtido no financiamento foi entregue directamente pela mutuante (a Ré CC), à Ré vendedora (a DD), sem passar verdadeiramente pelas mãos dos mutuários (os Autores/Recorrentes), tem-se como acertado que os últimos, que nada receberam, nada terão de restituir.

A obrigação de restituição terá de recair sobre quem beneficiou da transferência patrimonial operada por efeito do mútuo, ou seja, a Ré vendedora do veículo automóvel, que recebeu o montante mutuado directamente da Ré financiadora, sendo certo que esta questão, na medida em que decorre do vício inquinador do contrato e é mera consequência ou efeito da declarada nulidade contatual, não é nova, como menos acertadamente a considerou a Relação. Pelo contrário, integra o cerne do litígio que foi submetido à apreciação do tribunal e cuja resolução foi pedida, desde o início da instância, pelos ora Recorrentes.

De salientar que o entendimento aqui seguido sobre os efeitos da nulidade do mútuo associado à venda financiada de veículo automóvel sufraga o decidido no acórdão deste Tribunal proferido, em 07/07/2009, no processo n.º 6773/04.4TVLSB, acessível em www.dgsi.pt, com o seguinte sumário, na parte que para aqui releva: II- Havendo um contrato de crédito ao consumo cujo produto mutuado se destinou ao pagamento do preço de um veículo vendido por terceiro ao mutuário e tendo o montante mutuado sido directamente entregue ao vendedor, a nulidade dos contratos não obriga o mutuário – que nada recebeu em virtude do mútuo -, a restituir o montante mutuado, nos termos do art. 289º do Cód. Civil.

Nesta conformidade, procedem as conclusões dos Recorrentes, a quem assiste razão em insurgir-se contra o decidido pelas instâncias que, sem quebra do devido respeito, não equacionaram devidamente a situação em apreço e não fizeram correcta leitura, interpretação e aplicação das citadas regras referentes às consequências da nulidade negocial, não podendo, por isso, subsistir, nesse ponto, o que implica a revogação do acórdão recorrido (e da sentença) na parte impugnada.


IV – Decisão

Nos termos expostos, decide-se conceder a revista e revogar a sentença e o acórdão recorrido, na parte em que decidiu pela imposição aos Autores da obrigação de restituição do montante mutuado, mantendo-se no demais.

Custas pelas Ré DD.


*

Anexa-se sumário do acórdão (art.ºs 663º, n.º 7, e 679º, ambos do CPC).

*


Lisboa, 17 de Maio de 2018

António Joaquim Piçarra (Relator)

Fernanda Isabel Pereira

Olindo Geraldes

________

[1] Excluídas as relativas à admissão da revista excepcional. 

[2] Cfr, Karl Larenz/Manfred Wolf, Allgemeiner Teil des Bürgerlichen Rechts, 8. Auf., C. H. Beck, München, 1997, págs. 825 e segs. No assento nº. 4/95, de 28 de Março de 1995, «Diário da República», I Série-A, de 17 de Maio do mesmo ano, págs. 2940/2941, observa-se nesse sentido lapidarmente que o «contrato nulo não é um nada jurídico, mas algo de existente (embora de errada perfeição)».