Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08B1368
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SALVADOR DA COSTA
Descritores: JANELAS
FRESTA
SETEIRA
ÓCULO PARA LUZ E AR
POSSE
USUCAPIÃO
SERVIDÃO DE VISTAS
Nº do Documento: SJ20080515013687
Data do Acordão: 05/15/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE
Sumário :
1. O conceito jurídico de janela abrange a abertura e os elementos materiais que a compõem.
2. A diferença específica entre a janela, por um lado, e a fresta, a seteira e os óculos de luz, por outro, consubstancia-se, em relação à primeira, ao invés da última, no tamanho em largura e altura e na função de permitir a visão pelas pessoas de dentro para fora.
3. O objecto do direito real de servidão de vistas, susceptível de ser adquirido por usucapião, é a existência da janela em condições de por ela se poder ver e de devassar o prédio vizinho, independentemente da concretização dessa usufruição, consubstanciando-se o corpus da posse na existência daquela janela em infracção do disposto no artigo 1360º, nº 1, do Código Civil.
4. A reposição do direito de servidão de vistas, afectado pela construção de um muro no prédio serviente, apenas implica a sua demolição na dimensão do enfiamento da janela, em termos de salvaguarda da função e conteúdo daquele direito.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I
AA e BB instauraram, no dia 22 de Junho de 2005, acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra CC e DD, pedindo a declaração de serem titulares de identificada servidão de vistas sobre o prédio dos réus e a condenação destes a demolirem o muro que levantaram, de modo a que entre este e a sua janela interceda o espaço de metro e meio e a indemnizá-los em montante a liquidar posteriormente pelos danos derivados da violação do seu direito de servidão.
Motivaram a sua pretensão no direito de servidão de vistas sobre o prédio contíguo dos réus e na edificação por estes, em 2005, de um muro com seis metros de comprimento e dois metros de altura a cerca de dez centímetros do seu prédio, tapando-lhe a janela.
Os réus, em contestação, por um lado, negaram o direito dos autores, afirmando que a janela em causa se encontra a mais de 1,80 metros de altura do solo, ter grades fixas de ferro de secção não inferior a um centímetro quadrado e malha não superior a cinco centímetros.
E, por outro, ter a janela sido construída há poucos anos e não reunir, por isso, os requisitos legais para a aquisição por usucapião, e pediram a condenação deles por litigância de má fé.
Os autores replicaram, seleccionou-se a matéria de facto assente e controvertida, realizou-se o julgamento e, no dia 19 de Dezembro de 2006, foi proferida sentença, por via da qual foi reconhecido aos autores o direito real de servidão de vistas e condenados os réus a demolirem o muro de forma a que em frente à janela fique nele rasgada uma abertura com as mesmas dimensões da janela.
Apelaram os autores e os réus, e a Relação, por acórdão proferido no dia 4 de Dezembro de 2007, dando parcial provimento ao recurso de apelação dos autores, e negando-o ao dos réus, condenou estes a demolirem o muro de forma a baixá-lo em toda a sua extensão até à altura do parapeito da janela dos autores.

Interpuseram CC e DD recurso de revista, formulando, em síntese, as seguintes conclusões de alegação:
- o acórdão recorrido está afectado de nulidade porque não apreciou a qualificação jurídica da janela existente no rés-do-chão do prédio dos recorridos, essencial para a fundamentação da decisão proferida e ordenar a demolição total ou parcial do muro - artigo 668º, nº 1, alínea d), do Código de Processo Civil;
- o conceito de janela traduz-se na projecção da parte superior do corpo humano e na possibilidade de desfrutar as vistas, olhando em frente e para os lados, para cima ou para baixo, o que não é o caso;
- a abertura existente no rés-do-chão do prédio dos recorridos está gradada, não permitindo total liberdade de movimentos, olhando em frente;
- é uma fresta irregular por não ter as dimensões previstas no artigo 1363º do Código Civil nem permitir total liberdade de movimentos e amplitude de vistas ou ser visto ou devassado pelo prédio vizinho;
- não se trata de servidão de vistas, mas sim uma servidão predial traduzida no direito de manter a abertura irregular, não obstando ao alçamento do muro ou à sua tapagem;
- o tribunal recorrido errou na interpretação dos artigos 1360º e 1362º a 1364º e 1543º do Código Civil e contrariou jurisprudência uniformizada – acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça no domínio da mesma legislação – pelo que deve ser revogado.

Responderam os recorridos, em síntese de conclusão de alegação:
- as janelas, além de serem mais amplas do que as frestas, dispõem de um parapeito onde as pessoas se podem apoiar ou debruçar e desfrutar comodamente das vistas que lhes proporcionem, olhando em frente, para os lados, para cima e para baixo;
- trata-se de uma janela que deita directamente para o prédio dos recorrentes há pelo menos há vinte anos. em cujo parapeito os recorridos se podem apoiar;
- o facto de a janela ser gradada na sua parte superior não limita vistas aos recorridos, pois se assim fosse, como a mesma é amovível, poderia ser retirada a todo o tempo;
- tal abertura, pelas suas dimensões e fim a que se destina, é uma janela, referida como tal na base instrutória, sem reclamação, e está assente uma servidão de vistas em benefício do prédio dos recorridos, nunca colocada em causa;
- o muro dos recorrentes foi construído em violação do artigo 1360º, nº 1, do Código Civil, limita o direito de servidão de vistas dos recorridos, e repercute-se desfavoravelmente no seu prédio, contra o disposto no artigo 1362º daquele diploma.


II
É a seguinte a factualidade considera assente no acórdão recorrido, inserida por ordem lógica e cronológica:
1. Está descrito na titularidade dos autores, na Conservatória do Registo Predial de Penafiel, sob o n.º 00869/10092001, o prédio urbano composto por dois pavimentos e logradouro, com a área coberta de 100 metros quadrados, e descoberta de 320 metros quadrados, sito no lugar de Valqueira, freguesia de Peroselo, concelho de Penafiel, inscrito na matriz urbana sob o artigo 318 – Peroselo.
2. O prédio dos autores confronta do seu lado Norte com o prédio misto, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 00345/180693 na titularidade do réu, composto de casa de rés-do-chão e andar, com 40 metros quadrados, e terreno de cultura com 9 000 metros quadrados, designado Souto Novo.
3. No rés-do-chão do prédio referido em 1 está situada uma janela que deita directamente para o prédio referido sob 2, em cujo parapeito os autores se podem apoiar, podendo olhar em frente através dela e desfrutar de luz natural e de arejamento, o que fazem há pelo menos 20 anos, de uma forma pacífica, contínua, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém.
4. A janela referida sob 3 tem colocada, no seu exterior, uma grade fixa de ferro.
5. Em inícios de Fevereiro de 2005, os réus procederam à edificação, no prédio referido sob 2, de um muro em mecan, a 17 centímetros de distância do prédio referido sob 1, muro esse que tem 8,67 metros de comprimento e 1,85 metros de altura, que tapa parte da janela referida sob 3, deixando apenas 15 centímetros de altura dessa janela desobstruídos.

III
A questão essencial decidenda é a de saber se os recorrentes devem ou demolir o muro em causa de forma a baixá-lo em toda a sua extensão até ao parapeito da janela situada no seu enfiamento.
Tendo cm conta o conteúdo do acórdão recorrido e das conclusões de alegação formuladas pelos recorrentes e pelos recorridos, a resposta à referida questão pressupõe a análise da seguinte problemática:
- está ou não o acórdão recorrido afectado de nulidade por omissão de pronúncia?
- a abertura na casa dos recorridos é qualificável de janela ou de fresta?
- são ou não os recorridos titulares do direito de servidão de vistas no confronto dos recorrentes?
- têm ou não os recorridos o direito de exigir aos recorrentes a demolição do muro em causa?

Vejamos, de per se, cada uma das referidas subquestões.

1.
Começamos pela análise da subquestão de saber se o acórdão recorrido está ou não afectado de nulidade por omissão de pronúncia.
Os recorrentes alegaram a nulidade do acórdão recorrido por não ter apreciado a qualificação jurídica da janela em causa e tal ser essencial para a fundamentação da decisão de demolição total ou parcial do muro.
O acórdão da Relação é nulo quando deixe de se pronunciar sobre questões de que devia conhecer (artigos 668º, nº 1, alínea d), e 716º, nº 1, do Código de Processo Civil).
O juiz deve, com efeito, resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (artigo 660º, nº 2, do Código de Processo Civil).
Importa, porém, ter em linha de conta que uma coisa são os argumentos ou as razões de facto e ou de direito, e outra, essencialmente diversa, as questões de facto ou de direito a resolver.
As questões a que se reporta a alínea d) do nº 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil são os pontos de facto e ou de direito relevantes no quadro do litígio, ou seja, os concernentes ao pedido, à causa de pedir e às excepções.
Julgada procedente a nulidade decorrente de omissão de pronúncia ou de falta de fundamentação da decisão da matéria de facto, ou de direito, pela Relação, impõe-se a baixa do processo a fim de aquele Tribunal operar a reforma do acórdão, porque este Tribunal não tem competência funcional para a suprir (artigo 731º do Código de Processo Civil).
Os recorrentes alegaram no recurso de apelação, por um lado, não ter a janela como abertura fim ou utilidade de usufruição de vistas, descreveram a janela em causa, e que mesmo existindo um parapeito pelo qual os recorridos se podem debruçar, não terem estes usufruído de vistas por via dela.
E, por outro, não ser possível ao homem médio apoiar-se ou debruçar-se sobre ela e que as barras de ferro no seu exterior impedem os recorridos a introdução da cabeça, e que eles sempre a usaram para luz e arejamento e não com o animus de servidão de vistas, em frente, para os lados, ou para baixo.
Finalmente, referiram que as características da janela, bem como a sua utilização e ou finalidade que lhes foi dada pelos recorridos revela não ser para servidão de vistas, e que não se encontram preenchidos cumulativamente os elementos da posse conducente ao usucapião.
Conforme acima se referiu, houve no caso vertente dois recursos de apelação, um interposto pelos autores e o outro pelos réus, e a Relação conheceu de ambos.
Em ambos os recursos, a Relação analisou, primeiramente, o conceito de servidão de vistas, expressando que ele pressupõe, além do mais, a existência de janelas em violação do direito de outrem e que o seu objecto é de ser visto ou devassado do prédio vizinho.
E, no primeiro, referiu que os autores adquiriram o direito de servidão de vistas e que os réus só podiam construir no seu prédio nas condições previstas no nº 2 do artigo 1362º do Código Civil, não podendo levantar construção que vedasse a janela em causa para aquém do espaço mínimo de um metro e meio
Seguidamente, expressou dever o muro ser demolido de modo a que a janela possa assegurar a entrada de ar, luz, arejamento, e permitiu aos autores o desfrute das vistas.
No segundo dos mencionados recursos, a Relação referiu que a existência da janela nas condições referidas na sentença se identificava com o elemento material corpus e fazia presumir, nos termos do artigo 1252º, nº 2, do Código Civil, o elemento psicológico animus, que os réus não haviam ilidido.
Perante este quadro de argumentação, a conclusão é no sentido de que a Relação, face aos factos provados, concluiu no sentido de que a abertura em causa na casa dos ora recorridos era uma janela instrumental da servidão de vistas da sua titularidade.
Em consequência, importa concluir no sentido de que o acórdão recorrido não está afectado de nulidade por omissão de pronúncia sobre a questão de direito.

2.
Prossigamos com a análise da questão de saber se a referida abertura na casa dos recorridos é qualificável de janela ou de mera fresta.
A este propósito, está provado que no rés-do-chão do prédio dos recorridos existe uma janela com uma grade fixa de ferro no exterior, que deita directamente para o prédio dos recorrentes em cujo parapeito os primeiros se podem apoiar, podendo olhar em frente através dela e desfrutar de luz natural e arejamento.
As instâncias qualificaram a referida abertura como janela susceptível de instrumentalizar a servidão de vistas que os recorridos pretendem fazer valer através desta acção.
Expressa a lei, em primeiro lugar, que o proprietário que no seu prédio levantar edifício ou outra construção não pode abrir nelas janelas ou portas que deitem directamente sobre o prédio vizinho sem deixar entre este e cada uma das obras o intervalo de metro e meio (artigo 1360º, nº 1, do Código Civil).
O escopo da lei é o de obstar a que o prédio vizinho seja afectado de indiscrição de estranhos ou por devassamento, por exemplo por via de arremessamento de objectos.
Expressa a lei, ademais, por um lado, que a existência de janelas, portas, varandas, terraços, eirados ou obras semelhantes, em contravenção do disposto na lei, pode importar, nos termos gerais, a constituição da servidão de vistas por usucapião (artigo 1362º, nº 1, do Código Civil).
E, por outro, que constituída a servidão de vistas, por usucapião ou outro título, ao proprietário vizinho só é permitido levantar edifício ou outra construção no seu prédio desde que deixe entre o novo edifício ou construção e as obras mencionadas no número anterior o espaço mínimo de metro e meio, correspondente à extensão destas obras (artigo 1362º, nº 1, do Código Civil).
Todavia, não se consideram abrangidas pelas restrições da lei as frestas, seteiras, ou óculos para luz e ar, caso em que o vizinho levantar a todo o tempo na sua casa ou contramuro, ainda que vede tais aberturas (artigo 1363º, nº 1, do Código Civil).
Mas as frestas, as seteiras e os óculos para luz e ar devem situar-se, pelo menos, a um metro e oitenta centímetros de altura quanto a ambos os lados da parede ou muro onde essas coberturas se encontrem, a contar do solo ou do sobrado, e não devem ter, numa das suas dimensões, mais de quinze centímetros (artigo 1363º, nº 2, do Código Civil).
Também as aberturas ou janelas, independentemente da sua dimensão, com grades fixas de ferro ou outro metal de secção não inferior a um centímetro quadrado e cuja malha não seja superior a cinco centímetros, desde que se situem a mais de um metro e oitenta centímetros do solo ou sobrado, porque não possibilitam a devassa do prédio vizinho, não se consideram abrangidas pela aludida restrição (artigo 1364º do Código Civil).
A lei reporta-se a janelas, frestas, seteiras e a óculos de luz, mas não os define, pelo que é livre ao intérprete considerar que as mencionadas expressões assumem o sentido que lhes é dado na linguagem corrente, ou seja, com o significado que lhes é atribuído pelo comum das pessoas.
Por isso, ao invés do que os recorrentes alegaram, inexiste fundamento legal para se concluir no sentido da ilegalidade da utilização do termo janela na selecção da matéria de facto, designadamente na base instrutória, naturalmente com o sentido de abertura na parede exterior do prédio.
E mesmo na análise do comum das pessoas não é fácil a distinção entre janelas por um lado, e frestas, seteiras e óculos de luz por outro, esta última espécie designada por aberturas de tolerância
Mas a dimensão das mencionadas aberturas não superior a quinze centímetros e a sua localização a não menos de um metro e oitenta centímetros a contar do sobrado ou do terraço, conforme os casos, visa obstar a que por elas ocorra o devassamento dos prédios vizinhos situados nos limites do seu enfiamento imediato.
Tendo em conta a dimensão máxima prevista na lei para tais aberturas, poder-se-á afirmar que as frestas e as seteiras e os óculos significam as janelas muito estreitas ou as fendas abertas nas paredes de modo a permitirem a entrada de luz ou a claridade, as duas primeiras em regra de forma alongada, e os últimos de forma oval ou em círculo.
A expressão janela, derivada do latim janua, com o sentido de porta ou entrada, que é o comum, traduz-se numa abertura feita na parede externa das casas, em regra para entrada de ar e luz no seu interior ou para desfrute de vistas.
No caso de se colocar no vão das janelas uma grade, estar-se-á perante o que é designado por janelas gradeadas.
Na variedade das janelas, é prática distinguir as externas ou de peito - inseridas acima do solo ou do sobrado com peitoril ou parapeito, em que se apoiam os braços quando as pessoas nelas se debruçam – e as de sacada - semelhantes a portas de acesso a alpendres ou sacadas.
Em sentido jurídico, o conceito de janela abrange, além da abertura mencionada, os elementos materiais que a compõem, por exemplo as vidraças, que são peças de madeira, de plástico ou de vidro que se colocam nos respectivo vão para que penetre a luz e não o ar.
Dir-se-á, tendo em conta, além do mais, o que se expressa nos artigos 1362º e 1363º do Código Civil, que a diferença específica entre as janelas, por um lado, e as frestas, seteiras, gateiras e óculos de luz, por outro, é o tamanho em largura e altura e a função de permitir a visão pelas pessoas de dentro para fora quanto às primeiras e não em relação às últimas.
Tendo em conta os factos provados, as normas jurídicas acima referidas e as considerações de facto e de direito que se deixaram expostas, ao invés do que os recorrentes alegaram, não estamos no caso espécie perante mera fresta, mas, perante uma janela gradada que permite aos recorridos aproveitar da visão em frente da luz e arejamento.
Dir-se-á ainda que, nem a sentença nem o acórdão decidiram quanto a este ponto, ou seja, relativamente à densificação do conceito técnico-jurídico de janela, em contrário de algum acórdão do plenário das secções cíveis do Supremo Tribunal de Justiça, ou seja, em sentido diverso de algum acórdão de uniformização de jurisprudência, a que se reportam os artigos 732º-A e 732º-B do Código de Processo Civil.

3.
Continuemos com a análise da subquestão de saber se os recorridos são ou não titulares do direito real de servidão de vistas.
Espécie do direito real de servidão, a chamada de vistas também envolve uma relação jurídica real entre dois prédios, solucionando um conflito de vizinhança por eles implicado.
A servidão dita de vistas, de arejamento ou obtenção de luz natural é de estrutura negativa, uma vez que o seu titular se pode opor ao exercício de direitos de gozo pelo titular do prédio vizinho que a afectem.
Rege nesta matéria o princípio do numerus clausus, do qual decorre não ser permitida a constituição, com carácter real, de restrições ao direito de propriedade ou de figuras parcelares deste direito senão nos casos previstos na lei (artigo 1306º, nº 1, do Código Civil).
Ora, conforme resulta do que acima se expôs, as janelas abertas em violação do disposto artigo 1360º, n.º 1, do Código Civil, são susceptíveis de implicar a constituição, nos termos gerais, da servidão de vistas por usucapião.
Conforme já se referiu, uma das formas de aquisição do direito de propriedade ou de outro direito real, designadamente o direito de servidão de vistas, reportada ao momento do início da posse, é a usucapião (artigos 1288º, 1316º e 1317º, alínea c), do Código Civil).
Para que tal aconteça, em casos como o vertente, é necessário que a janela ou a abertura na parede exterior do edifício se situe a menos de um metro e meio do prédio vizinho e o respectivo proprietário detenha a posse sobre a mesma pelo tempo necessário à aquisição do direito real (artigo 1287º do Código Civil).
Com efeito, a posse de direitos reais de gozo, incluindo o direito de propriedade, mantida por certo lapso de tempo, faculta, em regra, ao possuidor a aquisição por usucapião do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação (artigo 1287º do Código Civil).
A referida situação de posse envolve dois elementos, um de natureza material, o exercício ou a possibilidade de exercer o poder de facto sobre a coisa, que vem sendo designado por corpus, e o outro, de natureza psicológica, a intenção de comportamento como sendo titular do direito correspondente aos actos praticados, designado por animus, sendo que o primeiro implica a presunção deste último (artigos 1251º, 1252º, nº 1, e 1253º do Código Civil).
Os efeitos da invocação da usucapião revertem retroactivamente à data do início da posse propriamente dita (artigo 1288º do Código Civil).
É titulada se fundada em algum modo legítimo de adquirir - negócio jurídico abstractamente idóneo à transferência do direito - independentemente de direito de quem transmite e da validade substancial do negócio jurídico (artigo 1259º, nº 1, do Código Civil).
É de boa fé quando o possuidor ignorava, ao adquiri-la, que lesava o direito de outrem, presumindo-se de boa fé a posse titulada e de má fé a posse não titulada e a que for adquirida por violência, ainda que seja titulada (artigo 1260º do Código Civil).
A ignorância a que a lei se reporta envolve, em regra, a convicção do exercício de um direito próprio, adquirido por título válido, sendo o momento relevante para o efeito o da aquisição da posse, seja por apreensão da coisa, seja por tradição material ou simbólica.
É pacífica a posse adquirida sem violência, considerando-se violenta a obtida pelo uso de coacção física ou moral, e pública a que é exercida de modo a poder ser conhecida pelos interessados (artigo 1261º do Código Civil).
. Havendo título de aquisição e registo deste, a usucapião tem lugar quando a posse de boa fé durar dez anos contados desde a data do registo ou, ainda que seja de má fé, houver durado quinze anos contados da mesma data (artigo 1294º do Código Civil).
Inexistindo registo do título ou da mera posse, a usucapião só ocorre no termo do prazo de quinze anos se a posse for de boa fé, e de vinte anos se a posse for de má fé ou de boa fé não titulada (artigo 1296º do Código Civil).
Na hipótese de a situação de posse haver sido constituída por violência ou de modo oculto, a contagem do prazo de usucapião começa cessada que seja a violência ou tornada a posse pública (artigo 1297º do Código Civil).
O objecto do direito real de servidão de vistas não é a vista sobre o prédio vizinho, mas a existência da janela em condições de se poder ver e de o devassar, independentemente da concretização dessa usufruição, o que significa que o corpus da posse se reconduz, na espécie, à existência da janela em infracção do que se prescreve no artigo 1360º, nº 1, do Código Civil.
Ora, no caso vertente, importa considerar que os recorridos são titulares do direito de propriedade sobre o prédio mencionado sob II 1, em virtude de não ter sido ilidida pelos recorrentes a presunção de propriedade que resulta da inscrição a seu favor no registo predial da sua aquisição (artigos 350º do Código Civil e 7º do Código do Registo Predial).
Acresce resultar dos factos provados, por um lado, que no primeiro piso daquele prédio dos recorridos está situada uma janela que deita directamente para o prédio dos recorrentes em cujo parapeito os recorridos se podem apoiar e olhar em frente e desfrutar de luz natural e de arejamento.
Assim, temos que os recorridos mantêm aberta no seu prédio uma janela que deita directamente para o prédio dos recorrentes, a cerca de dezassete centímetros do último, em quadro de violação do disposto no artigo 1360º, n.º 1, do Código Civil, há pelo menos vinte anos, de forma pacífica, contínua, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém.
A conclusão, ao invés do alegado pelos recorrentes, é no sentido de que os recorridos adquiriram o direito de servidão de vistas em causa por virtude da usucapião, ou seja, por via do que outrora era designado por prescrição aquisitiva.

4.
Vejamos agora se os recorridos têm ou não o direito de exigir aos recorrentes a demolição do muro em causa.
A este propósito, está assente que, no início de Fevereiro de 2005, os recorrentes procederam à edificação, no prédio de que são proprietários, mencionado sob II 2, um muro em mecan com 8,67 metros de comprimento e 1,85 metros de altura, a dezassete centímetros de distância do prédio dos recorridos referido sob II 1, deixando apenas quinze centímetros de altura daquela janela desobstruídos.
Todavia, visto que os recorridos eram ao tempo titulares do direito real de servidão de vistas, estava legalmente vedado aos recorrentes levantar no seu prédio muro a distância inferior a um metro e meio do prédio dos primeiros em termos de obstruir o exercício daquele direito por via da mencionada janela aberta sobre o seu prédio.
Como os recorrentes infringiram com a construção do referido muro o direito de servidão de vistas da titularidade dos recorridos, assiste a estes o direito de aqueles impor a demolição daquela edificação de modo a salvaguardar a realização daquele direito real.
Foi isso que foi decidido na sentença proferida no tribunal da primeira instância e no acórdão recorrido, mas numa e noutro com âmbito material de demolição diverso.
Com efeito, o tribunal da primeira instância, seguindo jurisprudência pelo menos maioritária deste Tribunal e doutrina relevante da especialidade, condenou os recorrentes na demolição do muro apenas na parte frontal à janela, de modo a deixarem nele uma abertura com dimensões similares às daquela janela.
A Relação, por seu turno, condenou os recorrentes na demolição do referido muro, mas de forma a baixá-lo em toda a sua extensão até à altura do parapeito da janela aberta no prédio dos recorridos.
A servidão de vistas ou de ar e luz natural constitui, naturalmente, uma restrição ao conteúdo normal do direito de propriedade prevista genericamente na parte final do artigo 1305º do Código Civil.
Na interpretação do sentido e do alcance da lei, deve o intérprete presumir ter o legislador estabelecido as soluções mais acertadas (artigo 9º, nº 3, do Código Civil).
Tendo em conta a natureza e o efeito do direito de servidão em causa - a função instrumental da janela que resulta dos factos provados - e o que se prescreve no nº 2 do artigo 1362º do Código Civil, a reposição do direito dos recorridos não implica mais do que a demolição do muro na dimensão do enfiamento da janela.
Assim, ao invés do que foi considerado pela Relação, a salvaguarda do direito real de servidão de vistas da titularidade dos recorridos não implica a demolição do muro dos recorrentes em toda a sua extensão.
Só neste ponto o acórdão recorrido contém decisão contrária ao que resulta da lei substantiva, e, por isso, só nessa parte deve ser revogado.


5.
Finalmente, a síntese da solução para o caso-espécie decorrente dos factos provados e da lei.
O acórdão recorrido não está afectado de nulidade por omissão de pronúncia relativamente à natureza jurídica da abertura na parede exterior do prédio dos recorridos.
A referida abertura é juridicamente qualificável de janela, dada a sua função, forma e dimensão em relação às meras frestas, seteiras, gateiras ou óculos de iluminação natural ou de arejamento.
Os recorridos, proprietários do prédio em que se insere a janela, são titulares do direito real de servidão de vistas, no confronto dos recorrentes, proprietários do prédio contíguo, adquirida por usucapião.
A construção do muro pelos recorrentes no seu prédio em termos de obstrução da função da referida janela infringiu o direito de servidão de vistas da titularidade dos recorridos.
A reposição do direito de servidão de vistas da titularidade dos recorridos apenas implica a demolição do muro na dimensão do enfiamento da janela, em termos de salvaguarda da função e conteúdo daquele direito.

Procede apenas parcialmente o recurso.
Vencidos parcialmente, são os recorrentes e os recorridos responsáveis pelo pagamento das custas respectivas, na proporção do vencimento (artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
Considerando o objecto do recurso e a vantagem apenas limitada à medida da demolição do muro pelos recorrentes, julga-se adequado, usando de um juízo de proporcionalidade, fixar as custas devidas por eles e pelos recorridos na proporção de setenta e de trinta por cento, respectivamente.


IV
Pelo exposto, dando provimento ao recurso, revoga-se o acórdão recorrido na parte em que condenou os recorrentes a demolir o muro em toda a sua extensão, segmento que se substitui pela condenação deles na demolição do referido muro na dimensão integral do enfiamento da janela, e condenam-se aqueles e os recorridos no pagamento das custas respectivas, na proporção de setenta e de trinta por cento, respectivamente.

Lisboa,15 de Maio de 2008.

Salvador da Costa (relator)
Ferreira de Sousa
Armindo Luis