Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1184/22.2T8BRG-A.G1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: REGULAÇÃO DO EXERCÍCIO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
DECISÃO PROVISÓRIA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
OPOSIÇÃO DE ACÓRDÃOS
REQUISITOS
MATÉRIA DE DIREITO
REVISTA EXCECIONAL
REJEIÇÃO DE RECURSO
RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
NULIDADE DE DESPACHO
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
OBSCURIDADE
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Data do Acordão: 05/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: RECLAMAÇÃO INDEFERIDA
Sumário :
I - Se é certo que uma decisão provisória, em processo tutelar cível, está sujeita a recurso, nos termos do disposto no art.º 32.º n.º1 do CPCiv, o recurso processa-se como em matéria cível, nos termos do n.º 3 da norma em causa, e aí o recurso interposto tem que considerar a norma do art.º 671.º n.º1 do CPCiv, correntemente interpretada no sentido de que o âmbito do recurso de revista não abarca os acórdãos proferidos pela Relação no âmbito dos procedimentos cautelares e, mesmo que assim não fosse, cabendo considerar a norma do art.º 370.º n.º2 do CPCiv.

II – A oposição de acórdãos, nos termos do art.º 629.º n.º2 al.d) do CPCiv, deve ser frontal e não apenas implícita ou pressuposta.

III - A oposição entre acórdãos não pode ser retirada de considerandos que, em abstracto, se pronunciam sobre matérias juscivilísticas, mas antes há-de ser encontrada na forma como, em concreto, foram resolvidas as questões de núcleo factual idêntico ou coincidente.

Decisão Texto Integral:

Acordam em Conferência no Supremo Tribunal de Justiça


                  

Relatório

AA instaurou providência tutelar cível contra BB, requerendo a regulação das responsabilidades parentais relativamente à filha menor de ambos, CC, nascida a .../.../2019, alegando, no essencial, que Requerente e Requerido colocaram termo à união de facto que existiu entre ambos durante cerca de 4 anos, residindo a Requerente atualmente em B... e o Requerido em M....

Foi agendada data para a conferência de pais a que alude o artigo 35.º, n.º 1, do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 8 de Setembro (RGPTC), na qual Requerente e Requerido compareceram, acompanhados pelos respectivos mandatários, e foram ouvidos pelo Mmo. Juiz, nos termos que constam da acta de 21-03-2022 (ref. ª citius ...19), tendo então sido proferido o seguinte despacho judicial:

«Considerando as declarações da progenitora que, ainda que titubeantemente, admita que o comportamento do pai, consubstanciado no alegado fazer filmes pornográficos para onde ia levar a filha de ambos porá em causa a integridade psico emocional da referida criança, impõe-se apurar se tal se verifica e em caso afirmativo, em que medida, pelo que decide fixar o seguinte regime provisório do exercício das responsabilidades parentais, relativo à criança, CC, nascida em a .../.../2019, nos seguintes termos e conforme o já acordado pelos progenitores:

I - RESPONSABILIDADES PARENTAIS.

1) Residência da Criança e Atos da Vida Corrente:

A criança fica a residir com a mãe;

As responsabilidades parentais relativas aos atos de vida corrente da criança, serão exercidas pelo progenitor com quem ela se encontra, no momento;

2) Questões de Particular Importância:

As questões de particular importância para a vida da criança, nomeadamente, no que respeita à saúde e educação, serão exercidas em comum por ambos os progenitores.

II - DIREITO DE VISITAS E CONVIVIOS:

O progenitor vai buscar a filha a casa da mãe às 10:00 horas de sábado e entrega-a às 18:00 horas de domingo, devendo estar com a filha em B..., na casa dos avós paternos, não podendo ausentar-se para o Porto com a filha.

III - ALIMENTOS/DESPESAS:

1) A título de alimentos devida filha, o pai pagará mensalmente à mãe a quantia de 185,00€ (cento e oitenta e cinco euros), até ao dia 08 de cada mês, por transferência bancária para a conta cujo IBAN já tem conhecimento;

2) A atualização automática dos montantes das prestações para alimentos à criança, anteriormente previstos, será realizada anualmente, com início em janeiro de 2023, em 3%;

3) O progenitor pagará ainda metade das despesas médicas e medicamentosas extraordinárias e escolares de início de ano letivo.

Notifique.

Solicite de imediato à CPCJ de B... que averigue a situação indicada.

Notifique. (…)»

Deste despacho, que fixou provisoriamente o regime de regulação das responsabilidades parentais, veio o Requerido veio interpor recurso.

Entre o mais, alegou em apelação o Requerido que o despacho foi proferido em desrespeito do dever de audição do progenitor, imposto pelo artigo 28º, nº 4, do RGPTC e 3º, nº 3, do CPC, ex vi do disposto no nº 1 do artigo 33º do RGPTC; também, ao não ter ouvido o pai, e fundando-se apenas em declarações da progenitora que o Tribunal classificou de «titubeantes», para mais ainda considerando que se determinou a averiguação da CPCJ baseada apenas em tais declarações da mãe, padecia o despacho recorrido da nulidade prevista na I parte da alínea d) do nº 1 do artigo 615º do CPC, ex vi do preceituado no nº 3 do artigo 613º do CPC e no nº 1 do artigo 33º do RGPTC.

A Relação, todavia, confirmou o decidido.


A Revista 

A Ré interpôs agora expressamente recurso de revista excepcional, fazendo-o ao abrigo da norma do artº 672º nº1 als.a), b) e c) CPCiv.

Juntou cópia do acórdão fundamento, proferido no processo nº 533/04.0TMBRG-K.G1, datado de 19/4/2018, constante da base de dados dgsi.pt.

Resumiu conclusivamente as alegações pela seguinte forma:

I – Os Tribunais não podem agir servilizados pelos entendimentos das partes, achando determinada situação como conforme mas coarctarem o direito à livre parentalidade porque “a senhora entende”.

II – A jurisdição voluntária não pode ser um manto obscuro de discricionariedade ao abrigo do qual qualquer achismo ou convicção fortuita está avalizado, nem pode dar coberto a toda e qualquer liberdade decisória, antes apenas pode “investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes, só sendo admitidas as provas que o juiz considere necessárias (artigo 986.º do CPC), de forma a adotar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna, sem sujeição a critérios de legalidade estrita (artigo 987.º do CPC)”.

III – Um mero desagrado de um progenitor não pode, assim, cercear a actividade judiciária, menos ainda desacompanhado de sufrágio da impetração formulada, sendo esta, per se, insuficiente e inidónea a presidir unicamente ao proferimento de decisões francamente lesivas do direito à família constitucionalmente consagrado.

IV – Não pode considerar-se que a auscultação de uma parte quanto à decisão derradeira observa o princípio do contraditório (para mais no conceito amplo do mesmo hoje acolhido) quando se omitiu e, pior ainda, expressamente se negou o exercício do contraditório de uma parte afectada por um entendimento do Tribunal previamente anunciado e que balizou os termos da decisão final, assim tendo aquela questão integrado a base da decisão recorrida.

V – O contraditório do Recorrente sobre a questão fundante da decisão recorrida foi expressamente denegado, tal como decorre da gravação e da sua transcrição.

VI – Não podendo o carácter processual de jurisdição voluntária nem o cariz provisório da decisão (que já vigora há 8 meses e meio) sanar tal denegação.

VII – Razão por que tem de se arguir novamente a inconstitucionalidade do artigo 12º do RGPTC por violação do princípio do Estado de Direito, ínsito no artigo 2º da CRP, quando interpretado como concedendo ao julgador a faculdade de preterir o exercício do contraditório sobre a questão aprecianda fundante, e sem justificação demonstrada da necessidade de tal preterição.

VII – Também se não pode aceitar que seja um progenitor privado ou coarctado da livre parentalidade por uma imputação de perigo que não é revelada, não é demonstrada, não é explicada e não obedece a critérios de objectividade, mas outrossim de impressionismo.

VIII – Dizer, como se basta a Relação em dizer, “uma situação de eventual perigo para a criança (permanecer numa habitação com o progenitor onde são efetuados filmes pornográficos)” nada esclarece, pois não identifica o perigo que possa advir para a menor da efectuação dos vídeos e menos ainda não estabelece nexo causal adequado entre o circunstancialismo impetrado ao Progenitor e os eventuais efeitos a que importará obviar.

IX – Para mais, quando se diz que tal circunstancialismo “é legal” e “não será impeditivo de nada” e, subitamente, já é impeditivo de tudo, “acabou, o despacho vai ser que ficam sem contactos, a menina não vê o pai até ser apurada a situação”.

X – Tem-se, assim, de arguir novamente a inconstitucionalidade do artigo 12º do RGPTC por violação do dever de fundamentação das decisões judiciais, consagrado no artigo 205º da CRP, quando interpretado no sentido de ser dispensada da fundamentação da decisão a explicação e a demonstração da motivação da decisão e da necessidade da decisão proferida.

XI – Impõe-se, assim, revogar as decisões recorridas, consequentemente se ordenando o proferimento de decisão que respeite os trâmites processuais devidos.


As partes foram ouvidas nos termos do art.º 655.º n.º 1 do CPCiv, tendo como pressuposto o seguinte despacho: “Vista a possibilidade de não conhecer do objecto do recurso, considerando o disposto no art.º 629.º n.º2 al.d) do CPCiv, ouçam-se as partes em 10 dias”.


O relator proferiu despacho de não admissão do recurso, ao abrigo das normas dos art.ºs 679.º e 652.º n.º1 al.b) do CPCiv.

Ali se escreveu:

“Como é sabido, e como resulta da norma do art.º 988.º n.º2 CPCiv, “das resoluções proferidas segundo critérios de conveniência ou oportunidade, não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça”.

“Trata-se de uma solução normativa, proveniente originariamente da reforma do Código de Processo Civil de 95/96, que teve em vista tornar possível o recurso de revista em matéria de legalidade estrita, quando o tribunal excede a “conveniência” e a “oportunidade”, critérios que deve adoptar, sempre que decide em matéria de jurisdição voluntária – art.º 987.º CPCiv.”

“Os processos tutelares cíveis são, consabidamente, processos de jurisdição voluntária – art.º 12.º RGPTC.”

“Como se escreveu no Ac.S.T.J. 20/1/2010, pº 701/06.0TBETR.P1.S1 (rel. Lopes do Rego), “a escolha das soluções mais convenientes está intimamente ligada à apreciação da situação de facto em que os interessados se encontram; não tendo o Supremo Tribunal de Justiça o poder de controlar a decisão sobre tal situação, a lei restringiu a admissibilidade de recurso até à Relação”.

“É a consequência de um tribunal de revista estar antes vocacionado para a exclusiva violação da lei substantiva ou processual – art.º 674.º n.º1 CPCiv.”

“Desta forma, cabe distinguir:”

“- no âmbito da providência a tomar, funciona o princípio da equidade, quando as circunstâncias particulares do decidido assim o revelem;”

“- no mais, a decisão “não pode dar cobertura a violações legais, como a ofensa de caso julgado ou a nulidade da sentença”, ou a inexistência de requisitos legais para que seja decretada a medida tutelar (cf. Ac.S.T.J. 21/3/00 Col.I/134 – Pais de Sousa);”

“- mas se a medida tutelar tem, ou não, vantagens para a criança, trata-se de um verdadeiro juízo de oportunidade.”

“Mais recentemente, tem considerado a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça o seguinte (cf. S.T.J. 11/11/2021, pº 1629/15.8T8FIG-D.C1.S1 – Maria da Graça Trigo):”

“No âmbito de um processo de jurisdição voluntária, a intervenção do STJ pressupõe, atenta a sua especial incumbência de controlar a aplicação da lei processual ou substantiva, que se determine se a decisão recorrida assentou em critérios de conveniência e de oportunidade ou se, diferentemente, a mesma corresponde a um processo de interpretação e aplicação da lei” (Acórdão de 06-06-2019, pº 2215/12.0TMLSB-B.L1.S1).”

“Haverá que ajuizar sobre o cabimento e âmbito do recurso de revista das decisões proferidas nos processos de jurisdição voluntária de forma casuística, em função dos respectivos fundamentos de impugnação, e não com base na mera qualificação abstracta de resolução tomada segundo critérios de conveniência ou de oportunidade.” (Acórdão de 16-11-2017, pº 212/15.2T8BRG-A.G1.S2).”

“Nos processos de jurisdição voluntária só é admissível recurso para o Supremo quando as resoluções proferidas, excedendo critérios de mera conveniência ou oportunidade, emirjam de critérios de estrita legalidade, nestes se baseando exclusivamente, não bastando, consequentemente que o acórdão impugnado tenha interpretado normas jurídicas.” (Acórdão de 04-07-2017, pº 996/16.0T8BCL-D.G1-A.S1).”

“Nesse aresto, considerou-se que não é admissível recurso para o STJ do acórdão da Relação que, proferido em processo de regulação de responsabilidades parentais relativamente a três menores, pese embora ter feito alusão a uma norma legal – a do art. 1906.º do CC –, tomou a resolução adaptada ao caso concreto, “recorrendo-se, nas suas próprias palavras, à razoabilidade, bom senso, prudência e moderação.”

“No mesmo sentido, vejam-se também os Acórdãos de 10-3-2022 (pº 506/21.8T8CHV-B.G1.S1 – rel. Catarina Serra), de 18/2/2020 (pº 29241/16.7T8LSB-A.L1.S1 – rel. Fátima Gomes), de 06-06-2019 (pº 2215/12.0TMLSB-B.L1.S1 – rel. Maria dos Prazeres Beleza), de 30-05-2019 (pº 5189/17.7T8GMR.G1.S1 – rel. Tomé Gomes), de 31-01-2019 (pº 3064/17.4T8CSC-A.L1.S1 – rel. Oliveira Abreu), de 17/5/2018 (pº 1729/15.4T8BRR.L1.S1 – rel. Maria dos Prazeres Beleza) e de 5/12/2017 (pº 1530/14.2TMPRT-A.P1.S2 – rel. Maria da Graça Trigo).”

“Mostra-se impugnada a decisão provisória tomada na conferência de pais, à luz da norma do art.º 38.º do RGPTC.”

“Os critérios de conveniência e oportunidade da decisão não podem ser neste momento sindicáveis.”

“Restará a possibilidade de conhecer da matéria do recurso em termos de legalidade estrita, sob os seguintes ângulos de análise:”

“- a inconstitucionalidade do art.º 12.º do RGPTC, por violação do princípio do Estado de Direito (art.º 2.º da CRP), quando interpretado como concedendo ao julgador a faculdade de preterir o exercício do contraditório;”

“- idêntica inconstitucionalidade do art.º 12.º do RGPTC, por violação do dever de fundamentação das decisões judiciais (art.º 205.º da CRP), quando interpretado no sentido de ser dispensada a fundamentação da decisão e a necessidade da decisão proferida.”

“Pela regra geral do art.º 671.º n.º1 do CPCiv, o recurso não seria admissível – a decisão recorrida não conheceu do mérito da causa, nem pôs termo ao processo.”

“Todavia, a decisão recorrida afigura-se antes como uma decisão provisória ou cautelar, para vigorar no decurso do processo, até à decisão final.”

“Nesse âmbito, também dela não cabe recurso para o S.T.J., sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível – art.º 370.º n.º2 do CPCiv.”

“Nas hipóteses de “recurso sempre admissível” cabe “o acórdão da Relação que esteja em contradição com outro, dessa ou de diferente Relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito”, nos termos do art.º 629.º n.º2 al. d) do CPCiv, invocando-se, como se invoca, um acórdão fundamento, no caso o Ac.R.G. de 21/2/2013, proferido no p.º n.º 533/04.0TMBRG-K.G1, constante da base de dados oficial.”

“Servindo-nos do desenvolvimento do Ac.S.T.J. 7/6/2018, pº 2877/11.5TBPDL-D.L2.S1 (Maria Rosa Oliveira Tching), a jurisprudência deste Supremo Tribunal vem afirmando que importa que a invocada oposição de acórdãos seja frontal e não apenas implícita ou pressuposta (cf. Acs. STJ 20.07.2017, pº 755/13.2TVLSB.L1.S1-A, 25.05.2017, pº  1738/04.PTBO.P1.S1-A, 28.01.2016, pº 291/1995.L1.S1, 13.10.2016, pº 2276/10.6TVLSB.L1.S1-A, 26.05.2015, pº 227/07.OTBOFR.C2-S1-A, 20.3.2014, pº 1933/09.4TBPFR.P1.S1, e 4.07.2013, pº 2625/09.0TVLSB.L1.S1-A).”

“De igual modo, não basta, para o efeito, uma qualquer contradição relativamente a questões laterais ou secundárias. A questão de direito deve apresentar-se com natureza essencial para o resultado que foi alcançado em ambas as decisões, sendo irrelevante a que respeitar apenas a alguns argumentos sem valor decisivo ou obiter dicta”.

“E essa oposição, na expressão do Ac. STJ 17/02/2009, pº 08A3761 (Salazar Casanova), “só é relevante quando se inscreva no plano das próprias decisões em confronto e não apenas entre uma decisão e a fundamentação de outra, ainda que as respetivas fundamentações sejam pertinentes para ajuizar sobre o alcance do julgado”.

“E, finalmente, que tal oposição incida sobre a mesma questão de direito fundamental, o que pressupõe que as decisões em confronto tenham subjacente um núcleo factual idêntico ou coincidente, na perspectiva das normas ali diversamente interpretadas e aplicadas – cf. Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos, 9ª ed., pgs. 122 e 123.”

“Neste sentido, não existe qualquer oposição entre as decisões em confronto.”

“A decisão recorrida, à luz do disposto no art.º 38.º do RGPTC, desconsiderou a violação do contraditório, posto que a decisão de 1.ª instância ouviu os progenitores e fundamentou, ainda que sumariamente, a respectiva decisão.”

“A decisão fundamento em nada se lhe opõe – considera, em processo de execução, verificada a violação da necessária audição prévia do Executado, relativamente a documentos juntos por determinadas sociedades, sobre as quais se alegava que o Executado possuía créditos penhoráveis.”

“Não se trata de oposição frontal ou, sequer, implícita ou pressuposta – trata-se de matérias de processo diversas.”

“A oposição entre acórdãos não pode ser retirada de considerandos que, em abstracto, se pronunciam sobre as matérias juscivilísticas, mas antes há-de ser encontrada na forma como, em concreto, foram resolvidas as questões de núcleo factual idêntico ou coincidente.”

“A oposição só é relevante quando se inscreva no plano das próprias decisões em confronto e não apenas entre uma decisão e a fundamentação de outra, extraindo o recorrente, da fundamentação que entende em contradição, as conclusões que essa decisão fundamento não retirou, porque não lhe competia retirar.”

“Por isso, nos termos expostos e tudo visto, encontra-se excluída a possibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.”


Inconformada com o despacho do relator, a Ré reclama agora para a Conferência, invocando, em resumo:

- o despacho proferido em vista do art.º 655.º n.º1 do CPCiv foi impugnado por incompetência absoluta do relator, por falta de fundamentação do despacho convite e por obscuridade do mesmo despacho convite, mas a despacho liminar do relator não se pronunciou sobre a matéria suscitada;

- invocaram-se, em recurso, as seguintes violações de lei:

- Recusa da audição do progenitor, mesmo a seu expresso pedido, em desrespeito do dever imposto como obrigatório pelos artigos 28º, nº 4, do RGPTC e 3º, nº 3, do CPC, ex vi do disposto no nº 1 do artigo 33º do RGPTC;

- Ao não ter ouvido o pai e ao fundar-se apenas em declarações da progenitora que o Tribunal a quo classificou de «titubeantes», o despacho recorrido padece da nulidade prevista na 1ª parte da alínea d) do nº 1 do artigo 615º do CPC, ex vi do preceituado no nº 3 do artigo 613º do CPC e no nº 1 do artigo 33º do RGPTC, vício que expressamente se alegou e invocou;

- Da decisão, desta não constam os fundamentos que determinam a

necessidade de decisão provisória, de inibição parcial dos contactos do pai com a menor;

- Não foi invocado, nem pela progenitora, nem pelo Tribunal a quo, um único perigo ou malefício que pudesse decorrer, para a menor, da manutenção da situação anterior à decisão recorrida;

- Não demonstra o Tribunal a quo qual a razão de salvaguarda da menor que justifica a inibição parcial das responsabilidades parentais ao progenitor;

- Erro de análise do conceito de “jurisdição voluntária”, cujas interpretação e aplicação que o despacho singular e a seguir o acórdão fazem dos princípios da jurisdição voluntária são violadores da Lei Fundamental;

- Ficou, assim, por demonstrar qual a convicção do Tribunal a quo quanto às necessidades de se proferir uma decisão provisória, frustrando-se o dever de fundamentação não se invocando nem (menos ainda) demonstrando o mal à menor a que se pretende obviar, quer com a inibição parcial, quer com a averiguação ao progenitor;

- Arguição da inconstitucionalidade do artigo 12º do RGPTC por violação do princípio do Estado de Direito, ínsito no artigo 2º da CRP, quando interpretado como concedendo ao julgador a faculdade de preterir o exercício do contraditório sobre a questão aprecianda fundante, e sem justificação demonstrada da necessidade de tal preterição;

- Ainda a arguição da inconstitucionalidade do artigo 12º do RGPTC por violação do dever de fundamentação das decisões judiciais, consagrado no artigo 205º da CRP, quando interpretado no sentido de ser dispensada da fundamentação da decisão a explicação e a demonstração da motivação da decisão e da necessidade da decisão proferida;

- Uma vez que o acórdão recorrido reitera o entendimento postulado na decisão singular do Relator, e porque demonstrado ter sido impedido o contraditório do Progenitor numa questão ostensivamente preponderante para a decisão proferida pela 1ª instância, tem de se arguir novamente a inconstitucionalidade do artigo 12º do RGPTC por violação do princípio do Estado de Direito, ínsito no artigo 2º da CRP, quando interpretado como concedendo ao julgador a faculdade de preterir o exercício do contraditório sobre a questão aprecianda fundante, e sem justificação demonstrada da necessidade de tal preterição;

- E foi ainda arguida a inconstitucionalidade do artigo 12º do RGPTC por violação do dever de fundamentação das decisões judiciais, consagrado no artigo 205º da CRP, quando interpretado no sentido de ser dispensada da fundamentação da decisão a explicação e a demonstração da motivação da decisão e da necessidade da decisão proferida.

- A mesma inconstitucionalidade do art.º 12.º do RGPTC, por violação do princípio do Estado de Direito, ínsito no artigo 2º da CRP, quando interpretado como concedendo ao julgador a faculdade de preterir o exercício do contraditório sobre a questão aprecianda fundante, e sem justificação demonstrada da necessidade de tal preterição.

- Inconstitucionalidade do mesmo artigo 12º do RGPTC, por violação do dever de fundamentação das decisões judiciais, consagrado no artigo 205º da CRP, quando interpretado no sentido de ser dispensada da fundamentação da decisão a explicação e a demonstração da motivação da decisão e da necessidade da decisão proferida.

- A impugnação do Recorrente não se prende com critérios de conveniência e oportunidade da decisão, sobre uma pretensa “regulação”, mas antes com a aplicação da lei, na vertente do princípio do contraditório, e com as disposições constitucionais.

- A revista seria sempre admissível, nos termos do art.º 32.º n.º1 do RGPTC.

- Existe contradição de julgados entrevo acórdão recorrido e o acórdão fundamento, quanto à concepção do princípio do contraditório.


Encontram-se provados os factos supra descritos, relativos ao processado dos presentes autos.


Conhecendo:

Levando em conta a alegação de reclamação para esta conferência, conjugado com teor das alegações de recurso, estão em causa as seguintes matérias de legalidade:

- saber se se omitiu o dever de audição do Requerido, em contraditório, quanto aos termos da decisão recorrida em 1.ª instância, contraditório aliás negado;

- a inconstitucionalidade do art.º 12.º do RGPTC, do ponto de vista de uma interpretação que pretira o exercício do contraditório sobre a matéria a decidir, ou a dispensa de fundamentação da decisão e da respectiva necessidade;

sem prejuízo do conhecimento da prévia apreciação da recorribilidade do acórdão de 2.º grau.



I


Iniciando pela incompetência absoluta e pelas nulidades apontadas ao despacho convite (anterior ao despacho do relator, de que se reclama).

Não há dúvida de que, nos termos do art.º 154.º n.º1 do CPCiv, “as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas”.

Do despacho reclamado para esta conferência, constava: “Vista a possibilidade de não conhecer do objecto do recurso, considerando o disposto no art.º 629.º n.º2 al.d) do CPCiv, ouçam-se as partes em 10 dias (art.º 655.º n.º1 do CPCiv)”.

Neste sentido, o que estava em causa na aplicação expressa do art.º 655.º n.º1 do CPCiv era a pronúncia das partes nos termos apontados do despacho convite que mencionava o disposto no art.º 629.º n.º2 al.d) do CPCiv como impeditivo do conhecimento do recurso.

Não era a subtracção de competências ao colectivo previsto no art.º 672.º n.º3 do CPCiv, porque não estava em causa a verificação dos pressupostos da revista excepcional, mas, pura e simplesmente, de um pressuposto do recurso que é prévio à classificação desse recurso como normal ou excepcional.

E ao relator, a quem foi distribuído o processo, é cometida a necessária audição prévia das partes, se entender que não se pode conhecer do recurso, independentemente da modalidade, normal ou excepcional, em que o recurso é interposto – razão pela qual a invocada “incompetência absoluta”, ou a incompetência funcional (posto que não verificada entre tribunais de diferente hierarquia – art.º 96.ºal. a) do CPCiv) não poderá colher.

O despacho em causa procedia apenas à audição prévia das partes, mencionando as normas legais habilitantes – razão pela qual os argumentos denegadores do recurso de revista (que não do recurso na sua específica modalidade de revista excepcional) apenas se expuseram no despacho liminar proferido, sob pena do risco da eventual repetição de argumentos nos dois despachos.

A invocação do art.º 629.º n.º2 al. d) do CPCiv, a sua referência aberta, era suficiente para que a parte pudesse atingir a conclusão de que se lidava com a admissibilidade genérica de um recurso, como decorre do teor do artigo, bem como da epígrafe “decisões que admitem recurso”, tendo, por isso mesmo, ao pronunciar-se nos termos do despacho em causa, o Recorrente, na respectiva pronúncia, voltado a defender a possibilidade da revista, por um lado, na modalidade de revista excepcional, ou até, como ali defendeu, de revista normal.

Nestes termos, não existe falta de fundamentação do despacho, ou qualquer obscuridade no respectivo conteúdo, que alertou para o conteúdo de uma norma legal, enquanto impeditiva do recurso.

Ainda que assim se não entendesse, a presente reclamação é susceptível de colocar em equação todas as questões suscitadas pelo Recorrente, assim sanando as nulidades apontadas, cabendo a respectiva decisão ao colectivo deste S.T.J.



II


Apreciando agora neste Colectivo as pretensões expressas pelo Recorrente, e como se salientou no despacho reclamado:

“No âmbito de um processo de jurisdição voluntária, a intervenção do STJ pressupõe, atenta a sua especial incumbência de controlar a aplicação da lei processual ou substantiva, que se determine se a decisão recorrida assentou em critérios de conveniência e de oportunidade ou se, diferentemente, a mesma corresponde a um processo de interpretação e aplicação da lei” (Acórdão de 06-06-2019, pº 2215/12.0TMLSB-B.L1.S1).

Vista em detalhe a impugnação recursória, não há dúvida de que certas pretensões formuladas, relativas ao exercício do contraditório e à inconstitucionalidade do art.º 12.º do RGPTC são questões de aplicação da lei.

Por outro lado, se é certo que uma decisão provisória está sujeita a recurso, nos termos do disposto no art.º 32.º n.º1 do CPCiv, o recurso processa-se como em matéria cível, nos termos do n.º 3 da norma em causa.

E aí, o recurso interposto tem que considerar a norma do art.º 671.º n.º1 do CPCiv, correntemente interpretada no sentido de que o âmbito do recurso de revista não abarca os acórdãos proferidos pela Relação no âmbito dos procedimentos cautelares (assim, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Pires de Sousa, CPC Anotado, I, 2.ª ed., pg. 835) e, mesmo que assim não fosse, caberia aplicar a norma do art.º 370.º n.º2 do CPCiv – “das decisões proferidas nos procedimentos cautelares, incluindo o que determine a inversão do contencioso, não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível”.

A razão justificativa desta irrecorribilidade encontra-se na “provisoriedade da providência cautelar (…), não obstante a importância prática que ela possa concretamente ter para a realização do direito”, provisoriedade que procede para todas as decisões cautelares e provisórias do art.º 28.º do RGPTC – cf. Lebre de Freitas, Isabel Alexandre, CPC Anotado, II 3.ª ed., págs. 49 e 50.

Portanto, em suma, o presente recurso não cabe na previsão inicial genérica do art.º 671.º n.º1 do CPCiv.

Neste sentido, decidiu já o Ac.S.T.J. 11/12/2020, p.º 2906/17.9T8BCL-O.G1.S1, rel. Nuno Oliveira.



III


Todavia, no âmbito do n.º2 do art.º 629.º do CPCiv, o recurso poderia ser sempre admissível.

Como se escreveu no despacho reclamado:

Nas hipóteses de “recurso sempre admissível” cabe “o acórdão da Relação que esteja em contradição com outro, dessa ou de diferente Relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito”, nos termos do art.º 629.º n.º2 al.d) do CPCiv, invocando-se, como se invoca, um acórdão fundamento, no caso o Ac.R.G. de 19/4/2018, proferido no p.º n.º 533/04.0TMBRG-K.G1, constante da base de dados oficial.

Servindo-nos do desenvolvimento do Ac.S.T.J. 7/6/2018, pº 2877/11.5TBPDL-D.L2.S1 (Maria Rosa Oliveira Tching), a jurisprudência deste Supremo Tribunal vem afirmando que importa que a invocada oposição de acórdãos seja frontal e não apenas implícita ou pressuposta (cf. Acs. STJ 20.07.2017, pº 755/13.2TVLSB.L1.S1-A, 25.05.2017, pº  1738/04.PTBO.P1.S1-A, 28.01.2016, pº 291/1995.L1.S1, 13.10.2016, pº 2276/10.6TVLSB.L1.S1-A, 26.05.2015, pº 227/07.OTBOFR.C2-S1-A, 20.3.2014, pº 1933/09.4TBPFR.P1.S1, e 4.07.2013, pº 2625/09.0TVLSB.L1.S1-A).

De igual modo, não basta, para o efeito, uma qualquer contradição relativamente a questões laterais ou secundárias. A questão de direito deve apresentar-se com natureza essencial para o resultado que foi alcançado em ambas as decisões, sendo irrelevante a que respeitar apenas a alguns argumentos sem valor decisivo ou obiter dicta”.

E essa oposição, na expressão do Ac. STJ 17/02/2009, pº 08A3761 (Salazar Casanova), “só é relevante quando se inscreva no plano das próprias decisões em confronto e não apenas entre uma decisão e a fundamentação de outra, ainda que as respetivas fundamentações sejam pertinentes para ajuizar sobre o alcance do julgado”.

E, finalmente, que tal oposição incida sobre a mesma questão de direito fundamental, o que pressupõe que as decisões em confronto tenham subjacente um núcleo factual idêntico ou coincidente, na perspectiva das normas ali diversamente interpretadas e aplicadas – cf. Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos, 9ª ed., pgs. 122 e 123.

Neste sentido, não existe qualquer oposição entre as decisões em confronto.

A decisão recorrida, à luz do disposto no art.º 38.º do RGPTC, desconsiderou a violação do contraditório, posto que a decisão de 1.ª instância ouviu os progenitores e fundamentou, ainda que sumariamente, a respectiva decisão.

A decisão fundamento em nada se lhe opõe – considera, em processo de execução, verificada a violação da necessária audição prévia do Executado, relativamente a documentos juntos por determinadas sociedades, sobre as quais se alegava que o Executado possuía créditos penhoráveis.

Não se trata de oposição frontal ou, sequer, implícita ou pressuposta – trata-se de matérias de processo diversas.

A oposição frontal não se retira de considerandos gerais sobre o princípio do contraditório ou a proibição de decisões surpresa, mas de decisões em confronto que possuam um idêntico quadro factual – no caso alegado, um idêntico decorrer da conferência de pais que permitisse sindicar o cumprimento do contraditório, que ambas as instâncias, nos presentes autos, consideraram regularmente cumprido.

A oposição entre acórdãos não pode ser retirada de considerandos que, em abstracto, se pronunciam sobre matérias juscivilísticas, mas antes há-de ser encontrada na forma como, em concreto, foram resolvidas as questões de núcleo factual idêntico ou coincidente.

A oposição só é relevante quando se inscreva no plano das próprias decisões em confronto e não apenas entre uma decisão e a fundamentação de outra, extraindo o recorrente, da fundamentação que entende em contradição, as conclusões que essa decisão fundamento não retirou, porque não lhe competia retirar.

O Recorrente continua a entender ter sido negado ao progenitor a possibilidade de ser ouvido e de não se ter cumprido quanto a ele o princípio do contraditório – é matéria pela qual pugnou na Relação, não tendo obtido provimento, e matéria da qual não existe recurso para o Supremo, em matéria de contradição de acórdãos.

Por isso, nos termos expostos e tudo visto, encontra-se excluída a possibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.


Concluindo:

I - Se é certo que uma decisão provisória, em processo tutelar cível, está sujeita a recurso, nos termos do disposto no art.º 32.º n.º1 do CPCiv, o recurso processa-se como em matéria cível, nos termos do n.º 3 da norma em causa, e aí o recurso interposto tem que considerar a norma do art.º 671.º n.º1 do CPCiv, correntemente interpretada no sentido de que o âmbito do recurso de revista não abarca os acórdãos proferidos pela Relação no âmbito dos procedimentos cautelares e, mesmo que assim não fosse, cabendo considerar a norma do art.º 370.º n.º2 do CPCiv.

II – A oposição de acórdãos, nos termos do art.º 629.º n.º2 al.d) do CPCiv, deve ser frontal e não apenas implícita ou pressuposta.

III - A oposição entre acórdãos não pode ser retirada de considerandos que, em abstracto, se pronunciam sobre matérias juscivilísticas, mas antes há-de ser encontrada na forma como, em concreto, foram resolvidas as questões de núcleo factual idêntico ou coincidente.


Termos em que, no indeferimento da reclamação apresentada e confirmação da decisão reclamada, se não admite o interposto recurso de revista.


Custas pelo Recorrente.

Taxa – 2 UC´s.


S.T.J., 11/5/2023


Vieira e Cunha (Relator)                                              

Afonso Henrique Cabral Ferreira

Isabel Salgado