Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
243/06.3SILSB-A.S1
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: ARMÉNIO SOTTOMAYOR
Descritores: RECTIFICAÇÃO
SENTENÇA CRIMINAL
REGISTO CRIMINAL
Data do Acordão: 04/30/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I - A necessidade de correcção na sentença da falsidade da identificação do condenado deu origem a duas correntes no STJ: uma, que considera que a verificação de erro na identificação da pessoa condenada, cuja identidade foi assumida por outrem, constitui facto novo ou novo meio de prova, que é fundamento do recurso de revisão; outra, que reduz a questão a uma situação em que se impõe a necessidade de rectificação da sentença condenatória, a levar a efeito nos termos do art. 380.º do CPP.
II - O mecanismo do recurso extraordinário de revisão responderia se LS tivesse sido condenado na sua pessoa, e se se viesse a verificar, posteriormente, que à data da prática dos factos se encontrava preso, não podendo, por isso, ter cometido o crime.
III - Mas, no caso presente, a pessoa física que cometeu a infracção criminal foi a mesma que foi julgada e condenada e a quem foi imposta a pena; ou seja, verdadeiramente não foi LS quem foi condenado como autor do crime, mas a pessoa física que, dando o nome daquele, foi detida em flagrante delito.
IV - Deste modo, não há lugar a revisão da sentença penal, havendo, simplesmente, que averiguar, incidentalmente, a verdadeira identidade do condenado e, uma vez feita a prova, ordenar oficiosamente as correspondentes rectificações (na sentença) e cancelamentos (no registo criminal).
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. O Ministério Público no 1º Juízo de Pequena Instância Criminal de Lisboa (2ª secção), invocando o disposto no art. 449º nº 1 al. d) do Código de Processo Penal, requereu o recurso extraordinário de revisão relativamente à condenação de AA, no âmbito do proc. 243/06.3SILSB daquele Juízo, com os seguintes fundamentos:
AA, titular do BI nº 0000000, nascido em 20-08-73, solteiro, natural de Moçambique, filho de BB e de CC foi condenado por sentença de 22 de Fevereiro de 2006, que transitou em julgado, pela prática, em 13 de Fevereiro de 2006, de um crime de condução sem legal habilitação, p. e p. pelo art° 3°, n° 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, na pena de 140 dias de multa, à taxa diária de € 4,50, o que perfaz a quantia de € 630,00.
Na sequência da notificação efectuada ao arguido para pagamento da multa aplicada, veio o Estabelecimento Prisional de Caxias informar que o referido AA se encontrava preso desde 28-06-05 à ordem do processo nº 159/05.0 PHLSB, da 6a Vara Criminal de Lisboa, 2a secção, não tendo beneficiado de qualquer saída.
No âmbito do processo 534/06.3 SILSB, que correu termos no 2° Juízo, 2a secção deste Tribunal de Pequena Instância Criminal, o referido indivíduo foi absolvido da prática, no dia 16-05-06, de um ilícito de idêntica natureza, por se entender que o individuo fiscalizado não era ele, tendo ocorrido usurpação da sua identificação.
No referido processo foi extraída certidão, remetida ao DIAP de Lisboa para investigação, dando origem ao NUIPC 4670/07.0TDLSB, no qual se veio a apurar que o individuo que praticou tais factos é dd, nascido em 13-10-1965, natural de Moçambique, filho de ... e Maria ... e irmão do aqui requerido, contra o qual foi deduzida acusação.
Tal indivíduo usurpou a identificação do seu irmão AA, existindo fortes indícios de ter sido também o autor dos factos dos presentes autos.

A informação prestada nos termos do disposto no art. 454º do Código de Processo Penal refere que “em face dos fundamentos do recurso apresentado e perante os elementos de prova carreados, designadamente a informação do Estabelecimento Prisional de Caxias que nos dá conta de que o Recluso n.o 000, AA, à data dos factos (13-02-2006) estava preso e não beneficiou de qualquer saída (v. fis. 61 e 63), o que naturalmente impedia que estivesse a conduzir um veículo na Praça .. , em Lisboa, presto a informação de que o requerimento deverá merecer procedência”.

Neste Tribunal, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta, no seu visto, emitiu fundado parecer, em que sustenta que não resulta dos autos que tenha sido condenada pela prática do crime de condução sem habilitação legal pessoa diversa da que cometeu a infracção, pois foi essa pessoa concreta que veio a ser condenada e não qualquer outra, nomeadamente AA, ao tempo dos factos recluso no Estabelecimento Prisional de Caxias. Acrescenta que, do facto a pessoa detida em 13 de Fevereiro de 2006, e logo constituída arguido ter fornecido elementos de identificação que não lhe cor­respondiam, não pode decorrer que se suscitem dúvidas sobre a justiça da sua própria condenação, uma vez que se provaram os factos que à mesma lhe eram imputados, integradores do aludido crime de condução sem habilitação legal. Refere, seguidamente, que a questão não é nova, existindo duas posições do Supremo Tribunal de Justiça: uma, que entende que, tendo sido julgada e condenada a pessoa física que cometeu o crime, não há lugar a recurso de revisão, mas a correcção do erro de identificação nos termos do art. 380º nº 1 do Código de Processo Penal; outra que entende haver fundamento para o recurso de revisão, fundado na existência da factos novos. Conclui, afirmando que, em sua opinião, “dirigindo-se o processo penal contra uma determinada pessoa física concreta – o arguido –, sendo o nome somente um meio de identificação daquela, a prova da falsa identidade fornecida, por não implicar dúvidas sobre a identidade física do condenado – no caso dos autos, a pessoa que no dia 13/02/2006, na sequência de acção de fiscalização por agentes da PSP, foi detida em flagrante delito, quando circulava na Praça ..., em Lisboa, conduzindo o veículo ligeiro de passageiros de matrícula JQ-00-00 sem habilitação legal para tal –, apenas justificará a correcção dos elementos de identificação, mediante processo expedito e não por apelo ao recurso de revisão, pois que não está em causa a justiça da condenação do arguido”.

2. Nos termos do disposto no art. 29º nº 6 da Constituição da República Portuguesa, os cidadãos injustamente condenados têm direito, nas condições que a lei prescrever, à revisão da sentença e à indemnização pelos danos sofridos.
A inserção deste preceito na Lei Fundamental inscreve-se na pressuposição de que o caso julgado não é um dogma absoluto. Destinado a garantir a certeza e a segurança do direito, mesmo com sacrifício da justiça material, o caso julgado visa assegurar aos cidadãos a sua paz jurídica e evitar o perigo de decisões contraditórias. Todavia, deve ceder sempre que a injustiça da decisão seja seriamente posta em causa por posteriores elementos de apreciação. Visando obter, através da repetição do julgamento, uma nova decisão judicial que se substitua a uma outra já transitada, o recurso extraordinário de revisão destina-se assim a possibilitar a realização de novo julgamento, com base em novos dados de facto. A lei limita, no entanto, os casos em que a revisão é possível, ao enunciar taxativamente os fundamentos do respectivo recurso extraordinário, que o número 1 do art. 449.º do Código de Processo Penal, na redacção introduzida pela Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto, fixa em sete.
O Ministério Público requerente apoia o seu pedido de revisão na al. d) do nº 1 do referido art. 449º, sendo nesse preceito que se deverá focar, por ora, a atenção. Estabelece-se nessa alínea: descoberta de novos factos ou meios de prova que, confrontados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação.
Tem o Supremo Tribunal entendido por factos novos, ou novos meios de prova, “aqueles que não tenham sido apreciados no processo que levou à condenação, por serem desconhecidos da jurisdição no acto do julgamento e que possam ter reflexos na culpabilidade do condenado” (ac. de 24-09-2003, proc.. 2413/03), sendo necessário que da descoberta desses outros factos resulte a existência de dúvidas fundadas acerca da justiçada condenação.

3. Conforme o Ministério Público referiu, a necessidade de correcção da falsidade da identificação do condenado deu origem a duas correntes neste Supremo Tribunal: uma, que considera que a verificação de erro na identificação da pessoa condenada, cuja identidade foi assumida por outrem, constitui facto novo ou novo meio de prova, que é fundamento do recurso de revisão; outra, que reduz a questão a uma situação em que se impõe a necessidade de rectificação da sentença condenatória, a levar a efeito nos termos do art. 380º do Código de Processo Penal.
O mecanismo do recurso extraordinário de revisão responde à questão se, no caso presente, tivesse sido condenado AA, na sua pessoa, e se se viesse a verificar, posteriormente, que à data da prática dos factos se encontrava preso, não podendo, por isso, ter cometido o crime. Então, o meio próprio para repor a justiça seria, sem dúvida, o recurso extraordinário de revisão.
Não foi isso, porém, que aconteceu.
No dia 13 de Fevereiro de 2006, na Praça ...., em Lisboa, a Policia de Segurança Pública verificou que um indivíduo do sexo masculino conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros, de matrícula JQ-00-00, sem se encontrar habilitado com carta de condução. Foi levantado auto de notícia, tendo o infractor declinado ao agente fiscalizador a seguinte identificação: AA, nascido a 20 de Março de 1973, solteiro, mecânico, filho de BB a e de CC , natural de Moçambique e residente na Rua, ... r/c d.to, em Lisboa. Esse indivíduo foi constituído arguido e submetido a termo de identidade e residência; foi apresentado detido ao Ministério Público no Tribunal de Pequena Instância de Lisboa, onde foi de imediato julgado em processo sumário. Identificou-se de igual modo na audiência de julgamento, perante a juíza de direito do 1º Juízo – 2ª Secção, constando ainda do respectiva acta que é titular do BI nº 12145853. Em audiência e no momento próprio, declarou pretender confessar de forma livre, integral e sem reservas, os factos que lhe são imputados. Tendo sido designado o dia 22 de Fevereiro de 2006 para a leitura da sentença, por não ter sido possível obter de imediato o Certificado do Registo Criminal, não compareceu.
Verifica-se assim que a pessoa física que cometeu a infracção criminal a que se refere o art. 3° n° 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, foi a mesma que foi julgada e condenada e a quem foi imposta a pena de 140 dias de multa, à taxa diária de € 4,50, o que perfaz a quantia de € 630,00.
Ou seja, verdadeiramente não foi AA quem foi condenado em 22 de Fevereiro de 2006 como autor do crime de condução sem habilitação legal. Condenada foi a pessoa física que, dando o nome daquele, foi detida em flagrante delito.
Apreciando situação idêntica, refere-se no acórdão deste Supremo Tribunal de 11 de Março de 1993 – proc. nº 43.414 (CJ – Acs S.TJ, ano I, tomo I, pág. 212) o seguinte: “os factos descritos são acções humanas voluntárias, atribuídas por lei a uma pessoa física. O que releva, nesta parte, é o ente que age e procede e não tanto o titular dos direitos e obrigações correspondentes, a pessoa jurídica a que se reporta o requerente. … Os factos em si mesmos não foram postos em causa pela rectificação da identidade de quem os praticou e, por extensão, não se podem considerar falsos os meios de prova de que o tribunal se serviu para os dar como assentes. O que aconteceu foi tão somente um erro na identificação do arguido submetido a julgamento …. De resto, nem é essencial, na sentença, a identificação do arguido por forma coincidente com dos registos oficiais, porquanto a lei se contenta agora com simples indicações tendentes à sua identificação até onde isso for possível (art. 324º nº 1 Al. a) do C.P.P.)”
Em tais situações, recorda o ac. deste Supremo Tribunal, de 27-03-2003 – proc. 876/03, relatado pelo Cons. Pereira Madeira: “o Código de Processo Penal de 1929 determinava que, ‘quando fosse certa a pessoa que foi réu no processo, mas inexacta a sua identificação’, se procedesse - para a tornar exequível contra essa ‘certa pessoa que fora réu no processo’- à ‘rectificação desta nos autos, depois de realizadas as diligências necessárias’ (art.º 626º § único). Nesse sentido, o parecer de 10 de Novembro de 1949 da Procuradoria Geral da República (BMJ, 18 pág 144) apontava para um ‘processo incidental’ como ‘forma de provar a falsidade’ em que o tribunal, ‘uma vez feita a prova’, ‘ordenasse oficiosamente as rectificações e cancelamentos necessários no registo criminal’. E, ‘apesar da omissão do [actual] Código’, deve, hoje, ‘continuar a proceder-se do mesmo modo” conforme sustentam Simas Santos e Leal Henriques no Código de Processo Penal Anotado, II, pág. 1099, ali citados.
Em suma, e recorrendo à síntese constante do ac. de 20 de Fevereiro de 2003 – proc. 395/03, relatado pelo Cons. Carmona da Mota:
1. Não há lugar a revisão da sentença penal quando o condenado é a pessoa física, embora identificada com outro nome, que cometeu o crime objecto da condenação.
2. Em tais situações, haverá, simplesmente, que averiguar, incidentalmente, a verdadeira identidade do condenado e, uma vez feita a prova, ordenar oficiosamente as correspondentes rectificações (na sentença) e cancelamentos (no registo criminal).
3. E, por isso, o caso exigirá apenas, por um lado, o cancelamento (até à identificação do condenado) do boletim do registo criminal referente a AA e, por outro, a rectificação da sentença quanto à identificação do condenado, por forma a limitá-la correspondentemente, por ora, aos elementos decorrentes das impressões digitais constantes do boletim da condenação até se apurar, mediante incidente expedito nos próprios autos, se o nome da pessoa condenada é seu irmão DD, que, em ocorrência idêntica reportada a 16-05-2006, também se identificou falsamente como AA.

Termos em que, acordam no Supremo Tribunal de Justiça em denegar a revisão pedida pelo Ministério Público da sentença de 22 de Fevereiro de 2006, do 1º Juízo de Pequena Instância Criminal de Lisboa (2ª Secção) que condenou o cidadão que, identificando-se falsamente com o nome alheio de AA, conduzia sem a legal habilitação, em 13 de Fevereiro de 2006, na Praça de ..., em Lisboa, o automóvel ligeiro de passageiro com a matrícula JQ-00-00.
Sem custas, por o Ministério Público delas estar isento.

Lisboa, 30 de Abril de 2009

Arménio Sottomayor ( relator)
Souto Moura