Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
7461/14.9T8SNT.L1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: SALAZAR CASANOVA
Descritores: CONTRATO-PROMESSA
RESOLUÇÃO DO NEGÓCIO
ILICITUDE
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
ABUSO DE DIREITO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
COMPRA E VENDA
BEM IMÓVEL
DECLARAÇÃO TÁCITA
PERDA DE INTERESSE DO CREDOR
EXECUÇÃO ESPECÍFICA
SINAL
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 06/08/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS / FALTA DE CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES.
Doutrina:
- Calvão da Silva, "Estudos de Direito Civil e Processo Civil (Pareceres),Almedina, 1996, 137.
- Pedro Romano Martinez, Da Cessação do Contrato, 2005, Almedina, 219, 220.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 217.º, 334.º, 410.º, N.º 3, 442.º, N.º 3, 801.º, N.º 2, 803.º, N.º 3 E 808.º, 830.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 26-4-2012, PROCESSO N.º 743/2001.E1.S1
-DE 17-4-2012 E DE 29-5-2012, PROCESSOS N.º 1319/1996.L1.S1 E N.º 1199/05.5TBABT.E1.S1, RESPECTIVAMENTE.
-DE 28-6-2012, PROCESSO N.º 1150/08.OTBMFR.L1.S1.
-DE 26-9-2013, PROCESSO N.º 564/11.3TVLSB.L1.S1.
-DE 15-1-2015, PROCESSO N.º 473/12.9TVLSB.L1.S1, DE 29-11-2016, PROCESSO N.º 127/13.9TVLSB.L1.S1.
Sumário :
I - A declaração de resolução do contrato, ainda que ilícita, pode determinar a extinção do contrato.

II - No entanto, se a execução ainda for possível e o promitente fiel mantiver interesse na execução do contrato e esta não for excessivamente onerosa para aquele que o resolveu ilicitamente, deve considerar-se subsistente o vínculo ilicitamente resolvido.

III - No caso de contrato-promessa, o promitente lesado fica, mercê de resolução ilícita da outra parte, com a faculdade de o resolver ou de exigir a execução específica (artigo 830.º do Código Civil).

IV - A resolução infundada do contrato pela parte infiel que reclamou simultânea e reiteradamente o pagamento do dobro do sinal e que não manifestou interesse em retomar o contrato, apesar de a outra parte ter tentado levá-la a uma alteração de comportamento, evidencia um incumprimento definitivo do contrato.

V - Sujeita-se a que a outra parte, face a esse incumprimento, resolva o contrato se perder interesse em exigir a execução específica.

VI - Assim, a venda do imóvel pelo promitente vendedor constitui resolução tácita do contrato-promessa (artigo 217.º do Código Civil) que se haja por subsistente no interesse do promitente fiel de modo a viabilizar a execução específica do contrato-promessa

VII - Constitui abuso do direito na modalidade de venire contra factum proprium (artigo 334.º do Código Civil) pretender o promitente comprador o pagamento do sinal em dobro na sequência da resolução do contrato-promessa pelo promitente vendedor, aproveitando-se da sua subsistência tendo em vista eventual execução específica quando o interesse do promitente comprador era exatamente o de não querer outorgar o contrato prometido.

VIII - Abuso do direito evidenciado ainda pelo facto de o promitente comprador, depois de resolver o contrato e de não responder à proposta do promitente vendedor de 10-12-2008, que ainda lhe concedia oportunidade para rever a posição assumida aceitando outorgar a escritura de compra e venda sob pena de serem encetadas diligências tendo em vista a execução específica, ter silenciado qualquer atitude durante mais de 4 anos, decorridos os quais o promitente vendedor decidiu vender o imóvel a terceiro, o que cimentou a convicção do promitente vendedor quanto à inabalável vontade de o promitente comprador não cumprir contrato.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


1. AA - Empreendimentos Imobiliários, S.A.."intentou a presente ação com processo comum, contra BB - Sociedade Imobiliária e Turística, S.A.", pedindo que fosse declarado o incumprimento definitivo, por parte da Ré, do contrato - promessa de compra e venda celebrado em 12-05-2008 e, consequentemente, a ré condenada a restituir à Autora o sinal em dobro, no montante de 300.000,00€ (trezentos mil euros); e que a ré fosse condenada a pagar à A. os juros de mora, à taxa legal aplicável aos créditos comerciais, já vencidos no montante de 147.459,86€ (cento e quarenta e sete mil quatrocentos e cinquenta e nove euros e oitenta e seis cêntimos) ou, subsidiariamente, de 647.057,26€ (quarenta e sete mil e cinquenta e sete euros e vinte e seis cêntimos), bem como dos juros de mora que, à mesma taxa legal, se vencerem sobre o capital em dívida até integral e efetivo pagamento.

2. A ação foi julgada improcedente na 1ª instância com o fundamento de que quando a A., promitente compradora, comunicou à ré, promitente vendedora, por carta de 17-11-2008 que considerava prazo essencial o prazo de 60 dias para outorga da escritura de compra e venda e, por isso, a não realização da escritura nesse prazo implicava incumprimento definitivo a impor a resolução do contrato-promessa celebrado no dia 12-5-2008 com a consequente devolução do sinal dobrado, tal resolução determina a cessação do vínculo.

3. Tal resolução sendo, no entanto, ilícita porque não se verificaram os respetivos pressupostos legais - ou seja, de que era termo fixo, essencial ou absoluto o aludido prazo - não é inválida ou ineficaz e, por isso, ela importa a cessação do vínculo, extinguindo-se o contrato-promessa.

4. Ainda segundo a sentença, a circunstância de a promitente vendedora ter ulteriormente procedido no dia 22-2-2013 à venda a um terceiro do imóvel prometido vender não permite imputar à promitente vendedora o incumprimento definitivo do contrato, pois, com a resolução e consequente extinção do contrato-promessa, libertou-se a promitente vendedora da obrigação assumida por via do aludido contrato-promessa.

5. Inexistindo incumprimento definitivo da ré em 2008 e produzindo efeitos a resolução, inexiste incumprimento definitivo da ré em 2013, impondo-se, assim, a absolvição do pedido de condenação da ré no valor do sinal dobrado.

6. A A. recorreu para o Tribunal da Relação, sustentando que a resolução, porque infundamentada, deveria ser considerada ineficaz, mantendo-se consequentemente o contrato; ora a promitente vendedora, não aceitando a declaração resolutiva, assume a vigência do contrato. Não pode, assim, em contradição com a sua prévia declaração de que o contrato estava em vigor e de que pretende recorrer à execução específica, alienar o imóvel prometido vender.    

7. O Tribunal da Relação considerou que a promitente compradora, com a declaração infundada de resolução, recusou o cumprimento; tal resolução, porque não precedida de interpelação admonitória, traduz-se numa antecipatory breach of contract; por sua vez a promitente vendedora com a venda do imóvel colocou-se numa situação de incumprimento definitivo. Ou seja, o incumprimento é imputável a ambas as partes por cada uma ter resolvido o contrato sem fundamento legal. Por isso, atento o disposto nos artigos 442.º/1 e 570.º do Código Civil e sendo certo que nenhum dos outorgantes pretende a manutenção do contrato, inviabilizada pela venda, justifica-se, porque as culpas não são exuberantemente diferentes, repor os promitentes na situação anterior à outorga do contrato-promessa, condenando-se a ré a restituir à A. a quantia entregue a título de sinal (150.000,00€).

8. Do acórdão interpôs recurso de revista para o STJ a ré que concluiu a minuta nos seguintes termos.

1 - Perante a matéria de facto provada no ponto 26 - a autora desinteressou-se do prédio objeto do contrato promessa -, perante a falta de comparência da autora à escritura de compra e venda designada pela ré, perante a resolução ilícita do contrato levada a cabo pela autora, perante o silêncio da autora em face da missiva da ré de 10 de dezembro de 2008, perante a inexistência de qualquer ação, contacto ou iniciativa da autora durante 6 anos, é patente que a autora incumpriu culposa e definitivamente o contrato.

2 - A propositura da presente ação configura um flagrante ventre contra factum proprium, uma violação da boa fé e um abuso de direito.

3 - O não exercício de quaisquer direitos durante o tempo decorrido impede a autora de o exercer neste momento.

4 - A prevalecer a tese do Tribunal da Relação, a autora poderia continuar a vigiar a ré e a aguardar pela possibilidade de esta vender o imóvel indefinidamente, beneficiando da devolução do sinal não obstante o seu comportamento contraditório.

5 - O contrato extinguiu-se logo após a remessa pela autora da sua missiva de resolução do contrato.

6 - Essa declaração de resolução é ilícita - por não haver mora ou incumprimento definitivo da ré, não gerando quaisquer direitos para a autora e permitindo à ré fazer seu o sinal.

7 - Essa declaração constitui uma declaração antecipada de não cumprimento definitivo.

8 - Independentemente da solução técnica da questão jurídica da eficácia extintiva de uma declaração de resolução injustificada, a autora, como emitente dessa declaração, perdeu o direito de vir invocar o contrário do que nela consta e de, assim, 6 anos depois, ressuscitar o contrato, argumentando que a ré se mantinha obrigada ao cumprimento do mesmo.

9 - Imediatamente após o recebimento da declaração de resolução oriunda da autora, conjugada com a sua falta de comparência à outorga do contrato definitivo e com a perda de interesse desta no negócio, operou-se a extinção do contrato, configurando o comportamento da autora um incumprimento definitivo do mesmo.

10 - Nesse momento, a autora havia perdido o interesse na celebração do negócio nos termos provados no ponto 26 da fundamentação de facto.

11 - A ré não estava obrigada a desenvolver adicionais, tendo-se formado na sua esfera jurídica o direito de fazer seu o sinal.

12 - A ré não se obrigou a nada por causa da sua missiva de dezembro de 2008, nem essa missiva teve como efeito conservar a vigência do contrato.

13 - Essa carta tem natureza pós-contratual e é inócua.

14 - Inexistiu incumprimento da ré em 2008 e inexistiu incumprimento da ré ao alienar o imóvel em 2013 a um terceiro.

15 - Deve manter-se a condenação da autora como litigante de má fé.

16- Termos em que, por não os interpretar da forma assinalada, o tribunal recorrido violou os artigos 224.º, 334.º, 436.º, 442.º, 762.º/2 e 808.º do Código Civil.

9. Factos provados

1 - A Autora é uma sociedade comercial que se dedica, entre outras atividades, à compra e venda de imóveis e ao desenvolvimento de empreendimentos imobiliários e sua comercialização.

2 - A ré é uma sociedade comercial que se dedica à compra e venda de imóveis.

3 - Em 12 de maio de 2008, Autora e ré celebraram um contrato que denominaram "contrato promessa de compra e venda de bem futuro", através do qual a Autora prometeu comprar à ré, e esta prometeu vender-lhe, pelo preço de 1.500.000,00€ (um milhão e quinhentos mil euros), o prédio de rés do chão e quatro andares, sito na Rua ..., n.° 1 a n.° 13, e Rua ..., n.° 33 a n.° 39, na freguesia da ..., em Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o número oito e inscrito na matriz predial urbana da referida freguesia sob o artigo 69.

4 - Em 12 de maio de 2008, a Autora entregou à ré, a título de sinal, a quantia de 150.000,00€ (cento e cinquenta mil euros).

5 - Na data da celebração do referido contrato, a ré não era ainda a proprietária do prédio prometido.

6 - Por escritura pública de "Compra e Venda", de 14 de Maio de 2008, veio, a ora Ré, declarar aceitar a venda pela sociedade CC, Lda., do prédio supra descrito.

7 - Determinava o número um da cláusula terceira do supra referido "contrato promessa" que "a escritura de compra e venda do prédio prometido será realizada no prazo máximo de 60 (sessenta) dias a contar da assinatura deste contrato".

8 - Ficou estipulado no número oito da cláusula terceira que, a "BB compromete-se a praticar todos os atos necessários a tornar-se legítima proprietária do prédio no prazo de 60 dias a contar da data de assinatura deste contrato-promessa, de modo a encontrar-se em condições formais de cumprir o previsto neste contrato".

9 - Nos termos do disposto no número quatro da referida cláusula terceira, ficou acordado que "a escritura pública de compra e venda será marcada pela BB, bastando para tal notificar a AA com a antecedência mínima de 15 (quinze) dias úteis em relação à data em que a mesma será realizada.

10 - A ré não marcou a escritura relativa ao contrato prometido no prazo estipulado de sessenta dias.

11 - A ré remeteu à Autora no dia 7 de novembro de 2008, carta pela qual lhe comunicava a marcação da escritura de compra e venda atinente ao contrato-promessa, supra referido, para o dia 2 de dezembro de 2008.

12 - Através dos documentos remetidos nessa carta, a Autora verificou que a ré apenas cumpriu a obrigação de dar preferência à Câmara Municipal de Lisboa e ao IPPAR no final do mês de outubro de 2008.

13 - Por carta de 17 de novembro de 2008, a Autora informou a ré de que considerava que o prazo de 60 dias "constitui um termo essencial, cuja violação por parte de V. Exas. determina o incumprimento definitivo do contrato-promessa e confere esta sociedade o direito de resolução".

14 - Por essa carta, a Autora comunicou ainda que "em consequência do referido incumprimento definitivo, esta sociedade resolve, através da presente carta e com efeitos imediatos, o contrato-promessa de compra e venda celebrado em 12 de maio de 2008 e que tem por objeto o imóvel sito na Rua do ..., n.° 1 a 13 e Rua Madalena n.° 33 a 39, em Lisboa".

15 - Informou ainda que "nos termos do disposto no artigo 442.° do n.° 2 do Código Civil, essa sociedade está obrigada a devolver em dobro o sinal prestado" (...) "no entanto, de forma a evitar um litígio entre as partes, esta sociedade aceita receber, no prazo máximo de 8 dias após a receção da presente carta, o valor em singelo do sinal prestado".

16 - Em 2 de dezembro de 2008, o mandatário da Autora remeteu à ré uma carta onde informava que "Em consequência do incumprimento definitivo por parte de V. Exas., a minha cliente resolveu o referido contrato promessa, por carta datada de 17 de novembro de 2008, pelo que tem direito à devolução em dobro do sinal que prestou (...) assim, a minha cliente AA - Empreendimentos Imobiliários, S.A é credora dessa sociedade pelo montante global de 300.000,00€ (trezentos mil euros), acrescido dos juros de mora até integral pagamento.".

17 - Em resposta, por carta datada de 10 de dezembro de 2008, a ré comunicou que "salientamos ainda que é nossa intenção exigir a execução específica do cumprimento contratual, pelo que entendemos ser pertinente dar oportunidade à sua cliente de ainda cumprir o contrato promessa, pelo que aguardaremos por 15 dias a manifestação de vontade da sua cliente em realizar a escritura, pelo que no mesmo prazo nos deverá ser manifestada essa intenção, com a remessa dos documentos pertinentes para a escritura. Findo tal prazo será a nossa empresa a tomar a iniciativa de encetar as competentes diligências judiciais.".

18 - Após a referida carta, a ré não fixou qualquer prazo perentório à Autora para a celebração da escritura.

19 - Também não procedeu a nova marcação da escritura pública para a celebração do contrato prometido, designadamente com a cominação de resolução do contrato promessa,

20 - Nem instaurou ação judicial para "exigir a execução específica do cumprimento contratual".

21 - Por escritura de 22 de fevereiro de 2013, a ora Ré declarou vender à sociedade DD, Lda.. o imóvel, supra, identificado, pelo preço de 1 225 000, 00 euros, o que esta declarou aceitar.

22 - Fê-lo sem que tenha comunicado à Autora a perda do seu interesse na concretização do contrato-promessa.

23 - Mostra-se registado na Conservatória do Registo Predial de Lisboa, pela apresentação 748 de 26 de novembro de 2012, convertida em definitivo pela apresentação 1510 de 25 de fevereiro de 2013, a compra do prédio em causa pela sociedade "DD, Lda.."

24 - A ré não procedeu à marcação da escritura no prazo de 60 dias a contar da data do contrato-promessa porque tal lhe foi pedido pela Autora, concretamente, através do Sr. EE, que fez essas solicitações por contacto direto com o Eng. FF.

25 - A ré acedeu a tal pedido.

26 - A Autora pretendia fazer a escritura se e quando tivesse resolvido todas as demais questões atinentes ao projeto imobiliário que pretendia desenvolver em todo o quarteirão, com terceira entidade; e quando tivesse sido concedido o PIP; e desinteressou-se da aquisição do imóvel dos autos em razão da não realização de negócio que perspetivara realizar com terceira entidade, envolvendo o imóvel dos autos.

E declarou não provados os seguintes factos:

27 - A celebração do contrato prometido no prazo máximo de 60 (sessenta) dias era condição essencial para a A., o que era do conhecimento da ré.

28 - O empreendimento ao qual a A. pretendia destinar o imóvel, a realizar em parceria com outra entidade, era a concretizar nesse mesmo prazo de 60 (sessenta) dias.

29 - A não marcação pela ré da escritura relativa ao contrato prometido no prazo estipulado de sessenta dias, inviabilizou a concretização do negócio que a A. tinha gizado para o imóvel.

30 - Foi face ao decurso do tempo (prazo de 60 dias, previsto no contrato-promessa) que a Autora informou, telefonicamente, a Ré, de que já não tinha interesse no imóvel, aceitando, porém, que a BB lhe restituísse a quantia paga a título de sinal.

31 - Na sequência dos contactos havidos com a ré, a Autora ficou na convicção de que o negócio ficaria sem efeito e lhe seria restituído o sinal prestado.

32 - Nas proximidades e após o dia 24 de setembro de 2008, o contacto com a A. tornou-se impossível, não havendo qualquer resposta às inúmeras tentativas de contacto efetuadas.

Apreciando

10. Suscita-se a questão de saber se a ilícita declaração de resolução do contrato-promessa proferida pela promitente compradora, já interpelada para outorga do contrato prometido de compra e venda, implica o incumprimento definitivo do contrato-promessa por se traduzir numa declaração antecipada, clara e séria, de não cumprimento; e suscita-se ainda a questão de saber se essa infundada declaração de resolução não implica ipso facto a extinção do contrato-promessa, constatando-se que a contraparte continua interessada na realização da transação prometida, por via extrajudicial ou por execução específica e, assim sendo, qual a consequência de a contraparte alienar a favor de terceiro o imóvel prometido vender.

11. O Tribunal da Relação considerou que a conduta da A. comunicando a resolução do contrato por carta de 17-11-2008 reclamando a devolução do sinal em dobro com juros, posição reiterada em 2-12-2008 (factos 13 a 16) integra uma recusa de cumprimento, resolução que não foi precedia de qualquer interpelação admonitória, traduzindo-se numa antecipatory breach of contract. Considerou ainda que houve incumprimento definitivo da ré quando alienou o imóvel a terceiro em 22-2-2013 (cf. Ac. do STJ de 28-6-2012, rel. Maria dos Prazeres Beleza, revista n.º 1150/08.OTBMFR.L1.S1).

12. O acórdão da Relação, face à ausência de fundamento das referidas condutas, traduzindo ambas incumprimento do contrato, considerou aplicável ao caso a regra constante do artigo 570.º do Código Civil e, não sendo as culpas exuberantemente diferentes, considerou ainda que os promitentes devem ser postos na posição anterior à celebração do contrato, devendo a ré reaver o sinal recebido de 150.000€.

13. Na verdade, a declaração resolutiva da autora de 17-11-2008, proferida quando tinha já sido interpelada para outorgar a escritura em 2-12-2008, declaração infundada porque ela se baseou no entendimento de que o prazo de 60 dias fixado na cláusula terceira do contrato-promessa celebrado em 12-5-2008 constituía prazo essencial ou fixo, resolução reiterada por carta datada precisamente desse mesmo dia 2-12-2008 pedindo o valor do sinal em dobro, tal declaração revela firme intenção de não contratar (cf. Ac. do STJ de 26-9-2013, rel. Sérgio Poças, revista n.º 564/11.3TVLSB.L1.S1

14. A resolução injustificada funciona como uma declaração antecipada de incumprimento e não se duvida de que era certa, segura e séria a vontade da promitente compradora não cumprir o contrato-promessa, o que, no caso, mais se evidencia com o silêncio que se seguiu à tentativa da promitente vendedora, referida em 17 da matéria de facto, de proceder ainda assim à outorga da escritura de compra e venda (cf. Ac. do STJ de 26-4-2012, rel. Granja da Fonseca, revista 743/2001.E1.S1)

15. Daqui resulta para o promitente vendedor a faculdade de, sem necessidade de interpelação admonitória (artigo 808.º do Código Civil), se desvincular do contrato, " resolvendo-o, ou exigir o seu cumprimento e execução específica conforme mais lhe aprouver" (Calvão da Silva, "Estudos de Direito Civil e Processo Civil (Pareceres),Almedina, 1996, pág. 137).

16. A promitente vendedora, face à declaração resolutiva da promitente compradora, manifestou interesse em transmitir a propriedade do imóvel prometido vender para a promitente compradora ou por via ainda da outorga extrajudicial da escritura de compra e venda ou por via da execução específica do contrato (cf. Ac. do STJ de 17-4-2012 e 29-5-2012, rel. Gregório da Silva Jesus, revista n.º 1319/1996.L1.S1 e revista n.º 1199/05.5TBABT.E1.S1). A "oportunidade" a que alude a promitente vendedora na resposta que deu em 10-12-2008 à carta de 2-12-2008 teve em vista proporcionar o arrependimento da promitente compradora, mas não tem a virtualidade, que as partes, aliás, não sustentam, de excluir a qualificação do comportamento da promitente compradora como incumprimento definitivo.

17. O incumprimento definitivo abre à contraparte a faculdade de resolver o contrato; a resolução do contrato, quando infundada, implica o incumprimento definitivo culposo (cf. Ac. do STJ de 15-1-2015, rel. Tavares de Paiva, revista n.º 473/12.9TVLSB.L1.S1, Ac. do STJ de 29-11-2016, rel. Pinto de Almeida, revista n.º 127/13.9TVLSB.L1.S1)

18. A promitente compradora, quando reclama na presente ação o pagamento do sinal em dobro com base na venda do imóvel prometido vender, pressupõe obviamente que o contrato-promessa não se extinguiu com a declaração de resolução que proferiu; a promitente vendedora sustenta por sua vez que o contrato-promessa se extinguiu com a declaração resolutiva da promitente compradora, mas o certo é que essa não foi a posição que assumiu em 10-12-2008, pois, se o fosse, não declararia a sua vontade de ver cumprido o contrato-promessa, a bem ou a mal, ou mediante outorga da escritura na sequência do arrependimento alcançado por parte da promitente vendedora, que não ocorreu, ou mediante execução específica do contrato-promessa.

19. A posição assumida pela promitente vendedora afigura-se sustentável, pois não se vê que, persistindo o seu interesse na celebração do contrato prometido, pudesse a contraparte desvincular-se na base de uma declaração resolutiva infundada sendo certo que a execução específica não podia ser afastada pelas partes (artigo 410.º/3 e 830.º/3 do Código Civil).

20. É igualmente sustentável que, podendo ainda ser executada a relação contratual, cuja resolução foi declarada ilícita, o vínculo obrigacional subsiste não obstante a declaração de vontade ter efeito extintivo (Da Cessação do Contrato, Pedro Romano Martínez, 2005, Almedina, pág. 219).

21. Ora a promitente vendedora não declarou à promitente compradora que fazia seu o sinal entregue, atuação que consubstanciaria a sua desvinculação contratual; não propôs ação de execução específica, não procedeu à marcação de nova escritura, o que seria manifestamente desnecessário e inútil face à posição assumida pela promitente compradora.

22. Decorridos 4 anos e pouco mais de dois meses a contar da carta resposta que a ré enviou à autora em 10-12-2008, a promitente vendedora vendeu em 22-2-2013 o imóvel a terceiro e fê-lo sem que tenha comunicado à autora a perda do seu interesse na concretização do contrato-promessa (22 da matéria de facto).

23. Não se vê que mais algum contacto tenha sido estabelecido entre as partes durante esse largo período de tempo.

24. Importa salientar que a autora, face à ilicitude da declaração resolutiva, ficou a partir daí numa situação de sujeição face à promitente vendedora que tanto podia resolver o contrato, fazendo seu o sinal, como pedir a respetiva execução específica (artigo 442.º/3 do Código Civil).

25. O contrato-promessa subsistia quando a promitente vendedora decidiu vender o imóvel a terceiro. A subsistência do contrato-promessa resulta da posição assumida pela promitente vendedora na referida carta de 10-12-2008.

26. A sujeição que ocorre é do promitente comprador face à subsistência do contrato-promessa, não é do promitente vendedor que a qualquer tempo podia declarar resolvido o contrato por não estar interessado na subsistência do mesmo.

27. Considera-se que "a subsistência do vínculo ilicitamente resolvido depende […] do preenchimento, alternativo, de três pressupostos: o cumprimento das prestações contratuais ainda é possível; a parte lesada mantém interesse na execução do contrato; a execução do contrato não é excessivamente onerosa para aquele que o resolveu ilicitamente" (Pedro Martínez, loc. cit., pág. 220). Verificam-se no caso os dois primeiros pressupostos e, porque não foi alegado pela promitente compradora que o contrato-promessa não deveria subsistir por lhe ser excessivamente onerosa a sua execução, não é de considerar excluído este pressuposto.

28. Desde que ocorreu incumprimento definitivo por parte da promitente compradora não se verificou nenhuma situação de facto superveniente - como seria, por exemplo, o caso de a promitente compradora ter respondido à carta de 10-12-2008, manifestando a sua vontade de realizar o contrato mediante o envio dos documentos necessários para a escritura e ficando, desde então, a aguardar que fosse designada data para a escritura - que permitisse considerar que o contrato subsistia sem se verificar o mencionado incumprimento definitivo por parte da promitente compradora.

29. A última questão que se suscita - uma vez assente que o contrato-promessa subsistia quando a promitente vendedora alienou o imóvel a terceiro - consiste em saber se essa alienação pode ser considerado exercício tácito do direito de resolução (artigo 217.º do Código Civil) que, como vimos, estava na disponibilidade da promitente vendedora.

30. Crê-se que a resposta não pode deixar de ser afirmativa. Na verdade, sendo certo que a venda a terceiro do bem prometido vender impossibilita definitivamente a execução do contrato-promessa, viabilizando ipso facto a resolução do contrato pela contraparte (artigo 801.º/2 e 808.º do Código Civil), certo é também que, no caso vertente, a resolução do contrato estava na disponibilidade da promitente vendedora uma vez assente que a promitente compradora revelou intenção séria e definitiva de não cumprimento do contrato que apenas subsistiu tendo em vista viabilizar-se a execução específica, afastada qualquer possibilidade de outorga de escritura extrajudicial.

31. No caso vertente, o decurso de tão longo período de tempo sem que a promitente compradora tivesse reagido à referida carta de 10-12-2008 evidencia o seu desinteresse pela sorte do contrato-promessa, designadamente se esta fosse no sentido de a sua execução específica ficar impossibilitada, pois, como se disse, a promitente compradora evidenciara há muito intenção séria de não querer adquirir o imóvel.

32. Ora, na verdade, se a promitente compradora já tinha resolvido o contrato-promessa, sendo séria e inequívoca a sua vontade de não o cumprir mediante outorga da escritura de compra e venda, pretender agora, decorridos vários anos, resolvê-lo novamente, como se houvesse aceitado e fosse do seu interesse a subsistência do contrato-promessa, traduz, a nosso ver, exercício manifesto do abuso do direito na modalidade de venire contra factum proprium (artigo 334.º do Código Civil).

33. A promitente compradora reclama nesta ação o pagamento do dobro do sinal fundada no incumprimento contratual da promitente-vendedora que vendeu o imóvel prometido vender - facto que, analisado em si desligado das demais ocorrências, traduz manifesto incumprimento definitivo de um contrato-promessa -  mas, afinal, o que a promitente vendedora fez, na sequência da posição assumida pela promitente compradora que houve o contrato-promessa por resolvido, foi resolver ela própria o contrato-promessa que se tinha por subsistente, no pressuposto de que a resolução por parte da promitente vendedora fora infundada, tendo em vista viabilizar a sua execução específica.

34. A autora, pressupondo-se que a sua declaração resolutiva era lícita, podia exigir à promitente vendedora o pagamento do sinal em dobro; esta, pressupondo que a resolução era ilícita, podia fazer seu o sinal entregue. Se a promitente vendedora propusesse ação de execução específica, a promitente compradora podia opor-se alegando que o contrato tinha sido licitamente resolvido; podia ainda alegar que a execução específica, decorrido tanto tempo, se traduzia para ela em excessiva onerosidade; podia ainda sustentar que a execução específica não podia proceder porque, ainda que a resolução fosse ilícita, o contrato-promessa devia considerar-se extinto.

35. Sucede que, no caso vertente, não é da execução específica do contrato-promessa que estamos a tratar, mas do pedido de condenação da promitente vendedora no pagamento do sinal em dobro por ter impossibilitado culposamente a venda do imóvel que a autora prometera adquirir.

36. Esta pretensão não pode manifestamente proceder e, pelas razões expostas, não pode considerar-se que houve uma concorrência de incumprimentos culposos a determinar a restituição do sinal entregue, repondo as partes na situação anterior à outorga do contrato-promessa.

37. Isto porque houve, sim, duas declarações resolutivas do contrato-promessa, uma ilícita, a do promitente comprador, a outra lícita, a do promitente vendedor, constituindo manifesto abuso do direito (artigo 334.º do Código Civil) a pretensão do promitente comprador querer aproveitar-se da faculdade, aliás não exercida, reconhecida ao promitente vendedor, parte fiel, de obter a execução específica do contrato-promessa, faculdade admissível desde que se aceite a subsistência do contrato-promessa.

38. Abuso do direito ainda considerando que o promitente comprador resolveu o contrato-promessa não querendo, por conseguinte, considerá-lo subsistente, seja para outorga da escritura extrajudicial do contrato prometido, seja para a respetiva execução específica; não pode, assim, o promitente comprador prevalecer-se da subsistência do contrato-promessa que tem em vista a satisfação do interesse da contraparte quando a sua intenção séria e certa foi precisamente a de não querer definitivamente cumprir o contrato-promessa. Ou seja, o desenlace do contrato-promessa foi o da extinção do contrato-promessa exatamente o que o promitente comprador quis com a sua declaração resolutiva.

39. Abuso do direito finalmente porque, não tendo a promitente compradora depois de recebida a carta remetida pela promitente vendedora no dia 10-12-2008 em que esta ficava a aguardar por 15 dias a manifestação de vontade em realizar a escritura prometida, reservando-se a promitente vendedora, na falta de resposta, encetar diligências para a execução específica do contrato-promessa, deixou, em absoluto silêncio, que decorressem quase 4 anos e dois meses, o que consolida na contraparte a fundada convicção de que a promitente compradora está desinteressado da sorte do imóvel.

Concluindo:

I - A declaração de resolução do contrato, ainda que ilícita, pode determinar a extinção do contrato.

II - No entanto, se a execução ainda for possível e o promitente fiel mantiver interesse na execução do contrato e esta não for excessivamente onerosa para aquele que o resolveu ilicitamente, deve considerar-se subsistente o vínculo ilicitamente resolvido.

III - No caso de contrato-promessa, o promitente lesado fica, mercê de resolução ilícita da outra parte, com a faculdade de o resolver ou de exigir a execução específica (artigo 830.º do Código Civil).

IV - A resolução infundada do contrato pela parte infiel que reclamou simultânea e reiteradamente o pagamento do dobro do sinal e que não manifestou interesse em retomar o contrato, apesar de a outra parte ter tentado levá-la a uma alteração de comportamento, evidencia um incumprimento definitivo do contrato.

V - Sujeita-se a que a outra parte, face a esse incumprimento, resolva o contrato se perder interesse em exigir a execução específica.

VI - Assim, a venda do imóvel pelo promitente vendedor constitui resolução tácita do contrato-promessa (artigo 217.º do Código Civil) que se haja por subsistente no interesse do promitente fiel de modo a viabilizar a execução específica do contrato-promessa

VII - Constitui abuso do direito na modalidade de venire contra factum proprium (artigo 334.º do Código Civil) pretender o promitente comprador o pagamento do sinal em dobro na sequência da resolução do contrato-promessa pelo promitente vendedor, aproveitando-se da sua subsistência tendo em vista eventual execução específica quando o interesse do promitente comprador era exatamente o de não querer outorgar o contrato prometido.

VIII - Abuso do direito evidenciado ainda pelo facto de o promitente comprador, depois de resolver o contrato e de não responder à proposta do promitente vendedor de 10-12-2008, que ainda lhe concedia oportunidade para rever a posição assumida aceitando outorgar a escritura de compra e venda sob pena de serem encetadas diligências tendo em vista a execução específica, ter silenciado qualquer atitude durante mais de 4 anos, decorridos os quais o promitente vendedor decidiu vender o imóvel a terceiro, o que cimentou a convicção do promitente vendedor quanto à inabalável vontade de o promitente comprador não cumprir contrato.


Decisão: concede-se a revista, absolvendo-se a ré do pedido

Custas pela A na Relação e no Supremo


Lisboa, 8-6-2017

Salazar Casanova (Relator)

Lopes do Rego

Távora Victor