Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1444/08.5TBAMT-A.P1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: PINTO DE ALMEIDA
Descritores: PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
PRIVILÉGIO CREDITÓRIO
CREDITO LABORAL
ESTABELECIMENTO
LOCAL DE TRABALHO
Data do Acordão: 11/13/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - LEIS, SUA INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / GARANTIAS ESPECIAIS DAS OBRIGAÇÕES.
DIREITO DO TRABALHO - PRESTAÇÃO DO TRABALHO / LOCAL DE TRABALHO - INCUMPRIMENTO DO CONTRATO / GARANTIAS DOS CRÉDITOS.
DIREITO FALIMENTAR - IMPUGNAÇÃO DA SENTENÇA / EMBARGOS.
Doutrina:
- Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso legitimador, 182.
- Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, 2ª ed., 130.
- Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, Vol. I, 9ª ed., 281; Da Empresarialidade – As Empresas no Direito, 304.
- Manuel de Andrade, Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis, 28 (incluindo a nota 3).
- Pereira de Almeida, Sociedades Comerciais, 3ª ed., 19.
- Salvador da Costa, O Concurso de Credores, 3ª ed., 318.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 9.º, N.ºS 1 E 3, 735.º, N.º3, 751.º.
CÓDIGO COMERCIAL (CCOM): - ARTIGO 230.º.
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGOS 14.º, N.º1, 41.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 635.º, N.ºS 2 E 5.
CÓDIGO DO TRABALHO (CT) / 2003: - ARTIGOS 154.º, 377.º.
LEI N.º 99/2003, DE 29/7: - ARTIGOS 3.º, 21.º, N.º2, AL. E).
PREÂMBULO DO D.L. N.º 53/2005, DE 18/3: - PONTO 16.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 23.09.2010, DE 25.03.2014 E DE 17.06.2014, ACESSÍVEIS EM WWW.DGSI.PT, COMO OS DEMAIS ADIANTE CITADOS.
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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:
-DE 27.02.2007, DE 16.10.2007 E DE 28.06.2011, E DE 12.06.2012.
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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:
-DE 10.05.2007 E DE 30.05.2013.
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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:
-DE 22.10.2012 E DE 22.10.2013.
Sumário :
I - O regime restritivo previsto no art. 14.º, n.º 1, do CIRE aplica-se aos recursos de revista interpostos nos processos de insolvência, nos incidentes neles processados e nos embargos opostos à sentença de declaração de insolvência.

II - Nos demais apensos desse processo, esses recursos estão sujeitos ao regime geral.

III - O privilégio imobiliário estabelecido no art. 377.º, n.º 1, al, b), do CT (aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27-08) abrange os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador exercia a sua actividade, exigindo uma conexão entre a actividade do trabalhador e o prédio onde essa actividade era exercida e, bem assim, que esse imóvel integre o complexo organizacional do empregador.

IV - Esses bens imóveis, devem, pois, integrar de uma forma estável a organização empresarial da insolvente a que pertencem os trabalhadores; devem estar afectos à actividade prosseguida pela empresa e, como tal, à actividade de cada um desses trabalhadores, independentemente das funções concretamente exercidas por estes.

V - As fracções de edifícios construídos pela insolvente, destinadas a comercialização, representam o produto da actividade da empresa, integram o seu património, mas não a organização empresarial estável dos factores de produção com vista ao exercício daquela actividade.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça[1]:

I.

Por sentença já transitada em julgado, foi declarada, em 21.11.2008, a Insolvência de AA, Lda.

Foram apreendidos para a Massa Insolvente apenas bens imóveis.

Foi instaurado o processo apenso de reclamação de créditos, tendo, no despacho saneador sido reconhecidos e verificados os créditos incluídos na lista apresentada pelo Exmo Administrador cuja titularidade, montantes e demais condições não foram objecto de impugnação.

Prosseguiu esse processo para audiência de julgamento, no que tange à impugnação dos créditos de:

- BB;

- Herança Aberta por óbito de CC

- DD,

para apurar dos pressupostos da existência da garantia de direito de retenção, dos créditos invocados, e dos créditos de:

- EE;

- FF;

- GG; e

- HH,

para apurar os pressupostos da existência do privilégio imobiliário especial sobre determinados imóveis apreendidos para a massa insolvente.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença que decidiu:

- aqueles primeiros créditos gozam da garantia do direito de retenção, tendo sido graduados em primeiro lugar, à frente do crédito hipotecário do credor CII;

- os demais créditos beneficiam do privilégio imobiliário especial estabelecido no art. 377º nº 1 b) do C. Trabalho quanto aos imóveis apreendidos para a massa insolvente que constam das verbas 1 a 14 e 28 a 35.

Discordando desta decisão, apelaram os credores CII e JJ, Lda, tendo a Relação, por acórdão unânime, decidido:

"B -  Em relação ao recurso interposto pela reclamante Caixa II:

- Julga-se parcialmente procedente a apelação e, consequentemente, revoga-se a sentença recorrida na parte em que nela se graduam em primeiro lugar os créditos reclamados relativos as verbas nºs 28, 29, 30, 31, 32 e 34, 33 e 35, créditos esses sob os números 2, 14, 22 e 30, titulados por HH, EE, FF e GG;

C - Em relação ao recurso interposto por JJ, Lda:

- Julga-se procedente o recurso em causa e, consequentemente, revoga-se a sentença recorrida na parte em que nela se graduam em primeiro lugar os créditos dos trabalhadores reclamados sob os números 2 (EE) 14 (FF); 22 (GG) e 30 (HH)".

Ainda inconformada, a CII pediu revista excepcional, com fundamento no art. 672º nº 1 c) do CPC (oposição de acórdãos quanto à questão do direito de retenção, por existir uma situação de dupla conformidade), defendendo que o acórdão recorrido deve ser revogado e substituído por outro que gradue o seu crédito hipotecário em 1º lugar, no que respeita às oito fracções hipotecadas.

Os credores EE, FF, GG e HH interpuseram revista normal, pugnando pela revogação do acórdão recorrido e pedindo que se lhes reconheça o privilégio imobiliário especial sobre os imóveis apreendidos, mantendo-se o decidido na 1ª instância.

A Formação a que alude o art. 672º nº 3 do CPC não admitiu a revista excepcional pedida pela CII.

Assim, cumpre apreciar aqui apenas o recurso de revista interposto pelos credores EE, FF, GG e HH.

Nesse recurso, foram apresentadas estas conclusões:
1. Os créditos laborais reclamados pelos recorrentes beneficiam do privilégio imobiliário especial previsto no art. 377.º, n.º 1, aI. b) do Código de Trabalho, aprovado pela lei 99/2003 de 27/08, em vigor à data da declaração de insolvência, sobre os imóveis apreendidos e identificados nos autos.
2. A conclusão de que os créditos dos recorrentes gozam do aludido privilégio, não contende com a letra, nem o espírito da lei, antes se conformando com ambos, não carecendo que da mesma se faça uma interpretação extensiva, como se considerou no acórdão recorrido.
3. Com efeito, in casu, no que tange à conexão legalmente exigida entre a actividade laboral dos recorrentes e os imóveis sobre os quais incide o privilégio imobiliário especial que se reclama, a mesma verifica-se de forma clara e inequívoca, quer em termos funcionais, quer em termos naturalísticos.
4. Isto é, quer se entenda, como vem fazendo a maioria da jurisprudência, que o legislador teve em vista a ligação funcional do trabalhador a determinado estabelecimento ou unidade produtiva, sendo apenas necessário que o imóvel em questão esteja afecto à actividade empresarial do devedor/insolvente.
5. Ou mesmo quando se entenda ser necessária uma ligação material ao imóvel onde o trabalhador prestou efectivamente a sua actividade, considerando que o legislador teve em vista um concreto e individualizado local de trabalho.
6. Com efeito, ficou provado que os recorrentes exerceram a sua actividade, nos imóveis apreendidos, durante os últimos cinco anos anteriores à declaração de insolvência, de forma consecutiva e ininterrupta, sob as ordens, direcção e fiscalização da insolvente.
7. Pelo que dúvidas não subsistem que o privilégio imobiliário especial que in casu se pretende ver reconhecido, incide sobre imóveis do empregador nos quais os trabalhadores prestaram a sua actividade, verificando-se a conexão legalmente exigida.
8. Tendo de entender-se que com o referido preceito legal, o legislador terá pretendido abarcar, em sentido amplo, todos os imóveis da insolvente em que os trabalhadores tenham prestado a sua actividade.
9. Pois se assim não fosse e o legislador tivesse querido excluir do âmbito de aplicação do privilégio em análise, os imóveis advenientes para as empresas do exercício da sua actividade, teria contemplado expressamente essa exclusão ou dado ao preceito em causa diferente redacção que apontasse claramente nesse sentido.
10. Não podendo ignorar-se que os imóveis construídos para revenda, constituiriam a fonte de obtenção de novos capitais, de refinanciamento da empresa, e, por isso, o suporte da continuidade do seu ciclo de actividade de construção, sendo, por isso, parte integrante do património afecto à actividade empresarial da insolvente.
11. A interpretação que sufragamos, é a mais consentânea com a letra e o espírito da lei e aquela que melhor se coaduna com a protecção do direito fundamental dos trabalhadores à sua remuneração e à sua sobrevivência condigna.
12. Com efeito, interpretação diversa levaria inelutavelmente, na prática, a que a grande maioria dos trabalhadores da construção civil não beneficiasse do referido privilégio imobiliário, o que constituiria uma intolerável discriminação destes trabalhadores, não justificada por qualquer razão válida e legalmente sustentada.
13. Ao decidir que o crédito dos recorrentes não beneficia do privilégio imobiliário especial contemplado na aI. b) do n.º 1 do art. 377.º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 99/2003 de 27/08, violou o Tribunal recorrido, por deficiente interpretação e aplicação, o referido preceito legal.
14. Devendo por isso ser revogado o douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, subsistindo a sentença da 1ª instância, que reconheceu gozarem os créditos dos recorrentes do aludido privilégio.
15. A sentença sob recurso é recorrível, atendendo a que a causa tem valor superior à alçada do Tribunal de que se recorre e a decisão impugnada é totalmente desfavorável aos recorrentes (cfr. art. 629.º, n.º 1 do CPC).
Termos em que deve ser revogado o douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto e substituído por outro que reconheça o privilégio creditório imobiliário especial sobre os imóveis apreendidos e, em consequência, gradue em primeiro lugar os créditos dos aqui recorrentes.

Contra-alegaram os recorridos JJ, Lda, DD, BB e Herança aberta por óbito de CC e a CII, tendo (com excepção desta) defendido que o recurso não é admissível, nos termos do art. 14º nº 1 do CIRE, por o regime restritivo aí previsto abranger os restantes apensos e incidentes (para além do processo de insolvência e dos embargos opostos à sentença de declaração de insolvência referidos no preceito).

Após os vistos legais, cumpre decidir.

II.

Questões a resolver:

- Admissibilidade do recurso;

- Se os créditos reclamados por EE (2), FF (14), GG (22) e HH (30), ex-trabalhadores da insolvente, beneficiam de privilégio imobiliário especial sobre os imóveis apreendidos (fracções autónomas de edifícios construídos pela insolvente – verbas 1 a 14 e 28 a 35).

III.

Vêm provados os seguintes factos:

A) Para a Massa insolvente de “AA Lda”, foram aprendidos entre outros, os seguintes bens imóveis:

A1) Fracções AT, AA; BC, J, chão do edifício “...”, sito na Rua .../ Dr. ..., EM …, concelho de ..., descrito na CRP de ..., actual e respectivamente sob as fichas n.º …./…-AT, …/…-AA, …/…-BC, …/…-J.

A2) Fracção C do edifício “...”, sito na Rua .../ Dr. ..., Em ...,, concelho de ..., descrito na CRP de ..., actualmente sob a ficha n.º …/…- C.

A3) Fracção E do edifício “...”, sito na Rua .../ Dr. ..., Em ...,, concelho de ..., descrito na CRP de ..., actualmente sob a ficha n.º …/…- E.

A4) Fracção A espaço comercial para comercio e restauração, correspondente ao res do chão do edifício “...”, sito na Rua .../ Dr. ..., EM ..., concelho de ..., descrito na CRP de ..., actualmente sob a ficha n.º …/…- A, e inscrito na matriz predial sob o n.º … – A

B) No, e para o exercício da sua actividade, a Insolvente, “AA Lda, representada por KK, celebrou com BB e BB, uma permuta, de uma parcela de terreno para construção urbana, com 3300 m2, sita no gaveto da Rua do ... com a Rua Dr. …, freguesia de ....

C) Por aquele acordo, outorgado em 14.9.2000, por escritura publica outorgada no cartório notarial de ..., a insolvente propunha-se a construir, como construiu, um prédio urbano constituído por dois blocos, a designar por Bloco N e Bloco P, localizados respectivamente a sul e a norte do terreno onde vão ser implantados, com cave, rés do chão, 1.º, 2.º, 3.º, 4.º, 5.º e recuado, que posteriormente iria ser afecto ao regime da propriedade horizontal, e em troca da referida parcela, receberiam desta, como bens futuros, um espaço comercial e três habitações de tipologia T2, a definir como fracções autónomas, com letra a designar quando da constituição do titulo executivo da propriedade horizontal.

D) Em 14 de Setembro de 2000, foi celebrado, por documento escrito e assinado por ambas as partes, e com ambas as assinaturas reconhecidas, como aditamento à referida escritura, mediante o qual o Insolvente, “AA Lda, representado por KK, prometeu vender a BB e BB, e estes prometeram comprar, uma habitação tipo T3, situada no 5.º piso do bloco A, actualmente correspondente à fracção AT referida em A); uma habitação tipo T3, situada no 2.º piso do bloco B, actualmente correspondente à fracção AA referida em A); uma habitação tipo T3, situada no 6.º piso do bloco B, actualmente correspondente à fracção BC referida em A); e uma loja comercial situada no 1.º piso do Bloco B, correspondente à fracção J referida em A).

E) O preço estipulado para a compra foi de €420.000,00, sendo que a quantia de € 401.250,00, foi paga a titulo de sinal e principio de pagamento no momento do acordo referido em D), e o remanescente do preço, 14.750,00 seria pago no acto de celebração da escritura definitiva.

F) Em 30.9.2008, os reclamantes, BB, LL, e BB, intentaram contra AA Companhia, Lda, uma acção declarativa sob a forma de processo ordinário, pedindo fosse decretada a venda das fracções objecto dos acordos referidos em C), D) e E), livres de ónus e encargos; na impossibilidade de execução específica a condenação da Ré a restituir o sinal em dobro; e ainda na impossibilidade de execução específica, a condenação da ré a pagar à A a quantia correspondente ao valor dessas fracções na actualidade.

G) No e para o exercício da sua actividade, a Insolvente, “AA Lda, representada por KK, celebrou com BB um acordo, celebrado, por documento escrito e assinado por ambas as partes, mediante o qual o Insolvente, “AA Lda, representado por KK, prometeu vender a BB, e este prometeu comprar: uma fracção para comércio e serviços, designada pela letra C, com 128 m2, com logradouro de 59 m2, actualmente correspondente à fracção C referida em A) pelo preço de € 120.000,00; e uma fracção designada pela letra E, com 43 m2, actualmente correspondente à fracção E, referida em A), pelo preço de € 42.000,00, ambas livres de ónus e encargos.

H) Ficou ainda estipulado no acordo ref. em G) que BB entregaria naquela data a quantia de € 127,000,00 e o restante preço, ou seja 34.500,00 seria pago quando realização da escritura de compra e venda.

I) Em 7.4.2005, DD, celebrou com AA, representado por KK, um acordo mediante o qual esta prometeu vender aquele o espaço comercial, fracção A, para comercio ou restauração, com 179 m2, mais 63m2 de terraço exterior, no res do chão do Edifício “... que se encontrava em construção e respeitante à fracção A identificada em A), pelo preço de € 140.000,00 Euros, a pagar da seguinte forma:

a) 125.000,00 já liquidados através de materiais fornecidos pela requerente para a obra de construção do edifício ..., nomeadamente através de entrega de matérias da sua especialidade de serralharia, tais como chapas, portas, janelas, barras de alumínio, remates de peitoril, aros;

b) 15.000,00 seriam pagos através de materiais a fornecer pela requerente para a obra de construção do edifício ..., e que esta se comprometeu a executar, mediante preço que constaria das respectivas facturas, de acordo com os preços normalmente por si praticados para a sua actividade.

J) Com o andamento e continuação dos trabalhos, DD, forneceu os materiais referidos supra em b) da alínea I)

L) Ficou ainda estipulado por ambos, no acordo referido em I) que a escritura definitiva seria marcado pelo promitente comprador, logo que se encontrasse na posse da respectiva licença de utilização, tendo 30 dias para o efeito, devendo avisar o promitente vendedor com antecedência de 8 dias, do dia hora e cartório notarial onde seria realizada.

M) Sobre as fracções identificadas em A) incidem duas hipotecas voluntárias registadas em 13.10.2000, e 6.11.2002, e ainda arresto a favor do BMM, Banco MM, SA, este registado em 31.3.2008.

N) Em meados de 2005, KK, na qualidade de representante de “AA, Lda, entregou as chaves das fracções destinadas a habitação identificadas em D) a BB e BB.

O) E em meados de 2007, KK, na qualidade de representante de “AA, Lda, entregou as chaves das fracção J, destinadas a comércio identificada em D) a BB e CC.

P) Para que aqueles procedessem à limpeza e mostrassem a quem estivesse interessado em as arrendar/ vender.

Q) Assim, BB, foi, relativamente às mesmas celebrando contratos de arrendamento, no pressuposto de que as escrituras iriam ser celebradas brevemente.

R) E sempre insistindo com a celebração da escritura definitiva dos mesmos.

S) A insolvente ia sempre protelando a realização das escrituras, alegando que iria realizar dinheiro com a venda de outras fracções, e assim poder libertar as id. em A) das hipotecas, para o efeito.

T) E em meados de 2007, KK, na qualidade de representante de “AA, Lda, entregou as chaves das fracção C e E referidas em G) a BB.

U) Para que aquele procedesse à limpeza e mostrasse a que estivesse interessado em as arrendar/ vender.

V) Assim, BB, foi, relativamente às mesmas (fracção C) e E)), celebrando contratos de arrendamento, no pressuposto de que as escrituras iriam ser celebradas brevemente.

X) E sempre insistindo com a celebração da escritura definitiva dos mesmos.

Z) A insolvente ia sempre protelando a realização das escrituras, alegando que iria realizar dinheiro com a venda de outras fracções, e assim poder libertar as id. em A) das hipotecas, para o efeito.

AA) Na data do acordo referido em I) (7.4.2005), o ora insolvente entregou a DD a chave as chaves da fracção A (loja), permitindo-lhe que este pudesse aí fazer as obras que entendesse por convenientes, não podendo opor-se ou de qualquer modo impedir, interromper prejudicar o andamento desses trabalhos.

BB) Desde Abril de 2005, até hoje, ininterruptamente, DD passou a utilizar a fracção A, tendo aí executado ..., divisórias, e aplicou na cozinha banca e móveis.

CC) DD colocou anúncios com vista ao eventual arrendamento dessa fracção A) que só ele ocupava e utilizava.

DD) Em 5 de Dezembro de 2005, DD prometeu arrendar a fracção A à sociedade NN, Unipessoal, Lda, que entrou imediatamente em vigor, tendo aquele começado de imediato a pagar as rendas.

EE) Por isso, desde esse dia até hoje, DD, começou a receber a quantia mensal de € 750,00 até Fevereiro de 2008, tendo após em Setembro de 2011 arrendado essa fracção a um terceiro, recebendo a quantia mensal de € 400,00 também a titulo de rendas desse estabelecimento, no qual foi implantado um estabelecimento de salão de chá e snack Bar.

FF) Desde Dezembro de 2005 Fevereiro de 2008, ininterruptamente, a sociedade NN, Lda, mobilou e recheou a fracção A, instalou o estabelecimento e aí vendeu refeições e produtos de pastelaria e cafetaria.

GG) É de conhecimento de todos os condóminos do edifício e da própria administração de condomínio, que apenas se dirige a DD, para tratar de assuntos relacionados com a fracção.

HH) É DD, quem paga o IMI respeitante à fracção A).

II) E, que através de NN paga luz e agua ali consumidas.

JJ) A licença de utilização respeitante à fracção A foi emitida em 1.9.2008, a partir desta data, DD, foi sempre insistindo com a celebração da escritura definitiva do mesmo.

LL) Mas a insolvente comunicou-lhe que não o podia fazer, porque não tinha capacidade financeira para proceder ao distrate da hipoteca.

MM) Durante os dois últimos anos anteriores ao seu despedimento, EE exerceu funções de carpinteiro numa obra executada pela insolvente, em …, ..., no prédio sito no Lugar …, inscrito na matriz sob o art.º 548 e descrito na CRP sob a ficha …/….

NN) De forma consecutiva e ininterrupta, sob as ordens, direcção e fiscalização da insolvente até ao seu despedimento que ocorreu em 14.3.2008.

OO) Imediatamente antes de ser colocado nessa obra, pelo menos nos anos de 2004 e 2005, EE exerceu funções de carpinteiro numa obra executada pela insolvente, cita em ..., no prédio sito na Rua ..., inscrito na matriz sob o art.º … e descrito na CRP sob a ficha …/….

PP) De forma consecutiva e ininterrupta, sob as ordens, direcção e fiscalização da insolvente, deixando o imóvel pronto a ser habitado.

QQ) Durante os dois últimos anos anteriores ao seu despedimento, que ocorreu em 14.3.2008, HH exerceu funções de trolha numa obra executada pela insolvente, em ..., ..., no prédio sito no Lugar …, inscrito na matriz sob o art.º … e descrito na CRP sob a ficha …/….

RR) De forma consecutiva e ininterrupta, sob as ordens, direcção e fiscalização da insolvente.

SS) Imediatamente antes de ser colocado nessa obra, nos anos de 2004 e 2005, HH exerceu funções de trolha, numa obra executada pela insolvente, sita em ..., no prédio sito na Rua ..., inscrito na matriz sob o art.º … e descrito na CRP sob a ficha …/….

TT) De forma consecutiva e ininterrupta, sob as ordens, direcção e fiscalização da insolvente, deixando o imóvel pronto a ser habitado.

UU) Durante os dois últimos anos anteriores ao seu despedimento, que ocorreu em 14.3.2005, FF exerceu funções de envernizador numa obra executada pela insolvente, em ..., ..., no prédio sito no Lugar ..., inscrito na matriz sob o art.º … e descrito na CRP sob a ficha …/….

VV) De forma consecutiva e ininterrupta, sob as ordens, direcção e fiscalização da insolvente.

XX) Imediatamente antes de ser colocado nessa obra, nos anos de 2004 e 2005, FF exerceu funções de envernizador, numa obra executada pela insolvente, sita em ..., no prédio sito na Rua ..., inscrito na matriz sob o art.º … e descrito na CRP sob a ficha …/….

ZZ) De forma consecutiva e ininterrupta, sob as ordens, direcção e fiscalização da insolvente, deixando o imóvel pronto a ser habitado.

AAA) Durante os dois últimos anos anteriores ao seu despedimento, que ocorreu em 14.3.2005, GG exerceu funções de servente numa obra executada pela insolvente, em ..., ..., no prédio sito no Lugar ..., inscrito na matriz sob o art.º … e descrito na CRP sob a ficha …/….

BBB) De forma consecutiva e ininterrupta, sob as ordens, direcção e fiscalização da insolvente.

CCC) Imediatamente antes de ser colocado nessa obra, nos anos de 2004 e 2005, GG exerceu funções de servente, numa obra executada pela insolvente, sita em ..., no prédio sito na Rua ..., inscrito na matriz sob o art.º … e descrito na CRP sob a ficha …/….

DDD) De forma consecutiva e ininterrupta, sob as ordens, direcção e fiscalização da insolvente, deixando o imóvel pronto a ser habitado.

IV.

1. Nas contra-alegações, os Recorridos suscitaram a questão da não admissibilidade do presente recurso, face ao disposto no art. 14º nº 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), entendendo que o regime restritivo aí previsto se estende a todas as acções e incidentes processados por apenso ao processo de insolvência.

No despacho liminar já se aflorou a questão, preconizando-se um entendimento diferente, que é perfilhado, aliás, por esta 6ª Secção[2].

É esta também a posição conhecida da doutrina[3].

Crê-se, com efeito, que será esta a melhor interpretação da norma citada, desde logo, considerando a clareza do seu elemento literal, os trabalhos preparatórios (elemento histórico), o contexto da norma (elemento sistemático), a sua ratio e o fim visado pelo legislador (elemento racional ou teleológico).

É sabido que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas esta constitui naturalmente o seu ponto de partida, eliminando aqueles sentidos que não tenham aí qualquer correspondência ou dando maior apoio a um dos sentidos possíveis[4]; o objectivo é reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, devendo presumir-se que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (art. 9º nºs 1 e 3 do CC).

Pois bem, perante a letra da norma citada, é evidente que a limitação de recurso para o STJ aí prevista se aplica apenas ao processo de insolvência – não havendo razões para excluir desse regime os incidentes nele tramitados – e aos embargos opostos à sentença de declaração de insolvência.

Ora, sendo os embargos deduzidos por apenso ao processo de insolvência (art. 41º do CIRE), tem de reconhecer-se que o legislador teria escolhido uma forma bem pouco adequada de se exprimir se pretendesse abranger os demais apensos desse processo.

Com este objectivo, mais apropriada seria a redacção prevista no correspondente artigo (14º nº 1) do Anteprojecto, em que se aludia ao "processo de insolvência e seus apensos", redacção que não foi a consagrada no preceito definitivo.

Parece-nos realmente relevante comparar a redacção das correspondentes normas do Anteprojecto do CIRE com aquelas que vieram a ser consagradas no diploma definitivo.

Previa-se ali no art. 14º:
1. No processo de insolvência e seus apensos, não é admitido recurso…
2. Em todos os recursos interpostos no processo, o prazo…

Agora, estabelece-se:
1. No processo de insolvência, e nos embargos opostos à sentença de declaração de insolvência, não é admitido recurso…
2. Em todos os recursos interpostos no processo ou em qualquer dos seus apensos, o prazo…

A alteração da redacção destas correspondentes normas revela uma clara inflexão do legislador e indicia que houve intenção de restringir a limitação de recurso prevista no art. 14º nº 1 do CIRE apenas ao processo de insolvência e a um único apenso – os embargos opostos à sentença de declaração de insolvência.

A alteração do nº 1 parece inequívoca, para tal concorrendo também a alteração do nº 2, ao dispor sobre o prazo para alegações para "todos os recursos no processo ou em qualquer dos seus apensos".

Como parece evidente, se fosse propósito do legislador limitar o recurso para o STJ em qualquer caso, isto é, não apenas nos casos expressamente contemplados no nº 1, seria esta (a do nº 2) uma forma bem clara de o dizer, sem qualquer necessidade de se exprimir aí de modo diferente (quando pretenderia dizer o mesmo).

Nem haveria necessidade de nos dois números do artigo definir de forma diferente o âmbito da respectiva aplicação, bastando (como ocorria no Anteprojecto) que o legislador o dissesse no nº 1 (processo de insolvência e seus apensos), evitando (nesse caso) uma inútil repetição no nº 2.

É que a alteração deste nº 2 (anteriormente não aludia a "apensos") apenas se justifica, como parece evidente, como consequência da alteração, acima referida, introduzida no nº 1, o que permite concluir, como dissemos, que houve realmente a intenção de restringir o regime que veio a ser consagrado no nº 1 aos processos aí expressamente referidos.

Como ensinava Manuel de Andrade[5] existem casos em que o texto da lei só permite uma certa interpretação, aludindo à "impossibilidade de fugir à interpretação literal quando os termos da lei não toleram mais do que um certo sentido, e por muito que este pareça injusto e inadaptado às exigências da vida".

No caso, perante o texto dos nºs 1 e 2 do citado art. 14º, parece-nos que o sentido literal será o que traduz o verdadeiro "pensamento legislativo". Para tal concorre, para além do que se disse, a referência em ambas as previsões ao "processo de insolvência" e a especificação no nº 1 de um dos seus apensos (os embargos à sentença de declaração de insolvência), a par da referência genérica no nº 2 "a qualquer dos seus apensos".

Como se referiu, se a intenção fosse a de restringir a admissibilidade do recurso de revista em todos os apensos, a redacção que constava do Anteprojecto seria a adequada e não teria havido necessidade de a alterar.

Entender de forma diferente equivaleria a presumir uma patente inabilidade do legislador na forma como se exprimiu, contrariando a presunção consagrada no citado art. 9º nº 3.

De todo o modo, parece-nos que a interpretação que preconizamos se coaduna com a razão de ser da norma e com o fim visado pelo legislador ao elaborá-la.

É sabido que o regime instituído no citado art. 14º nºs 1 e 2 se justifica por uma manifesta preocupação de celeridade processual (cfr. o carácter urgente consagrado no art. 9º); a limitação do direito de recurso consagrada no nº 1 funda-se também na declarada necessidade de rápida estabilização das decisões judiciais (cfr. ponto 16 do Preâmbulo do DL 53/2005, de 18/3).

Neste âmbito, certamente que o legislador terá sido mais sensível à exigência de uma célere definição da situação de insolvência que estiver em questão; assim se explica o regime restritivo previsto no art. 14º nº 1, limitado ao processo de insolvência e aos embargos opostos à sentença de declaração de insolvência, ou seja, os processos em que está em causa tal definição.

Improcede, por conseguinte, a questão prévia da inadmissibilidade do recurso suscitada pelos Recorridos.

2. Importa ainda, preliminarmente, precisar a questão que temos para decidir.

É que, atendendo ao modo como os Recorrentes terminam as conclusões do recurso, pedindo que se lhes reconheça o privilégio creditório imobiliário especial sobre os imóveis apreendidos, poderia pensar-se que pretenderiam estender esse privilégio a todos esses imóveis.

Não é, nem pode entender-se, assim.

Mesmo sem considerar a natureza especial do privilégio, em que poderia esbarrar tal pretensão, cumpre notar que, na sentença da 1ª instância, se reconheceu o privilégio imobiliário dos Recorrentes sobre os imóveis das verbas 1 a 14 e 28 a 35, tendo os respectivos créditos sido graduados em conformidade.

Na Relação, foram julgados procedentes os recursos interpostos por CII e Consulteam, tendo sido revogada aquela decisão, no que concerne ao privilégio sobre os referidos imóveis.

Note-se que os Recorrentes não impugnaram a decisão da 1ª instância, no que respeita ao outro imóvel apreendido – verba 22 (sede da insolvente).

Assim, independentemente do que se possa entender a respeito do privilégio sobre este imóvel (e era bem possível uma decisão diferente, como foi reconhecido a outros trabalhadores e como decorre do que adiante se dirá), os efeitos do julgado, nessa parte, não podem ser prejudicados pela decisão do presente recurso, estando este delimitado objectivamente pela decisão recorrida (art. 635º nºs 2 e 5 do CPC).

E a isso se atém, no fundo, a pretensão dos Recorrentes, como decorre do termo das suas alegações (cfr. também a conclusão 14ª), ao pedirem que seja revogado o douto acórdão recorrido (…), subsistindo a sentença da 1ª instância, que reconheceu gozarem os créditos dos recorrentes do aludido privilégio.

O que aqui se discute é, pois, a existência do privilégio imobiliário dos Recorrentes sobre os referidos imóveis – verbas 1 a 14 e 28 a 35.

Passemos então a esta questão.

3. Na fundamentação do Acórdão recorrido escreveu-se a este propósito:

"(…) Tanto quanto resulta dos autos e dos factos dados como provados a insolvente tinha a sua sede na Rua Dr. …, …, … (imóvel apreendido sob o n° 22) e tinha por escopo a construção civil de imóveis para venda, sendo que os credores EE, FF, GG e HH, exerceram as funções de carpinteiro, envernizador, servente e trolha, respectivamente, em obras executadas pela insolvente sitas em ... e ..., ..., tudo sob as ordens, direcção e fiscalização da insolvente - cfr. alíneas MM a CCC dos factos dados como provados - cfr. fls. 215 a 217.

Com base nestes factos, e com os fundamentos elencados a fls 225 a 228, a Sra Juíza concluiu que os créditos dos aludidos trabalhadores da insolvente gozam do privilégio imobiliário especial previsto no artigo 377º do Código de Trabalho - aprovado pela Lei 99/2003, de 27/08 e 333º do C.T. - aprovado pela Lei nº 7/2009 de 12/02.

Salvo o devido respeito, não perfilhamos este entendimento, isto pelos motivos que, de imediato, passamos a expor.

Segundo preceitua o artigo 377º do Código de Trabalho "os créditos do trabalhador emergente de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação gozam dos seguintes privilégios creditórios:

a) Privilégio mobiliário geral

b) Privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade. (…)

Ora, face a esta disposição legal também entendemos que com ela o legislador apenas teve em vista abranger os imóveis ou instalações em que está sedeado o estabelecimento do devedor/insolvente e que, por isso, fazem parte integrante da organização empresarial deste.

"In casu" e tanto quanto se extrai dos factos dados como provados, os credores acima referenciados apenas exerceram a sua actividade laboral na construção de imóveis (fracções) que o insolvente destinava à venda.

Por conseguinte, e em função destes dados de facto temos, para nós, que o seu crédito não goza do privilégio conferido pelo nº 1 al b) do artigo 377° do C. Trabalho, pois que, no fundo e na sua essencialidade, as fracções onde exerceram actividades constituem tão só o produto ou o resultado da organização empresarial da insolvente.

Na verdade, as ditas fracções não faziam e não fazem parte da organização empresarial da insolvente, entendendo-se esta como um conjunto de factores de produção - natureza, capital, pessoa e bens - que, conectadas e interligadas entre si compõem um complexo que tem por fim ou objecto o exercício de determinada actividade económica.

Isto é o que se depreende, por exemplo, do disposto nos artigos 5° do CIRE e 230º nº 6 do Código Comercial.

Por outro lado, e em abono desta tomada de posição, anota-se que o texto de lei – nº 1 al. b) do artigo 377º do Código de Trabalho é claro e explícito ao exigir uma ligação ou conexão entre o privilégio e o bem por ele referenciado, sendo certo que tal norma, como norma excepcional que é, não comporta, por essa circunstância uma interpretação extensiva de molde a que com ela se conclua que nela também estão incluídos os créditos acima mencionados.

Na verdade, e segundo advertem os Profs Pires de Lima e A. Varela in "Noções Fundamentais do Direito Civil", 1°, 6° ed., pago 76 "as normas legais podem decidir-se em dois grupos: as gerais e as excepcionais".

"As primeiras são as que correspondem a princípios fundamentais do sistema jurídico e, por isso, constituem o regime geral do tipo de relações que disciplinam: as segundas são as normas que, regulando um sector restrito de relações com uma configuração especial, consagram para o efeito uma disciplina oposta à que vigora, para o comum das relações, do mesmo tipo, fundado em razões especiais, privativas daquele sector de relações".

A ser assim, embora as normas excepcionais admitam uma interpretação extensiva, nos termos do artigo 11° do C. Civil, a verdade é que essa interpretação sé é possível caso o intérprete conclua que o pensamento legislativo coincide com um dos sentidos contidos na Lei; segundo os critérios previstos no artigo 9° do mesmo diploma legal.

Ora, e como já tivemos oportunidade de salientar, quer a letra da lei quer a definição conceptual e legal do que é uma empresa e quais os elementos essenciais que compõem o seu complexo organizacional, isto com vista à produção de determinados bens, afastam, desde logo, essa interpretação e daí que no caso em apreço não se possa concluir, com base na disposição prevista no nº 1 al. b) do artigo 377° do Código de Trabalho, que os créditos em discussão gozem do privilégio imobiliário especial ali fixado".

Crê-se que se decidiu bem.

À data da declaração de insolvência proferida nestes autos – 21.11.2008 – estava em vigor o regime instituído pelo art. 377º do C. Trabalho (arts. 3º e 21º nº 2 e) da Lei 99/2003, de 29/7) que passou a reconhecer aos créditos dos trabalhadores, emergentes de contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, os seguintes privilégios creditórios:

a) privilégio mobiliário geral;

b) privilégio imobiliário especial sobre os imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade[6].

Foi assim revogado o regime anterior (que provinha das Leis 17/86, de 14/6 e 96/2001, de 20/8), eliminando-se o privilégio imobiliário geral de que gozavam os créditos laborais, conformando-o à natureza especial que lhe é própria (cfr. art. 735º nº 3 do CC) e passando, como tal, a beneficiar do regime de oponibilidade a terceiros previsto no art. 751º do CC, na redacção dada pelo DL 38/2003, de 8/3 (os privilégios imobiliários especiais são oponíveis a terceiros que adquiram o prédio ou um direito real sobre ele e preferem á consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores).

O referido privilégio imobiliário passou a abranger os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador exercia a sua actividade profissional, exigindo-se assim uma conexão entre esta actividade e o prédio onde a mesma era exercida[7].

Afigura-se-nos, porém, que não releva uma ligação ou conexão com um qualquer imóvel onde os trabalhadores tenham exercido funções, importando que esse imóvel faça parte integrante da empresa e de forma estável.

A empresa é, com efeito, "a unidade jurídica fundada em organização de meios que constitui instrumento de exercício relativamente estável e autónomo de uma actividade de produção para a troca"[8].

Do elenco de empresas apresentado no art. 230º do C. Comercial, como nos diz Pereira de Almeida, "ressalta a conjugação de factores de produção – pessoas e bens –, o exercício de actividades económicas nos diversos sectores – primário, secundário e terciário –, e a existência de um complexo organizacional estável"[9].

Assim, para além da ligação funcional do trabalhador ao imóvel, decorrente do facto de o mesmo aí ter exercido funções, deve esse imóvel integrar de forma estável o complexo organizacional do empregador.

Não é essa, porém, a situação das fracções de edifícios construídos pela empresa insolvente e que esta destinava a comercialização: embora constituindo, temporariamente, o local de trabalho de certos trabalhadores, mais não representam essas fracções que o resultado da actividade da empresa; integram o seu património, mas não a unidade ou organização produtiva da empresa.

Não é nesses edifícios, onde os trabalhadores ocasional e temporariamente exerceram funções, que a empresa tem centrada a sua organização, nem será aí, em princípio, que se situa o local de trabalho definido contratualmente (art. 154º do C. Trabalho[10]).

Como se afirma no Acórdão deste Tribunal de 23.09.2010 "numa empresa de construção civil, os imóveis que lhe advêm como resultado da actividade que lhe é própria são o produto da organização empresarial, mas não são um elemento que a integra. Por outras palavras, resultam do estabelecimento do empregador, mas dele não fazem parte. Apesar de, após a sua conclusão pertencerem ao património do empregador, não significa isto que, só por tal, passem a englobar o seu estabelecimento. O destino dos imóveis é até, normalmente outro, como seja a sua comercialização. E de acordo com a letra e o espírito do art. 377º do C. Trabalho, o que o legislador pretendeu foi que o privilégio em causa versasse imóveis «nos quais» o trabalhador presta a sua actividade".

Tem sido esta, também, a jurisprudência seguida nas Relações, sublinhando-se que "a citada conexão entre a actividade profissional do trabalhador e os imóveis do seu empregador deve ser entendida em termos funcionais e não naturalísticos. Isto é, quando a lei diz que o privilégio imobiliário incide sobre os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade está a referir-se à ligação funcional do trabalhador a determinado estabelecimento ou unidade produtiva e não propriamente à localização física do seu posto de trabalho"[11].

"O legislador teve em mente, não um concreto ou individualizado local de trabalho, mas os imóveis em que esteja implantado o estabelecimento para o qual o trabalhador prestou a sua actividade, independentemente de essa actividade ter sido aí desenvolvida ou no exterior"[12].

Numa empresa de construção civil integram a sua organização empresarial o edifício ou edifícios onde, em regra, se situa a sua sede e onde funcionam os escritórios, armazéns, estaleiros, etc., e é sobre esse imóvel ou imóveis, que estão afectos à actividade da empresa, que pode incidir o privilégio imobiliário especial previsto no art. 377º nº 1 b) do C. Trabalho. Não sobre fracções de edifícios construídos pela empresa insolvente que, integrando como dissemos o património desta, não representam mais do que o produto da actividade por ela desenvolvida, não fazendo parte da organização empresarial estável dos factores de produção com vista ao exercício daquela actividade.

Só este entendimento permite, na verdade, evitar uma injustificada discriminação entre trabalhadores de uma mesma empresa, como acabou por se verificar no caso (em consequência da decisão da 1ª instância, em parte não impugnada), não se compreendendo, nem sendo aceitável, nesta situação – empresa com sede e demais instalações permanentes da sua organização localizadas num único imóvel –, a distinção entre os trabalhadores em função da actividade que cada um desempenha.

Os bens imóveis sobre que incide o privilégio devem integrar de uma forma estável a organização empresarial da insolvente a que pertencem os trabalhadores; devem estar afectos à actividade prosseguida pela empresa e, como tal, à actividade de cada um desses trabalhadores, independentemente das funções concretamente exercidas por estes (ressalvado o caso de integrarem estabelecimentos diferentes, o empregado de escritório, o motorista e o carpinteiro ou outro operário das obras, vinculados contratualmente a uma mesma empresa da construção civil, não devem ser tratados de forma diferente no tocante ao aludido privilégio).

V.

Em face do exposto, nega-se a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas pelos recorrentes.

    Lisboa, 13 de Novembro de 2014

Pinto de Almeida (Relator)

Nuno Cameira

Sousa Leite

________________________
[1] Proc. nº 1444/08.5TBAMT-A.P1.S1
Rel. F. Pinto de Almeida (R. 29)
Cons. Nuno Cameira; Cons. Sousa Leite
[2] Cfr. Acórdãos de 25.03.2014 e de 17.06.2014, acessíveis em www.dgsi.pt, como os demais adiante citados.
[3] Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, 2ª ed., 130.
[4] Cfr. Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso legitimador, 182.
[5] Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis, 28 (incluindo a nota 3)
[6] Este regime foi entretanto alterado, no que concerne ao privilégio imobiliário previsto na al. b), dispondo agora no art. 333º do C. Trabalho (revisto pela Lei 7/2009, de 12/2) que esse privilégio incide sobre o bem imóvel do empregador no qual o trabalhador presta a sua actividade.
[7] Cfr. Salvador da Costa, O Concurso de Credores, 3ª ed., 318.
[8] Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, Vol. I, 9ª ed., 281; e Da Empresarialidade – As Empresas no Direito, 304.
[9] Sociedades Comerciais, 3ª ed., 19.
[10] Actual art. 193º.
[11] Acórdão da Relação do Porto de 22.10.2012.
[12] Acórdão da Relação de Coimbra de 12.06.2012. No mesmo sentido, os Acórdãos da Relação de Guimarães de 10.05.2007 e da Relação de Coimbra de 27.02.2007, de 16.10.2007 e de 28.06.2011; incidindo concretamente sobre fracções de edifícios construídos pelas empresas insolventes, os Acórdãos da Relação de Guimarães de 30.05.2013 e da Relação do Porto de 22.10.2013.