Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
420/16.9T8STR.E1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ROSA RIBEIRO COELHO
Descritores: PARTILHA DA HERANÇA
ESCRITURA PÚBLICA
INTERPRETAÇÃO DE DOCUMENTO
SIMULAÇÃO
TORNAS
QUITAÇÃO
REVELIA
CONFISSÃO
FALTA DE CONTESTAÇÃO
PROVA DOCUMENTAL
DOCUMENTO AUTÊNTICO
FORÇA PROBATÓRIA
MATÉRIA DE FACTO
MATÉRIA DE DIREITO
DOAÇÃO
CONSENTIMENTO
NULIDADE
NULIDADE DE ACTO NOTARIAL
NULIDADE DE ATO NOTARIAL
Data do Acordão: 11/02/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / ARTICULADOS / REVELIA DO RÉU – RECURSOS / RECURSO DE REVISTA.
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / NEGÓCIO JURÍDICO / OBJECTO NEGOCIAL / PROVAS / PRESUNÇÕES / CONFISSÃO / PROVA DOCUMENTAL / DOCUMENTOS AUTÊNTICOS / PROVA TESTEMUNHAL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO – DIREITO DAS COISAS / USUFRUTO, USO E HABITAÇÃO / OBRIGAÇÕES DO USUFRUTUÁRIO – DIREITO DAS SUCESSÕES / ABERTURA DA SUCESSÃO E CHAMAMENTO DOS HERDEIROS E LEGATÁRIOS / PARTILHA DA HERANÇA.
DIREITO DOS REGISTOS E NOTARIADO – ORGANIZAÇÃO DOS SERVIÇOS NOTARIAIS / COMPETÊNCIA FUNCIONAL – ACTOS NOTARIAIS / NULIDADES – OBJECTO E VALOR DO REGISTO CIVIL / ACTOS DE REGISTO EM ESPECIAL.
Doutrina:
-Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 1984, nota 1, 392, 393 e 394;
-Artur Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Volume III, 268;
-Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, 194;
-Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I – Parte Geral, Tomo I, 1999, 429 e 440;
-Oliveira Ascensão, Sucessões, 1981, 353;
-Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil, Anotado, Volume VI, 20;
-Rabindranath Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, Volume I, 3.ª Edição, 52-53;
-Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 122.º, 219.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 567.º, N.º 1, 568.º, ALÍNEA D) E 674.º, N.º 3.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 280.º, 281.º, N.ºS 1 E 2, 347.º, 351.º, 352.º, 354.º, 358.º, N.º 2, 359.º, 363.º, N.º 1, 369.º, N.º 1, 371.º, N.º 1, 393.º, N.º 2, 394.º, 568.º, 1443.º, 1476.º, N.º 1, ALÍNEA A), 2024.º, 2025.º, 2029.º, N.º 1, 2030.º, 2031.º E 2102.º, N.º 1.
CÓDIGO DO NOTARIADO: - ARTIGOS 4.º, N.º 2, ALÍNEA A), 35.º, N.º 1, 36, N.º 1, 70.º, 71.º,
CÓDIGO DO REGISTO CIVIL: ARTIGOS 4.º, 102.º E 201.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 13-01-1989, PROCESSO N.º 076575, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 02-06-1999, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 09-10-2003, PROCESSO N.º 03B1816, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 17-12-2015, PROCESSO N.º 940/10.9TVPRT.P1.S1.
Sumário :
I – A regra constante do nº 1 do art. 567º do CPC, segundo a qual a falta de contestação do réu que haja sido regularmente citado na sua própria pessoa leva a que se tenham como confessados os factos articulados pelo autor, não é absoluta, sendo afastada nos casos excecionais enunciados no subsequente art. 568º, nomeadamente no da sua al. d): “Quando se trate de factos para cuja prova se exija documento escrito.

II – A afirmação de que numa escritura foram dados a três imóveis valores inferiores ao valor comercial, ou ao valor de mercado, desses bens envolve um conceito a preencher com o valor que, em termos de normalidade expetável, seria fixado como preço da respetiva compra e venda e ao qual se não pode atribuir a qualificação de conceito jurídico.

III – A afirmação de que o valor comercial, ou de mercado, desses imóveis é superior ao declarado para cada um na escritura representa a constatação de uma caraterística factual dos mesmos, não sendo um juízo de valor.

IV – O conceito de facto acolhe os eventos do foro interno, nomeadamente a vontade real e a intenção do declarante.

V – Sendo uma escritura de partilha um documento autêntico, e fazendo os documentos autênticos prova plena dos factos neles referidos como praticados pela autoridade ou oficial público respetivo e, também, dos factos neles atestados com base nas perceções da entidade documentadora – art. 371º, , nº 1 do CC -, aquela escritura prova plenamente as declarações prestadas pelos respetivos outorgantes perante o notário, nomeadamente a de que foram recebidas as tornas nela atribuídas.

VI – Sendo diferentes, por um lado, a declaração de que se recebeu e, por outro, a efetiva ocorrência desse recebimento, é possível pôr este último em causa apesar da existência daquela.

VII – A declaração, feita na escritura de partilha, de que foi recebida uma quantia a título de tornas, na medida em que extingue o correspondente direito de crédito, é um facto desfavorável para quem delas é credor e favorável para o respetivo devedor, pelo que tem a natureza de confissão;

VIII – Esta confissão, constando, como é o caso, de documento autêntico, tem a força probatória deste, ou seja, tem força probatória plena, “ex vi” arts. 352º, 358º, nº 2 e 371º do CC;

IX - Esta força probatória plena pode ceder perante prova em contrário, que não poderá, em todo o caso, assentar em presunções judiciais nem em prova testemunhal – art. 351º e 393º, nº 2 do CC -, cabendo ao credor das tornas o ónus de provar o seu não recebimento.

X – Esta prova pode ser feita por confissão, nomeadamente a resultante da não contestação da ação pelos réus que teriam pago as tornas.

XI - É válida a doação entre vivos da totalidade ou de parte dos bens a  herdeiro(s) legitimário(s), com o consentimento dos demais herdeiros legitimários não donatários – art. 2029º, nº 1 do CC.

XII – Dissolvido um casal por óbito de um dos cônjuges, e feita a respetiva partilha por escritura na qual não participou uma das filhas do casal, com atribuição aos outros filhos da nua propriedade dos imóveis, com a futura consolidação, na sua titularidade, da propriedade plena dos mesmos bens por via da extinção do usufruto então constituído a favor do cônjuge sobrevivo e sem que a este fossem pagas as tornas que lhe cabiam, mas que na escritura foram mentirosamente dadas como pagas, é obtido, no tocante à futura sucessão do cônjuge sobrevivo, um resultado igual ao de uma partilha em vida.

XIII – A partilha assim efetuada prossegue um fim proibido por lei, pelo que é nula, nos termos do artigo 281º do CC.

XIV – Não cabendo este caso no âmbito dos previstos nos arts. 70º e 71º do Código do Notariado, desta nulidade da partilha não resulta a nulidade da escritura pela qual foi celebrada.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

2ª SECÇÃO CÍVEL




    I - AA intentou contra BB, CC, DD e EE a presenta ação declarativa, pedindo que:

- se declare nula, por força do disposto nos arts. 280º, nºs 1 e 2, e 281º do CC[1], a escritura de partilha celebrada em 26.02.2009 no Cartório Notarial de FF, em S…., em que foram outorgantes os réus e GG, este último em representação de CC; ou,

- se declare nula a mesma escritura por se tratar de ato simulado;

- se declare nula a procuração outorgada por GG a CC em 28.01.2009 e, consequentemente, a escritura de partilha referida por falta de poderes de representação e abuso de representação;

- se ordene o cancelamento de todos os registos de aquisição da nua propriedade de todos os prédios constantes das verbas um a três da escritura de partilha;

- caso se entenda que o ato praticado na escritura se enquadra na qualificação prevista no nº 1 do art. 2029º ou numa compra e venda, sejam os réus condenados a pagar à autora a quota que lhe pertence, a quantificar por perito legalmente habilitado para aferir o real valor dos bens.

         Alegou, em síntese, que:

- ela e os réus BB, DD e EE são filhos de GG e de HH;

- os réus outorgaram uma escritura de partilha por óbito de sua mãe, na qual interveio também o seu pai, na qual adjudicaram a BB e seu marido CC, a DD e a EE a nua propriedade dos prédios existentes no património hereditário e a seu pai o usufruto dos mesmos prédios, com direito a tornas dadas por recebidas, mas que efetivamente o não foram;

- esta escritura foi celebrada sem conhecimento e sem consentimento da autora, sendo que este consentimento era necessário por estar a ser feita a partilha da meação do seu pai, pretendendo-se defraudar o direito da autora à partilha deste;

- a mesma escritura constituiu um ato simulado, enganando a autora e prejudicando os seus futuros direitos sucessórios;

- a procuração outorgada ao réu CC é nula por não ter observado o formalismo legal, o que envolve a sua nulidade e a do ato praticado com o uso da mesma.

        

Regularmente citados, os réus não contestaram.


Foi proferida sentença que, julgando a ação improcedente, absolveu os réus do pedido.


    A autora apelou, vindo a ser proferido acórdão pelo Tribunal da Relação de Évora que, depois de aditar como provado um facto de entre os que a apelante defendia que deviam ser acolhidos, dada a confissão dos réus, negou provimento ao recurso, confirmando a sentença.

        

Deste acórdão trouxe a autora o presente recurso de revista, tendo apresentado alegações onde, pedindo o aditamento à matéria de facto provada dos factos por si alegados na petição inicial, que identifica, e a revogação do acórdão recorrido, formula as seguintes conclusões:

1ª - Os factos dados como provados na 1ª Instância e o facto aditado pelo acórdão recorrido conduzem a uma decisão diversa da tomada pelo acórdão recorrido e impõem a total procedência da ação.

2a - Também os factos alegados pela A. no art° 34° e nos art.°s 21°; 23; 24°; 25°; 32°; 33° e 35° da P.I., porque traduzem realidades comuns e acessíveis a todos os cidadãos e têm um sentido preciso e unívoco, são matéria de facto que, atenta a não apresentação de contestação pelos RR. e a revelia operante, não caberem em nenhuma das exceções previstas no art.° 568° do Cód. Proc. Civil e/ou estarem provados por documento, tinham e têm que ser considerados confessados e, dessa forma, aditados aos factos provados ou, em último caso, ser realizado julgamento tendo em vista a produção de prova sobre os mesmos.

3a - A matéria constante dos art.°s 21° e 35°, diz respeito à divergência entre o valor patrimonial indicado pelos RR. aos bens imóveis objeto da escritura de partilha e o seu valor comercial, sendo que, dizer que a um determinado bem foi atribuído um valor inferior ao seu valor comercial ou de mercado, é uma realidade concreta, de compreensão acessível a todos os cidadão e que, por isso, de acordo com a jurisprudência, constitui matéria de facto.

4ª - O mesmo se diga em relação à matéria constante dos art°s 23° a 25°; 32° e 33° da P.L, que diz respeito à intenção dos RR. enganarem a A./recorrente na celebração da escritura de partilha.

5ª - A jurisprudência e a doutrina têm sido unânimes em concordar que a intenção das partes, como é, por exemplo, o intuito de enganar terceiros, constitui matéria de facto, desde que, como é o caso, também sejam alegados factos exteriores reveladores da intenção.

6a - Já quanto ao alegado pela A./recorrente no art.° 20° e no art.° 34° da P.I. que, ao contrário do declarado nem o GG recebeu nem os restantes outorgantes lhe pagaram tornas pela adjudicação dos bens, também deveria ter sido aditado à matéria de facto provada; em primeiro lugar porque a A./recorrente não sendo o confitente nem a simuladora, a confissão produzida não tem, quanto a si, força probatória plena e não está, portanto, sujeita às restrições das normas legais mencionadas no acórdão recorrido, podendo a prova ser obtida por testemunhas, por presunções ou, como é o caso, por confissão em consequência da revelia operante; por outro lado, porque, como tem sido entendido por alguma jurisprudência do STJ, os factos a coberto da força probatória plena do art.° 371°, n.° 1 do Cód. Civil, são apenas os factos praticados ou atestados pela entidade  documentadora, ou seja, no caso do recebimento de tornas numa partilha extrajudicial, a escritura apenas prova plenamente que os interessados disseram perante o notário que receberam as tornas mas não prova que tal facto corresponda à realidade.

7ª - Por último, também deveria ter sido aditado aos fatos provados, o alegado pela A./recorrente na 1ª parte do artigo 20° da P.I. que GG tinha, à data da celebração da escritura de partilha, 86 anos de idade, por ser facto que se encontra documentalmente provado através do assento de óbito e da certidão da escritura de partilha.

8a - Ao não ter aditado aqueles factos à matéria de facto provada, o acórdão recorrido violou o disposto no art.° 567°, n.° 1; no art.° 662°, n.° 1; e no art.° 662°, n.° 2, ai. b) do Cód. Proc. Civil.

9ª - A escritura de partilha em causa nos presentes autos, atendendo a toda a factualidade atrás descrita que se encontra provada, excluindo a A./recorrente da sucessão da sucessão da herança do seu pai e beneficiando injustificadamente os RR., seus irmãos e genro, ali outorgantes, dessa forma, prejudicando-a, viola as disposições legais que protegem a legítima dos filhos, neste caso, da A./recorrente e também é ofensiva dos bons costumes e da ordem pública, sendo proibida pelo disposto nos n.°s 1 e 2 do art.° 280° e no art° 281° do Cód. Civil e, por isso, nula.

10 ª - Ainda que improceda o pedido de nulidade da escritura de partilha, o que por mero dever de ofício se aceita, sempre o mesmo negócio deverá ser anulado com base em simulação, nos termos do disposto no art.° 241° do Cód. Civil.

11a - Mesmo que se entenda que sob aquela partilha existe uma verdadeira doação em vida do pai da A. aos ali restantes outorgantes, ou até uma compra e venda, nunca aqueles negócios poderão ser declarados válidos, nos termos previstos no art.° 241° do Cód. Civil, porquanto, nos termos do n.° 2 do art.° 241° do Cód. Civil, o negócio dissimulado de natureza formal só é válido se tiver sido observada a forma exigida por lei e, no caso concreto, falta um dos requisitos formais que é o consentimento da A., que era obrigatório em qualquer um daqueles negócios, nos termos do n.° 1 do art.° 2029° e do n.° 1 do art.° 877° do Cód. Civil.

12a - Caso o entendimento venha a ser o de que o ato praticado na escritura se enquadra na qualificação jurídica prevista no n.° 1 do art° 2029° do Cód. Civil ou numa compra e venda, deverão, nesse caso, os RR. ser condenados a pagar à A. a quota que lhe corresponde, a qual deverá, no entanto, ser quantificada por perito legalmente habilitado para aferir o real valor dos bens.

Não foram apresentadas contra-alegações.

    Colhidos os vistos, cumpre decidir, sendo questões sujeitas à nossa apreciação – visto o teor das conclusões que, como é sabido, delimita o objeto do recurso – as de saber se:

- por virtude da confissão ficta devem ser tidos como provados os factos enunciados pela recorrente e que haviam sido por ela alegados na petição inicial.

- a pretensão da autora deve proceder.

  II - A matéria de facto considerada como provada nas instâncias é a seguinte:

A) Constante da sentença:

- Factos provados:

1 - A A. e os RR. BB, DD e EE, são filhos de GG e de HH. (artº 1º da petição inicial)

2 - A R. BB é casada com o R. CC no regime da comunhão geral de bens. (artº 2º da petição inicial)

3 - HH faleceu em 16.12.2005, no estado de casada no regime da comunhão geral de bens, com GG. (artº 3º da petição inicial)

4 - HH deixou testamento público, no qual instituiu o cônjuge, GG, como herdeiro da quota disponível (artº 10º da petição inicial-parte).

5 - Nos autos de execução que correram termos no 2º Juízo do Tribunal Judicial de …, com o n.º de processo 171-A/2000, em que era exequente II e executada a aqui A., foi por GG, seu pai, adquirido, por remição, o quinhão hereditário que pertencera à executada, na herança ilíquida e indivisa, aberta por morte de sua mãe, HH. (artº 4º da petição inicial)

6 - No dia 26 de Fevereiro de 2009, no Cartório Notarial em …, sito na Rua …, Edifício …, loja 1, em S…, perante a Sr.ª Notária FF, foi lavrada a fls. 107 e fls. 110, do Livro de Notas para Escrituras Diversas número 51-A, a escritura de partilha. (artº 5º da petição inicial)

7 - Na referida escritura de partilha, intervieram por si os RR. BB, DD, EE e CC, o qual também outorgou na qualidade de procurador de GG. (artº 9º da petição inicial)

8 - Naquela escritura, os atrás identificados outorgantes e representado declararam que, conforme escritura de habilitação de herdeiros lavrada no dia 07.02.2008, a folhas 94 e seguintes, do livro número 56-A, no Cartório Notarial de B…, da Notária JJ, no dia 16.12.2005 faleceu HH, no estado de casada com GG, no regime da comunhão geral; que, ainda de acordo com aquela escritura, a mesma fez testamento público outorgado no extinto Cartório Notarial de B…, no dia 17.03.2009, iniciado a folhas 72, exarado do livro de notas para testamentos públicos, número 1-A, no qual “institui herdeiro da quota disponível, seu marido GG”, que lhe sucederam como únicos herdeiros legitimários, o seu marido, GG e os seus quatro filhos, DD, EE; BB e AA; que nos autos de execução que correm os seus termos pelo 2º Juízo do Tribunal Judicial de …, sob o número 171-A/2000, em que é exequente II e executada AA, foi por GG, adquirido por remissão o quinhão hereditário que pertencera à executada, na herança ilíquida e indivisa, aberta por óbito da mencionada HH; e, por último, que os outorgantes e o seu representado são os únicos interessados na partilha dos bens que forma o património de HH. (artº 10º da petição inicial)

9 - Mais declaram que o património hereditário de HH é constituído na verba um pelo prédio urbano, composto por moradia de rés-do-chão, primeiro andar e logradouro, destinado a habitação, sito na Rua Dr. …, número 88, freguesia e concelho de B…, descrito na Conservatória do Registo Predial de B…, sob o número 2012, da referida freguesia, registado a favor dos partilhantes em comum e sem determinação de parte ou direito, nos termos da apresentação 1, de 06.11.2007 e respetivo averbamento de transmissão de posição, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de B… sob o artigo 2…9, com o valor patrimonial de € 60.420,00, a que atribuem igual valor; na verba dois, pelo prédio urbano, composto por edifício de rés-do-chão destinado a comércio, sito na Rua …, n.º 15-A, freguesia e concelho de B…, descrito na Conservatória do Registo Predial de B…, sob o número 4…5, da referida freguesia, registado a favor dos partilhantes em comum e sem determinação de parte ou de direito, nos termos da apresentação 25 de 14.11.2007 e respetivo averbamento de transmissão de posição, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de B… sob o artigo 3…4, com o valor patrimonial de € 10.440,00, a que atribuem igual valor; e na verba três, pelo prédio urbano composto por casa térrea que serve de palheiro, casas e telheiros, sito na Rua …, freguesia e concelho de B…, descrito na Conservatória do Registo Predial de B…, sob o número 1…8, da referida freguesia, registado a favor dos partilhantes em comum e sem determinação de parte ou direito, nos temos da apresentação 3 de 23.12.2008 e respetivo averbamento de transmissão de posição, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de B… sob o artigo 4…0, com o valor patrimonial de € 4.981,21, a que atribuem o valor de € 9.140,00. (artº 11º da petição inicial)

10 - E que aquele património hereditário a partilhar é a meação e quinhões hereditários de GG de 13/16 avos: metade correspondente à meação; 1/6 correspondente à quota disponível, adquirida por sucessão testamentária; 1/4 dos restantes 2/6 da sucessão legítima e 1/16 avos adquirido por exercício do direito de remição; e o quinhão hereditário de cada um dos filhos, DD, EE e BB, de 1/16. (artº 12º da petição inicial)

11 - Na referida escritura, os acima identificados outorgantes e representado declararam, por fim, ir proceder à partilha do património hereditário de HH da seguinte forma: a) adjudicação a GG do usufruto dos prédios acima identificados, no valor global de € 8 000,00, calculado nos termos do art.º 13º, alíneas. a) e b) do CIMT, que leva a menos em relação ao que lhe cabe receber € 57.000,00, que, em tornas, recebeu; b) adjudicação a BB e seu marido CC da nua propriedade de 1/3 indiviso dos prédios supra identificados, no valor global de € 24.000,00, calculado de acordo com as normas atrás referidas, que levam a mais em relação ao qual lhes cabe receber, o valor de € 19.000,00 que, de tornas, já pagaram a GG; c) adjudicação a DD da nua propriedade de 1/3 indiviso dos prédios acima identificados, no valor global de € 24.000,00, calculado de acordo com as normas atrás referidas, que leva a mais em relação ao que lhe cabe receber, o valor de € 19.000,00 que, de tornas, já pagou a GG; d) adjudicação a EE da nua propriedade de 1/3 indiviso dos prédios acima identificados, no valor global de € 24.000,000, calculado de acordo com as normas atrás referidas, que leva a mais em relação ao qual lhe cabe receber, o valor de € 19.000,00 que, de tornas, já pagou a GG. (artº 13º da petição inicial)

12 - A propriedade dos prédios constantes das verbas um, dois e três constantes da escritura de partilha encontra-se registada a favor dos aqui RR., através da apresentação 2462, de 26.03.2009. (artº 14º da petição inicial)

13 - O usufruto adjudicado a GG não foi sujeito a registo predial. (artºs 22º e 36º da petição inicial)

14 – A partilha foi celebrada por escritura pública, com recurso a procuração outorgada por GG a CC, nos seguintes termos:

“PROCURAÇÂO

GG, viúvo, natural de B…, portador do Bilhete de Identidade n.º …., emitido em 17/12/1980 pelos SIC de Lisboa, contribuinte fiscal n.º 1…5, residente na Rua Dr. …, n.º 88 em B… constitui seu bastante procurador CC, casado, residente na Urbanização …., Lote 5, em B… a quem com os de substabelecer concede poderes para o representar nas partilhas extrajudiciais, ou judiciais, da herança aberta por óbito de sua falecida esposa HH, podendo para esse fim dar ou receber tomas, dar ou aceitar quitações, concordar com os lotes, receber quaisquer citações, nomeadamente a primeira e notificações; e bem assim outorgar e assinar as respectivas escrituras públicas. Podendo ainda representá-lo em quaisquer Repartições Públicas ou Administrativas, muito em especial em Repartições de Finanças, Câmaras Municipais e Conservatórias de Registo Predial, onde pode fazer cancelamentos, averbamentos e registos provisórios ou definitivos; Mais lhe confere poderes para o representar em todos os actos daquela partilha, nomeadamente intervir na conferência de interessados, licitar, acordar na composição dos quinhões e receber e pagar tornas ou custas de parte.

Data 28 de Janeiro de 2009

(assinatura)

TERMO DE AUTENTICAÇÃO

No dia 28 de Janeiro de dois mil e nove, no escritório em B…, na Avenida …. nº …, 1º em B…, perante mim, KK, advogado, portador da cédula profissional número … L, compareceu:

GG, NlF 1….5, natural da referida freguesia de B…, onde reside na Rua Dr. …, n.º 88.

Verifiquei a identidade do outorgante por ser do meu conhecimento pessoal.

DISSE: Que leu atentamente o documento que antecede, que é uma Procuração que está perfeitamente inteirado do seu conteúdo e que o mesmo exprime a sua vontade.

Este tenro de autenticação foi lido e o seu conteúdo explicado.

(assinaturas)

Registo sob o número: 4…Ul44” (artº 51º da petição inicial)

15 - Em 21.11.2010, faleceu GG. (artº 6º da petição inicial)

16 - Em 21.11.2012, quando teve conhecimento da celebração da escritura de partilha acima referenciada, a A., ali interessada, através de reclamação apresentada no processo de inventário n.º 415/12.1TBBNV, que corre termos no Juiz 1, da Secção Cível, da Instância Local, do Tribunal Judicial de B…, para partilha do património hereditário de GG, requereu que fosse declarada a nulidade da partilha efetuada através daquela escritura. (artº 7º da petição inicial)

17 - Por decisão proferida em 23.01.2015, foram os interessados, onde se inclui a A., remetidos para os meios comuns quanto ao objeto da referida reclamação, mais concretamente quanto ao pedido de declaração de nulidade daquela escritura de partilha. (artº 8º da petição inicial)

- Facto não provado

- O GG não recebeu nem os restantes outorgantes lhe pagaram tornas pela adjudicação dos bens. (art. 34º da petição inicial)

B) Facto provado aditado pela Relação

18- A autora não teve conhecimento nem deu o seu consentimento à partilha efetuada em 26/2/2009.

     III – Abordemos então as questões de que nos cabe conhecer.

Da matéria de facto a considerar:

A recorrente pretende, como resulta do que acima se disse já, que esta matéria seja alterada, por via do aditamento de diversos factos que alegou na p. i., essencialmente fundada na confissão ficta dos réus que, regularmente citados, não contestaram.

     Segundo o nº 1 do art. 567º do CPC, a falta de contestação do réu que haja sido regularmente citado na sua própria pessoa, leva a que se tenham como confessados os factos articulados pelo autor.

     Aparentemente, o preenchimento deste circunstancialismo no caso dos autos não suscitaria dúvida, tendo sido este o entendimento adotado no despacho proferido na tentativa de conciliação realizada em 1ª instância.

Nele, com invocação do preceito legal que acabámos de citar, disse-se que se consideravam confessados os factos articulados pela autora, sem qualquer reação crítica das partes.

    Todavia, a sentença, em sede de fundamentação da matéria de facto, veio a adotar entendimento diverso, negando a existência de “… factos provados por confissão, pois (…) a prova dos factos essenciais à apreciação do mérito da causa é feita por recurso à prova documental.

       Esta afirmação tem subjacente, por certo, o facto de a regra contida no nº 1 do citado art. 567º não ser absoluta, sendo afastada nos casos excecionais enunciados no subsequente art. 568º, nomeadamente no da sua al. d): “Quando se trate de factos para cuja prova se exija documento escrito.

      Importa então saber se, como defende a recorrente, os factos em causa se não reconduzem a nenhuma das exceções estabelecidas nessa norma e se devem, por isso e dada a falta de contestação, ser tidos como confessados, questão que, respeitando a alegada violação de disposição expressa de lei que fixa a força de meio de prova, se insere na área de intervenção deste STJ – art. 674º, nº 3, parte final, do CPC.

        

     Como sustentara já, embora sem êxito, no recurso de apelação, a recorrente pugna por que se dê como provada, por confissão, a matéria alegada nos arts. 21º e 35º, 23º a 25º, 32º e 33º da p. i..

No acórdão recorrido adotou-se a este respeito o seguinte entendimento:

       “Já em relação ao constante dos arts 21º e 35º (divergência entre o valor patrimonial e o valor comercial), 23º a 25º, 32º e 33º (os intervenientes enganando a autora pretenderam antecipar a partilha dos bens de José Isidro com a aparência de que estavam apenas a partilhar a meação de sua mãe) configura claramente matéria conclusiva e de direito, que por conseguinte não pode constar dos factos assentes.”

        

Estes artigos têm o seguinte conteúdo:

21º - “Saliente-se que o valor atribuído aos bens constantes das verbas um e dois foi o seu valor patrimonial, e ao constante da verba três, de € 9.140,00, em qualquer dos casos, muito inferiores ao seu valor comercial – cfr. doc. 4.”

35º - “Também o valor atribuído aos bens não corresponde ao seu valor real de mercado, sendo muito inferior”.

23º - “Impõe-se, pois, concluir, face aos factos acima alegados, que, ao celebrar a escritura de partilha em causa da forma como o fizeram, os RR. pretenderam enganar a A. dando a aparência que estavam apenas a partilhar a meação da sua mãe, mas também prejudicá-la, excluíndo-a, quanto àqueles bens, da sucessão da herança de GG, seu pai, obtendo para si um benefício injustificado".

24º - “Pois não desconheciam nem podiam desconhecer que, efetuando a partilha nas condições em que o fizeram, ofendiam a legítima da A."

25º - "A escritura de partilhas foi celebrada, assim, com o fim principal de defraudar o direito da A. à herança de seu pai."

32º - “Com efeito e conforme já acima alegámos e demonstrámos, contrariamente ao declarado pelos outorgantes e representado na escritura, os mesmos não procederam apenas à partilha dos bens na parte que constituía a meação de HH."

33º - "Não obstante o declarado na escritura, o que na realidade os intervenientes pretenderam foi antecipar a partilha dos bens de GG, enganando a A. com a aparência que estavam apenas a fazer a partilha da meação de sua mãe, HH, quando na realidade também estavam a dispor da meação do seu pai, em prejuízo dos futuros direitos sucessórios da A., ou seja, pelos motivos e com o intuito já descritos em 23°; 24° e 25° da P.L".

    A recorrente defende que a matéria alegada nestes artigos, na medida em que descreve a intenção das partes no negócio jurídico, constitui matéria de facto que, dada a falta de contestação, há que ter como confessada e, por isso, provada.

         Vejamos.

   Antunes Varela, depois de afirmar que “… o facto é o acontecimento concreto da realidade empírico-sensível, em si mesmo considerado (…)” [2], ao discorrer sobre a distinção entre a matéria de facto e a matéria de direito, exprime o seguinte entendimento[3]: “Dentro da vasta categoria dos factos (processualmente relevantes), cabem não apenas os acontecimentos do mundo exterior (da realidade empírico-sensível, directamente captável pelas percepções do homem – ex propriis sensibus, visus et audictus), mas também os eventos do foro interno, da vida psíquica, sensorial ou emocional do indivíduo (v. g., a vontade real do declarante (…); o conhecimento dessa vontade pelo declaratário (…); o conhecimento por alguém de determinado evento concreto (…); as dores físicas ou morais provocadas por uma agressão corporal ou uma injúria (…).”

     E, logo de seguida, acrescenta: “Nada obsta, por conseguinte, a que, assim como se faz prova sobre os factos externos por meios puramente indiciários, se admita a prova sobre os chamados factos internos, mediante o recurso a elementos de igual natureza.” [4]

      Na mesma linha, Manuel de Andrade[5] escreve o seguinte: "Podem ser objeto de prova os factos (...) tanto os factos do mundo exterior (factos externos: uma convenção oral ou escrita, um choque de viaturas, a morte duma pessoa, etc), como os da vida psíquica (factos internos: o dolo, o conhecimento de dadas circunstâncias, uma certa intenção, etc)".

E também Artur Anselmo de Castro afirma, sem reservas, que “A aplicação da norma pressupõe (…) a averiguação dos factos concretos, dos acontecimentos realmente ocorridos …” e que “… são factos não só os acontecimentos externos, como os internos ou psíquicos (…)”[6].

Esta ideia está, desde há muito, subjacente à jurisprudência do STJ.

Assim, no seu acórdão de 13.01.89[7], considerou-se que a intenção das partes constitui matéria de facto e que podia, na altura, ser lavada ao questionário.

E no acórdão do mesmo Tribunal de 9.10.2003[8], escreveu-se assim:

“Não é fácil (ou nem sempre é fácil) a distinção entre matéria de facto e matéria de direito. Os factos, no domínio processual, abrangem as ocorrências concretas da vida real e o estado, a qualidade ou situação real das pessoas e das coisas. Neles se compreendem não só os acontecimentos do mundo exterior directamente captáveis pelas percepções (pelos sentidos) do homem, sim também os eventos do foro interno, da vida psíquica, sensorial ou emocional do indivíduo (o dolo, a determinação da vontade real do declarante, o conhecimento de dadas circunstâncias, uma certa intenção, etc.). Ora, no caso em apreço, aquilo que a recorrente diz serem meras conclusões ou simples juízos de valor são, na realidade, factos - eventos do foro interno do (…), reveladores de uma determinada intenção, de um certo propósito deste.”

Ao lado do facto puro e simples, enquanto acontecimento real e concreto, distingue-se ainda o juízo de facto, expressão com a qual Antunes Varela designa duas ideias diferentes. Por um lado, a ideia de “juízo de facto” pode traduzir uma ocorrência virtual ou hipotética, como a colheita de frutos que ao proprietário teria sido possível se não tivesse estado privado do prédio[9].

Mas pode igualmente traduzir um juízo de valor sobre matéria de facto, “(…) a meia encosta entre os puros factos (…) e as questões de direito (…)”[10], do que é exemplo a afirmação da velocidade excessiva de um veículo ou a de que a velocidade foi, face às circunstâncias da estrada, adequadamente reduzida.

Aplicando estes princípios ao caso dos autos, alcançaremos, como se verá, conclusões diferentes daquelas a que se chegou no acórdão impugnado.

Nos arts. 21º e 35º da p. i., a autora, aqui recorrente, alegou que na escritura de partilha foram declarados para os três imóveis valores inferiores ao valor comercial, ou ao valor de mercado, desses bens; trata-se de conceito a preencher com o valor que, em termos de normalidade expetável, seria fixado como preço da respetiva compra e venda e ao qual se não pode atribuir a qualificação de conceito jurídico.

Por outro lado, a afirmação de que o valor comercial, ou de mercado, desses imóveis é superior ao declarado para cada um na escritura representa a constatação de uma caraterística factual dos mesmos, não sendo um juízo de valor.

E, tratando-se de facto que não está abrangido por qualquer das exceções previstas no art. 568º do CPC, tem de ser considerado como confessado pelos réus que, ao não contestarem, reconhecem que o valor por si declarado como sendo o dos imóveis é muito inferior ao seu valor comercial ou de mercado.

Nos arts. 23º a 25º, 32º e 33º da p. i. é alegado que na escritura de partilha os réus intervieram movidos por uma determinada intenção – a de pretenderem enganar a autora dando a aparência de estarem apenas a partilhar a herança da sua mãe e de pretenderem, também, prejudicá-la por a excluírem da sucessão na herança de seu pai, GG, cuja partilha anteciparam.

Visto que, como acima dissemos, o conceito de facto acolhe os eventos do foro interno, nomeadamente a vontade real e a intenção do declarante, também quanto a este ponto deve reconhecer-se que a revelia dos réus conduz a que a alegada intenção se tenha como confessada.

Deve notar-se que, neste momento, está apenas em causa a intenção dos intervenientes na escritura de partilha, sem que daí se extraia qualquer conclusão quanto à eficácia da mesma, isto é, quanto à obtenção, ou não, do resultado almejado.

Procedem, deste modo, as conclusões 2ª a 4ª da recorrente, pelo que se aditam à matéria de facto constante do acórdão recorrido os seguintes factos provados:

19 - O valor atribuído aos imóveis na escritura de partilha é muito inferior ao seu valor comercial ou de mercado;

20 - Com a escritura de partilha os réus pretenderam enganar a autora dando a aparência de estarem apenas a partilhar a herança da sua mãe e pretenderam, também, prejudicá-la, excluindo-a da sucessão na herança de seu pai, GG, cuja partilha anteciparam.


     Os arts. 20º e 34º da p. i., têm o seguinte teor:

20º - “De notar que o direito a tornas de GG, pessoa à data da escritura já com 86 anos de dade, foi preenchido com o direito ao usufruto dos bens e em dinheiro, dinheiro esse que, não obstante o que consta da escritura, não foi efetivamente pago e que, ainda que o tivesse sido, é o bem material, como o M.º Juiz do processo de inventário bem salienta no despacho cuja cópia atrás se juntou, que é mais facilmente dissipável – cfr. doc. 4 e 6.”

34º - “Tanto assim é que, como já acima alegámos, ao contrário do declarado na escritura nem o GG recebeu nem os restantes outorgantes lhe pagaram tornas pela adjudicação dos bens”.

   Nas conclusões 6ª e 7ª, pede a recorrente que, perante o assim alegado e a falta de contestação dos réus, se dê como provado que:

- à data da escritura o GG tinha 86 anos de idade;

- ao contrário do declarado, nem GG recebeu nem os restantes outorgantes lhe pagaram tornas pela adjudicação dos bens.

     O primeiro destes factos não pode ser considerado como provado.

Desde logo porque dos autos não consta a certidão do registo de nascimento necessária para o efeito, sendo a data de nascimento um elemento que não consta do registo de óbito, único que se encontra certificado a fls. 42 – cfr. arts. 4º, 102º e 201º do C. Registo Civil.

Aliás, trata-se de facto cuja inclusão na matéria de facto julgada como provada não foi pedida no recurso de apelação, pelo que sobre ele o acórdão recorrido nem sequer se pronunciou.

Sobre o segundo dos descritos factos importa considerar o que passamos a expor.

Na escritura de partilha consta textualmente, além do mais, o seguinte: “(…) para pagamento do quinhão do interessado GG é-lhe adjudicado o usufruto dos prédios supra identificados, no valor global de oito mil euros, conforme cálculo efectuado nos termos das regras constantes das alíneas a) e b) do artigo 13º do CIMT, atendendo à idade do usufrutuário, pelo que o mesmo leva a menos, em relação ao que lhe cabe receber, o valor de cinquenta e sete mil euros, que, em tornas, já recebeu.

No acórdão recorrido rejeitou-se a pretensão da apelante com o seguinte raciocínio:

- trata-se de facto cuja prova não foi feita;

- constando da escritura  a declaração de que as tornas foram recebidas pelo interessado GG, há uma declaração de quitação prestada em documento autêntico;

- sendo tal declaração um ato percecionado pelo notário, há prova plena dessa declaração;

- para ser ilidida essa prova, teria de haver arguição da falsidade do documento;

- essa declaração não significa, porém, a certeza de que o pagamento tenha ocorrido realmente;

- mas, tendo a declaração de quitação sido emitida em documento autêntico e feita à parte contrária, constitui prova por confissão que reveste força probatória plena, nos termos do art. 358º, nº 2 do CC;

- esta força probatória poderia ser infirmada por inadmissibilidade ou vício que a invalide, nos termos dos arts. 354º e 359º do CC, ou por impugnação direta com vista a provar não ser verdadeiro esse facto, nos termos do art. 347º do mesmo diploma;

- incumbe ao confitente alegar e provar que não ocorreu o facto confessado, mas com as restrições constantes dos arts. 351º, 393º e 394º do CC;

- não o fez a apelante AA, pelo que o alegado não pagamento não está provado.

         Vejamos então.

     À data em que a escritura de partilha foi celebrada, o nº 1 do art. 2102º do C. Civil permitia a realização da partilha extrajudicialmente, havendo acordo de todos os interessados.

A escritura de partilha mencionada no facto nº 6, tendo sido lavrada por notário no Livro de Notas aí referido e cabendo o ato dentro da competência do notário, é um documento autêntico – arts. 4º, nº 2, al. a), 35º, nº 1 e 36º, nº 1 do Código do Notariado e arts. 363º, nº 1 e 369º, nº 1.

Como os documentos autênticos fazem prova plena dos factos neles referidos como praticados pela autoridade ou oficial público respetivo e, também, dos factos neles atestados com base nas perceções da entidade documentadora – art. 371º, nº 2 –, aquela escritura prova plenamente as declarações prestadas pelos respetivos outorgantes perante o notário.

Há, por isso, prova plena de que perante o notário foi declarado que o outorgante GG, no ato representado por procurador habilitado pelo instrumento referido no facto nº 14, recebeu a título de tornas a quantia de € 57.000,00; é declaração que se tem como definitivamente adquirida, uma vez que não houve impugnação da escritura por falsidade, como permitiria o art. 372º.

Sabe-se, porém, que são coisas diferentes, por um lado, a declaração de que se recebeu e, por outro, a efetiva ocorrência desse recebimento, sendo possível pôr este último em causa apesar da existência daquela.

Importa atentar, todavia, em que:

- o recebimento de uma quantia a título de tornas, na medida em que extingue o correspondente direito de crédito, é um facto desfavorável para quem delas é credor e favorável para o respetivo devedor, pelo que tem a natureza de confissão;

- esta confissão, constando, como é o caso, de documento autêntico, tem a força probatória deste, ou seja, tem força probatória plena, “ex vi” arts. 352º, 358º, nº 2 e 371º;

- poderá, em todo o caso, esta força probatória plena ceder perante prova em contrário, que não poderá, em todo o caso, assentar em presunções judiciais nem em prova testemunhal – cfr. arts. 351º e 393º, nº 2.[11]

       Os aqui réus – devedores das tornas e beneficiários da declaração confessória - estão dispensados de provar a veracidade do seu conteúdo, impendendo sobre a autora, aqui recorrente, o ónus de provar o não recebimento das tornas por parte de seu falecido pai que confessou tê-las recebido.

Ora, em face das circunstâncias do caso, tem de concluir-se que esse ónus se mostra satisfeito.

Com efeito, tendo ela alegado nos arts. 20º e 34º da p. i. que o interessado GG não recebeu a quantia que lhe era destinada a título de tornas da responsabilidade dos demais herdeiros, tal facto não chegou a ser objeto de atividade probatória pela simples razão de que, perante a falta de contestação dos réus e porque, mais uma vez, se está fora das exceções previstas no art. 568º, o facto em causa se tem como confessado, sendo que a confissão ficta dos réus por falta de contestação não é meio de prova que os arts. 351º e 393º excluam.

      Mostra-se, pois, demonstrado, por confissão dos réus, não ser verdadeiro o facto que era objeto de prova legal plena – artigo 347º.

     Por isso se adita à matéria de facto enunciada no acórdão recorrido como provada mais o seguinte facto:

21 - GG não recebeu tornas, nem os restantes outorgantes lhas pagaram, pela adjudicação dos bens.


Da decisão de mérito:

     A recorrente defende, na conclusão 9ª, que a escritura de partilha aqui em causa é nula à luz do disposto nos n°s 1 e 2 do art.° 280° e no art° 281°, visto ser ofensiva dos bons costumes e da ordem pública.

A Relação de Évora, no pressuposto de que nesta escritura se procedeu apenas à partilha do património hereditário de HH, na sequência da qual foi adjudicado o usufruto dos imóveis ao cônjuge sobrevivo – pai da recorrente –, negou que se verificassem, no caso, essas causas de nulidade.

É questão que merece nova análise e agora considerando, além dos factos ponderados pelas instâncias, aqueles a cujo aditamento acima se procedeu, cujo teor é, relembre-se, o seguinte:

- O valor atribuído aos imóveis na escritura de partilha é muito inferior ao seu valor comercial ou de mercado;

- Com a escritura de partilha os réus pretenderam enganar a autora dando a aparência de estarem apenas a partilhar a herança da sua mãe e pretenderam, também, prejudicá-la, excluindo-a da sucessão na herança de seu pai, GG, cuja partilha anteciparam;

- O GG não recebeu tornas, nem os restantes outorgantes lhas pagaram, pela adjudicação dos bens.


      Atentemos, ainda que de forma sintética, ao quadro pessoal/familiar que subjaz ao pressente litígio.

       GG e HH foram casados em regime de comunhão geral de bens e tiveram quatro filhos: a autora AA e os réus BB, casada com o réu CC, DD e EE.

       Assim, por óbito de HH sucederam-lhe cinco herdeiros, a saber, os quatro filhos e o marido.

Porém, ao partilhar-se o acervo hereditário por aquela deixado – partilha onde havia a considerar os direitos que cabiam a José Marques, enquanto meeiro, herdeiro testamentário e herdeiro legitimário e aos filhos de ambos enquanto herdeiros legitimários – não houve intervenção de AA visto que, por virtude da remição a que se refere o facto nº 5, o seu quinhão hereditário na partilha a fazer havia sido transferido para o remidor GG.

      Logo, na perspetiva da sucessão de HH, na escritura de partilha intervieram todos aqueles que nela deviam intervir.

      Porém, as adjudicações de bens feitas nesse ato não tiveram como único escopo a realização de partilha por óbito de HH, pois serviram também para antecipar a partilha que viria a ter lugar pelo futuro óbito de GG, que veio a ocorrer no ano seguinte.

      Ora, na partilha a fazer por óbito deste, já a intervenção da autora AA seria indispensável, enquanto sua herdeira legitimária.

      E antes desse óbito?

      Em princípio, a sucessão só ocorre após o óbito do “de cujus” – cfr. arts. 2024º, 2025º, 2030º e 2031º.

       Porém, a lei permite que, em certos casos e mediante certos mecanismos, os efeitos da partilha possam ser antecipados, o que acontece na hipótese prevista no art. 2029º.

       Embora sob a epígrafe legal “Partilha em vida”, este preceito permite que se faça doação entre vivos da totalidade ou de parte dos bens, através de doação a favor de herdeiro(s) legitimário(s), com o consentimento dos demais herdeiros legitimários não donatários. O consentimento destes é essencial para a validade do negócio, como resulta explicitamente da letra da lei e sublinham Pires de Lima e Antunes Varela[12], Rabindranath Capelo de Sousa[13] e Oliveira Ascensão[14].

      Todavia, este mecanismo não foi observado, embora o resultado - destinação, em favor dos herdeiros BB, DD e EE, dos bens que ao GG adviriam da partilha a fazer por óbito de HH – tenha sido obtido através:

- da atribuição a estes herdeiros da nua propriedade dos imóveis, com a futura consolidação, na sua titularidade, da propriedade plena dos mesmos bens por via da extinção do usufruto constituído a favor de GG, quando este falecesse, nos termos dos arts. 1443º e 1476º, nº 1, al. a);

- do não pagamento das tornas que lhes competiria pagar mas que na escritura foram mentirosamente dadas como pagas.

      Este estratagema foi desenvolvido, como os factos mostram, através da referida escritura, outorgada sem conhecimento e sem consentimento da herdeira legitimária AA, cuja ausência faria invalidar uma eventual partilha em vida nos termos do art. 2029º, se esta houvesse sido a via utilizada.

         Pode então concluir-se o seguinte:

Procuraram os outorgantes na escritura de partilha em causa obter – e obtiveram –, através do descrito estratagema, sem o consentimento da autora AA, um resultado que, legalmente, o não dispensaria.

     São legais o conteúdo e objeto do negócio jurídico realizado e que foi, como vimos, a partilha feita em notário, através da qual foram destinados aos herdeiros bens integrantes do acervo hereditário, não caindo, portanto, no âmbito da previsão do nº 1 do art. 280º.

      Mas nele prosseguiu-se um fim proibido por lei e que foi querido por todos os que nele intervieram.

         O art. 281º estabelece:

Se apenas o fim do negócio jurídico for contrário à lei ou à ordem pública, ou ofensivo dos bons costumes, o negócio só é nulo quando o fim for comum a ambas as partes.

      Não está em causa a ofensa dos bons costumes; estes respeitam, no dizer de Menezes Cordeiro[15], a regras de comportamento sexual e familiar e, ainda, a regras deontológicas, formuladas por instâncias profissionais próprias.

      Mas é inegável que, agindo como agiram, os réus atuaram em fraude à lei, naturalmente ilícita e que invalida a partilha feita.

         Como escreve Menezes Cordeiro[16]:

“(…) a denominada fraude à lei é uma forma de ilicitude que envolve, por si, a nulidade do negócio. A sua particularidade residirá, quando muito, no facto de as partes terem tentado, através de artifícios formais mais ou menos assumidos, conferir ao negócio uma feição inócua. No fundo, a fraude à lei apenas exige uma interpretação melhorada dos preceitos vigentes: - se se proíbe o resultado, também se proíbem os meios indirectos para lá chegar; (…)”

     Isto demonstra a razão da recorrente, sem que seja necessário apreciar a questão da nulidade por simulação, por ela invocada subsidiariamente na p. i..


Importa, todavia, considerar o que passamos a expor.

     Vem pedido pela autora, aqui recorrente, que se declare nula a escritura de partilha de 26.02.2009.

Das considerações acabadas de fazer decorre que o negócio jurídico que a mesma titula é nulo.

Porém, há que distinguir entre o negócio jurídico e o instrumento – no caso, a escritura de partilha – que o consubstancia, sendo concebível que a nulidade do negócio jurídico não envolva a nulidade da escritura, que apenas perderia a sua eficácia como consequência dessa nulidade.

Compulsando o Código do Notariado, nele encontramos a cominação de nulidade de atos notariais nos seus arts. 70º – para casos de vícios de forma – e 71º – para os casos de incompetência ou impedimento do funcionário que os lavre, ou de intervenientes incapazes ou inábeis.

Assim, a circunstância de uma escritura ser o instrumento de celebração de um negócio jurídico nulo não implica a nulidade do ato como consequência da nulidade do negócio.

      Declarar-se-á, pois, a nulidade do negócio celebrado através da escritura em causa.

        

       Procede, pois, a revista.


   IV - Pelo exposto, julgando-se procedente a revista, revoga-se o acórdão impugnado e:

I – Declara-se nula a partilha feita por escritura lavrada em 26/2/2009 no Cartório Notarial de FF, em S…, na qual foram outorgantes os réus e GG, este representado por CC;

II – Ordena-se o cancelamento de todos os registos de aquisição da nua propriedade de todos os prédios constantes das verbas um a três da mesma escritura de partilha.

   Custas a cargo dos réus, aqui e nas instâncias.


     Lxa. 2.11.2017


Rosa Maria M. C. Ribeiro Coelho (Relatora)

João Bernardo

Oliveira Vasconcelos

____________


[1] Diploma a que respeitam as normas de ora em diante referidas sem menção de diferente proveniência.

[2] Cfr. Manual de Processo Civil, 1984, pág. 392, nota 1.
[3] Cfr. ibidem, pág. 392.
[4] Cfr. ibidem, pág. 393.
[5] Cfr. Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 194
[6] Cfr. Direito Processual Civil Declaratório, Vol. III, pg. 268
[7] Processo nº 076575, relator Cons. Cura Mariano, acessível em www.dgsi.pt
[8] Proc. 03B1816, relator Cons. Santos Bernardino, acessível em www.dgsi.pt
[9] Cfr. obra citada, pág. 393-394
[10] Cfr. Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 122º, pág. 219

[11] Neste sentido, cfr., entre outros, os acórdãos do STJ de 17.12.15, proc. 940/10.9TVPRT.P1.S1, Relator Abrantes Geraldes e inúmera jurisprudência nele citada; e de 2.06.99, Relator Conselheiro Sousa Inês, acessíveis em www.dgsi.pt

[12] Cfr. Código Civil Anotado, Vol. VI, pág. 20
[13] Cfr. Lições de Direito das Sucessões, Vol. I, 3ª edição, págs. 52-53
[14] Cfr. Sucessões, 1981, pág. 353
[15] Cfr. Tratado de Direito Civil Português, I – Parte Geral, Tomo I, 1999, pág. 440
[16] Cfr. obra citada na nota anterior, pg. 429