Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3871/12.4 TBVFR-A.P1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÂO
Relator: BETTENCOURT DE FARIA
Descritores: VALOR DOS ACÓRDÃOS UNIFORMIZADORES DE JURISPRUDÊNCIA
Data do Acordão: 09/11/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - RECURSOS.
Doutrina:
- Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 379.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-AUJ Nº 4/2013.
Sumário : Não basta não se concordar com o entendimento de um acórdão uniformizador. Para decidir em sentido contrário é necessário trazer uma argumentação nova e ponderosa, quer pela via da evolução doutrinal posterior, quer pela via da actualização interpretativa.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I

Por apenso aos autos de execução para pagamento de quantia certa que o Banco AA moveu contra BB, CC, DD, EE e FF, veio este último executado deduzir oposição à execução.

Em resumo, refere que o aval que por si foi dado e constante da livrança executada ter sido em tempo denunciado à exequente, em virtude de o opoente ter cessado as funções na sociedade subscritora daquela.

Mais alega que o silêncio da exequente perante essa sua declaração consubstancia uma aceitação tácita desta, pelo que o accionamento da livrança pela exequente traduz exercício abusivo do direito.

Alega ainda ter havido preenchimento abusivo da referida livrança.

A exequente contestou, impugnando os factos aduzidos pelo oponente, defendendo que a denúncia do aval não tem nenhuma eficácia, que não agiu abusivamente e que a livrança foi preenchida de acordo com o pactuado.

O processo seguiu os seus trâmites e, feito o julgamento, foi proferida sentença, que

julgou a oposição improcedente.

Apelou o opoente, tendo o Tribunal da Relação proferido a seguinte decisão:

Pelo exposto, revoga-se a sentença recorrida, julgando-se a oposição à execução procedente, quanto à livrança de 557.973,29 €, e improcedente, no que concerne à livrança de 31.763,55 €.

Custas, nas duas instâncias, por recorrente e recorrida, na proporção do respectivo decaimento.”.

Recorre, agora o exequente, o qual, nas suas alegações de recurso, apresenta, em síntese, as seguintes conclusões:

1. As características próprias do aval, o qual assume carácter unilateral, incondicional, irrestrito e intemporal, bem como a própria ausência de vontade das partes, excluem o acordo implícito entre recorrente e recorrido, de que este permaneceria como avalista, apenas enquanto fosse sócio da sociedade subscritora.

2. Deve ser aplicada a jurisprudência uniformizada pelo AUJ nº 4/2013, pois a decisão a proferir versa sob o domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, não tendo existido no âmbito do acórdão recorrido qualquer ponderação especial de circunstâncias concretas relativamente à doutrina daquela jurisprudência uniformizadora.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

II

Vêm dados por assentes os seguintes factos:

1. O banco exequente celebrou um contrato de locação financeira e um contrato de conta corrente com a sociedade subscritora das livranças dada à execução. (artigo 1º da oposição)

2. Com a celebração dos referidos contratos, foi entregue ao banco exequente uma livrança em branco para cada um dos mesmos, subscrita pela referida sociedade e avalizada, entre outros, pelo ora oponente. (artigo 2º da oposição)

3. Por cartas datadas de 06.03.2009, 23.03.2009 e 18.08.2009, o oponente denunciou o referido aval. (artigo 3º da oposição)

4. O oponente informou a exequente que renunciou a todos os cargos de administração que desempenhava nas empresas do grupo HH, entre as quais, na sociedade subscritora da livrança dada à execução, tendo apresentado aos restantes accionistas proposta de alienação da sua participação social. (artigo 4º da oposição)

5. Nos vários contactos efectuados pelo oponente ao banco exequente, sempre lhe foi referido que o assunto estava a ser resolvido, nomeadamente com a negociação de reestruturações às dívidas das empresas envolvidas. (parte artigo 7º da oposição)

6. O oponente recebeu, em 3 e 4 de Abril de 2012, missivas do banco exequente dando conta da resolução dos contratos e preenchimento das livranças caução. (artigo 13º da oposição)

7. O oponente denunciou o aval prestado nas livranças dadas à execução nos presentes autos e fê-lo em momento prévio à data de vencimento aposta nas mesmas e da resolução dos contratos por parte do banco. (artigo 14º da oposição)

8. A resolução dos contratos em causa e preenchimento das livranças aconteceram em Abril de 2012, três anos após a denúncia do aval comunicada pelo oponente em Março de 2009. (artigo 15º da oposição)

9. E fê-lo mediante declaração de denúncia, enviada por carta registada com A/R, a qual foi recebida pelo banco exequente. (artigo 16º da oposição)

10. O oponente fez saber ao banco exequente que após a data da comunicação de denúncia dos avales prestados, não aprovava “… a prorrogação, renovação, renegociação ou celebração de novos contratos de empréstimos, nem a disponibilização de valores previamente autorizados em contas corrente caucionadas de qualquer das sociedades que integram o Grupo HH que se encontrem garantidos por avales, fianças ou outras garantias prestadas por mim sem o meu prévio consentimento por escrito”. (artigo 25º da oposição)

11. O contrato de locação financeira imobiliária nº …, celebrado em 21 de Maio de 2007, com a co-executada “GG, Ldª”, foi assinado pelo oponente, tendo o mesmo conhecimento da celebração dele e ficando com cópia para si. (artigos 52º e 53º da contestação)

12. Em data anterior à celebração do contrato de locação financeira em 18.05.2007, o oponente assinou o pacto de preenchimento da livrança que garante o bom cumprimento do contrato de locação financeira, tendo a sua assinatura sido reconhecida. (artigos 54º e 55º da contestação)

13. O oponente assinou o contrato de locação financeira e as suas condições particulares, na qualidade de gerente da locatária, e também a livrança que garantia o bom cumprimento do mesmo e o seu pacto de preenchimento, tendo as mesmas sido reconhecidas, tendo o oponente perfeito conhecimento do seu teor, quer do contrato de locação financeira quer do pacto de preenchimento. (artigos 56º a 58º e 60º da contestação)

14. O oponente assinou o contrato de conta corrente caucionada, celebrado em 6 de Abril de 2006 e a respectiva alteração em 26.06.2006. (artigos 62º e 63º da contestação)

15. A cláusula 9ª do contrato de conta corrente caucionada prescrevia que seria entregue à exequente uma livrança subscrita por GG, Ldª, e avalizada por BB, o oponente, DD, EE e CC, ficando a exequente autorizada a preenchê-la no que se refere à data de vencimento, ao local de pagamento e aos valores, até ao limite das responsabilidades emergentes do contrato de conta corrente caucionada. (artigo 64º da contestação)

16. A exequente não foi ressarcida dos créditos que detinha sobre a locatária e mutuária, através do bom cumprimento dos contratos e, uma vez que foram incumpridos os contratos, a exequente preencheu as livranças avalizadas pelo oponente, tendo o mesmo sido interpelado, contendo tal interpelação a informação que as livranças iriam ser preenchidas. (artigos 67º a 70º da contestação)


III

Apreciando

1. Estando aqui em causa a eventual aplicação de jurisprudência uniformizada, cabe, antes do mais, saber se a hipótese dos autos é factualmente idêntica à do AUJ nº 4/2013. A resposta só pode ser afirmativa. Trata-se do sócio que avalizou a sociedade subscritora de livrança e que denunciou esse aval por, entretanto, ter deixado de ser sócio. Saber se se pode distinguir entre aval em livrança em branco e o aval a livrança totalmente preenchida é questão jurídica a apreciar posteriormente. O segmento uniformizador em questão não distingue, pelo que é forçoso entender que estamos neste processo no âmbito daquele acórdão uniformizador.

2. E assim sendo e tendo o acórdão recorrido afastado a jurisprudência uniformizada há que ver em que termos é que tal é possível.

Entre a rigidez interpretativa obrigatória dos antigos assentos e a mera natureza indicativa da jurisprudência em geral, está a jurisprudência uniformizada. Esta tem de ter um valor próprio que não se pode ficar pela mera sugestão (ainda que reforçada), hipótese em que perderia a razão de ser.

A regra só pode ser a de que a jurisprudência uniformizada não deve ser afastada pela mera discordância doutrinal do julgador, caso que não se distinguiria da restante jurisprudência.

A citação do conselheiro Abrantes Geraldes feita no acórdão em apreço resolve de forma lapidar a questão:

o respeito pela qualidade e pelo valor intrínseco da jurisprudência uniformizada do STJ conduzirá a que só razões muito ponderosas poderão justificar desvios de interpretação das normas jurídicas em causa (v.g. violação de determinados princípios que firam a consciência jurídica ou manifesta desactualização da jurisprudência face à evolução da sociedade)”. Ac

“a discordância, a existir, deve ser antecedida de fundamentação convincente, baseada em critérios rigorosos, em alguma diferença relevante entre as situações de facto, em contributos da doutrina, em novos argumentos trazidos pelas partes e numa profunda e serena reflexão interior

Ou seja, não basta não se concordar com o entendimento do acórdão uniformizador. Essa é uma questão ultrapassada. É necessário trazer uma argumentação nova e ponderosa, quer pela via da evolução doutrinal posterior, quer pela via da actualização interpretativa.

3. Ora, é isto que, salvo o devido respeito, não ocorre na decisão em causa.

Limita-se esta a consignar – pontos 2 a 4 – as razões da sua discordância com o que foi uniformizado. Discordância legítima, mas que, pelo que vimos referindo não é relevante. Não é apontado um fundamento para rever a doutrina fixada.

Entende o mesmo acórdão que não existe falta de respeito pela jurisprudência uniformizada, porque são utlizados novos argumentos não considerados no respectivo acórdão. Como atrás considerámos, não basta os argumentos serem diferentes. Assim, qualquer AUJ poderia ser ultrapassado. Pelo que atrás referimos, é necessário também que sejam doutrinalmente inovadores. E aqui trata-se de argumentos que já poderiam ter sido considerados aquando da prolação do acórdão uniformizador. No fundo, apenas se continua a polémica que a uniformização de jurisprudência pretendeu ultrapassar. Ainda que seja para não acatar o AUJ é sempre da sua posição que se deve partir, contrapondo-lhe uma nova realidade e não criticando apenas a sua formulação. Citando novamente Abrantes Geraldes – Recursos no Novo Código de Processo Civil, 379 – :

Ou seja, a divergência ( com a jurisprudência uniformizada) não se justifica por si mesma, antes devendo ser encarada como um objectivo cujo alcance exige um percurso que, sem hiatos, tenha como ponto de partida a letra da lei e percorra todas as etapas intermédias.

Em suma, para contrariar a doutrina uniformizada pelo Supremo devem valer fortes razões ou outras especiais circunstâncias que porventura ainda não tenham sido suficientemente ponderadas.”

Tal percurso apontado por aquele ilustre magistrado para que possa haver a rejeição da jurisprudência unificada não está, salvo o devido respeito, enunciado na decisão em causa, quando apenas funda a sua divergência na existência de um pacto implícito, decorrente dos princípios da boa fé e da vontade conjectural das partes, do qual resultaria que o avalista só o seria enquanto fosse sócio. Até porque esta questão foi implicitamente versada no AUJ, ao referir que o avalista não pode fazer retroagir a garantia a um momento anterior àquele que consta da data do vencimento.

Por outras palavras, não basta discordar da doutrina de um AUJ, mesmo que se aduzam argumentos diferentes dos ali consignados, para afastar a sua aplicação. Necessário se torna para atingir esse fim que se aborde a resolução da questão jurídica a decidir por forma diversa e inovadora. Só deste modo, estaremos no campo das fortes razões ou das circunstâncias especiais de que fala o autor citado para que se possa contrariar a jurisprudência fixada por este Supremo.

O que não é o caso dos autos.

Discutir agora a valia dos argumentos da decisão em apreço seria por, indevidamente, em questão a força da decisão unificadora da jurisprudência.

4. Não sendo de afastar a jurisprudência do AUJ nº 4/2013, temos que o recurso procede, por não poder valer a oposição quanto à livrança em questão, com o fundamento de que o avalista já não é sócio da sociedade subscritora.

Pelo exposto, acordam em conceder a revista e, revogando o acórdão recorrido, mantêm a sentença de 1ª instância.

Custas neste Tribunal e nas instâncias pelo recorrido.


Lisboa, 11 de setembro de 2014

Bettencourt de Faria (Relator)

João Bernardo

Oliveira Vasconcelos