Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
639/13.4TBOAZ.P1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: OBJETO DO RECURSO
ALTERAÇÃO DO OBJETO DO PROCESSO
PEDIDOS SUBSIDIÁRIOS
Data do Acordão: 06/06/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO EM GERAL / INSTÂNCIA / COMEÇO E DESENVOLVIMENTO DA INSTÂNCIA.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 264.º E 265.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 11-04-2019, PROCESSO N.º 8531/14, IN WWW.DGSI.PT.
- DE 07-04-2016, PROCESSOS N.º 842/10;
Sumário :
I. O pedido e a causa de pedir apenas podem ser modificados no condicionalismo previsto nos arts. 264º e 265º do CPC, não sendo admissível a modificação do objeto do processo em sede de recurso.

II. Numa ação de simples apreciação negativa na qual os RR. formularam o pedido de condenação dos Autores no pagamento de uma quantia em resultado de um acordo de revogação estabelecido entre dois interessados numa parceria relacionada com projetos imobiliários, não é admissível, na fase de recurso, sustentar a mesma pretensão pecuniária, ainda que subsidiariamente, i) no facto de tal parceria corresponder a uma sociedade irregular cuja constituição estava afetada de nulidade; ii) no facto de o referido acordo corresponder a uma cessão da participação social nessa sociedade irregular que seria nula; ou iii) no facto de a verificação da existência de uma sociedade irregular implicar a sua  dissolução, seguida de liquidação.

III. Em face do objeto inicial da ação, a verificação dos efeitos decorrentes da nulidade da constituição de uma sociedade irregular não corresponde a uma mera operação de requalificação jurídica da pretensão inicial que esteja ao alcance oficioso do tribunal de recurso, antes implica a apreciação de uma realidade diferenciada nos seus contornos fácticos ou jurídicos.

Decisão Texto Integral:
I – AA, Lda, e BB instauraram a presente acção de simples apreciação negativa, com processo ordinário, contra CC, DD e esposa EE, FF, GG e esposa HH.

Terminaram a sua petição pedindo que se declarasse:

a) Que II, marido e pai dos RR., não é, nem nunca foi, em sua vida, sócio da A. e que não assiste aos RR., seja em seu nome próprio ou na qualidade de herdeiros do referido II, direito a ser sócios da A. nem a qualquer participação no seu capital;

b) Que a A. não deve aos RR., seja em nome próprio destes ou na qualidade invocada nos arts. 4º e 5º da petição, qualquer quantia em dinheiro tendo por causa os projetos imobiliários respeitantes à compra dos terrenos referidos nos arts. 15º, 22º, 23º e 37º da petição e à prevista construção nos mesmos dos projetos imobiliários aludidos ao longo da petição inicial;

c) Que o A. não deve aos RR., seja em nome próprio destes ou na respectiva qualidade invocada nos arts. 4º e 5º da petição, qualquer quantia em dinheiro tendo por causa os projetos imobiliários respeitantes à compra dos terrenos referidos nos arts. 15º, 22º, 23º e 37º e à prevista construção nos mesmos dos projectos imobiliários aludidos ao longo da petição inicial.

Os RR. apresentaram contestação alegando a existência de um negócio de parceria entre os AA. e II, o qual foi revogado, obrigando-se os AA. a pagar a este último a quantia de PTE 105.000.000$00 (equivalente a € 523.737,80). Por isso pediram a condenação dos AA. no pagamento da quantia de € 823.399,92 (capital e juros vencidos), acrescida dos juros de mora vincendos à taxa legal, sobre o capital de € 523.737,80, desde a notificação dos AA. da reconvenção.

Os AA. replicaram.

Realizado o julgamento foi proferida sentença declarando que:

1. II, marido e pai dos RR., não é, nem nunca foi, em sua vida, sócio da A. AA, Ldª e não assiste aos RR., seja em seu nome próprio ou na qualidade de herdeiros do referido II, direito a ser sócios da A. nem a qualquer participação no seu capital;

2. Que nenhum dos AA. deve aos RR., em nome próprio destes ou na qualidade invocada nos arts. 4º e 5º da petição, qualquer quantia em dinheiro tendo por causa os projetos imobiliários respeitantes à compra dos terrenos referidos nos arts. 15º, 22º, 23º e 37º da petição e à prevista construção nos mesmos dos projetos imobiliários aludidos ao longo da petição inicial;

3. Foi declarado improcedente o pedido formulado pelos RR. de condenação no pagamento da quantia de € 823.399,92 (capital e juros vencidos) e dos juros de mora vincendos à taxa legal, sobre o capital de € 523.737,80, desde a notificação dos AA. da reconvenção, até efetivo pagamento.

Os RR. interpuseram recuso de apelação e a Relação decidiu, embora por razões diferentes, julgar improcedente o recurso e confirmar a sentença.

Foi interposto recurso de revista, tendo sido proferido neste Supremo Tribunal de Justiça acórdão que determinou a baixa do processo à Relação para apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto suscitada pelos AA. nas contra-alegações de recurso de apelação, a título de ampliação do objeto do recurso.

A Relação proferiu novo acórdão que, alterando parcialmente a decisão da matéria de facto, no sentido pretendido pelos AA., confirmou de novo a sentença recorrida, embora por razões diferentes.

Foi interposto novo recurso de revista em que os RR. suscitam as seguintes questões essenciais:

a) Existe erro na reapreciação da matéria de facto traduzida na alteração aos pontos 28 e 31 a 33 dos factos enunciados na sentença, por violação de regras de direito probatório material, designadamente quanto ao valor probatório pleno dos documentos particulares não impugnados e bem assim das regras que regulam a confissão, as presunções judiciais e a prova testemunhal;

b) Foi negada força probatória ao documento junto em 18-3-04 e foi assumido que a matéria de facto relacionada com os pontos 28º e 31º a 33º exigia documento escrito, o que a lei não impõe, sendo descurada a prova testemunhal;

c) O A. fez em sede de declarações de parte uma declaração confessória, nos termos da qual admitiu que devia dinheiro a II;

d) O documento anteriormente referido constituiria um princípio de prova, o que legitimava a consideração de prova testemunhal complementar;

e) Foi usada pela relação presunção judicial mediante uma ilação ferida de ilogicidade e de base factual, a respeito do acordo final estabelecido entre o A. e II;

f) Perante dúvida suscitada acerca do acordo final estabelecido entre o A. e II, impunha-se considerar a matéria constitutiva do direito e manter as respostas aos pontos 28º e 31º a 33º;

g) Deve ser reconhecido o direito de crédito invocado pelos RR., em resultado de um acordo livremente celebrado entre o falecido II e o A., ao abrigo dos arts. 397º, 398º e 405º do CC, tendo em conta a frustração do projeto imobiliário;

h) Subsidiariamente, concluindo-se pela nulidade do acordo que foi celebrado, deve o pedido ser julgado procedente como decorrência do art. 289º do CC que obriga à restituição daquilo que foi prestado;

i) Ainda subsidiariamente, considerando que entre o falecido e o A. foi outorgado um contrato de sociedade irregular, o acordo celebrado corresponde a uma cessão de quotas não sujeita ao formalismo do art. 995º, nº 2, do CC;

j) Ainda subsidiariamente, considerando que se tratou de uma sociedade irregular, em lugar de se considerar, como no acórdão recorrido, pela sua inexistência, deve ser qualificado o acordo como de dissolução e liquidação daquela sociedade, julgando-se procedente o pedido;

k) Ainda subsidiariamente, se se considerar que entre os referidos sujeitos foi outorgado um contrato de sociedade irregular, deve concluir-se que com tal qualificação opera automaticamente a sua liquidação, procedendo-se à requalificação do pedido que foi formulado no sentido de reconhecer aos reconvintes o direito a uma participação ou quota na sociedade irregular;

l) Deste modo, deve concluir-se que os imóveis que foram adquiridos no âmbito dessa sociedade irregular constituem património desta, condenando-se os AA. a satisfazer a quantia ilíquida, sem prejuízo da condenação na quantia já liquidada.

Houve contra-alegações.

Cumpre decidir.


II - Factos que as instâncias consideraram provados:

1. A 1ª A. é uma sociedade comercial por quotas que tem como objeto a atividade de compra e venda de propriedades, construção civil e empreendimentos turísticos e cujo capital social, no valor de PTE 25.000.000$00, correspondente a € 124.699,47, é, desde 19-9-95, representado por cinco quotas de valor nominal de € 24.939,89, pertencentes, três delas, ao 2º A., e duas a sua esposa, JJ, os quais são também os seus únicos sócios-gerentes.

2. II, que foi residente no lugar de …, freguesia de …, concelho de …, faleceu a …-…-12, sendo os RR. DD, FF e GG os seus únicos filhos de II e a R. CC a sua cônjuge supérstite, com quem o falecido era casado no regime de comunhão geral.

3. II foi sócio constituinte e gerente da KK, Lda, cujo contrato social foi outorgado e assinado por escritura pública lavrada a 28-4-94, mas cujo registo na CRP de … apenas foi efetuado em 22-12-98.

4. O 2º A. exerce a profissão de advogado, com escritório na R. …, nº …, em … e em virtude da prestação dos seus serviços de advogado, o A. e II criaram entre si relações de confiança, amizade e estima pessoal mútuas.

5. Em finais de Julho, inícios do mês de Agosto de 1998, II quis comprar a LL e esposa, para a KK, Lda, dois prédios confinantes entre si e ambos a confinar com a antiga EN-1, atual R. …, na freguesia e cidade de …, com a área global de 4.760 m2, sendo o rústico inscrito na matriz sob o art. 299º e descrito na CRP sob o nº 51….7, a fls. 65 do Livro B-135 e o outro urbano, inscrito na matriz sob o art. 1255º e descrito na CRP sob o nº 61…3, a fls. 31, do Livro B-160.

6. Nesse sentido e com essa finalidade, procurou os serviços do A., tendo este constatado que isso não era possível por a referida KK, Ldª, não se encontrar registada e tendo ainda aquele A., na qualidade de advogado, constatado que a KK, Ldª, não reunia as condições necessárias para beneficiar da isenção de sisa na aquisição projetada.

7. Tratando-se de aquisição para posterior revenda, o pagamento de sisa representava um custo a evitar, o que apenas seria possível se a aquisição fosse efetuada por uma entidade que reunisse os respetivos pressupostos legais.

8. Em finais de Julho, inícios do mês de Agosto de 1998, II e o A. acordaram verbalmente em estabelecer uma parceria, mediante a qual aquele (e não este como as instâncias exararam) adquiriria o prédio urbano composto de casa de habitação com cave, rés-do-chão e 1º andar, sito no Lugar de …, freguesia e concelho de …, descrito na CRP de … sob o nº 61...3, e inscrito na respectiva matriz urbana sob o art. 1.255, e o prédio rústico formado por três campos de terra lavradia, denominado “MM”, no Lugar de …, freguesia e concelho de …, descrito na CRP de … sob o nº 51. …7, e inscrito na respectiva matriz urbana sob o art. 299º.

9. O A. adquiriria o prédio rústico composto por pinhal, com a área de 3.100 m2, a confinar pelo sul com os prédios referidos em 8., e pelo nascente com a EN-1, agora R. ….

10. E acordaram em anexar os prédios descritos em 8. e 9., o que os valorizaria, tornando possível obter junto da Câmara Municipal de … a aprovação de um projeto de construção de um empreendimento imobiliário: construção de um edifício de habitação coletiva e comércio com uma maior volumetria de construção e, assim, de maior rentabilização do investimento.

11. No âmbito dessa parceria II garantiu o seu interesse, a sua disponibilidade e a sua colaboração para acompanhar e participar nas diligências necessárias à elaboração, apresentação e aprovação dos projetos pela Câmara Municipal, à escolha e seleção de um promotor imobiliário que aceitasse a permuta e construísse o empreendimento, bem como acompanhamento ulterior da construção.

12. II e o A. BB acordaram que participariam no negócio na proporção dos valores de aquisição e despesas suportados por cada um.

13. Os AA. e II acordaram que este outorgasse a escritura pública de compra e venda dos prédios mencionados em 8. diretamente em nome da A. AA, Ldª.

14. O A. BB, em nome da AA, S.A., emitiu uma procuração em favor de II concedendo-lhe poderes para outorgar a escritura de compra e venda dos prédios mencionados em 8.

15. No dia 7-8-98, no Cartório Notarial de …, compareceram como outorgantes:

Primeiro: Dr. LL e esposa NN;

Segundo: II que outorgou na qualidade de procurador da sociedade A.

E ali foi, além do mais, dito em escritura pública pelos 1ºs outorgantes que, pelo preço global de 75.000.000$00, vendem à sociedade ali representada pelo 2º outorgante os prédios mencionados em 8.

E, pelo 2º outorgante foi declarado:

“Que aceita a presente venda para a sociedade que representa e que os prédios adquiridos se destinam para revenda”.

16. II pagou integralmente o valor global referido em 15., tendo igualmente suportado o custo dos emolumentos e demais despesas devidos pela outorga da mesma escritura pública, no valor total de Esc. 1.000.000$00.

17. A A. AA adquiriu, em 26-2-99, o prédio rústico identificado em 9.

18. A A. AA, Ldª, celebrou, em 5-8-99, acordo de permuta com OO, mediante a qual daria os prédios referidos em 8. e 9. e do referido OO receberia em troca 19% das fracções de um edifício de garagens, comércio e habitação colectiva, em propriedade horizontal, edifício que OO se comprometeu a realizar naqueles prédios.

19. No âmbito da parceria acordada, II pagou o valor total de Esc. 14.000.000$00 de honorários ao arquiteto PP que desde o início acompanhou e elaborou os vários projetos apresentados na Câmara Municipal de ….

20. A A. AA adquiriu o terreno, com 6.742 m2, sito no Lugar de …, na R. da …, que o II e BB designavam como “terreno do Cego” (alterado pela Relação).

21. No dia 17-11-00, na sequência de uma reunião havida na Câmara Municipal de …, II manifestou vontade em terminar a parceria existente e, consequentemente, propôs ao A. BB a cedência da sua quota-parte no negócio pelo valor por si investido.


III – Quanto à matéria de facto:

1. Os recorrentes suscitam a verificação de erro na reapreciação da decisão da matéria de facto considerada provada pela 1ª instância (o ponto 28º que no anterior elenco passou a corresponder ao ponto 20º, e os pontos e 31º a 33º que foram eliminados pela Relação), essencialmente por não terem sido respeitados meios de prova com força probatória plena, de ter sido considerado pela Relação a insuficiência de prova testemunhal e de ter sido feito uso indevido de presunções judiciais.

Os pontos 31º a 33º que a 1ª instância considerara provados e que a Relação eliminou estavam relacionados com o alegado acordo de extinção da “parceria” estabelecida entre os AA. e II e de assunção do pagamento a este da quantia correspondente a PTE 105.000.000$00.

A pretensão dos recorrentes relativamente a qualquer dos referidos pontos de facto debate-se com os obstáculos decorrentes de ser dirigida ao Supremo Tribunal de Justiça que, nos termos do art. 674º, nº 3, do CPC, está sujeito a um forte condicionamento quanto ao exercício de poderes jurisdicionais em sede de fixação da matéria de facto provada e não provada.

Com efeito, nos termos de tal normativo, a sua intervenção cassatória ou corretiva está limitada aos casos em que exista erro de apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa motivado por ofensa de disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência de um facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.

Nenhuma das previsões se configura no caso concreto relativamente a qualquer das divergências expostas pelos recorrentes.


2. Começando pelo atual ponto 20º do enunciado de factos considerados provados, a Relação modificou o que fora considerado provado pela 1ª instância, retirando (considerando não provado) o segmento segundo o qual II teria participado também com a quantia de PTE 15.000.000$00 na aquisição do prédio aí mencionado por parte da R. AA.

Para o efeito descreveu a Relação que analisou a prova produzida e os documentos juntos aos autos, concluindo que não existia qualquer documento que permitisse extrair tal conclusão, sendo insuficiente o fax de fls. 89 no qual se aludia ao valor de PTE 15.000.000$00. Acrescentou que o A. nas suas declarações não esclareceu quem pagou o quê e que também não conseguiu especificar se II pagou o referido prédio e qual o valor.

Este simples enunciado revela que, relativamente à reapreciação do referido ponto de facto, a Relação fez uso do princípio da livre apreciação das provas, numa situação em que inexistia qualquer documento ou outro meio com força probatória plena que confirmasse o facto que a 1ª instância considerara provado, ou seja, que II tivesse contribuído com alguma quantia para a aquisição, por parte da sociedade A., do prédio mencionado aquele ponto.

O aludido documento de natureza particular não comporta qualquer efeito probatório pleno quanto ao seu conteúdo, de modo a que, contraposto aos AA., dele pudesse retirar-se, sem outros elementos, que II contribuíra com aquele valor para a aquisição de um imóvel por parte da sociedade A.

Neste contexto, não encontra qualquer justificação a pretensão dos recorrentes no sentido de repor a versão inicial do aludido ponto de facto, na medida em que a matéria em causa nem sequer pode ser objeto de revista, atento o disposto no nº 4 do art. 662º do CPC e também não se verifica o condicionalismo previsto no nº 3 do art. 674º.


3. Insurgem-se ainda os recorrentes contra a decisão da Relação que resultou na eliminação do leque de factos provados dos anteriores pontos 31º a 33º, ou seja, de que a “parceria” imobiliária estabelecida entre as AA. e II ter-se-ia extinguido por acordo e que o A. se teria obrigado a pagar a II a quantia de PTE 105.000.000$00.

Também não procede a pretensão de reposição de tais factos.

Tal como já se referiu, para o efeito era necessário que a Relação tivesse desconsiderado algum meio de prova com força probatória plena. Ora, o fax de fls. 89 a que os recorrentes dão relevo não contém qualquer declaração coberta por força probatória plena capaz de vincular o A. a quem o mesmo foi dirigido.

Por outro lado, invocando os recorrentes uma alegada confissão que prejudicaria o A., fizeram-no através da invocação de um extrato das declarações que terá prestado mas que nem sequer se mostram reduzidas a escrito.

Com efeito, a eventual extração de força probatória plena a partir de uma declaração do A. com valor confessório exigia que a mesma tivesse sido reduzida a escrito, nos termos do art. 358º, nº 1, do CC, e do art. 463º, nº 1, do CPC, não bastando a mera alusão feita nas alegações a tal depoimento.

Também não se verificam os pressupostos de que depende a apreciação pelo Supremo Tribunal de Justiça do uso de presunções judiciais. O Supremo só pode censurar o recurso a presunções judiciais pela Relação se esse uso ofender qualquer norma legal, se padecer de evidente ilogicidade ou se partir de factos não provados (Ac. do STJ de 11-4-19, 8531/14, em www.dgsi.pt).

Ora, a motivação da Relação sobre a reapreciação da matéria de facto que foi impugnada pelos AA. não revela qualquer circunstância que se inscreva nesses estritos limites, sendo o resultado fruto da apreciação livre e conjugada de diversos meios de prova, entre os quais a prova por documentos sem valor probatório pleno, os depoimentos testemunhais, o depoimento do A. e o uso de presunções judiciais.

Por conseguinte, não estando de modo algum preenchido o condicionalismo de que depende a deteção de um erro de apreciação das provas, nos termos do art. 674º, nº 3, do CPC, improcede a pretensão dos recorrentes que incide sobre a decisão da matéria de facto.


IV – Quanto à matéria de direito:

1. Ao pedido dos AA. de que se reconhecesse que não devem aos RR. qualquer quantia tendo por causa os projetos imobiliários respeitantes à compra dos terrenos referidos nos arts. 15º, 22º, 23º e 37º da petição e à prevista construção nos mesmos dos projetos imobiliários, contrapuseram os RR. a existência de um acordo de parceria que teria sido revogado por mútuo acordo estabelecido entre o A. e o falecido II, obrigando-se aquele a pagar a este a quantia de PTE 105.000.000$00, correspondente ao valor da sua participação nessa parceria.

A 1ª instância, embora tenha considerado provado tal acordo extintivo da parceria e a assunção, por parte do A., da obrigação de pagamento da referida quantia, considerou que lhe estava subjacente uma sociedade irregular e concluiu que o referido acordo extintivo era nulo por vício formal, por corresponder a uma cessão de quotas numa relação que incidia sobre imóveis.

A Relação foi confrontada com a reapreciação da decisão da matéria de facto suscitada pelos AA. nas contra-alegações, a título de ampliação do objeto do recurso. No uso dos poderes legais em sede de fixação dos factos provados e não provados, decidiu que deviam ser retirados do leque de factos provados quer o referido acordo extintivo, quer a assunção de qualquer obrigação pecuniária dele decorrente. Depois disso, empregando fundamentação jurídica diversa, confirmou a improcedência da pretensão deduzida pelos RR. Independentemente da modificação factual, concluiu que não existia qualquer sociedade irregular, faltando qualquer base para a condenação dos AA. no pagamento de qualquer quantia pelos RR.

Os RR. procuraram reverter a decisão da matéria de facto, o que improcedeu nos termos anteriormente expostos. Ademais prosseguiram com a sua pretensão recursória como se a matéria de facto que a 1ª instância considerou provada se tivesse mantida intacta. Com efeito, toda a construção jurídica que inseriram no segmento das alegações atinente às implicações jurídicas desconsiderou por completo as alterações que foram introduzidas pela Relação e não conseguiram reverter.

Ora, na medida em que foi julgado improcedente o objeto do recurso de revista na parte concernente à matéria de facto provada e não provada, encontram-se manifestamente prejudicados os argumentos em que os RR. insistiram e que têm como pressuposto uma realidade diversa daquela sobre a qual este Supremo Tribunal de Justiça pode incidir.


2. Os elementos de facto essenciais que emergem da decisão da matéria de facto tal qual foi fixada pelas instâncias são os seguintes:

- Em finais de Julho e início de Agosto de 1998, II e o A. acordaram verbalmente em estabelecer uma parceria, mediante a qual aquele adquiriria um prédio urbano e um prédio rústico, ao passo que o A. adquiriria um prédio rústico, acordando ainda que iriam anexar tais prédios antes de avançarem com um projeto imobiliário;

- No âmbito dessa mesma parceria, II garantiu o seu interesse, a sua disponibilidade e a sua colaboração para acompanhar e participar nas diligências necessárias à elaboração, apresentação e aprovação dos projetos pela Câmara Municipal, à escolha e seleção de um promotor imobiliário que aceitasse a permuta e construísse o empreendimento, bem como acompanhamento ulterior da construção;

- Tais sujeitos acordaram que participariam no negócio na proporção dos valores de aquisição e despesas suportados por cada um;

- No âmbito desse relacionamento acordaram ainda que II outorgasse a escritura pública de compra e venda dos prédios que se comprometera adquirir diretamente em nome da A. AA, Ldª, emitindo o A., em nome desta sociedade de que era sócio e gerente uma procuração a favor de II concedendo-lhe poderes para outorgar a escritura de compra e venda desses prédios, o que veio a concretizar-se;

- Em 26-2-99 a sociedade A. adquiriu o prédio que o A. se comprometera a adquirir no mencionado acordo;

- No âmbito daquela parceria II pagou integralmente o valor de PTE 75.000.000$00 referente aos prédios que se comprometera adquirir, assim como os emolumentos e despesas no valor de Esc. 1.000.000$00; pagou ainda os honorários do arquiteto PP, que desde o início acompanhou e elaborou os vários projetos apresentados na Câmara Municipal de …, no valor total de Esc. 14.000.000$00;

- Em 5-8-99 a sociedade A. celebrou um acordo de permuta com OO, mediante a qual daria os prédios referidos anteriormente em troca de 19% das frações de um edifício que este OO se comprometeu a realizar naqueles prédios;

- No dia 17-11-00, II manifestou vontade em terminar a parceria existente e propôs ao A. BB a cedência da sua quota-parte no negócio pelo valor por si investido.


3. Estabilizada a matéria de facto, dela decorre a total falta de sustentação do pedido de condenação que os RR. formularam e que tinha por base um alegado acordo de revogação da parceria que alegadamente fora estabelecida entre as AA. e II e a assunção, por parte do A., da obrigação de pagar a este a quantia de PTE 105.000.000$00.

No dia 17-11-00, II manifestou vontade em terminar a parceria imobiliária existente e propôs ao A. BB a cedência da sua quota-parte no negócio pelo valor por si investido. Mas para além de não se ter provado qualquer acordo relacionado com a extinção da referida parceria, também não ficou demonstrado que o A. se tivesse obrigado a pagar ao seu parceiro qualquer quantia correspondente a uma alegada cessão da sua parte nessa parceria. Tratou-se tão só de uma proposta apresentada pelo falecido II, mas a que faltou a aceitação da parte do A. para que dela pudesse extrair-se algum efeito jurídico e, designadamente, aquele que decorre do pedido formulado.

Neste contexto e tendo em conta o teor das alegações de recurso e das respetivas conclusões que circunscrevem o objeto do recurso na sua vertente principal (art. 635º do CPC), não podemos deixar de confirmar o acórdão recorrido que confirmou a improcedência daquela pretensão.

Não se mostram, aliás, necessárias considerações suplementares que seriam de todo estéreis, em torno da qualificação jurídica do relacionamento que foi estabelecido entre o A. e II que a 1ª instância designou de sociedade irregular e a Relação como sociedade inexistente.

Na verdade, tendo em conta o fundamento que os RR. invocaram como prioritário para a procedência da sua pretensão – o alegado acordo mediante o qual o A. se obrigara a pagar a II uma quantia emergente daquele relacionamento - a confirmação do resultado declarado pela Relação é independente da qualificação que pudesse ser atribuída a tal relacionamento.

Centrada a atuação deste Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista, nas questões de direito que se revelem pertinentes para a apreciação do mérito da pretensão dos recorrentes, são concretamente descabidas considerações a que apenas poderia creditar-se interesse académico, mas sem a virtualidade de modificarem o sentido da decisão que já se anunciou e que se traduz na improcedência da pretensão que os AA. deduziram na revista a título principal.

Ora, atento o disposto no art. 608º, nº 2, do CPC, devendo o tribunal conhecer de todas as questões suscitadas, fica dispensado de responder àquelas que, em concreto, se mostrem prejudicadas pela solução dada a outras, como é o caso.


4. Porém os RR. deduziram sucessivamente três (!) pedidos subsidiários:

a) No pressuposto da inexistência de uma sociedade irregular e da invalidade do negócio celebrado e da cessão de quotas, consideram que os AA. devem ser condenados na restituição do valor de PTE 105.000.000$00 a que se refere o ponto 32 (que, como se disse anteriormente, foi considerado “não provado” pela Relação), ao abrigo do art. 289º do CC;

b) Num segundo plano da subsidiariedade, essa mesma condenação adviria do facto de o aludido “acordo de terminar a parceria existente” corresponder afinal a uma “liquidação da mesma sociedade” decorrente da sua “dissolução”, o que justificaria igualmente a condenação no pagamento da referida quantia;

c) Finalmente, no pressuposto da declaração de nulidade do acordo de parceria, enquanto sociedade irregular que entraria em processo de liquidação, essa condenação traduzir-se-ia no pagamento de uma quantia ilíquida, sem prejuízo da condenação imediata no pagamento da quantia já liquidada.

Não iremos detalhar as razões que poderiam ser expostas relativamente a cada uma das novas pretensões subsidiárias, na medida em que se verificam impedimentos de ordem formal quanto à apreciação do seu mérito.

Os recursos e, designadamente, os de revista destinam-se a reapreciar anteriores decisões que tenham sido impugnadas, estando o Tribunal ad quem limitado a apreciar as questões suscitadas pelas partes e aquelas que sejam de conhecimento oficioso.

Nessa tarefa não existe obstáculo formal a que o tribunal de recurso aprecie matéria de direito, por ser de conhecimento oficioso (art. 5º, nº 2, do CPC), o que se verifica designadamente quando é detetado algum erro na qualificação jurídica dos factos. Mas tais poderes oficiosos não podem ser interpretados de uma forma tão lata que, na realidade, legitimem a apreciação de questões inteiramente novas e que as partes não suscitaram nem foram objeto de anterior contraditório ou que traduzam uma convolação do objeto do processo.

É precisamente o que se passa quando analisamos cada um dos pedidos subsidiários expostos pelos recorrentes que, na verdade, não correspondem a qualquer requalificação jurídica dos factos, mas à apresentação de novas pretensões assentes em novas causas de pedir.


5. Como se disse anteriormente, os RR. sustentaram a sua pretensão basicamente num acordo revogatório de uma parceria que traduziria uma sociedade irregular, sendo o pedido correspondente ao alegado valor da participação de II nessa parceria. Em termos muito mais simples, os RR. pretenderam extrair a condenação dos AA. da outorga de um acordo que implicaria para os AA. o pagamento da quantia de PTE 105.000.000$00.

Perante tão singela pretensão, não encontra qualquer sustentação a verdadeira modificação do objeto do processo que emerge de todos e de cada um dos pedidos subsidiários, tratando-se de questões novas que de modo algum podem inscrever-se no recurso de revista, tal como já não podiam inscrever-se no recurso de apelação, como acabou por concluir também a Relação (fls. 681).

Na realidade, partir do pressuposto de que o A. e II formaram ente si uma sociedade irregular e que, por via da declaração de nulidade, se imporia a condenação do A. na restituição de alguma quantia correspondente à participação de II nessa entidade, são ultrapassadas largamente as margens da requalificação jurídica do pedido e da causa de pedir, tal como as ultrapassam a outra pretensão subsidiária decorrente da sustentação dessa condenação na liquidação dessa entidade e na decorrente liquidação.

Limites que igualmente se mostram excedidos de forma manifesta, numa ação como esta, quando se pretende obter a condenação a partir da consideração de que o acordo constitutivo da sociedade irregular estava afetado de nulidade e que, na decorrência dessa nulidade, caberia ao tribunal considerar a dissolução dessa sociedade irregular e condenar os AA. em alguma quantia correspondente à sua liquidação.

O processo civil, em qualquer das suas fases, implica limites à dedução de pretensões ou de meios de defesa, não apenas por razões de disciplina processual, como ainda perante a necessidade de cada questão ser debatida na fase processualmente adequada. É por isso que os arts. 264º e 265º do CPC prescrevem uma forte limitação à alteração do pedido ou da causa de pedir. Salvo quando se verificar acordo das partes – que no caso inexiste – a causa de pedir apenas pode ser alterada ou ampliada em consequência de confissão feita pelo réu e aceita pelo autor. E, quanto ao pedido, podendo ser reduzido em qualquer altura, na falta desse acordo, apenas pode ser ampliado, mas não alterado, até ao encerramento da discussão em 1ª instância. Em qualquer dos casos com uma limitação: a de que tal não implique a convolação para relação jurídica diversa da controvertida.

Os obstáculos à livre atuação das partes no âmbito do processo civil ocorrem também em sede de recurso de apelação ou de recurso de revista. Em qualquer dos casos, é vedado ao recorrente confrontar o tribunal ad quem com questões novas, a não ser que se trate de matéria que seja de conhecimento oficioso, incluindo os casos em que esteja em causa a mera aplicação de normas jurídicas, ou seja, questões de direito.

Embora não exista uma noma tão precisa quanto as dos arts. 264º e 265º do CPC, o entendimento jurisprudencial e doutrinal alinha nesse sentido, considerando, essencialmente a partir do art. 635º, que os recursos constituem mecanismos processuais que visam a impugnação de decisões proferidas por tribunais hierarquicamente inferiores, tendo como objeto a reapreciação dessas decisões e das questões nele abordadas ou que sejam de conhecimento oficioso, e não a apreciação de questões novas.

Ora, numa ação sustentada num alegado acordo revogatório de uma parceria, abarcando uma singela obrigação de pagamento de uma determinada quantia por parte de um dos interessados correspondente ao valor da participação nessa parceria, a sustentação da mesma pretensão pecuniária, no valor indicado ou mesmo em quantia a liquidar posteriormente, na nulidade do contrato inerente ao estabelecimento de uma sociedade irregular, na nulidade de uma alegada cessão de quota nessa sociedade irregular ou na dissolução e correspondente dissolução dessa mesma entidade não corresponde de modo algum a uma mera requalificação jurídica dos factos ou da pretensão, antes se inscreve na modificação total e absoluta do objeto do processo que, sendo inadmissível no recurso de apelação, também não pode ser considerada neste recurso de revista.

Contra a corrente do processo e contra o que as partes haviam discutido nos articulados, até à audiência final, as pretensões subsidiárias que os RR. deduziram, além de corresponderem a questões novas que são processualmente inadmissíveis, determinariam uma alteração do objeto do processo que está condicionada pelas regras previstas nos arts. 264º e 265º do CPC.

Assumimos aqui a justificação que, relativamente a uma situação semelhante, foi adotada no Ac. do STJ, 7-4-16, 842/10, onde se deixou exposto que “… como parece evidente e inquestionável, nada disto se passa no caso dos autos, dada a perfeita heterogeneidade – quer jurídica, quer prático-económica – entre o pedido efetivamente formulado pelo A., situado claramente no plano real da compropriedade sobre determinado património imobiliário, e o resultado da convolação operada pelo juiz, reconhecendo-lhe, não qualquer direito de natureza real sobre tais imóveis, mas antes determinada quota ou participação na sociedade que se teve por existente, face à qualificação jurídica da relação material litigiosa. Na verdade, para além de direitos reais e associativos serem realidades juridicamente bem diferenciadas, é manifesto que – mesmo no plano prático-jurídico - representam posições totalmente diversificadas quanto ao seu conteúdo e efeito prático as de comproprietário num conjunto de imóveis identificados e de sócio numa sociedade irregular que, porventura, detenha – ou haja detido – tais imóveis no património social”.


IV – Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente a revista.

Custas da revista a cargo dos RR.

Notifique.

Lisboa, 6-6-19


Abrantes Geraldes (Relator)

Tomé Gomes

Maria da Graça Trigo