Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
083149
Nº Convencional: JSTJ00024493
Relator: ARAUJO RIBEIRO
Descritores: UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
PRESCRIÇÃO
RENÚNCIA
Nº do Documento: SJ199405050831492
Data do Acordão: 05/05/1994
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Referência de Publicação: ASSENTO 11/94 DR 161/94 DR Iª SERIE A DE 14-07-1994, PÁG. - BMJ Nº 437 ANO 1994 PÁG. 29
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PARA O PLENO
Decisão: UNIFORMIZAÇÃO JURISPRUDÊNCIA
Indicações Eventuais: A MACIEIRA RENÚNCIA DIR PRESC GRL ANO21 PAG425. C ROCHA INST PAR455.
D FERREIRA ANOT VOLII COIMBRA 1871. C GONÇALVES TRAT VOLIII PAG659.
Área Temática: DIR CIV - TEORIA GERAL.
Legislação Nacional: CCIV66 ARTIGO 292 ARTIGO 298 N1 ARTIGO 300 ARTIGO 302 N1.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1986/05/27 IN BMJ N357 PAG377.
ACÓRDÃO STJ PROC81430 DE 1992/03/19.
Sumário :
A renúncia da prescrição permitida pelo artigo 302 do Código Civil só produz efeitos em relação ao prazo prescricional decorrido até ao acto de renúncia, não podendo impedir os efeitos do ulterior decurso de novo prazo.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em plenário, no Supremo Tribunal de Justiça:

I
O Banco Nacional Ultramarino, S. A., interpôs recurso para o tribunal pleno, do acórdão de 19 de Março de 1992, fotocopiado a fls. 101/106 e proferido no recurso de revista n. 81430, em que é recorrido, sendo recorrente SIURBE - Sociedade de Investimentos Urbanos, S. A., invocando oposição com o acórdão de
27 de Maio de 1986, publicado no B. M. J. n. 357, página 377. Naquele acórdão, concedendo a revista, decidiu este Supremo Tribunal, que a renúncia à prescrição não tem efeitos definitivos, iniciando-se novo prazo prescricional após o acto de renúncia.


A fls. 38/39, a Secção reconheceu a existência de oposição e mandou prosseguir o recurso.


Alegando, o recorrente formula as seguintes conclusões:
1: Na sua definição vocabular em dicionários da língua portuguesa, a palavra renúncia significa desistência, abandono, sacrifício, rejeição, recusa, não aceitação, abdicação, etc., onde, portanto, está ínsita a noção de extinção.


2. O legislador não utiliza palavras com sentido antagónico ou antinómico ao seu significado comum.


3. A lei não pode conter redundâncias - o que aconteceria se se considerasse que teria início novo prazo prescricional após a renúncia, pois que, além do mais, confundiria na realidade as duas figuras, da renúncia e da interrupção da prescrição.


4. Quer no domínio do direito público como no domínio do direito privado, a renúncia significa abandono ou perda, tanto no direito interno como no externo, como vem sendo entendido pela jurisprudência e pela doutrina.
5. O legislador, efectivamente, quis que a renúncia operasse para o futuro, como obviamente se conclui da relação do artigo 302 do Código Civil.
6. Deve ser lavrado assento em que se fixe que a renúncia opera para o futuro e impede que comece a correr novo prazo prescricional a partir da data em que ocorreu, como acto jurídico unilateral não recipiendo exprime vontade de abdicar ou abandonar um direito subjectivo ou outra situação jurídica que se extingue em função dela renúncia e, portanto, quem renuncia a um direito fá-lo para todo o sempre, abandonando-o ou abdicando dele, não se podendo exercer o direito que se extinguiu ou abandonou (Nota: transcrição textual).


Contra-alegando, a recorrida invoca a índole pública do instituto da prescrição e os artigos 305 e 311 do Código Civil, buscando ainda argumentos no campo dos direitos reais. para concluir que o assento deve ser lavrado no sentido da decisão recorrida.


O Exmo. Procurador-Geral Adjunto, a fls. 51 e seguintes, acompanha a posição da recorrida, propondo assento confirmativo do acórdão sob recurso.
Colhidos os vistos; porque nada temos a dizer contra o decidido pela Secção quanto à existência de oposição entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento, cumpre decidir:


II
Como resulta do acórdão recorrido, o autor (ora recorrente) pedira a condenação da ré (recorrida) a pagar-lhe uma certa quantia e juros, com fundamento em duas letras de câmbio aceites pela ré. Esta, ao contestar, invocou a prescrição dos direitos cambiários relativos às letras ajuizadas, uma vez que tinham decorrido mais de três anos desde o vencimento das letras, mas o autor contrapôs-lhe a renúncia à prescrição através de declaração exarada no documento de fls. 23 dos autos (cfr., nestes, fls. 6). Após essa renúncia, decorreu novo período superior a três anos até à propositura da acção onde foi proferido o acórdão recorrido.
E foi esta questão "que suscita duas soluções antagónicas" que o douto acórdão recorrido decidiu no seguinte sentido: "Extinto em 29 de Abril de 1981 o direito potestativo de recusar o cumprimento das respectivas obrigações cambiárias, iniciou-se naquela mesma data novo prazo prescricional". E, em conformidade, concedeu a revista, para subsistir a decisão da 1. instância, que julgara a excepção procedente e absolvera a ré do pedido.


O acórdão fundamento contém, sobre questão idêntica, uma decisão de sinal contrário: "a renúncia opera para o futuro e impede que comece a correr novo prazo... Quem renuncia a um direito fá-lo para todo o sempre, abandonando-o ou abdicando dele. E não se pode exercer um direito que se extinguiu ou abandonou".


III
A questão surge a propósito do artigo 302, n. 1, do Código Civil ("a renúncia da prescrição só é admitida depois de haver decorrido o prazo prescricional"), uma vez que a lei civil não contém qualquer referência à perpetuidade ou ao imediatismo dos efeitos da renúncia.
A solução atribuidora de efeitos definitivos à renúncia
é a defendida pelo recorrente, para o que invoca, antes de mais, argumentos derivados do significado da palavra renúncia, que não nos parecem relevantes, pois que aquilo que está em causa não é o sentido dum termo, mas sim o efeito juridico do acto, que de modo nenhum se deduz da significação do mesmo termo: continuará a haver "desistência, abandono, rejeição, recusa, não aceitação, abdicação", se apenas se renunciar à prescrição de que se beneficiou com o decurso dum dado prazo sem se pretender renunciar
à prescrição que resulte de prazo que venha a decorrer e a completar-se posteriormente.


E, porque não está em causa o conceito de renúncia, nem mesmo o seu efeito, mas sim a extensão desse efeito, não pode dizer-se que a solução oposta confunda as figuras da renúncia e da interrupção da prescrição.
Com António Macieira (Renúncia ao Direito de Prescrição, na Gazeta da Relação de Lisboa, 21. -425, citado pelo Exmo. Magistrado do Ministério Público), diremos:
"... não há confunsão possivel entre a renúncia ao direito de prescrição e a interrupção desta mesmo quando aquela e esta se pretendem averiguar por factos donde resultem necessariamente.


"Nesse caso, o prazo da prescrição não chegou a concluir-se. No da renúncia, o prazo consumou-se. Ali, pretende-se provar que o prazo se interrompeu por factos donde se deduz o reconhecimento expresso; na renúncia que o direito adquirido pela prescrição foi repudiado por factos donde tal repúdio necessariamente se conclui.


"Assim, se contra alguém que alega a prescrição se provar que, depois de decorrido o prazo, pediu mora no pagamento, mandou dinheiro por conta, tentou fazer uma transacção para pagamento fixando na sua proposta uma quantidade como base dela, declarou publicamente que devia e queria pagar, é óbvio que se provou a renúncia do direito que tinha adquirido pela prescrição."


Quanto ao artigo 302, ele não é literalmente ofendido com a tese do acórdão recorrido, pois que, segundo ela, a renúncia "opera para o futuro", mas em relação ao direito (potestativo) que o renunciante adquiriu no termo do prazo prescricional decorrido quando emitiu a declaração de renúncia.

IV
Quanto ao acórdão fundamento, parece-nos que contém mais uma afirmação do que razões para ela, ao dizer que "a renúncia opera para o futuro e impede que comece a correr novo prazo prescricional", que "quem renuncia a um direito fá-lo para todo o sempre, abandonando-o ou abdicando dele" e que "não se pode exercer um direito que se extinguiu ou abandonou".


Porque isto, salvo o devido respeito, é o quod est demonstrandum.
Além disso, a conclusão que dele transcrevemos depara com um obstáculo que nos parece intransponível no próprio plano da lógica quando o conjugarmos com o preceito legal em causa nesta questão, o artigo 302, n. 1, do Código Civil: É que, adquirido pelo devedor o direito (potestativo) de recusar o cumprimento da obrigação com o decurso dum certo prazo prescricional, mas emitida a declaração de renúncia; visto que é impossível suster o curso do tempo, inicia-se imediatamente um novo prazo susceptível de, em abstracto, conduzir de novo à prescrição. Ora, se considerarmos que a renúncia vale para o futuro, temos de concluir que o renunciante está a renunciar antecipadamente à prescrição, ou seja, ao direito de se eximir, pela segunda vez, ao cumprimento da obrigação, o que contraria abertamente o preceituado no invocado artigo 302, n. 1.


V
Vem já de longe a inadmissibilidade da renuncia antecipada à prescrição - mesmo desde antes do Código de Seabra: veja-se, designadamente, Coelho da Rocha, no parágrafo 455 das Instituições de Direito Civil Português (Coimbra, 1848).


Já no domínio do Código de Seabra, Dias Ferreira, depois de dar razões justificativas do instituto da prescrição, escreveu, no vol. 2 do Código Civil Anotado (Coimbra, 1871):


"Por isso é admitida a prescrição como instituição social, essencialmente necessária à ordem pública, tendo-lhe Cicero até chamado finis sollicitudinis et litium e outros jurisconsultos romanos patrona generis humanis" (página 58).


E no 1. volume (Coimbra, 1870):


"Não pode também renunciar-se à prescrição, artigo 508, que é de direito público e foi introduzida por conveniência social; essa renúncia inutilizaria o fim da lei, tornando-se cláusula sacramental em todos os contratos, pois que os proprietários e credores nunca deixariam de exigir como obrigatória esta condição, para não correrem o risco de perder o seu direito pela prescrição.


Porém, ao direito adquirido pela prescrição, como de interesse particular, pode renunciar-se..." (página 225).


Vigente já a reforma de 1929, Cunha Gonçalves - aliás já referido no acórdão recorrido - no Tratado...,
III, depois de citar Bigot-Prèameneu ("de todas as instituições do direito civil, a prescrição é a mais necessária à ordem social" - página 635) e de relembrar (página 659) que o instituto da prescrição se baseia no interesse público afirma que a renúncia à prescrição adquirida não obsta a que uma nova prescrição principie a favor do renunciante" (página 667), chamado também a atenção para o facto de que a renúncia a uma prescrição em curso só pode ser tida como interrupção da prescrição.

VI
A promulgação do Código Civil de 1966 não alterou este estado de coisas, como resulta desde logo do importantíssimo trabalho preparatório do Código que é o estudo do Prof. Vaz Serra, no B. M. J., 105 a 107

(v. para a problemática da renúncia da prescrição, o n. 105, p. 131-145).
E os Profs. pires de Lima e Antunes Varela referem, no Código Civil Anotado, a propósito do artigo 300:
"A proibição estabelecida na lei e a solução prescrita para a sua violação (nulidade do negócia) explicam-se pelas razões de ordem pública (interna) que estão na base do instituto da prescrição, destinado a tutelar a certeza do direito e a segurança do comércio jurídico."
A proibição e a sanção a que se referem estes ilustres Mestres consiste no seguinte (teor do artigo 300): "São nulos os negócios jurídicos destinados a modificar os prazos legais da prescrição ou a facilitar por outro modo as condições em que a prescrição opera os seus efeitos."
Então, com o acórdão recorrido, diremos que, se a renúncia impedisse o decurso de novo prazo,
"possibilitaria que, a partir dela, um direito disponível e não isento, por lei, de prescrição, passasse a gozar dessa isenção por virtude de mera declaração negocial, o que contraria as disposições conjugadas dos citados artigos 298, n. 1 e 300. A ser esse o sentido da declaração negocial de renúncia,
- impedir também futura prescrição do direito em causa
- teria então de funcionar a sanção de nulidade estatuida no artigo 300, pelo que sempre haveria que reduzir o respectivo negócio apenas à prescrição completada anteriormente (v. artigo 292 do Código Civil).".
Convém - a propósito- lembrar que a tese do recorrente depara com um obstáculo no plano da declaração: É que, para se verificar se houve ou não renúncia antecipada à prescrição, "deve examinar-se com cuidado o valor das frases escritas ou dos factos" ( Cunha Gonçalves), pelo que não parece que possa dizer-se que quem declara sem mais renunciar à prescrição esteja a renunciar ao direito (potestatio) já adquirido e também ao que poderia adquirir futuramente.

VII
Em síntese:
Permitir que a renúncia ao direito já adquirido pelo decurso do prazo prescricional - através do qual a obrigação originária se converteu en mera obrigação natural - se tomasse como uma renúncia ao direito resultante do decurso dum novo prazo -renunciando-se em definitivo ao instituto (de interesse público) da prescrição, seria, indubitavelmente, infringir a regra da segunda parte do artigo 300, na medida em que se estaria, mais ainda do que a "dificultar as condições em que a prescrição opera os seus efeitos", a impedir que se produzisse esses mesmos efeitos.

VIII
Por tudo o exposto, nega-se provimento ao recurso e formula-se o seguinte

ASSENTO :
A renúncia da prescrição permitida pelo artigo 302 do Código Civil só produz efeitos em relação ao prazo prescricional decorrido até ao acto de renúncia, não podendo impedir os efeitos do ulterior decurso de novo prazo.
Condena-se o recorrente nas custas deste recurso.

Lisboa, 5 de Maio de 1994.

Araújo Ribeiro,
Roger Lopes,
Miranda Gusmão,
Castanheira da Silva,
Costa Pereira,
Figueiredo de Sousa,
Cardoma Ferreira,
Sampaio da Silva
Cardoso de Bastos,
Santos Monteiro,
Pereira Cardigos,
Mário Cancela,
Cura Mariano,
Raúl Mateus,
Sousa Macedo,
Sá Couto,
Costa Raposa,
Ramiro Vidigal,
Gomes Noronha,
Pais de Sousa,
Chichorro Rodrigues,
Carlos Caldas,
Machado Soares,
Zeferino Faria,
Martins da Costa,
Faria de Sousa,
Martins da Fonseca,
Calixto Pires,
Teixeira do Carmo,
Miguel Montenegro,
Amado Gomes,
Sá Ferreira,
Silva Reis,
Sousa Guedes,
Sá Nogueira,
Lopes de Melo,
Coelho Ventura,
Ferreira Vidigal,
Oliveira Branquinho,
Gelásio Rocha,
Castanheira da Costa.
César Marques (Vencido. É admissível a renúncia da prescrição depois de haver decorrido o prazo prescricional - artigo 302, n. 1 do Código Civil. Assim como na respectiva acção pode não ser invocada tal excepção, o que depende, apenas, da vontade do devedor: A renúncia, em si, traduz a perda do direito a que se renuncia. Não há qualquer contradição com o disposto no artigo 300 do dito Código, já que se não modifica qualquer prazo de prescrição. Decorrido esse prazo, o interesse que subjaz é o particular do devedor que renúncia àquele direito. Votei, assim, pelo modo como se decidiu no acórdão fundamento) Fernando Fabião (Vencido nos mesmos termos).