Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
156/16.0T8BCL.G1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: CATARINA SERRA
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
PODERES DA RELAÇÃO
MATÉRIA DE FACTO
Data do Acordão: 05/30/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / JULGAMENTO DO RECURSO / RECURSO DE REVISTA / FUNDAMENTO DA REVISTA.
Doutrina:
- Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Volume I - Parte Geral e Processo de declaração – Artigos 1.º a 702.º, Coimbra, Almedina, 2018, p. 800;
- Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2018, 5.ª edição, p. 287 e ss., 397 e ss., 431 e ss.;
- José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º - Artigos 362.º a 626.º, Coimbra, Almedina, 2018, 3.ª edição, p. 705 e ss.;
- Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Volume II, Coimbra, Almedina, 2018, p. 331, 332 e 339.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 662.º, N.º 4 E 674.º, N.º 1, ALÍNEA B).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 08-10-2009, PROCESSO N.º 1834/03.0TBVRL-A.S1;
- DE 21-10-2009, PROCESSO N.º 474/04.0TTVIS.C1.S1;
- DE 06-07-2011, PROCESSO N.º 645/05.2TBVCD.P1.S1;
- DE 09-07-2015, PROCESSO N.º 284040/11.0YIPRT.G1.S1;
- DE 11-02-2016, PROCESSO N.º 907/13.5TBPTG.E1.S1,TODOS IN WWW.DGSI.PT.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:

- DE 08-02-2018, PROCESSO N.º 585/13.1TBCMN.G1.
Sumário :
I. Não obstante a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça no tocante à decisão sobre a matéria de facto ser residual e de o n.º 4 do artigo 662.º do CPC ser peremptório a determinar a irrecorribilidade das decisões através das quais o Tribunal da Relação exerce os poderes previstos nos n.ºs 1 e 2 da mesma norma, é admissível julgar o modo de exercício destes poderes, dado que tal previsão constitui “lei de processo” para os efeitos do artigo 674.º, n.º 1, al. b), do CPC.

II. O facto de a decisão do Tribunal da Relação ser coincidente com a decisão proferida pela 1.ª instância não pode constituir indício de que aquele não exerceu os poderes que lhe são conferidos pelo artigo 662.º do CPC, não estando ele constituído no dever de alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto senão quando os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA



I. RELATÓRIO



AA e BB vieram intentar acção declarativa com processo comum contra CC pedindo que a acção seja julgada procedente, por provada e, em consequência:

a) Declarar-se que o prédio identificado no artigo 1º da petição, com cerca de 18.000,00 m2, onde se inclui a faixa de terreno de cerca de 320,00 m2 ocupada pelo réu, conforme planta topografia junta como documento nº 3, é propriedade dos autores.

b) Ser condenado o réu a restituir aos autores a faixa de terreno de cerca de 320,00 m2 que ocupa.

c) Ser condenando o réu a abster-se da prática de qualquer acto que impeça ou diminua a utilização por parte dos autores deste mesmo terreno.

d) Ser o réu condenado as recolocar as terras que retirou daquele de terreno colocando-o à sua cota original.

e) Ser o réu condenado a recolocar os marcos e as pedras que delimitavam o terreno.

f)  Ser condenado o réu a pagar aos autores a quantia de €357,90 referente às despesas que os autores pagaram para a colocação dos esteiros.

g) Ser condenado o réu ao pagamento aos autores de quantia de €2.000,00 a título de danos não patrimoniais.

h) Ser condenado o réu ao pagamento de juros de mora, à taxa legal, sobre as quantias mencionadas nas alíneas f) e g) do pedido, desde a data da citação até integral pagamento.

Pelo réu CC foi apresentada contestação. No seu entender, a acção deveria julgada não provada e improcedente e, em consequência, ser absolvido de todos os pedidos.

Os autores AA e BB apresentaram resposta onde concluem considerando deverem ser as excepções invocadas pelo réu declaradas improcedentes, concluindo-se como na petição inicial.

Foi elaborado despacho saneador, identificado o objeto do litígio e enunciados os temas de prova.

Face ao falecimento da autora BB, foram julgados habilitados para prosseguir na lide DD e EE.

Realizou-se julgamento e foi proferida sentença em 27.11.2017 (fls. 269 e s.), na qual se decidiu julgar a acção parcialmente procedente e, em consequência:

A) Declarar-se que os autores são proprietários do prédio rústico denominado de FF, composto de pinhal, mato e eucaliptal, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº 3…/200…0 da freguesia de … e inscrito na matriz predial rústica de … sob o artigo 300 e da parcela descrita em 6) dos factos provados.

B) Condenar-se o réu CC a restituir aos autores a parcela de terreno que se situa a poente do muro da GG com uma extensão de cerca de 65 metros e com cerca de 4,5m de largura que se estende de sul desde a Rua da … até à restante bouça dos autores do lado norte.

C) Condenar-se o réu CC a abster-se da prática de qualquer acto que impeça ou diminua a utilização por parte dos autores sobre o prédio e a parcela identificados em A) e B).

D) Condenar-se o réu CC a reconstituir a situação da parcela referida em B), repondo o terreno à sua cota original em cerca de 1 metro de altura.

E) Condenar-se o réu CC a pagar aos autores a quantia de €357,90 (trezentos e cinquenta e sete euros e noventa cêntimos) acrescida de juros de mora desde a citação e até efectivo e integral pagamento.

F)    Condenar-se o réu CC a pagar ao autor AA de quantia de €500,00 (quinhentos euros) a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora desde a presente data e até efectivo e integral pagamento.

G)   No mais, absolver-se o réu CC do peticionado.

Discordando da decisão quanto à matéria de facto e da decisão jurídica da sentença, o réu CC interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Guimarães (fls. 283 e s.).

Apreciado o recurso, decidiu este Tribunal, por unanimidade, recusar a alteração factual pretendida e, consequentemente, confirmar a decisão do Tribunal de 1.ª instância, concluindo-se no Acórdão de 8.11.2018 (fls. 335 e s.) o seguinte:

"Face à manutenção da decisão de facto, igualmente se terá de manter a decisão jurídica da causa, tendo em conta que a pretenda alteração da decisão jurídica da causa pelo apelante se baseava na alteração de decisão da matéria de facto, que não ocorreu, pelo que daí resulta que a apelação terá de improceder e, em consequência, confirmar-se a douta sentença recorrida”.

Ainda inconformado, interpôs o réu recurso de revista excepcional para este Supremo Tribunal de Justiça (fls. 346 e s.), onde foi distribuído à Formação a que se refere o artigo 672.º, n.º 3, do CPC.

Por Acórdão de 11.04.2019 (fls. 376 e s.), esta Formação determinou a distribuição do recurso como revista normal, entendendo que “em casos como este, falece a dupla apreciação, não se podendo falar em dupla conforme. Com inerente afastamento do regime que resulta do n.° 3 do artigo 671.° do dito código e, concomitantemente, da com­petência desta Formação”. Invocou esta Formação o Acórdão de 14.5.2015, processo n.° 29/12.6TBFAF.G1.SI , cujo teor é o seguinte:

"I - A dupla conformidade, como requisito negativo geral da revista excecional, supõe duas apreciações sucessivas da mesma questão de direito, ambas determinantes para a decisão, sendo a segunda confirmatória da primeira.

II - Quando o tribunal da Relação é chamado a intervir para reapreciação das provas e da matéria de facto, nos termos dos arts. 640.º e 662.º do NCPC (2013), move-se no campo de poderes, próprios e privativos, com o conteúdo e limites definidos por este último preceito, que não encontram correspondência na decisão da 1.ª instância sobre a mesma ma­téria.

III - Embora haja urna decisão sobre a matéria de facto da 1.ª instância e, uma outra, da Relação, que reaprecia o julgamento da matéria de facto, não poderá afirmar-se que, quando se questiona o respeito pelas normas processuais dos arts. 640.º e 662.º pela Relação, existe uma questão comum sobre a qual tenham sido proferidas duas decisões conformes".

Cabe, em síntese, apreciar o presente recurso como revista normal, sendo irrelevantes as considerações do recorrente quanto à admissibilidade do recurso por via excepcional e ficando afastada a questão da sua inadmissibilidade com fundamento na existência de dupla conforme.

Nas alegações de recurso que apresenta, formula o réu / ora recorrente as seguintes conclusões:

I – DAS RAZÕES DA ADMISSIBILIDADE DO RECURSO EXCEPCIONAL DE REVISTA

1º - Resulta do sumário do acórdão agora colocado em crise que“ no que respeita à reapreciação da prova, a avaliação dos meios de prova produzidos, tem de ser feita a partir de uma perspectiva crítica, global e objectiva”. Este entendimento resulta do facto do Tribunal da Relação recorrido entender que o tribunal de primeira instância aprecia livremente as provas e goza dos princípios da imediação, da oralidade, da concentração, princípios que o Tribunal da Relação não usufrui. E por isso, tal situação conduz que só em casos extremos é que a Relação poderá concluir diferentemente do julgador da 1ª instância quanto à matéria de facto.

2º - Sucede que, o entendimento contido no sumário do acórdão colocado agora em crise contraria o vertido no artigo 662º do C.P.C. Aos cidadãos é reconhecido o duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, sendo que na reforma do Código de Processo Civil de 2013 não foi alterado o sistema dos recursos cíveis, mas houve a preocupação de “conferir maior eficácia à segunda instância para o exame da matéria de facto”, de acordo com Exposição de Motivos da Proposta de Lei nº 113/XII apresentada à Assembleia da República, de cuja aprovação veio a resultar o actual Código de Processo Civil, disponível em www.parlamento.pt. Tal eficácia traduziu-se no reforço e ampliação dos poderes da Relação nos recursos de reapreciação da matéria de facto.

3º - Ora, o caminho percorrido pelo douto tribunal da Relação é totalmente inverso ao reforço dos poderes das Relações na reapreciação da matéria de facto, frustrando-se a conhecer das questões enunciadas e a ser um mero carimbo das decisões proferidas pelas primeiras instâncias, sem manter a sua autonomia e poder de formar convicção sobre a prova indicada pelo Recorrente, conjugada com os demais elementos, pelo que, em termos práticos estamos na presença de um recurso de Apelação excepcional no que toca à matéria de facto, contrariando assim os fins e as intenções legislativas concretizadas na revisão do C.P.C.

4º - Pelo que, salvo melhor, há uma questão jurídica que necessita de uma melhor aplicação direito, perante o caso concreto, pois uma resposta adequada à mesma permitirá no futuro um melhor enquadramento da disciplina da reapreciação da matéria de facto, contribuindo quiçá, para uma diminuição dos recursos nesta sede, bem como permitirá uma melhor aplicação da Justiça numa área tão sensível como é a demanda de justiça pelos cidadãos, os quais procuram sempre obter nas instâncias superiores a justiça e o direito que entendem que não é bem aplicado em sede de primeira instância, e por isso, estamos na presença de direitos fundamentais consagrados na Constituição cuja apreciação merece o olhar e a análise do distinto Supremo Tribunal de Justiça, pois estamos na presença de uma questão que envolve o direito do acesso à justiça e consequentemente a observância de denegação de justiça, nos termos do artigo 20º da C.R.P.

II – DO RECURSO DE REVISTA EXCEPCIONAL

5º - É nosso humilde entendimento que muito mal decidiu o douto tribunal da Relação ao considerar o recurso interposto pela aqui Recorrente improcedente, pois por mais respeito que o tribunal recorrido nos mereça, entendemos que nos presentes autos não se decidiu bem, uma vez que o tribunal recorrido fez errada interpretação dos factos e inadequada aplicação do direito, nomeadamente na aplicação das normas da lei do processo sobre a reapreciação da matéria de facto.

6º - Permitindo o recurso aos argumentos reiterados em sede do recurso da Apelação, entende o aqui Recorrente que da prova produzida em audiência de discussão e julgamento não se pode extrair a conclusão que o autor AA tenha agido com “animus possidendi” em relação à faixa de terreno em questão nos autos, ou que relativamente a ele tenha praticado qualquer acto de posse, pois no seu entendimento não configura tal “animus” o facto de as testemunhas terem dito que viram o autor a cortar silvas no caminho por onde passava para aceder ao seu prédio (a faixa em questão), nem a circunstância de tal ter ocorrido á vista de todos e sem oposição de ninguém, designadamente do aqui réu, facto que apenas pode relevar de uma mera situação de tolerância e não mais do que isso.

7º - Com o devido respeito, não foi feita prova segura pelo autor, dos requisitos que a lei faz depender a aquisição da posse por usucapião, pelo que, se a reapreciação da prova tivesse ocorrido de acordo com o que infra se indicará, veríamos que a decisão da primeira instância deveria ser alterada e o Recorrente absolvido nos autos.

8º - Razão pela qual, para decidir como se decidiu nos presentes autos, houve flagrante violação do princípio da livre apreciação da prova por parte do julgador e regras gerais sobre a prova, previstos no artigo 341º e 342º do C.C. SENÃO VEJAMOS,

9º - Os factos descritos e elencados na douta sentença de primeira instância, mantiveram-se idênticos em sede do douto tribunal da Relação, o qual entendeu que sobre a reapreciação da matéria de facto, a avaliação dos meios de prova produzidos tem de ser feita a partir de uma perspectiva crítica, global e objectiva.

10º - Sucede que, tal interpretação da norma 662º do C.P.C., conduz a que se faça tábua rasa da apreciação da prova efectuada pelo Recorrente. Alega o douto acórdão agora colocado em crise que não basta a simples indicação de depoimentos de testemunhas já apreciados, impondo-se ainda a apreciação feita pela instância recorrida, de forma a justificar a alteração da decisão proferida, tudo com base num acórdão da Relação de Guimarães, datado de 08/02/2018, na apelação n.º 585/13.1TBCMN.G1, in www.dgsi.pt/

11º - Ora, de acordo com o preceituado no artigo 662º, n.º 1 do CPC, «A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.». A nova redacção do citado artigo 662º, em contraponto com o artigo 712º do Código anterior, pretendeu realçar que, sem embargo da correcção, mesmo a título oficioso, de determinadas patologias que afectam a decisão de facto e também sem prejuízo do ónus de impugnação da decisão de facto que recai sobre o recorrente, quando esteja em causa a impugnação de determinados factos cuja prova tenha sido sustentada em meios de prova submetidos à livre apreciação do julgador, a Relação deve alterar a decisão de facto sempre que, no seu juízo autónomo, submetido às mesmas regras de direito probatório material que são aplicáveis em 1ª instância, os elementos de prova que se mostrem acessíveis imponham uma solução diversa da antes acolhida.

12º - Afastada está, assim, a tese de que a modificação da decisão de facto pela Relação só pode ter lugar em casos de erro manifesto ou grosseiro de valoração ou apreciação dos meios probatórios produzidos, ou, ainda, que a Relação, atentos os princípios da imediação e da oralidade, não pode contrariar o juízo formulado em 1ª instância relativamente a meios de prova que foram objecto de «livre apreciação», sendo que a presente posição está vertida nos mais recentes arestos jurisprudenciais, conforme se pode ler do seguinte acórdão: “(…) II - No âmbito da reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, ainda que esteja em causa a reapreciação de meios de prova sujeitos à livre apreciação do julgador, deve o Tribunal da Relação formar a sua própria e autónoma convicção, procedendo à análise crítica, à luz das regras da ciência, da lógica e das regras da experiência humana, dos meios de prova convocados pelo apelante e outros que julgue relevantes para a decisão e se mostrem acessíveis.(…)”- cfr. Acordão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 08-10- 2018, in http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/f6688dd278f4925a8025834c00416699?OpenDocument

13º - E o citado acórdão vai ainda mais longe e na sua fundamentação, referindo ainda que “Sem prejuízo do relevo de tais princípios ( princípios da imediação e da oralidade) e sem olvidar que o Juiz em 1ª instância se encontra, por via do imediato contacto com as provas, em particulares condições para efeitos de julgamento da matéria de facto - condições estas que, por regra, não são repetíveis no julgamento em 2ª instância -, dúvidas não existem que a evolução legislativa e o pensamento legislativo que vieram a obter consagração no artigo 662º, n.º 1 apontam no sentido de o Tribunal da Relação se assumir “como verdadeiro tribunal de instância e, por isso, desde que, dentro dos seus poderes de livre apreciação dos meios de prova, encontre motivo para tal, deve introduzir as modificações que se justificarem (…), assistindo-lhe plena autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis.” - Vide, neste sentido, por todos, A. ABRANTES GERALDES, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2ª edição, pág. 232-233, F. AMÂNCIO FERREIRA, “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 8ª edição, pág. 213-221 ou, ainda, por todos, AC STJ de 30.05.2013, relator SERRA BAPTISTA, AC STJ de 18.05.2017, relator ANA LUÍSA GERALDES, ambos in www.dgsi.pt.

14º - Ora, isto não foi o que sucedeu com o recurso interposto pelo aqui Recorrente, pois o digníssimo tribunal da Relação de Guimarães apenas transcreveu a sentença judicial proferida em primeira instância, colocando-lhe um carimbo de confirmação, sem julgar a prova como o faria uma instância judicial dotada de uma firma convicção autónoma, desprezando por completo os poderes conferidos pelo artigo 662º do C.P.C.

15º - Se a reapreciação da matéria de facto pelo tribunal recorrido percorresse os critérios supra citados, a mesma chegaria à conclusão de que na questão primordial em discussão nos autos – a titularidade da faixa do terreno – o Recorrente praticou actos de posse sobre a faixa de terreno em questão e que das testemunhas arroladas pelos autores, não resulta a prática pelo autor de factos com animus possidendi, em relação á faixa em questão.

16º - O ver o autor passar ou a cortar silvas na citada faixa, por si só, não comprova o animus com que aquele agia e apenas resultou de uma situação de tolerância do réu.

17º - A verdade, e esta é indesmentível, é que não foi feita prova pelo autor dos requisitos que a lei faz depender a aquisição da posse por usucapião e que a alegada faixa de terreno (caminho de servidão na versão do réu) pertence ao prédio do autor, muito menos que tenha uma largura de 4,5 metros de largura, como resulta dos pontos 6) dos factos provados.

18º - Foi por isso que, ao abrigo do preceituado no código processo civil, o recorrente entendeu que os pontos de facto a seguir indicados foram incorrectamente julgados, havendo violação do princípio de liberdade do julgamento e das regras do ónus da prova:

- Pontos 6), 7), 8), 9) e 10) dos factos provados, devem ser considerados como não provados, de acordo com o disposto no artigo 640º n.º 1 al. a) do CPC: .

- O ponto 17 dos factos provados deve passar a constar:

“ Há mais de 1, 5, 10 e 15 anos que o réu por si e antepossuidores se encontra na total fruição da Bouça de …, melhor identificada em 3), no que se inclui a faixa de terreno em questão nos autos, designadamente, cortando mato, pinheiros, e outras arvores e dispondo deles em seu único e exclusivo interesse, sem oposição de ninguém, de forma continua, ininterrupta e reiterada e na convicção de sobre ele exercer um direito de propriedade em seu único e exclusivo interesse.

19º - E observando-se esta alteração, de acordo com os critérios supra mencionados, chegaríamos à conclusão que não se encontram verificados os requisitos necessários para a verificação da aquisição do almejado direito de propriedade sobre o imóvel em causa, através da usucapião.

20º - Pois, a prova produzida pelos autores não resulta que os autores tenham actuado com animus possidendi sobre a faixa em questão, isto é, não lograram provar o corpus da posse, concretamente, que autor e mulher, passaram a cultivar e a colher os frutos do prédio, de forma ininterrupta, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, ao longo de vários anos.

21º - Mais, há prova documental, com força de autoridade pública, como é o registo do terreno na conservatória Predial de …, que não foi abalada pela prova produzida e que também não foi suficiente para afastar a presunção de propriedade que ao réu é conferido pelo registo, para além dos documentos juntos aos autos da autoria da Junta de Freguesia, resultante da negociação com o Recorrente de cedência do terreno para alargamento da Rua da … (confrontação sul do prédio do réu) – conferir documentos de folhas 260, 261, 262 e da qual resulta de forma inabalável que o autor não fez qualquer negociação com a junta de freguesia, para do alargamento da Rua da … .

22º - É por isso que entendemos que, não se reúnem os seguintes requisitos necessários para a verificação da usucapião, prevista no artigo 1287º do C.C., a saber: a) a posse do bem; b) o decurso de certo período de tempo e c) a invocação triunfante desta forma de aquisição.

23º - Para além de que, a posse susceptível de conduzir à usucapião, tem de revestir sempre duas características, quais são as de ser pública e pacífica (arts. 1293°, al. a), 1297° e 1300°, n.° 1). As restantes características que a posse eventualmente revista, como ser de boa ou de má fé, titulada ou não titulada e estar ou não inscrita no registo, tem influência apenas no prazo necessário à usucapião.

24º - No entanto, como salientamos, e uma vez que em sede do douto tribunal da Relação foi-nos negada a possibilidade de demonstrar que o Autor não logrou fazer prova de actos de posse sobre a faixa de terreno em questão, isto é, não resulta que os autores tenham agido com "animus possidendi" em relação á faixa de terreno em questão ou sequer que em relação a ele tenha praticado quaisquer actos de posse.

25º - Na verdade, é nossa humilde opinião, que os recorridos não conseguiram fazer prova dos factos que alegaram, ao abrigo da regra do ónus da prova previsto no Código Civil. -341º e 342º do C.C. e assim deveria ter sido proferida outra decisão, isto é, a acção deveria ter sido julgada improcedente, por não provada, absolvendo-se o réu dos pedidos.

26º - Pelo que, nos termos supra expostos, é nosso humilde entendimento que a douta decisão viola diversas disposições legais, nomeadamente as disposições legais constantes dos artigos 516º, 607 º e 662º do C.P.C., arts. 341º, 342º, 344º e 1287º do C.C.”.


Como é sabido, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC).

As conclusões das alegações giram, essencialmente, à volta do modo como o Tribunal recorrido respondeu à impugnação da decisão da matéria de facto apresentada pelo réu no recurso de apelação. Invoca o recorrente, sobretudo, que o Tribunal recorrido não exerceu, como devia ter e ter exercido, os poderes que lhe são conferidos pelo artigo 662.º do CPC e ainda que o Tribunal recorrido violou determinadas normas que se integram no Direito probatório material.

Ora, não obstante a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça ser meramente residual no que respeita à apreciação e à fixação da matéria de facto realizada pelas instâncias, tem sido entendido que é possível apreciar o uso que a Relação faz dos poderes que lhe são conferidos pelo artigo 662.º do CPC, sendo o “mau uso”, em termos que se explicará melhor adiante, susceptível de configurar violação da lei de processo e, portanto, de constituir fundamento do recurso de revista, nos termos do art. 674º, nº 1, al. b), do CPC.

Face a isto, pode formular a questão central a decidir como sendo a de saber se, ao apreciar a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, o Tribunal recorrido incorreu em violação ou errada aplicação de alguma norma da lei de processo, designadamente da norma do art. 662º do CPC, ou em violação de alguma norma de Direito probatório material.


*

II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

São os seguintes os factos que vêm provados no Acórdão recorrido:

1) O prédio rústico denominado de FF, com a área total de 8500 m2 e composto de pinhal, mato e eucaliptal, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº 3…3/200…0 da freguesia de … e inscrito na matriz predial rústica de … sob o artigo 300, está inscrito no registo predial a favor dos autores pela ap. 7 de 1953/04/30, por compra, [fls. 10].

2) Por escritura de compra e venda outorgada no dia 27.06.1952, HH declarou vender e AA declarou comprar o prédio denominado de FF, de mato, no lugar do seu nome, da freguesia de …, inscrito na matriz sob o artigo 526, que confronta do norte e nascente com o primeiro outorgante e outros, do sul com caminho de servidão e do poente com herdeiros de II, pelo preço de 50.000$00. [fls. 72 a 74].

3) O prédio rústico denominado de Bouça da …, com a área total de 8600 m2, composto de cultura, pinhal, eucaliptal e mato, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº 2…0/1998…0 da freguesia de … e inscrito na matriz predial rústica de … sob o artigo 299, está inscrito no registo predial a favor do réu pela ap. 26 de 2003/07/07, por compra, [fls. 13].

4) Por escritura de compra e venda outorgada em 16.06.2003, JJ e KK declararam vender e o réu CC declarou comprar, para além do mais, por cinco mil euros, o prédio rústico denominado de Bouça da …, de cultura, pinhal, eucaliptal e mato, situado no Lugar da …, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 299, correspondente ao artigo 538 da extinta matriz, com o valor patrimonial de €136,86, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 2…/…. [fls. 54 a 57].

5) O prédio dos autores identificado em 1), confronta do lado norte com a estrada municipal, do lado poente com a GG, do lado sul com o réu e do nascente com pessoas não concretamente apuradas.

6) O prédio dos autores, do seu lado poente, confronta em toda a extensão com a GG, desde a Estrada Municipal a norte até à Rua da …, sendo que do lado sul (ou seja, do lado da Rua da …) situa-se a parcela de terreno com uma extensão de cerca de 65 metros e com cerca de 4,5 m de largura que se estende para norte até à restante bouça dos autores.

7) O prédio do réu confronta dos lados norte e poente com prédio dos autores, sendo que do lado poente confronta com a faixa de terreno descrita em 6).

8) Os autores por si e seus antecessores, há mais de 40 anos, que usam e exploram com a produção de pinheiros, eucaliptos e mato, o prédio identificado em 1), bem como procedem à limpeza do mato e silvas da parcela referida em 6), o que sucede à vista de todas as pessoas, sem a oposição de quem quer que seja, de forma ininterrupta e na intenção e convicção de que o prédio e a parcela lhes pertence.

9) Em data não concretamente apurada, mas anterior a Fevereiro de 2015, o réu invadiu a parcela de terreno descrita em 6), tendo cortado, pelo menos, duas árvores que aí se encontravam no limite da referida parcela.

10) E em data não concretamente, apurada, mas anterior a Junho de 2015, o réu sem o consentimento dos autores, invadiu parcela de terreno descrita em 6), tendo efetuado a remoção das terras aí existentes, terraplanando o terreno e baixando a sua cota em cerca de 1 metro e retirando as pedras que delimitavam ambos os terrenos.

11) No dia 8 de Junho de 2015, os autores colocaram na zona da parcela descrita em 6) vários esteios unidos por um fio metálico, delimitando-os de forma visível.

12) Para a execução deste trabalho, os autores efetuaram o pagamento da quantia de €357,90.

13) Dias depois o réu retirou, sem o consentimento dos autores, os mencionados esteios e o arame referidos em 11).

14) O réu, desde o referido em 13), continua a ocupar a parcela referia em 6), contra a vontade dos autores.

15) O autor AA, em consequência do referido em 10), 13) e 14) ficou ansioso e irritado.

16) O autor AA é pessoa de idade avançada, tal como a sua falecida esposa BB, o era.

17) Há mais de 1, 5, 10 e 15 anos que o réu por si e ante possuidores se encontra na total fruição da Bouça da … melhor identificada em 3) com as confrontações descritas em 5) e 6) do seu lado poente, designadamente, cortando mato, pinheiros e outras árvores e dispondo deles em seu único e exclusivo interesse, sem oposição de ninguém, de forma contínua, ininterrupta e reiterada e na convicção de sobre ele exercer um direito de propriedade em seu único e exclusivo interesse.

18) O réu negociou com a Junta de Freguesia a cedência de espaço para alargamento do caminho, do lado sul.

E são os seguintes os factos que vêm como não provados no Acórdão recorrido:

a) O prédio identificado em 1) tem uma área total de cerca de 18000 m2.

b) Nas noites que se seguiram aos factos, os autores, principalmente o autor marido, quase não conseguiram pernoitar, tendo muita dificuldade em conciliar o sono.

c) De manhã, o sono demonstrava não ter sido reparador.

d) Nas poucas horas em que lograram dormir, revelavam sono muito agitado, mexendo-se, virando-se, falando, roncando e acordando subitamente a intervalos curtos, sobressaltado.

e) Assim, durante o dia, o autor marido apresentava grande sonolência, irritabilidade, incapacidade para raciocinar com facilidade e lentidão de reflexos, bocejando constantemente.

f) O estado de ansiedade e fragilidade física causada pelos factos supra descritos, podem causar danos irreversíveis para a saúde dos autores.

g) O réu paga os respectivos impostos - IMI sobre o prédio identificado em 3).


O DIREITO

Como se disse, a questão é a de saber se, ao apreciar a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, o Tribunal recorrido incorreu em violação ou errada aplicação de alguma norma da lei de processo, designadamente da norma do art. 662º do CPC, ou em violação de alguma norma de Direito probatório material.

Alega o recorrente, fundamentalmente, que o Tribunal recorrido não podia ter confirmado a decisão da 1.ª instância, que deu como facto provado o animus possidendi do autor e, consequentemente, deu como provados os requisitos da posse (cfr., designadamente, conclusões 6.ª, 7.ª, 8.ª, 15.ª, 16.ª, 17.ª, 20.ª, 22.ª, 24.ª e 25.ª). Alega ainda que o Tribunal recorrido não podia ter mantido como provados os factos 6, 7, 8, 9 e 10 e inalterado o facto 17, por si impugnados (cfr. conclusão 18.ª) e não ter ponderado a prova documental por si produzida (conclusão 21.ª). Alega, por fim, que, ao proceder como procedeu, o Tribunal recorrido violou as normas dos artigos 516.º, 607.º e 662.º do CPC e os artigos 341.º, 342.º, 344º e 1287.º do CC (conclusão 26.º). Veja-se se lhe assiste razão.

Face à impugnação da decisão da matéria de facto levada a cabo pelo apelante / ora recorrente, começou o Tribunal recorrido por se referir e por reproduzir algumas passagens do Acórdão da Relação de Guimarães de 8.02.2018, Proc. 585/13.1TBCMN.G1. O intuito foi o de salientar que a impugnação eficaz da decisão da matéria de facto depende de determinados requisitos, não podendo fazer-se tábua rasa da apreciação da prova e da motivação de facto da decisão recorrida e não bastando aos apelantes transcreverem o depoimento ou parte do depoimento de algumas testemunhas para que conclua no sentido pretendido.

Mas veja-se, um a um, os factos impugnados e como chegou o Tribunal de Relação à decisão de não os alterar.

O facto provado 6 tem o seguinte teor: “O prédio dos autores, do seu lado poente, confronta em toda a extensão com a GG, desde a Estrada Municipal a norte até à Rua da …, sendo que do lado sul (ou seja, do lado da Rua da …) situa-se a parcela de terreno com uma extensão de cerca de 65 metros e com cerca de 4,5 m de largura que se estende para norte até à restante bouça dos autores”.

Quanto a este facto entendeu o Tribunal recorrido que ele devia considerar-se provado. A prova assentava na inspecção judicial ao local e ainda nas plantas topográficas juntas, nas imagens retiradas do Google Earth e nas declarações de cedência ao domínio público e nos levantamentos anexos bem como nos depoimentos das testemunhas inquiridas. Em especial, a prova do facto de a faixa ter 4,5 metros de largura (do qual o apelante alegava não existir qualquer prova) assentava nas fotografias da parcela em descrição juntas aos autos, conjugadas com a descrição que da mesma havia sido feita pelas testemunhas Nenhuma razão havia, pois – concluiu o Tribunal – para que o facto não se mantivesse.

Por sua vez, o facto provado 7 tem o seguinte teor: “O prédio do réu confronta dos lados norte e poente com prédio dos autores, sendo que do lado poente confronta com a faixa de terreno descrita em 6)”.

Afirmou o Tribunal recorrido que para a fixação deste facto concorriam os vários levantamentos topográficos juntos aos autos e as imagens retiradas do Google Earth. Não sendo aqueles inteiramente coincidentes com estas, dava-se prevalência a estas. Os pontos cardeais resultantes destas imagens permitiam descrever as confrontações dos prédios e da parcela em discussão nos autos e concretizar os factos alegados para tornar possível a descrição da parcela, importando ainda salientar o reforço que constituía a inspeção judicial realizada pelo Tribunal de 1.ª instância. Assim, tão-pouco existiam razões para alterar este facto.

Quanto ao facto provado 8, relativo aos actos de posse dos autores, ele é o seguinte: “Os autores por si e seus antecessores, há mais de 40 anos, que usam e exploram com a produção de pinheiros, eucaliptos e mato, o prédio identificado em 1), bem como procedem à limpeza do mato e silvas da parcela referida em 6), o que sucede à vista de todas as pessoas, sem a oposição de quem quer que seja, de forma ininterrupta e na intenção e convicção de que o prédio e a parcela lhes pertence”.

Segundo o Tribunal recorrido, para a prova do facto contribuíam os depoimentos das várias testemunhas. Pelas testemunhas LL, MM e NN havia sido referido que o autor, na parcela em discussão, limpava as ervas as silvas e os fetos. Em particular, a testemunha MM, que, sendo empregado (técnico de manutenção) da GG, fazia uma ronda periódica à fábrica junto ao muro desde 1977, afirmara que via, usualmente, na referida parcela, o autor a limpá-la. A testemunha OO, que tem uma casa junto ao terreno em discussão nos autos, referira ter negociado com o réu a aquisição do seu prédio, nunca tendo este referido que a parcela em discussão lhe pertencesse, tendo a testemunha procedido à junção da planta topográfica que fez nessa altura e onde a parcela em questão não está incluída. No que se refere ao depoimento da testemunha PP, esclareceu o Tribunal recorrido que o mesmo tinha prestado serviços para o autor na parcela em questão e que não era normal que, tendo sido contratado pelo autor, fosse prestar serviço num terreno pertença do réu, para mais quando existia uma disputa sobre a propriedade do mesmo entre aquelas partes. Também no que se referia ao depoimento da testemunha QQ, esclareceu o Tribunal recorrido que os seus pais haviam sido caseiros do pai do réu até por volta do 25 de Abril, altura em que nada faziam na parcela em discussão, por indicações do pai do réu. Em face do exposto, o facto devia manter-se.

Veja-se agora o facto provado 9: “Em data não concretamente apurada, mas anterior a Fevereiro de 2015, o réu invadiu a parcela de terreno descrita em 6), tendo cortado, pelo menos, duas árvores que aí se encontravam no limite da referida parcela” e o facto provado 10: “E em data não concretamente, apurada, mas anterior a Junho de 2015, o réu sem o consentimento dos autores, invadiu parcela de terreno descrita em 6), tendo efetuado a remoção das terras aí existentes, terraplanando o terreno e baixando a sua cota em cerca de 1 metro e retirando as pedras que delimitavam ambos os terrenos”.

Explicou o Tribunal recorrido a prova destes factos assentava em determinadas fotografias, na posição que o réu havia assumido na contestação e que havia sido corroborada por várias testemunhas e ainda na inspecção judicial ao local. Em particular, as testemunhas RR, SS e TT confirmaram que havia sido o réu (ou TT a seu pedido) quem cortou as árvores (das quais era possível ver os pés cortados nas fotografias juntas aos autos) e quem, posteriormente, havia removido as terras e as pedras da parcela em questão, terraplanando o terreno. A prova de que a terraplanagem era de cerca de 1 metro tinha resultado da inspeção judicial ao local, em que se constatara que a terra estava encostada ao muro da GG em cerca de 1 metro de altura, o que significava que tinha sido essa a altura da terraplanagem (o que resultava igualmente das fotografias juntas aos autos). Não se vislumbravam, portanto, razões para afastar os factos em causa.

Por fim, veja-se o facto provado 17: “Há mais de 1, 5, 10 e 15 anos que o réu por si e ante possuidores se encontra na total fruição da Bouça da … melhor identificada em 3) com as confrontações descritas em 5) e 6) do seu lado poente, designadamente, cortando mato, pinheiros e outras árvores e dispondo deles em seu único e exclusivo interesse, sem oposição de ninguém, de forma contínua, ininterrupta e reiterada e na convicção de sobre ele exercer um direito de propriedade em seu único e exclusivo interesse”. Pretendia o apelante que o teor deste facto fosse alterado de forma a que se considerasse provado que “Há mais de 1, 5, 10 e 15 anos que o réu por si e antepossuidores se encontra na total fruição da Bouça de …, melhor identificada em 3), no que se inclui a faixa de terreno em questão nos autos, designadamente, cortando mato, pinheiros, e outras arvores e dispondo deles em seu único e exclusivo interesse, sem oposição de ninguém, de forma continua, ininterrupta e reiterada e na convicção de sobre ele exercer um direito de propriedade em seu único e exclusivo interesse”.

A propósito da alteração deste facto, ou seja, do aditamento ao facto da expressão “no que se inclui a faixa de terreno em questão nos autos”, entendeu o Tribunal recorrido que ela era inconciliável com os factos provados 5 e 10. Não existindo razões para afastar estes últimos, implicando os meios de prova a sua manutenção, a alteração do facto 17 não podia ocorrer.

Exposta a fundamentação do Tribunal a quo para a decisão da impugnação da decisão da matéria de facto, deve perguntar-se: merece alguma censura a apreciação por ele levada a cabo?

Como se disse atrás, a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça no tocante à decisão sobre a matéria de facto é meramente residual. Destina-se, no essencial, a garantir a observância das regras de Direito probatório material ou a mandar ampliar a decisão sobre a matéria de facto, conforme resulta das disposições do n.º 3 do artigo 674.º e do n.º 3 do artigo 682.º do CPC, determinando-se no primeiro destes dispositivos que “[o] erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais não pode ser objecto de recurso de revista”, só podendo o Supremo Tribunal de Justiça alterar a decisão proferida pelo tribunal recorrido no respeitante à matéria de facto quando, nessa fixação, tenha havido “ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força probatória de determinado meio de prova[1].

Em particular, a propósito do disposto no artigo 662.º do CPC, salienta Rui Pinto que “[o] n.º 4 do artigo 662.º é perentório a determinar a irrecorribilidade das decisões através das quais a Relação exerce os poderes previstos nos n.ºs 1 e 2 (…). Portanto, o Supremo não pode julgar se a prova foi bem ou mal avaliada e se o facto foi bem ou mal dado como provado. Por ex., não é sindicável a reapreciação da prova sujeita à livre apreciação, como sejam a prova testemunhal, a prova por documento sem força probatória plena, a prova pericial e a prova por presunções judiciais[2].

Todavia, como também se disse atrás, tem sido defendido, designadamente neste Supremo Tribunal de Justiça, que é admissível julgar o modo de exercício dos poderes de reapreciação da matéria de facto que são confiados à Relação pelo artigo 662.º do CPC, dado que esta previsão constitui “lei de processo” para os efeitos do artigo 674.º, n.º 1, al. b), do CPC[3]. A emergência de uma questão desta natureza faz, aliás, com que a dupla conformidade seja mera aparência, tornando, portanto, irrelevante a sua alegação, como decorre da decisão proferida pela Formação nestes autos[4].

Isto significa que, com as cautelas / limites acima descritos, este Supremo Tribunal está autorizado a apreciar o modo como o Tribunal recorrido exerceu estes poderes e, designadamente, de o censurar se se concluir que existiu um “mau uso”[5] (uso indevido, insuficiente ou excessivo) destes poderes[6]. Isto é, naturalmente, diferente de sindicar os resultados a que chegou o Tribunal recorrido, i.e., de controlar a sua decisão sobre a impugnação da decisão da matéria de facto, que, essa sim, estaria interdita a este Supremo Tribunal[7].

Afirma Abrantes Geraldes que o actual artigo 662.º do CPC representa uma viragem em matéria de poderes do Tribunal da Relação no âmbito da decisão da matéria de facto, “fica[ndo] claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia[8].

Antes de mais, advirta-se que o facto de a decisão do Tribunal da Relação ser coincidente com a decisão proferida pela 1.ª instância não pode constituir indício de que aquele não exerceu aqueles poderes. Veja-se que no n.º 1 do artigo 662.º do CPC se dispõe que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se – só se – os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem – sublinhe-se: impuserem – decisão diversa. Quer dizer: o Tribunal da Relação só está sujeito ao dever de alterar a decisão sobre a matéria de facto senão quando tal alteração se revele, por aquelas circunstâncias, necessária.

Advirta-se, depois, que não se pode esperar que o Tribunal da relação realize um julgamento de questões novas. O recurso de apelação em matéria de facto não é, em rigor, um meio para um novo julgamento mas um “recurso de reponderação” ou “recurso de reexame” do julgamento realizado na instância antecedente[9].

Ora, olhando para o discurso / a fundamentação do Acórdão recorrido, não é possível concordar com o recorrente quando afirma que o Tribunal da Relação de Guimarães deixou de exercer os poderes que lhe são atribuídos pelo artigo 662.º do CPC.

É manifesto, por um lado, que o Tribunal da Relação de Guimarães procedeu à reavaliação dos meios de prova sujeitos à livre apreciação e reponderou todas as questões de facto em discussão. É manifesto, por outro lado, que o Tribunal da Relação de Guimarães formou uma convicção própria e autónoma, fundada, consoante os casos, na prova pericial, na prova por inspecção e na prova testemunhal. A fundamentação apresentada em relação a cada ponto controvertido reflecte o percurso traçado para formar tal convicção, não se tendo o Tribunal limitado a remeter para a fundamentação da 1.ª instância ou a aderir genericamente a ela mas tendo-se pronunciado, discriminadamente, sobre cada ponto. Julga-se, assim, que não existe violação do artigo 662.º do CPC, ao contrário do que pretende o recorrente.

Alega ainda o recorrente que houve violação da norma do artigo 607.º do CPC. Não obstante o recorrente não o especifique, os números do artigo 607.º do CPC mais relevantes para o caso em análise, logo os números que o recorrente pretenderia, presumivelmente, destacar são os n.ºs 4 e 5.

Segundo o n.º 4 do artigo 607.º do CPC, “[n]a fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência”. De acordo com o n.º 5, “[o] juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes”.

Exige-se, em suma, ao juiz que proceda à análise crítica das provas, relativamente à prova sujeita à livre apreciação e à fundamentação das respostas negativas, no que toca à fundamentação da decisão de facto[10]. Tão-pouco por aqui se vislumbra que tenha havido violação da lei de processo. O Tribunal a quo indicou as provas que o levaram a formar a sua convicção e articulou-as, explicando claramente os motivos que o conduziram a decidir em determinado sentido relativamente a cada um dos factos provados e impugnados pelo recorrente, não se verificando transposição dos limites legalmente estabelecidos à livre apreciação.

O facto de o Tribunal se ter recusado, em particular, a atribuir a certos documentos (o registo do terreno na Conservatória de Registo Predial e os documentos juntos aos autos da autoria da Junta de Freguesia, resultante da negociação com o recorrente de cedência do terreno para alargamento da Rua da …) o valor que o recorrente pretendia não significa que tenha deixado de os considerar. Não se trata de meios de prova com força probatória pleníssima ou plena, que se imponha ao juiz, obrigando-o a dar como provado certo facto por mera aplicação da respectiva norma de Direito probatório. Tem, pois, de se concluir – e de se aceitar – que, simplesmente, tais meios de prova não foram aptos a incutir no Tribunal recorrido a convicção de que algum dos factos provados e impugnados teria de ser afastado ou alterado por força deles.

Alega, por fim, o recorrente que houve violação do artigo 516.º do CPC.

A norma tem a epígrafe “[r]egime do depoimento” e é composta de sete números, estabelecendo regras a adoptar no procedimento de interrogatório e de depoimento. Não sendo indicada, especificamente, qual a regra que o recorrente considera violada e qual a conduta em que se corporizou tal violação, não pode este Tribunal pronunciar-se quanto à existência, por via dela, de violação ou errada aplicação da lei de processo. De todo o modo, sempre se diga que, tanto quanto é possível observar, não se vislumbra que o Tribunal a quo tenha de alguma forma desrespeitado o preceituado na norma.

Quanto à decisão da matéria de facto propriamente dita, recorde-se, antes de mais, que o n.º 3 do artigo 674.º do CPC prescreve que “[o] erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”. Só é, então, possível a este Supremo Tribunal reprovar a conduta da Relação se se concluir que foi dado como provado um facto sem que tenha sido produzido o meio de prova de que determinada disposição legal faz depender a sua existência, que foi dado como provado um facto por se ter atribuído a determinado meio de prova uma força probatória que a lei não lhe reconhece ou que foi dado como não provado um facto por não se ter atribuído a determinado meio de prova a força probatória que a lei lhe confere[11].

A verdade é que não se configura, no caso em apreço, nenhuma das hipóteses descritas. Os meios de prova em que o Tribunal se apoiou para apreciar a impugnação da decisão da matéria de facto e para decidir manter como provados / inalterados os factos provados e impugnados foram, como se viu, a prova pericial, a prova por inspecção e a prova testemunhal, cuja valoração está sujeita à livre apreciação do julgador (cfr., respectivamente, artigos 389.º, 391.º e 396.º do CC). Não existiu ofensa de disposição expressa da lei que exigisse certa espécie de prova para a existência dos factos provados e impugnados nem ofensa de disposição expressa da lei que fixasse a força de determinado meio de prova. Não existiu, designadamente, violação das normas invocadas pelo recorrente – as normas dos artigos 341.º, 342.º e 344.º do CC.

Não sendo possível dizer que o Tribunal recorrido, ao apreciar a impugnação da decisão da matéria de facto, desconsiderou os poderes que lhe são atribuídos, nos limites em que lhe são atribuídos, pelo artigo 662.º do CPC ou incorreu em violação ou errada aplicação da lei processual por outra via e nem sendo possível dizer-se que o Tribunal recorrido, ao confirmar a decisão da matéria de facto do Tribunal de 1.ª instância, ofendeu regras de Direito probatório material, não resta senão concluir que a decisão proferida pelo Tribunal recorrido não pode / não deve ser alterada.



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III. DECISÃO


Pelo exposto, nega-se provimento à revista e confirma-se o acórdão recorrido.



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Custas pelo recorrente.

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LISBOA, 30 de Maio de 2019


Catarina Serra (Relatora)

Bernardo Domingos

João Bernardo

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[1] Sobre isto cfr., por todos, Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2018 (5.ª edição), pp. 397 e s. e pp. 431 e s.
[2] Cfr. Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, volume II, Coimbra, Almedina, 2018, p. 339.
[3] Cfr., por todos, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.02.2016, Proc. 907/13.5TBPTG.E1.S1 (disponível em http://www.dgsi.pt).
[4] Cfr., no mesmo sentido, Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I - Parte Geral e Processo de declaração – Artigos 1.º a 702.º, Coimbra, Almedina, 2018, p. 800. Dizem eles que “é de rejeitar a aparente verificação da dupla conforme, à luz do art. 671.º, n.º 3, nos casos em que, apesar da confirmação da sentença da 1.ª instância pela Relação, o recorrente suscita a violação de preceitos adjectivos relacionados com a aplicação do art. 662.º”.
[5] Partilha-se a expressão usada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9.07.2015, Proc. 284040/11.0YIPRT.G1.S1 (disponível em http://www.dgsi.pt).
[6] Reproduzindo o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6.07.2011, Proc. 645/05.2TBVCD.P1.S1 (disponível em http://www.dgsi.pt): “[s]e a este Supremo Tribunal lhe é vedado sindicar o uso feito pela Relação dos seus poderes de modificação da matéria de facto, já lhe é, todavia, possível verificar se, ao usar tais poderes, agiu ela dentro dos limites traçados pela lei [] para os exercer”.
[7] Cfr., neste sentido, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8.10.2009, Proc. 1834/03.0TBVRL-A.S1 (disponível em http://www.dgsi.pt).
[8] Cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, cit., pp. 287 e s.
[9] Cfr., sobre o recurso de apelação em matéria de facto como “recurso de reponderação”, Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, volume II, cit., pp. 331-332.
[10] Cfr., sobre estas exigências, entre outros, José Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º - Artigos 362.º a 626.º, Coimbra, Almedina, 2018 (3.ª edição), pp. 705 e s.
[11] Cfr., neste sentido, por exemplo, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.10.2009, Proc. n.º 474/04.0TTVIS.C1.S1 (disponível em www.dgsi.pt).