Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5781/16.7T8VIS-D.C1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: PINTO DE ALMEIDA
Descritores: PLANO DE INSOLVÊNCIA
LEGALIDADE
HOMOLOGAÇÃO
FAZENDA NACIONAL
Data do Acordão: 04/17/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO FALIMENTAR – PLANO DE INSOLVÊNCIA / EXECUÇÃO DO PLANO DE INSOLVÊNCIA E SEUS EFEITOS / INCUMPRIMENTO.
DIREITO DE PROCESSO CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA / JULGAMENTO DO RECURSO.
Doutrina:
-Ana Prata, Morais Carvalho e Rui Simões, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, p. 554;
-Catarina Serra, O Regime Português da Insolvência, 5ª edição, p. 149 e ss.;
-Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, Volume I, 9ª edição, p. 331;
-Fonseca Ramos, Os créditos tributários e a homologação do plano de recuperação da insolvência, em III Congresso de Direito da Insolvência, p. 361 e ss. ; Os créditos tributários e a homologação do plano de recuperação, em Revista de Direito da Insolvência cit., p. 267 e ss.;
-L. M. Pestana de Vasconcelos, Recuperação de Empresas: o Processo de Revitalização, p. 135 e ss.;
-Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 6ª edição, p. 321;
-Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 6ª edição, p. 267;
-Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição, p. 615 e ss.;
-Sara L. Dias, A afectação do crédito tributário no plano de recuperação da empresa insolvente (…), Revista do Direito da Insolvência, Ano 0, p. 258;
-Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, p. 413.
Legislação Nacional:
LEI GERAL TRIBUTÁRIA (LGT), APROVADA PELO DL N.º 398/98, DE 17 DE DEZEMBRO: - ARTIGOS 30.º, N.ºS 2 E 3 E 36.º, N.º 3.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 682.º, N.º 1.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 53.º, 58.º, N.º 2, ALÍNEA A) E 100.º, ALÍNEA D).
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGO 218.º, N.º 1, ALÍNEA B).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 13-01-2009, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 02-03-2010, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 15-12-2011;
- DE 10-05-2012;
- DE 18-02-2014;
- DE 18-02-2014, RELATOR FONSECA RAMOS;
- DE 25-03-2014;
- DE 01-04-2014;
- DE 13-11-2014;
- DE 13-11-2014;
- DE 25-11-2014;
- DE 24-03-2015;
- DE 24-03-2015;
- DE 03-11-2015.
Sumário :
I - O plano de insolvência aprovado, apesar de conter cláusulas que afrontam o disposto nos arts. 30º, nºs 2 e 3 e 36º, nº 3, da LGT, não tem de ser objecto de recusa de homologação judicial, desde que se limitem os seus efeitos aos créditos não tributários, sendo ineficaz relativamente à Fazenda Nacional.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça[1]:

I.

A sociedade AA, LDA, foi declarada insolvente por sentença proferida em 27 de Fevereiro de 2017, já transitada em julgado.

Na assembleia de credores realizada em 23 de Maio de 2017, a insolvente apresentou a proposta de plano de insolvência, que estabelecia o seguinte, em relação aos créditos da administração tributária:

Pagamento em 36 prestações mensais de capital e juros à taxa legal (cfr. artigo 196º, nº 4, do CPPT), vencendo-se a primeira prestação no 1.º mês seguinte ao da data do trânsito em julgado da sentença homologatória do plano.

Tendo em conta os créditos existentes e as condições de pagamento ora propostas apresentam-se os créditos consolidados: (…)

Autoridade tributária – € 13.945,85.

Na assembleia estavam presentes ou representados credores cujos créditos constituíam mais de um terço do total dos créditos com direito de voto.

Votaram a favor da proposta do plano os credores BB, S.A., CC, Instituto de Segurança Social, I.P. DD, Lda, EE, FF, que representavam 75,54% dos votos emitidos.

Votaram contra a proposta o Ministério Público, em representação da Fazenda Nacional, e GG SA, que representavam 24,46 dos votos emitidos.

Ao abrigo do disposto no nº 1 do art. 212º do CIRE, foi declarada aprovada a proposta do plano de insolvência.

A deliberação de aprovação do plano de insolvência foi publicada.

Nenhum interessado solicitou a não homologação do plano.

Foi depois proferida sentença a homologar o plano de insolvência.

Discordando desta decisão, o Ministério Público interpôs recurso de apelação, que a Relação julgou procedente, revogando-se e substituindo-se a decisão recorrida por decisão a não homologar o plano de insolvência.

Inconformada a insolvente vem pedir revista, tendo formulado as seguintes conclusões:

a) A ora recorrente interpôs o presente recurso do douto acórdão proferido pela 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 14° nº 1 do CIRE, na medida em que o mesmo se encontra em clara oposição com os doutos acórdãos proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça e pelo Tribunal da Relação de Guimarães, de 23-03-2014, 01-04-2014, 13-11-2014, 24-03-2015 e de 16-04-2015, de que foram juntas cópias,

b) Os quais, no domínio da mesma legislação, decidiram de forma divergente a mesma questão fundamental de direito, ou seja, se a homologação de um plano de insolvência aprovado pela assembleia de credores, sem respeitar o regime previsto no artigo 30º, nºs. 2 e 3 da LGT, impõe a não homologação do plano na globalidade ou se apenas torna o plano ineficaz relativamente a este credor, não produzindo quaisquer efeitos quanto ao mesmo.

c) Sendo certo que, o douto acórdão recorrido diverge dos doutos acórdãos-fundamento no alcance que da interpretação dos artigos 30° nºs 2 e 3 da LGT e artigo 215° do CIRE se retiram.

d) Pois que, enquanto o douto acórdão recorrido decide que o plano de insolvência ao violar a norma do nº 2 e do nº 3 do artigo 30° da Lei Geral Tributária, implica a não homologação de todo o plano,

e) Os doutos acórdãos-fundamento vão em sentido oposto, decidindo que o plano de recuperação/insolvência aprovado pela assembleia de credores, sem respeitar o regime previsto no artigo 30°, nºs 2 e 3 da LGT, relativamente aos créditos tributários, é ineficaz em relação à Fazenda Nacional (e/ou ao Instituto de Segurança Social), não produzindo quaisquer efeitos relativamente a tal credor.

f) Sendo esta, também no entendimento da recorrente, a interpretação que em obediência às regras civilísticas da interpretação, se deverá, actualmente, retirar do artigo 215° do CIRE,

g) Pois que, ao reduzir-se tal interpretação e ao decidir-se, drasticamente, pela não homologação do plano de insolvência devidamente aprovado, estar-se-ia, desde logo, a condenar à liquidação uma empresa que no entender expresso da maioria dos seus credores, se mostra verdadeiramente susceptível de recuperação, com as consequências, nefastas, daí decorrentes e em clara violação dos princípios que norteiam a lei falimentar.

h) Sendo, também por isso, necessário que se faça uma interpretação actualista do disposto no artigo 215° do CIRE, no sentido de que o regime dele constante não conduz necessariamente a uma inutilização global do plano aprovado em assembleia de credores, quando dele resulte a redução/extinção do crédito do Estado e/ou a concessão de moratórias pelo mesmo, mas sim à sua ineficácia (relativa), não produzindo o mesmo quaisquer efeitos relativamente a este credor,

i) Sendo certo que, e na senda da fundamentação constante do douto acórdão-fundamento datado de 13-11-2014, proferido pelo STJ, dúvidas não restam de que "o plano de insolvência, assente numa ampla liberdade de estipulação pelos credores do insolvente, constitui um negócio atípico, sendo-lhe aplicável o regime jurídico da ineficácia".

j) Razão pela qual, ao decidir como decidiu, violou o acórdão recorrido o disposto no artigo 215° do CIRE e, bem assim, o artigo 30° nºs 2 e 3 da LGT, pelo que tal decisão deverá ser revogada e substituída por outra que não a de simples recusa da homologação do plano, e que, embora salvaguardando os créditos da Fazenda Nacional, permita manter a aplicação do plano de insolvência aprovado em assembleia de credores.

Termos em que, deve o presente recurso merecer provimento em toda a sua extensão, com as legais consequências.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Após os vistos legais, cumpre decidir.

II.

Questões a resolver:

Discute-se no recurso se um plano de insolvência, em que se prevê a redução do crédito tributário e o estabelecimento de uma moratória no seu pagamento, deve ser declarado nulo, como se decidiu no acórdão recorrido, ou simplesmente ineficaz em relação ao credor público, como pretende a recorrente.

III.

Foram considerados relevantes para a decisão os seguintes factos (para além dos que constam do precedente relatório):

1. O administrador da insolvência reconheceu créditos por impostos e juros, reclamados pelo Ministério Público, no montante de € 36.983,47.

2. O plano de insolvência propôs a redução do valor do crédito reconhecido à Autoridade Tributária para o valor de € 13.945,85 [treze mil novecentos e quarenta e cinco euros e oitenta e cinco cêntimos].

3. Em matéria de condições de pagamento, o plano propôs o pagamento dos créditos da administração tributária em 36 prestações mensais de capital e juros à taxa legal (cfr. art. 196º, nº 4, do CPPT), vencendo-se a primeira prestação no 1.º mês seguinte ao da data do trânsito em julgado da sentença homologatória do plano.

4. O plano de pagamentos era o seguinte:

a) Em 2017, seriam pagos € 3.294,56, acrescidos de 465,25 de juros;

b) Em 2018, seriam pagos € 4.587,62, acrescidos de 425,46 de juros;

c) Em 2019, seriam pagos € 4.820,70, acrescidos de 192,38 juros;

d) Em 2020, seriam pagos € 1.242,97, acrescidos de 10,30 de juros.

IV.

Está em causa neste recurso a inclusão no plano de insolvência da recorrente de cláusulas que prevêem a redução de um crédito tributário e o estabelecimento de uma moratória no pagamento desse crédito.

Constituiu já entendimento predominante na jurisprudência que os créditos tributários poderiam ser alterados, como qualquer outro crédito, de acordo com o regime próprio da insolvência, mesmo contra a vontade do credor Estado, que intervinha aqui em posição de igualdade com os demais credores da insolvente[2].

Esta situação alterou-se com a publicação da Lei 55-A/2010, de 31/12 (Lei do Orçamento de Estado para 2011) que, no art. 123º, aditou ao art. 30º da LGT o nº 3 – o disposto no número anterior prevalece sobre qualquer legislação especial.

No nº 2 desse artigo prescreve-se que o crédito tributário é indisponível, só podendo fixar-se condições para a sua redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributária.

Acresce que o art. 125º da referida Lei estendeu a aplicabilidade da aludida norma aos processos de insolvência que se encontrem pendentes e ainda não tenham sido objecto de homologação (…).

Esta alteração legal provocou uma inversão na orientação jurisprudencial, entendendo-se que a mesma afastava a interpretação até aí seguida no sentido de que a lei especial (da insolvência) derrogava a aplicação da lei geral (tributária), valendo as normas tributárias apenas no contexto da relação tributária (e não no processo de insolvência); passou, por isso, a recusar-se a homologação dos planos de insolvência que desrespeitassem o disposto na LGT[3].

É esse também o entendimento de parte da doutrina, apesar de, por vezes, sem se aprofundar a questão[4].

Outros Autores, porém, sustentam uma solução diferente, no sentido da modificabilidade dos créditos fiscais pelo plano de insolvência[5].

Como refere Catarina Serra, "a vingar a interpretação contrária, ficaria irremediavelmente comprometida a função de recuperação de empresas, que é – deve ser – uma das funções irrenunciáveis de qualquer lei da insolvência. Atendendo a que as dívidas ao Estado e à Segurança Social representam quase sempre a parte mais significativa do passivo do insolvente, seria mesmo o fim da recuperação".

Neste sentido também L. M. Pestana de Vasconcelos que alude igualmente à incongruência de os credores públicos que rejeitam a diminuição parcial do valor nominal dos créditos acabarem por, na insolvência, receber um valor muito inferior pelo seu crédito, sendo certo, para além disso, que "a insolvência implicará, por um lado, o aumento da despesa pública, sob a forma de subsídios de desemprego para os trabalhadores cujos contratos de trabalho cessam, e uma diminuição das receitas, porque, cessando a empresa a actividade, termina igualmente a actividade económica, elemento do facto constitutivo de vários impostos".

Acrescente-se que a solução contida no art. 30º, nº 3, da LGT contraria claramente os objectivos do Memorando de entendimento sobre os condicionalismos específicos da política económica (celebrado entre Portugal e a CE, o BCE e o FMI) – cfr. ponto 2.19 – as autoridades tomarão também as medidas necessárias para autorizar a administração fiscal e a segurança social a utilizar uma maior variedade de instrumentos de reestruturação baseados em critérios claramente definidos, nos casos em que outros credores também aceitem a reestruturação dos seus créditos, e para rever a lei tributária com vista à remoção de impedimentos à reestruturação voluntária de dívidas – e a teleologia subjacente à reforma do regime insolvencial (2012) que, a partir daí, foi empreendida[6].

Como parece evidente, o regime que decorre das aludidas normas tributárias não é compatível com a perspectiva da recuperação da empresa (não da sua liquidação) que também se pretendeu consagrar na insolvência.

É neste contexto que surge a mais recente jurisprudência do STJ, que é vista no sentido de harmonizar os dois regimes – insolvencial e tributário –, preconizando a homologação dos planos de insolvência sem desrespeito da indisponibilidade dos créditos tributários.

Essa solução, que reúne o consenso da 6ª Secção do Supremo (a que foi deferida competência específica sobre a matéria), tem sido declarada por duas vias, ambas visando a conservação do plano, no que respeita aos créditos não tributários:

- a ineficácia relativa, que restringe os efeitos do plano aos créditos não tributários; no que respeita aos créditos tributários, o plano não será oponível ao credor público[7];

- a nulidade parcial, com redução do plano às cláusulas relativas aos créditos não tributários, presumindo-se a vontade hipotética das partes no sentido da conservação do plano em relação a estes[8].

Perante estas soluções alternativas, propende-se para a primeira, tendo em conta que nada foi pedido no sentido da redução do plano aos créditos não tributários, não podendo, de todo o modo, presumir-se aqui, no recurso de revista, que tenha sido essa a vontade hipotética ou conjectural das partes (cfr. art. 682º, nº 1, do CPC)[9].

Será de notar, contudo, que a solução a que se chegou no referido Acórdão de 18.02.2014 – e dos que se lhe seguiram no mesmo sentido, que para esse remetem – fica aquém daquela a que conduziria a respectiva fundamentação, que aponta claramente para a interpretação restritiva das aludidas normas tributárias.

Com efeito, como ali se afirma, o papel de auto-regulação dos credores do insolvente, no quadro do princípio da legalidade, impõe que se adopte uma interpretação restritiva das normas dos arts. 30.º, n.º 2, e 36.º, n.º3, da LGT, e art. 85.º do CPPT, restringindo o seu campo de aplicação à relação tributária em sentido estrito, valendo primordialmente na relação Estado-contribuinte, normas que devem ceder no confronto com a legislação especial do direito falimentar.

E conclui-se depois:

Nesta perspectiva, não é de excluir que no plano da insolvência, ao abrigo do art. 196º, nº1, als. a) e c) do CIRE, cabe o perdão ou redução do valor dos créditos da AT ou da Segurança Social sobre o passivo do devedor, quer quanto ao capital, quer quanto aos juros, bem como a modificação dos prazos de vencimento ou das taxas de juro, sejam os créditos comuns, garantidos ou privilegiados, aprovado o plano que respeitou o quorum estabelecido no artigo 212°, desde que a intervenção nos créditos do Estado credor não evidencie uma redução injusta e desproporcional, tendo em conta o somatório dos créditos dos particulares e a medida em que deles abdicam, visando a recuperação da empresa pré-insolvente.

Esta posição (fundada na doutrina de Catarina Serra) obteve recentemente importante contributo de L. M. Pestana de Vasconcelos[10], que reponderou a questão à luz de relevantes argumentos. Assim, em síntese:

- Se o Estado e a segurança social, normalmente titulares de avultados créditos, "não puderem participar nesse esforço por banda da generalidade dos credores, o processo ficará votado ao insucesso. O que contraria frontalmente toda a teleologia do PER e da reforma de 2012; o Direito impõe uma harmonização de soluções";

- A interpretação do art. 30º, nºs 2 e 3 da LGT "não pode fazer-se de forma isolada das restantes disposições constitucionais que tutelam, em particular, a posição dos trabalhadores [art. 53º, art. 58º, nº 2, al. a) CRP] e a manutenção do tecido económico e empresarial [art. 100º, al. d) CRP]. Tem de se fazer articuladamente. O que impõe uma solução diversa";

- "A indisponibilidade dos créditos deve ser referida ao seu valor económico e não ao valor nominal. O relevante é o que vale o crédito em si, como bem, não o seu objecto, donde decorre o valor nominal. Não se pode equiparar o valor nominal ao valor do crédito no património do credor, que depende de múltiplos factores, entre os quais as garantias, a capacidade financeira e, claro, a solvência daquele";

- Por regra, o perdão ou moratória previstos no plano ficam sem efeito se, antes de finda a execução do plano, o devedor for declarado insolvente em novo processo (art. 218º, nº 1, al. b), do CIRE); assim, neste caso, o crédito recupera o seu valor nominal, sendo reclamado por este montante;

- "O Estado já admite de forma «cega» a redução dos créditos públicos na insolvência a partir do momento em que eles ficam privados dos privilégios, nos casos do art. 97º, nº 1, als. a) e b), do CIRE". Constituiria uma "incoerência valorativa" admitir-se essa redução do valor desses créditos (relevante em termos económicos) "e não se admitir depois que eles, em condições de igualdade com os outros credores – e num juízo idêntico de racionalidade económica – possam ser reduzidos ou, simplesmente, sujeitos a moratória, necessários para se recuperar o devedor";

- Não há violação do princípio da igualdade, entendido este em sentido material e não formal, uma vez que se está perante situações distintas;

- Por fim, "há que presumir o legislador razoável (art. 9º, nº 3). O que impede soluções interpretativas desrazoáveis, que aniquilam todos os interesses relevantes em presença, sem benefício de ninguém", designadamente do Estado que, com a recusa de redução, contribui para a insolvência do devedor, "atingindo o tecido económico e os postos de trabalho e obterá na insolvência um valor menor do que alcançaria pela primeira via, prejudicando a receita fiscal".

Não obstante o peso indiscutível destas razões na reponderação da questão – que demonstram a incoerência do legislador e a incongruência do regime (tributário) instituído, por, substancialmente, resultar frustrado o objectivo visado, de salvaguarda dos créditos fiscais –, a controvérsia mantém-se.

A própria ineficácia do plano em relação ao credor público, solução que surgiu, pode dizer-se, por mera contingência processual – por, perante as soluções alternativas de nulidade/validade/ineficácia do plano de insolvência, ter sido esta última aquela a que se restringiu o pedido do recorrente – é vista agora como a solução adequada na aplicação de regimes – insolvencial e tributário – que não são conciliáveis[11].

Esta solução pressupõe, logicamente, a indisponibilidade dos créditos fiscais: o legislador, com a alteração introduzida no art. 30º da LGT, decidiu blindar os créditos tributários, não podendo estes ser afectados, contra a vontade do credor, pelo plano de insolvência.

Daí a tese da ineficácia relativa, "compatível com a natureza complexa do plano de insolvência e com o negócio atípico que o acordo de credores exprime, a par de constituir a solução que melhor satisfaz a conciliação dos interesses em jogo e supera a intransigência do legislador fiscal, obviando às drásticas consequências da não homologação do plano de insolvência, possibilitando a recuperação do insolvente, as mais das vezes à custa de pesados sacrifícios dos credores privados".

No caso sub judice, não temos de tomar posição sobre a aludida questão, uma vez que, à semelhança do que se decidiu no citado Acórdão de 18.02.2014, se tem de considerar a pretensão formulada pela recorrente, que se limitou a pedir a revogação do acórdão recorrido e que o plano homologado seja declarado ineficaz em relação à Fazenda Nacional, por não respeitar o disposto na LGT.

A este respeito, acrescentou-se no referido Acórdão:

"Tendo em conta os interesses subjacentes jurídicos e sociais imbrincados na recuperação da empresa, em tempos de crise económica, sobretudo, considerando as elevadas taxas de desemprego, a solução mais ajustada, sem ferir princípios jurídicos basilares dos negócios ou atípicos, é a da ineficácia relativa.

Como ensina Mota Pinto –“Teoria Geral do Direito Civil” – 4ª edição – (615 e segs.) sobre os conceitos de “ineficácia” e “invalidade dos negócios jurídicos”:

 “Os negócios feridos de ineficácia relativa produzem, pois, efeitos, mas não estão dotados de eficácia relativamente a certas pessoas.

 Daí que sejam, por vezes, apelidados de negócios bifrontes ou negócios com cabeça de Jano (…). A ineficácia relativa surge em situações caracterizadas pela existência de um direito, de uma expectativa ou de um interesse legítimo de um terceiro, que seriam prejudicados pelo negócio de disposição ou vinculação em causa. O negócio é relativamente ineficaz, por força do impedimento, resultante daquela posição legítima do terceiro acerca do conteúdo do acto. (…)

É necessário proteger o terceiro na medida apropriada à não frustração do seu direito, mas não se deve limitar o poder de disposição (ou a legitimidade para agir) do titular mais do que for necessário a essa protecção.

Logo, o negócio só é ineficaz em face do terceiro, mas não o é entre as partes ou em face de outras pessoas”.

O plano de insolvência, assente numa ampla liberdade de estipulação pelos credores do insolvente, constitui um negócio atípico, sendo-lhe aplicável o regime jurídico da ineficácia, por isso o Plano de Recuperação da empresa que for aprovado não é oponível ao credor que não anuiu à redução ou alteração lato sensu dos seus créditos".

Estas considerações, que se subscrevem, são inteiramente pertinentes também para o nosso caso.

Daí que as conclusões do recurso devam proceder.

V.

Em face do exposto, concede-se a revista, revogando-se o acórdão recorrido, decretando-se que a decisão que homologou o plano de insolvência da recorrente é ineficaz em relação à Fazenda nacional.

Sem custas.

                                               

Lisboa, 17 de Abril de 2018

Pinto de Almeida (Relator)

José Rainho

Graça Amaral

_____________________
[1] Proc. nº 5781/16.7T8VIS-D.C1.S1
F. Pinto de Almeida (R. 230)
Cons. José Rainho; Consª Graça Amaral
[2] Cfr, entre outros, os Acórdãos do STJ de 13.01.2009 e de 02.03.2010, em www.dgsi.pt, como os demais adiante citados.
[3] Cfr. Acórdãos do STJ de 15.12.2011 e de 10.05.2012.
[4] Cfr., entre outros, Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, 413; Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 6ª ed., 267; Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, Vol. I, 9ª ed., 331; Ana Prata, Morais Carvalho e Rui Simões, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 554; Sara L. Dias, A afectação do crédito tributário no plano de recuperação da empresa insolvente (…), Revista do Direito da Insolvência, Ano 0, 258 (esta Autora defende, contudo, no plano do direito a constituir, um alteração da legislação tributária, no sentido de uma solução menos intransigente e mais moldada aos interesses da manutenção em actividade e recuperação dos insolventes, conciliando-se as disposições das leis tributárias e do CIRE).
[5] Mesmo perante o direito constituído – cfr. Catarina Serra, O Regime Português da Insolvência, 5ª ed., 149 e segs e, mais recentemente, L. M. Pestana de Vasconcelos, Recuperação de Empresas: o Processo de Revitalização, 135 e segs.
[6] Cfr., neste sentido também Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 6ª ed., 321.
[7] Acórdãos de 18.02.1014, de 25.03.2014, de 01.04.2014, de 13.11.2014, de 25.11.2014 e de 24.03.2015.
[8] Acórdãos de 13.11.2014 e de 03.11.2015.
[9] Cfr., neste sentido o voto de vencido formulado nos Acórdãos referidos na nota anterior e, bem assim, o citado Acórdão de 24.03.2015.
[10] Ob. Cit., 136 e segs.
[11] É esta a posição que tem sido assumida, com valiosa argumentação, pelo Exmo Cons. Fonseca Ramos, relator do Acórdão de 18.02.2014, como decorre de recentes escritos seus – Os créditos tributários e a homologação do plano de recuperação da insolvência, em III Congresso de Direito da Insolvência, 361 e segs; Os créditos tributários e a homologação do plano de recuperação, em Revista de Direito da Insolvência cit., 267 e segs.