Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03B1604
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: PIRES DA ROSA
Descritores: SENTENÇA ARBITRAL ESTRANGEIRA
ORDEM PÚBLICA
RECONHECIMENTO E EXECUÇÃO DE SENTENÇAS
Nº do Documento: SJ200310090016047
Data do Acordão: 10/09/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 1647/02
Data: 11/28/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário : 1 - Nos termos da Convenção de Nova Iorque de 10 de Junho de 1958 (ratificada pelo Decreto do Presidente da República nº. 52/94, de 8 de Julho) o reconhecimento e a execução de uma qualquer sentença arbitral proferida no território de um dos estados contratantes só poderão ser recusados no território de outro estado contratante nos casos contados previstos no artº. V da Convenção, designadamente «se forem contrários à ordem pública desse mesmo país».
2 - Do que se fala quando aqui se fala em «ordem pública» é da chamada «ordem pública internacional», ou seja, dos princípios fundamentais estruturastes da presença de Portugal no concerto das nações;
3 - de princípios, no que aqui nos importa, como o que siga a máxima latina pacta sunt servanda ou o que não negue a ninguém a possibilidade de defesa dos seus direitos e interesses legítimos pelo recurso aos tribunais, mas que reconheça a cada um, no domínio dos direitos de que possa dispor, a possibilidade de recorrer a outras formas de obtenção de justiça, fora dos tribunais estaduais, mas não já de um princípio que supra a insuficiência de meios de quem - como as sociedades comerciais - só existe, ontologicamente, enquanto puder assegurar os meios económicos necessários à sua própria existência.
4 - As normas insertas na Convenção de Nova Iorque são normas de direito internacional, normas que de acordo com o artº. 8º da Constituição da República prevalecem tanto sobre o direito interno anterior como posterior, designadamente sobre os invocados artºs. 1100º e 1096º, al. e) do CPCivil.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

"A", veio, no Tribunal Cível da comarca do Porto, requerer contra "B & Cia, Lda.", C, "D, S.A.", "E, S.A." e "F, S.A.", o reconhecimento de sentenças proferidas por Tribunal Arbitral, nos termos da Convenção para Reconhecimento e Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras, celebrada em Nova Iorque aos 10 de Junho de 1958 e aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República nº. 37/94, de 8 de Julho.
Concretamente,
das sentenças arbitrais proferidas, na sequência de pedido de arbitragem formulado pela requerente contra os requeridos, em 18 de Abril de 1995 (fls. 66 e segs.) e em 5 de Dezembro de 1995 (fls. 120 e segs.), esta última posteriormente rectificada em 22 de Março de 1996 (fls. 137 e segs.), sentenças estas que os requeridos não cumpriram.
Alega que tais sentenças foram proferidas ao abrigo do convencionado para a resolução de qualquer problema que surgisse entre as partes, com recurso aos regulamentos de arbitragem dos Países Baixos, nos acordos - um de «franchise» e outro de representação de vendas/distribuição - celebrados em 14 de Abril de 1992 entre requerente, por um lado, e requeridas, por outro.
Citadas as requeridas, deduziram oposição (fls. 161) "E, S.A." e "F, S.A.", concluindo por pedir que a presente revisão e confirmação seja julgada totalmente improcedente relativamente às requeridas.
Respondeu a requerente a fls. 189, pugnando pela improcedência da oposição deduzida.
Alegaram, nos termos e para os efeitos do disposto no artº. 1099º, nº. 1 do CPCivil, as partes - a requerente a fls. 252; as requeridas a fls. 255 - e o Mº Pº, a fls. 265, defendendo este a incompetência absoluta do tribunal para conhecer da revisão da decisão arbitral proferida por tribunal estrangeiro, incompetência em razão da matéria e da hierarquia, por ser essa revisão e confirmação da competência do tribunal da relação.
Por sentença de 30 de Janeiro de 2001 (fls. 269 e 270) o 8º Juízo Cível do Porto julgou-se «incompetente em razão da hierarquia para os termos da presente acção, considerando competente o Venerando Tribunal da Relação do Porto, pelo que absolvo os Réus da instância (sem prejuízo do disposto no nº. 2 do artº. 105º do CPCivil)».
A requerente não se conformou com esta decisão e interpôs recurso de agravo para o Tribunal da Relação do Porto que, por acórdão de 2 de Outubro de 2001 (fls. 311 a 315), decidiu «conceder provimento ao agravo e, em consequência, revoga(r) o despacho recorrido, a fim de ser substituído por outro que julgue a arguida excepção de incompetência improcedente, seguindo-se os ulteriores termos».
Em obediência a este acórdão os autos prosseguiram, com a prolação da sentença de 22 de Março de 2002 (fls. 319 a 322) que julgou «procedente a acção e, em consequência, declaro(u) reconhecidas as Sentenças Arbitrais proferidas pelo Tribunal de Arbitragem de Amesterdão em 18 de Abril de 1995 e em 5 de Dezembro de 1995, esta com a rectificação constante da sentença proferida em 22 de Março de 1996, juntas aos autos respectivamente a fls. 68 e segs., 120 e segs. e 136 e segs.».
As requeridas "E, S.A." e "F, S.A." não se conformaram com a sentença e interpuseram recurso de apelação.
Por acórdão de 28 de Novembro de 2002 (fls. 387 a 395) o Tribunal da Relação do Porto confirmou a sentença recorrida.
De novo inconformadas, as mesmas requeridas pedem agora revista. E, alegando a fls. 410, apresentam as seguintes (textuais) CONCLUSÕES:
I - Para resolução do conflito existente entre as Recorrentes, a Recorrida e outros, a Recorrida apresentou no NAI (Neatherland Arbitrage Institut), em 92.12.11, um pedido de arbitragem que deveria ser submetido às Regras do Instituto de Arbitragem dos Países Baixos, no âmbito do qual as Recorrentes apresentaram a correspondente Resposta e Reconvenção.
II - No âmbito do referido processo, foram as Recorrentes notificadas para efectuarem o depósito do montante de NLG 30,000, sem o qual a sua Reconvenção seria imediatamente retirada.
III - Por fax datado de 23 de Dezembro de 1993, as Recorrentes comunicaram ao Tribunal a sua impossibilidade de efectuar o depósito solicitado, pois a sua situação económica e financeira impedia-as de dispor daquele montante.
IV - Indiferente aos argumentos apresentados pelas Recorrentes, o Tribunal comunicou-lhes, em 94.11.29, que a Reconvenção apresentada iria ser retirada do processo, tendo sido realizada a audiência de julgamento sem a participação das ora Recorrentes e proferida a respectiva sentença arbitral.
V - Posteriormente, a Recorrida apresentou nova petição inicial solicitando o montante indemnizatório de NLG 2,538,204.16 pelos danos que alegadamente terá sofrido.
VI - Nesta fase, as ora Recorrentes já não tiveram qualquer participação no processo, pois tinham conhecimento que esta não iria ser tida em conta enquanto não realizassem o mencionado depósito, tendo sido proferida a respectiva sentença arbitral e rectificação à mesma.
VII - É manifesto que as Recorrentes foram gravemente defraudadas nos seus legítimos direitos de participação no processo, nomeadamente no direito à apresentação da sua defesa, na medida em que na primeira fase do processo, as Recorrentes prepararam e apresentaram uma defesa que tornou a Resposta e a Reconvenção perfeitamente indissociáveis, não sendo possível atingir-se os sentidos e objectivos de uma sem ter em conta a outra.
VIII - Com a remoção do processo da Reconvenção apresentada, as Recorrentes não só foram impedidas de requererem uma indemnização pelos danos que sofreram em virtude do não cumprimento por parte da Recorrida das obrigações a que se tinha vinculado pelos mencionados acordos como ainda foram gravemente prejudicadas num dos mais elementares princípios do ordenamento jurídico português - o direito à apresentação da sua defesa.
IX - Nos termos do disposto na alínea b) do nº. 2 do artº. V da Convenção sobre o Reconhecimento e a Execução de Sentenças Arbitrais, o reconhecimento de uma sentença arbitral pode ser recusado elas autoridades portuguesas se for contrário aos princípios da ordem pública nacional.
X - Nos termos do disposto no artº. 1096º do Código de Processo Civil, para que uma sentença estrangeira seja confirmada é necessário, entre outros requisitos, que no processo hajam sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes.
XI - Por outro lado, se a sentença tiver sido proferida contra pessoa singular ou colectiva de nacionalidade portuguesa, a impugnação pode ainda fundar-se em que o resultado da acção lhe teria sido mais favorável se o tribunal estrangeiro tivesse aplicado o direito material português, quando por este devesse ser resolvida a questão segundo as normas de conflito da lei portuguesa (Cfr. artº. 1100º do Código de Processo Civil).
XII - Nos termos do disposto na alínea a) do artº. 65º do Código de Processo Civil, os Tribunais Portugueses são, neste caso concreto, internacionalmente competentes, pois as ora Recorrentes têm aqui o seu domicílio.
XIII - Assim, nunca poderão as sentenças do Tribunal Arbitral ser confirmadas, por violação dos seguintes princípios essenciais de direito português:
A) O principio da igualdade das partes;
B) O principio do contraditório/princípio da audiência contraditória; e
C) O principio do livre acesso ao direito e aos tribunais.
XIV - O princípio da igualdade das partes consiste em as partes serem colocadas no processo em perfeita paridade de condições, disfrutando, portanto, de idênticas possibilidades de obter a justiça que lhes seja devida (Cfr. A. Anselmo de Castro, in "Direito Processual Civil Declaratório", 1982, pág. 100).
XV - O processo de arbitragem em causa nos presentes autos violou, de forma absolutamente inaceitável, este principio, pois, enquanto à Recorrida foram dadas todas as hipóteses de apresentação dos seus articulados, de defesa das suas teses e de exigir a indemnização que entendesse pelos prejuízos que alegadamente terá sofrido, às ora Recorrentes foi limitada a intervenção no processo, a ponto de lhes ser retirada a possibilidade de requererem um montante indemnizatório pelos prejuízos que efectivamente sofreram.
XVI - Jamais poderá haver igualdade das partes quando ambas são postas em diferentes "patamares" e quando a ambas são impostos diferentes direitos de participação na lide, apenas por manifesta insuficiência económica de uma em relação à outra.
XVII - As decisões arbitrais cuja confirmação se requer foram assim proferidas com base numa inaceitável e desmedida violação do princípio da igualdade das partes, princípio fundamental da ordem jurídica portuguesa, pelo que nos termos do disposto na alínea b) do nº. 2 do artº. V da Convenção sobre o Reconhecimento e a Execução de Sentenças Arbitrais e bem assim na alínea e) do artº. 1096º. do Código de Processo Civil nunca poderão ser confirmadas por um Tribunal Português.
XVIII - Nos termos do disposto no artº. 3º do Código de Processo Civil, o tribunal não pode resolver conflito de interesses que a acção pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição
O Juiz deve observar e fazer cumprir ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso (Cfr. nº. 3).
XIX - Às ora Recorrentes não foi permitida uma intervenção no processo por forma a acautelarem devidamente os seus legítimos interesses, pelo que as decisões proferidas pelo Tribunal Arbitral são inevitavelmente tendenciosas .
XX - Sobre as Recorrentes sempre foi exercida uma pressão inaceitável para que realizassem o depósito que lhes foi solicitado, sob pena de a decisão a proferir pelo Tribunal Arbitral lhes ser, inevitavelmente, desfavorável.
XXI - Ao contrário do que se alega na douta sentença de fls., não se pode considerar que o princípio do contraditório tenha sido respeitado pelo facto de uma das contestações ter sido aceite, na medida em que as Recorrentes se prepararam e apresentaram uma defesa que tornava a Resposta e a Reconvenção perfeitamente indissociáveis não sendo possível atingir-se os sentido, objectivo e alcance de uma sem ter em consideração a outra.
XXII - As Recorrentes não compareceram na audiência de julgamento designada pelo Tribunal por falta de capacidade económica, na medida em que se nem para pagar as taxas solicitadas pelo Tribunal as Recorrentes tinham capacidade muito menos o teriam para pagar as despesas emergentes de deslocações à Holanda, com todos os custos de viagem, de estadia e de alimentação daí inerentes.
XXIII - Desta forma, é mais uma vez manifesto que as decisões proferidas violam um princípio fundamental da ordem pública portuguesa - princípio do contraditório -, razão por que, nos termos do disposto na alínea h) do nº. 2 do artº. V da Convenção sobre o Reconhecimento e a Execução de Sentenças Arbitrais e bem assim na alínea e) do artº. 1096º do Código de Processo Civil, as mesmas não podem ser confirmadas.
XXIV - Nos termos do disposto no artº. 20º da Constituição da República Portuguesa, a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.
XXV - O sistema de acesso ao direito e aos tribunais destina-se a promover que a ninguém seja dificultado ou impedido, em razão da sua condição cultural ou social, ou por insuficiência de meios económicos, de conhecer, fazer valer ou defender os seus direitos (Cfr. artº. 1º do Decreto-lei nº. 387-B/87, de 29 de Dezembro, com as alterações impostas pela Lei nº. 46/96, de 3 de Setembro).
XXVI - Têm direito a protecção jurídica as pessoas singulares e colectivas que demonstrem não dispor de meios económicos bastantes para suportar os honorários dos profissionais forenses, devidos por efeito da prestação dos seus serviços, e para custear, total ou parcialmente, os encargos normais de uma causa judicial (Cfr. artº. 7º do mencionado Decreto-lei) .
XXVII - Assim, a remoção do pedido reconvencional e correspondente limitação à participação das ora Recorrentes no processo arbitral, nos termos explicitados, constitui uma inaceitável e desmedida violação do principio do acesso ao Direito e aos Tribunais, em clara violação do disposto na Constituição da República Portuguesa e na ordem pública nacional.
XXVIII - As recorrentes apresentaram a sua defesa mas a mesma não foi aceite com o único fundamento de as mesmas não terem disponibilidade económica para custear os encargos emergentes do processo arbitral encontrando-se tal falta de capacidade económica devidamente demonstrada nos documentos que se encontram juntos aos presentes autos.
XXIX - Nem se diga, como consta da douta sentença de fls., que "... o Tribunal Arbitral comunicou várias vezes às Rés a consequência de tal omissão; prorrogou o prazo de tal pagamento; permitiu que o mesmo fosse efectuado em três prestações ... no nosso ordenamento jurídico também existem cominações para o não pagamento das taxas de justiça iniciais e subsequentes devidas, as quais envolvem o agravamento dessas mesmas taxas ... mas também a impossibilidade de o processo (neste caso a reconvenção) ter andamento enquanto não for efectuado tal pagamento ...".
XXX - Na verdade, de nada adiantava as facilidades de pagamento concedidas pelo Tribunal Arbitral, na medida em que o problema das Recorridas não era o de pagarem faseadamente, mas sim o de terem absoluta indisponibilidade para o pagamento dos encargos do processo, em qualquer condição.
XXXI - Por outro lado, é verdade que no ordenamento jurídico português existem consequências para a falta de pagamento das taxas de justiça, mas a ninguém é vedado o acesso aos tribunais e à apresentação da sua defesa em virtude de não ter capacidade económica para efectuar o pagamento das taxas respectivas.
XXXII - Não se diga, igualmente, como se refere no douto acórdão de fls., que "as recorrentes ao optarem pela solução dos litígios em causa por via de tribunal arbitral, renunciando aos tribunais estaduais, bem sabiam da necessidade de pagar, designadamente, os encargos respectivos aos árbitros ...".
XXXIII - Ora, a verdade é que quando as Recorrentes aceitaram que o Tribunal Arbitral fosse competente julgavam ter condições financeiras para suportar os custos emergentes de tal processo. No entanto, infelizmente, as Recorrentes não tiveram tal capacidade financeira, pelo que se viram impedidas, em razão insuficiência de meios económicos, de fazer valer os seus direitos, o que é absolutamente injusto e inaceitável.
XXXIV - As sentenças do Tribunal Arbitral devem ser de imediato anuladas nos termos do disposto na alínea a) do nº. 2 do artº. V da Convenção sobre o Reconhecimento e a Execução de Sentenças Arbitrais, na alínea e) do artº. 1096 e no nº. 2 do artº. 1100º, ambos do Código de Processo Civil, julgando-se improcedente o presente recurso e indeferindo-se totalmente o pedido apresentado ela recorrida.
Contra-alega a recorrida "A", a fls.435 pugnando pela negação da revista.
Cumpre conhecer.

A Relação fixou, do seguinte modo, a MATÉRIA DE FACTO:
a) A Requerente é uma sociedade incorporada, com existência de acordo com as leis dos Países Baixos, que se dedica à importação e exportação de artigos de pronto a vestir .
b) Em 14/04/92 a Requerente e os Requeridos concluíram dois acordos:
um de "franchise", cuja cópia se encontra junta a fls. 13 e seguintes dos autos (e tradução a fls. 19 e seguintes) e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido; e um de representação de vendas/distribuição, cuja cópia se encontra junta a fls. 31 e seguintes (com tradução de fls. 48 e seguintes) e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
c) Em 11/12/92 a Requerente apresentou um pedido de arbitragem contra os Requeridos.
d) Teor integral da sentença arbitral proferida em 18/04/95, junta a fls. 68 e seguintes os autos, aqui dado como reproduzido.
e) Teor integral da sentença arbitral proferida em 05/12/95, junta a fls.120 dos autos, aqui dado por reproduzido.
f) Teor integral da rectificação à decisão arbitral mencionada em e), proferida em 22/03/96, junta a fls.136 e seguintes dos autos, aqui dado por reproduzido.

Em rigor, a única questão que importa aqui resolver é a de saber se o reconhecimento ou a execução da(s) sentença(s) do Tribunal Arbitral do Nederlands Arbitrage Institut são contrários à ordem pública portuguesa.
Na verdade,
nos termos da Convenção sobre o Reconhecimento e a Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras, celebrada em Nova Iorque a 10 de Junho de 1958, ratificada por Portugal com o Decreto do Presidente da República nº. 52/94, de 8 de Julho (após aprovação para ratificação pela Resolução da Assembleia da República nº. 37/94, do mesmo dia), o reconhecimento e a execução de uma qualquer sentença arbitral proferida no território de um dos estados contratantes só poderão ser recusados no território de um outro estado contratante nos casos contados previstos no artº. V da Convenção, maxime (no que aqui nos importa) «se forem contrários à ordem pública desse mesmo país».
Ou seja, se forem contrários - ver Mota Pinto, Teoria geral do Direito Civil, 3ª edição actualizada, Coimbra Editora, pág. 551 - àquele «conjunto de princípios fundamentais, subjacentes ao sistema jurídico, que o Estado e a sociedade estão substancialmente interessados em que prevaleçam e que têm uma acuidade tão forte que devem prevalecer sobre as convenções privadas».
Ou - vistas as coisas de um ponto de vista do direito internacional - ao «conjunto de princípios que, por serem fundamento de uma ordem jurídica determinada, impedem a aplicação, na respectiva esfera de influência, da lei estrangeira normalmente competente, ou o reconhecimento dos respectivos efeitos» - Taborda Ferreira, RDES, X-186.
Ora, estas - as normas insertas na Convenção de Nova Iorque, ratificada por Portugal - são normas de direito internacional, normas que, por força do que dispõe o artº. 8º da Constituição da República, prevalecem tanto sobre o direito interno anterior como posterior - neste sentido, Gomes Canotilho - Vital Moreira, Fundamentos da Constituição, Coimbra Editora, 1991, pág. 65.
Prevalecem, designadamente, sobre a invocada disposição do artº. 1100º do CPCivil - que, como se sabe, visa proteger o interesse meramente particular do cidadão português e não o ordenamento jurídico nacional - e sobre a igualmente invocada disposição do artº. 1096º, al. e) do mesmo código. De modo que só haverá que olhar para estas disposições, aqui, enquanto traduzirem ou puderem ter traduzido um atentado à ordem pública do estado português.
Dir-se-á, quanto à primeira destas duas disposições:
por um lado, as recorrentes não explicam como é que, julgada a acção de acordo com o direito material português, o resultado lhes teria sido mais favorável;
por outro, e antes disso, esquecem que elas próprias escolheram celebrar a convenção arbitral e, nesta, sujeitar-se ao tribunal arbitral holandês e ao direito holandês - «a validade, interpretação e execução deste acordo serão governados pela lei holandesa». No que estavam no seu pleníssimo direito, exactamente porque se movimentavam no domínio de direitos disponíveis - veja-se o artº. 99º do CPCivil.

Voltando atrás, então:
do que se fala quando aqui se fala em ordem pública é da chamada ordem pública internacional, dos princípios fundamentais estruturantes da presença de Portugal no concerto das nações.
Certamente, e por exemplo, de um princípio que siga a máxima latina pacta sunt servanda. Seja, de um princípio que imponha que alguém que, na sua livre disponibilidade, acorde com outrem sujeitar o julgamento das questões emergentes de um contrato entre ambos celebrado a um tribunal arbitral holandês e ao direito holandês, cumpra esse acordo.
Seguramente também de um princípio que não negue a ninguém a possibilidade de defesa dos seus direitos e interesses legítimos pelo recurso aos tribunais (não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos - artº. 20º, nº. 1 da Constituição da República) mas que reconheça a cada um, no domínio dos direitos de que possa dispor, a possibilidade de recorrer a outras formas de obtenção de justiça, fora dos tribunais estaduais, como seja exactamente o recurso a tribunais arbitrais (e também a sujeição a uma lei e/ou jurisdição estrangeiras), pagando o que for de pagar para o seu funcionamento.
Mas não já de um princípio que supra a insuficiência de meios de quem, por natureza, só existe enquanto tal, ontologicamente, enquanto puder assegurar os meios económicos necessários à sua própria existência.
Como é o caso das sociedades comerciais: elas só existem, só podem existir enquanto puderem prover à sua própria existência. Faz parte da sua natureza resguardar meios para esse fim, designadamente resguardar o necessário para prover à defesa dos seus direitos.
Por isso é que a lei ordinária com a qual se pretende dar cumprimento ao comando constitucional supra referido - a Lei do Apoio Judiciário - lhes não reconhece a elas (mas apenas a pessoas singulares) o direito a integral protecção jurídica (consulta jurídica e apoio judiciário - artº. 6º da Lei), lhes não reconhece sequer por inteiro o direito a apoio judiciário (como faz para as pessoas colectivas de fins não lucrativos - artº. 7º, nº. 4) e só, residualmente, permite dispensá-las de pagamento total ou parcial de custas, e ainda assim com a prova de que o montante de preparos ou custas seja consideravelmente superior às (suas) possibilidades económicas (...) aferidas designadamente em função do volume de negócios, do valor do capital ou do património e do número de trabalhadores ao seu serviço - nº. 5 do artº. 7º.
Estamos a referir-nos à Lei do Apoio Judiciário com a redacção que a Lei nº. 46/96, de 3 de Setembro introduziu no Dec.lei nº. 387-B787, de 29 de Dezembro. Que, designadamente, alterou a redacção do nº. 4 do artº. 7º, retirando dele (e, consequentemente do direito a apoio judiciário) as sociedades, para conceder a estas - residualmente, como se disse - apenas a possibilidade de dispensa de preparos e custas.
E - veja-se o acórdão nº. 97/99, de 10 de Fevereiro de 1999, publicado no BMJ nº. 484, pág. 99:
«I - a norma constante do artº. 7º do Dec.lei nº. 387-B/87, na redacção introduzida pela Lei nº. 46/96, de 3 de Setembro, na parte em que não reconhece às pessoas colectivas com fim lucrativo o apoio judiciário, na modalidade de patrocínio judiciário, não viola os princípios consignados nos artºs. 13º e 20º da Constituição.
II - na verdade, não decorre da Lei Fundamental a necessidade de uma total equiparação, no que se refere à promoção das condições de acesso à justiça em casos de alegada insuficiência económica, entre pessoas singulares ou colectivas sem fim lucrativo e pessoas colectivas com fins lucrativos, atenta nomeadamente a integração dos custos com a defesa jurídica destas na respectiva actividade económica».
Veja-se também o que se diz nas Actas do debate parlamentar da proposta de Lei 52/VII, da qual veio a resultar a Lei nº. 46/96, constantes do Diário da Assembleia da República, I série, de 11.06.96, págs. 3216 e segs. -
«nem a CRP nem qualquer dos instrumentos internacionais a que Portugal está vinculado garante às sociedades civis e comerciais a concessão do apoio judiciário. A esmagadora maioria das soluções de direito comparado, incluindo aquelas que revelam maior afinidade com a portuguesa, também não consagra para as sociedades o aludido benefício ... Excepcionam-se, porém, deste princípio, os casos em que as possibilidades das sociedades sejam consideravelmente inferiores ao valor dos preparos e das custas, mas nunca, note-se, para efeitos de patrocínio judiciário, por se afigurar que, nestes casos residuais, não se torna chocante a concessão daquele benefício».
É isto:
ao acordar com a aqui recorrida a sujeição a um tribunal arbitral, e a um tribunal arbitral na Holanda, as recorrentes sabiam que os tribunais arbitrais implicam encargos e despesas, e para o respectivo aprovisionamento se deveriam ter prevenido.
Não o fizeram. Sibi imputat!
Poder-se-ia dizer que uma coisa é ter pensado ter assegurado um tal aprovisionamento no momento em que subscreve o acordo (e, portanto, admitir sair do guarda-chuva protector dos tribunais estaduais aceitando a intervenção futura de um tribunal arbitral, estrangeiro e regulando-se pela lei estrangeira); outra coisa é ter caído posteriormente, sem culpa, numa situação de insuficiência económica que de todo em todo torna impossível o seu acesso à justiça, se acaso persistir a obrigação de se sujeitar ao tribunal arbitral.
Acontece é que a consideração desta segunda hipótese não dispensaria a alegação de factos que tornassem conclusiva a ideia de que essa obrigação se teria extinguido por ter-se tornado impossível, por causa não imputável ao devedor, o seu cumprimento - veja-se a este propósito o Ac. STJ de 18 de Janeiro de 2000, CJSTJ, T1, pág.28.
E essa alegação não vem feita. As recorrentes limitam-se a dizer na sua contestação que «por fax de 23 de Dezembro de 1993, (...) comunicaram ao Tribunal a sua impossibilidade de efectuar o depósito solicitado, pois a sua situação económica e financeira impedia-as de dispor daquele montante».
A situação em que as recorrentes se colocaram no âmbito do processo em que foi proferida a sentença arbitral cujo reconhecimento vem pedido, e em que foram colocadas pelo tribunal arbitral holandês donde a sentença provem, não importa pois ofensa à ordem pública internacional do estado português (nem era suposto que importasse, sabido como é que Portugal e Holanda fazem parte do mesmo espaço comunitário das democracias europeias):
a própria lei de arbitragem voluntária portuguesa, a Lei nº. 31/86, de 29 de Agosto, estabelece a remuneração dos árbitros e os mais encargos da arbitragem a cargo das partes;
as recorrentes foram chamadas ao processo e nele puderam exprimir-se em defesa dos seus interesses e direitos, dentro dos limites em que o seu cumprimento dos encargos necessários à arbitragem o permitiu;
respeitaram-se assim, aliás, os princípios da igualdade e do contraditório (que as recorrentes pretendiam ter sido ofendidos), sendo além do mais certo que não vem alegada qualquer discriminação, seja de que tipo for, em relação às recorrentes, resultante do normativo próprio da lei holandesa a que se acolheram (que designadamente, em posição idêntica e simétrica, tratasse de modo diferente a recorrida em prejuízo das recorrentes).

DECISÃO
Nega-se a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.
Custas a cargo das recorrentes, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficiam.

Lisboa, 9 de Outubro de 2003
Pires da Rosa
Quirino Soares
Neves Ribeiro