Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
510/18.3T9SSB.E1-A.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO GAMA
Descritores: RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
ASSISTENTE
DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA
IDENTIDADE DE FACTOS
QUESTÃO FUNDAMENTAL DE DIREITO
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
REJEIÇÃO
Data do Acordão: 02/24/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (PENAL)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I - Constitui jurisprudência assente do STJ que só havendo identidade de situações de facto nos dois acórdãos é possível estabelecer uma comparação que permita concluir, quanto à mesma questão de direito, que existem soluções jurídicas opostas, bem como é necessário que a questão decidida em termos contraditórios seja objeto de decisão expressa, isto é, as soluções em oposição têm de ser expressamente proferidas, acrescendo que, de há muito, constitui também jurisprudência pacífica no STJ que a oposição de soluções entre um e outro acórdão tem de referir-se à própria decisão, que não aos seus fundamentos
II - O recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, de carácter normativo, destina-se a fixar critérios interpretativos uniformes com a finalidade de garantir a unidade do ordenamento penal e, com isso, os princípios de segurança, da previsibilidade das decisões judiciais e a igualdade dos cidadãos perante a lei.
Decisão Texto Integral:


Processo n. º 510/18.3T9SSB.E1-A.S1

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:

I.

1. AA, interpôs recurso nos seguintes termos:

«(…) Assistente nos autos supra identificados, notificada do acórdão datado de 23/11/2021 - o qual foi decidido negar provimento ao recurso e, em consequência, manter na íntegra a decisão recorrida - vem, ao abrigo do disposto nos artigos 434.° e alíneas b) e c) do n.° 3 do artigo 410.°, todos do Código de Processo Penal (CPP), interpor recurso, por não se conformar com a referida decisão e conforme motivações que seguem em anexo».

«Para efeito de arguição de nulidades processuais, damos aqui por integralmente reproduzidas as motivações de recurso que se seguem para o STJ, sobre esta matéria, a fim de evitar repetições desnecessárias (vd. págs. 35 e 46 a 48, infra)».

«Sem prescindir pela procedência das nossas motivações em sede do recurso ordinário, requer-se que, caso assim não se entenda, seja o presente recurso enviado, com natureza extraordinária, ao pleno das secções criminais do STJ, para decidir a contradição de julgados, quanto ao entendimento do abuso e exploração financeira, como tipo de violência doméstica e o património da vítima como bem tutelado também por essa mesma incriminação, dando-se como acórdão-fundamento o aresto do STJ. Proc. 2263/15.8JAPRT.P1.S1 de 20/04/2017. "in" www.dgsi.pt e que é citado e transcrito, a págs. 41 a 46. infra (artigo 437.°, n.° 2 e 438.° do CPP)».

2. Apresenta as seguintes conclusões (transcrição):

«1. A Assistente e aqui Recorrente não se conforma com o acórdão do Tribunal da Relação de Évora (TRE), na parte em que não procedeu à pronúncia da Recorrida BB, pelos crimes de violência doméstica e abuso de confiança (qualificada), ainda que em concurso efectivo ou meramente aparente (nos termos dos artigos 152.°, n.° 1, 205.°, n.° 1 e 4, alínea b), por referência ao artigo 202.°, alínea b) do CP).

2. À luz do artigo 412.° do CPP importa levar em conta os elementos probatórios que impunham necessariamente uma decisão diversa do tribunal "a quo" (TRE|

3. Começando pelos pontos 5) e 6) da matéria dada como não indiciariamente provada, deveria ter sido relevado que o ex-companheiro da Recorrida nunca teve qualquer ligação à ... para aí ir investir todas as suas poupanças.

4. Contrariamente ao depoimento da Recorrida e Arguida BB, em fase de instrução, os documentos atestam que as quantias de € 100.000,00 EUR e de € 300.000,00 EUR foram levantadas da conta bancária de CC (vd. Doc. 3 do requerimento de 24/03/2021) - vejam-se os trechos dos depoimentos da Recorrida de 26/02/2021, aos 00:20:20, 00:22:32 e 00:59:36 dos tempos de gravação e aqui supra transcritos (em que a mesma confirma a aplicação do dinheiro na ...).

5. Caso o investimento feito por CC na ... fosse uma forma de escapar "às garras" das suas filhas, jamais este manteria uma conta bancária conjunta com as duas filhas (vd. Doc. 48 do nosso RAI).

6. Deve também ser levado em conta o "modus operandi" da Recorrida e da sua filha, quanto às rendas de valor variável, provenientes da ... e que, de imediato, eram levantadas da conta de CC, como explanado nos pontos 86) a 89) do nosso RAI,

7. Pelo que os pontos 5) e 6) da matéria dada como não indiciariamente provada, deveriam ter sido transpostos para o elenco dos factos suficientemente indiciados da sentença instrutória.

8. Sobre os pontos 7) e 8) da matéria dada como não suficientemente indiciada, é a própria Recorrida e Arguida BB que confirma a posse e utilização do cartão multibanco do companheiro (vd. depoimento de 26/02/2021, aos 00:29:40, 00:34:46, 00:59:36, 01:08:25 dos tempos de gravação supra transcritos)

9. Nos próprios requerimentos da Recorrida, no processo de pedido de revisão da sentença de maior acompanhado, a mesma admite que: "(...) trazia sempre consigo um cartão de crédito que utilizava livremente no dia-a-dia, quando, onde e no que fosse necessário, designadamente nas despesas normais de um casar ("sic", sublinhado nosso, Doc. 2 do nosso requerimento de 24/03/2021).

10. É falso que só houvesse uma "bolsa" do casal, como a mesma chegou a invocar no seu requerimento, uma vez que a Recorrida admitiu que a conta do BES não era conjunta e que a mesma tinha a sua própria conta bancária (cfr. trecho supra transcrito do depoimento da Recorrida de 26/02/2021, aos 00:59:36 dos tempos de gravação).

11. O TRE acolheu o entendimento do Tribunal de 1.ª Instância, que atestou a tese apresentada pela Recorrida de que o cartão multibanco servia para pagar as despesas normais do casal, peio que não havia indícios de prática criminal, contudo verificado o teor dos extractos bancários, sob Doc. 1 a 47 do nosso RAI, verifica-se que os levantamentos de dinheiro são bastante suspeitos.

12. Como se pode ver no ponto 78) do nosso RAI, a Recorrida fez levantamentos sucessivos e quase diários das quantias permitidas pelos limites do sistema SIBS e do Multibanco, totalizando entre 2013 e meados de 2018 o montante de cerca de € 58.000,00 EUR (levando apenas em conta os meses com movimentações de maior expressão).

13. Estes levantamentos apresentam uma natureza ainda mais anómala, uma vez que se verifica que as compras nas lojas e supermercados eram pagas com o cartão e não com o dinheiro levantado) e os gastos mensais de água, luz e telecomunicações eram feitos por débito directo.

14. Tanto que a Recorrida não conseguiu justificar que destino deu às avultadas quantias que levantou da conta, nem tão pouco a mesma prestou contas, conforme lhe foi solicitado pela Recorrente AA, em 2018 (ver Doc. 1 da nossa queixa-crime).

15. Importa salientar que se encontra suficientemente indiciado o facto de CC estar diagnosticado com ... desde 2015 e de já antes apresentar sintomas (ponto 5 da matéria factual indiciada), pelo que não faz sentido admitir que CC facultou o cartão multibanco à Recorrida, até porque a Recorrente explicou que o seu pai andava com o código na carteira, junto com o cartão (vd. depoimento da Recorrente de 26/02/2021, aos 00:19:27 dos tempos de gravação, supra transcritos),

16. Logo, por fugir completamente do âmbito de valores de uma normal economia doméstica do casal em união de facto, deveriam os pontos 7) e 8) da matéria não suficientemente indiciada ter sido transportadas para a matéria dos factos dados como suficientemente indiciados, conforme resulta da prova feita,

17. Os maus tratos e o excesso de medicação têm também que ser considerados, cujo tema foi abordado no nosso RAI nos pontos 59 a 61 (o que não foi sequer apreciado pelo TRE).

18. Importa igualmente ressalvar a sentença do processo cível de maior acompanhado, datada de Abril de 2019 e que foi junta em sede de inquérito, onde também aí ficou indiciariamente provado que a Recorrida BB negligenciava a prestação de cuidados ao seu então companheiro CC.

19. A própria Recorrida BB afirma expressamente que a ida do então companheiro para o hospital, em Setembro de 2018, se deveu a um excesso de medicação (depoimento de 26/02/2021, aos 00:39:35 dos tempos de gravação supra transcritos).

20. A Recorrente relatou o que lhe foi informada pela médica no hospital que o seu pai apresentava rigidez muscular pelo excesso de medicação e "mais dois ou três dias os órgãos iam entrar em falência" (vd. 00:23:33 e 00:47:12 dos tempos de gravação do depoimento).

21. A Recorrida admitiu que o seu então companheiro apresentava escaras nos pés e micoses na zona genital (depoimento de 26/02/2021, aos 00:36:20, 01:03:15 dos tempos de gravação supra transcritos).

22. Também a Recorrente e a testemunha DD mencionaram que CC, quando foi para casa da Recorrente, em Setembro de 2018, aquele apresentava feridas e escaras, como consequência de má higiene e imobilização (vejam-se os tempos de gravação supra transcritos).

23. A testemunha EE também confirmou que o seu sogro CC estava prostrado, quando o encontrou em 12/09/2018 e foi ele próprio que chamou o 112, depois de o encontrar amarrado a uma cadeira, pela Recorrida (depoimento de 25/03/2021 aos 00:11:58 dos tempos de gravação supra transcritos).

24. As testemunhas apresentadas em sede de inquérito, pela Recorrida, não deveriam ser atendidas, uma vez que algumas delas referem não estar com CC desde 2015 e 2016 (vd. fls. 192-193 e 200-201).

25. Pelo que, tudo ponderado, deveriam os pontos 9) a 14) da matéria não indiciada ter sido incluídos no rol dos factos suficientemente indiciados, face à prova produzida.

26. Quanto ao ponto 15) da matéria não indiciada foi a própria Recorrida a admitir que deixava o companheiro sozinho em casa para ir fazer compras ao ..., tendo depois tentado emendar o que disse (vd. depoimento de 26/02/2021, aos 00:34:46 e 01:00:27 dos tempos de gravação supra transcritos), pelo que deveria também este ponto ter sido transposto para a matéria suficientemente indiciada, face à prova produzida.

27. O ponto 18) da matéria não indiciada também deveria ter passado para o rol dos factos suficientemente indiciados, porquanto também foi a própria Recorrida que admitiu só ter visitado o seu então companheiro em casa da filha, até Outubro de 2018. apesar de ter pleno conhecimento do processo de maior acompanhado (depoimento da Recorrida de 26/02/2021, aos 00:46:06, 00:50:05, 00:54:43 dos tempos de gravação supra transcritos).

28. A Recorrida demonstra as contradições ao longo de todo o seu discurso, se atentarmos ao pedido de revisão da sentença de maior acompanhado, onde aí alega só ter tomado conhecimento desse processo cível, em inícios de 2020 (veja-se o nosso requerimento de 24/03/2021 e respectivos documentos).

29. Para mais, ficam também demonstrados os intuitos meramente patrimoniais da Recorrida, que em 2017 providenciou por um testamento de CC a seu favor, quando o mesmo já estava diagnosticado com ... desde 2015 (vd. Doc. 49 do nosso RAI e ponto 5) dos factos suficientemente indiciados na decisão instrutória).

30. Devia ainda ser acolhido o depoimento da Recorrente e da testemunha DD que relataram que, após Outubro de 2018, a Recorrida foi vista a passear, a frequentar bailes e cafés, foi de férias para a sua terra e nem pelo Natal telefonou ao seu então companheiro (depoimento da Recorrente de 26/02/2021, aos 00:25:01 e depoimento da testemunha DD de 25/03/2021, aos 00:33:24 e 00:34:46 dos tempos de gravação supra transcritos).

31.O crime de violência doméstica trata da tutela de um bem jurídico plural e complexo que visa essencialmente a defesa da integridade física e psíquica e a protecção da dignidade humana, no âmbito de uma particular relação interpessoal (vd. a este passo, o Ac. Tribunal da Relação do Porto, Proc. n.° 31/09.5GCVLP.P1. datado de 09/01/2013, "In" www.dgsi.pt).

32. Este tipo de crime previne e pune condutas perpetradas por quem afirme e actue, dos mais diversos modos, um domínio ou uma subjugação sobre a pessoa da vítima, sobre a sua vida e/ou sobre a sua honra e/ou sobre a sua liberdade e a reconduz a uma vivência de medo, de tensão e de subjugação ("vide ibidem").

33. "In casu" e sem esquecer todos os maus tratos físicos e psicológicos, a exploração financeira do companheiro, levada a cabo pela Recorrida BB, traduz precisamente a subjugação a que CC exposto e que o levou a investir todas as suas poupanças na ..., como caracterizou-se ainda pela posse e utilização do seu cartão multibanco, fazendo inúmeros e sucessivos levantamentos de dinheiro, muito suspeitos e a favor da si mesma (contabilizando-se em, pelo menos, € 58.000,00 EUR, entre 2013 e meados de 2018).

34. Mesmo que se entendesse não incluir a denominada exploração financeira no âmbito da violência doméstica, haveria sempre que pronunciar a Recorrida, pela sua conduta com a utilização do cartão multibanco de CC, subsumindo-se à prática do crime de abuso de confiança (qualificada).

35. Se atendermos a toda a prova produzida em conjugação com as regras da experiência comum, assinala-se um erro ostensivo que evidencia o desacerto da decisão tomada quanto à matéria que o tribunal considerou como indiciariamente provada ou não provada (artigo 410.°, n.° 2, alínea c) do CPP).

36. O erro na apreciação da prova, que ultrapassa o âmbito do princípio da livre apreciação da prova, deu origem a uma decisão contrária ao que é demonstrado de forma inegável pela prova (documental e testemunhal) que foi produzida.

37. Os factos dados como indiciariamente provados (o ... desde 2015 e a posse e utilização do cartão multibanco pela Arguida BB), bem como os que, erradamente, não o foram, constituem força probatória para integrar os crimes de violência doméstica e abuso de confiança (qualificada) em concurso efectivo ou aparente praticados pela Recorrida (o que redunda numa enorme contradição insanável entre os factos, argumentos e decisão do TRE e abre caminho ao presente recurso, por via do artigo 410.°, n.° 2, alínea b) do CPP).

38. A lógica do TRE falha redondamente de forma crassa e de palmatória ao apresentar um cálculo meramente aritmético para analisar os levantamentos bancários que foram feitos da conta da vítima (CC) pela Arguida BB, não levando em consideração os pagamentos que também eram feitos nas loias e supermercados, com o cartão, bem como os débitos directos dos consumos mensais de água, luz e comunicações, o que obviamente extravasava um orçamento doméstico de € 800.00 EUR que o tribunal "a quo" considerou plausível.

39. A Recorrida BB se queria legitimar o uso do cartão multibanco de CC, teria de socorrer-se de um processo de interdição (vigente à data dos factos), ou posteriormente de maior acompanhado, para intitular-se responsável pela gestão de património do seu então companheiro.

40. Pelo que é irrelevante saber a medida em que CC lhe autorizou o uso do cartão multibanco (antes da doença de ...).

41. Sem prejuízo da procedência do recurso ordinário, por mera cautela de patrocínio sempre se dirá que, a não ser admissível o recurso ordinário, caberá recurso de natureza extraordinária para o pleno das secções criminais do STJ, a fim de suprir a contradição de julgados, quanto à questão da tutela do bem jurídico de natureza patrimonial da vítima, com a incriminação da violência doméstica (levando-se em conta o acórdão-fundamento do STJ, supra mencionado e transcrito do Proc. 2263/15.8JAPRT.P1.S1 de 20/04/2017) - artigo 437,°. n.° 2 do CPP.

42. O entendimento do acórdão recorrido do TRE (copiando os argumentos da 1.ª Instância) vai contra outras decisões já publicadas do STJ que, diferentemente, entendem o crime de violência doméstica como abarcando uma pluralidade de situações, onde naturalmente se inclui a violência realizada ao nível do controlo financeiro da vítima e da sua subalternização também nesse conspecto ("Vide" o nosso acórdão-fundamento, Ac, STJ, Proc. 2263/15.8JAPRT.P1.S1 de 20/04/2017).

43. Os ensinamentos do próprio CEJ, apontam para a vertente de abuso económico da vítima como uma dimensão do tipo de violência doméstica, o que não foi erradamente acolhido pelo TRE (vd, supra, op. cit)

44. Sem conceder, o acórdão recorrido do TRE padece ainda de nulidades processuais, por não se pronunciar sobre todas as questões que devia tomar conhecimento, designadamente o facto de a Arguida BB ter promovido um testamento a seu favor, já depois de CC encontrar-se doente com ... e de acordo com os Doc. 49 a 51 do nosso RAI (artigo 379.°, n.° 1, alínea c) e artigo 414.°, n.° 4 do CPC).

45. As nulidades, a não serem suprida pelo tribunal "a quo", em sede de interposição deste recurso, sempre constituem fundamento das presentes motivações (artigo 379.°, n.° 1, alínea c) e artigo 414.°, n.° 4 do CPC).

46. De todo o modo e em suma, deverá sempre a Arguida BB ser pronunciada para julgamento, não só pelo crime de ofensas à integridade física do qual já foi acusada, mas também quanto ao crime de violência doméstica, em concurso meramente aparente ou efectivo com o crime de abuso de confiança.

Termos em que, conforme o supra exposto e no mais de Direito aplicável, requer-se:

A) A admissão do presente recurso ordinário, ao abrigo do disposto nos artigos 410.°, n.° 2, alíneas b) e c), "ex vi" artigo 434.°, todos do CPP.

B) Para tanto, deverão ser supridas as nulidades processuais, quer por via do tribunal "a quo" (TRE), quer por via dos fundamentos do presente recurso (artigos 379.°, n.° 1, alínea c) e artigo 414.°, n.° 4 do CPC).

C) Sem prescindir, nem nunca conceder, por mera cautela de patrocínio, requer-se que a não ser admissível o recurso ordinário, seja admitido o presente recurso como extraordinário para o pleno das secções criminais do STJ, por via do artigo 437.°, n.° 2 do CPP, dada a flagrante contradição de julgados, no que tange ao entendimento quanto ao bem jurídico tutelado pela incriminação da violência doméstica, respeitante à exploração e abuso financeiro da vítima, tomando como acórdão-fundamento o supra mencionado aresto, no âmbito do Proc. 2263/15.8JAPRT.P1.S1, datado de 20/04/2017, "in" www.dgsi.pt),

D) Em todo o caso, requer-se que a decisão instrutória seja sempre revogada, devendo por conseguinte, ser substituída por decisão de pronúncia para julgamento da Recorrida e Arguida BB, também pelos crimes de violência doméstica e abuso de confiança (qualificado), em concurso efectivo ou ainda que meramente aparente, ao abrigo do disposto nos artigos 152.°, n.° 1, 205.°, n.° 1 e 4, alínea b), por referência ao artigo 202.°, alínea b) do CP, realizando-se desta forma a tão costumada Justiça»

3. O Ministério Público, junto do Tribunal da Relação de Évora, respondeu sustentando em conclusão:

1º Nos Autos de Recurso de Instrução n° 510/18.3 T9SSB do Tribunal Judicial ..., Juízo de Instrução Criminal, J ..., foi proferido Despacho, para além do mais, não pronunciando:

A «arguida BB pela prática, em autoria material e na forma consumada, dos seguintes crimes que lhe eram imputados em sede de requerimento de abertura de instrução da assistente AA:

i) um crime violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152°, n°s 1, alínea b) e 2, alínea a), do Código Penal;

ii) um crime de burla informática, previsto e punido pelo artigo 221°, n° 1, do Código Penal;

iii) um crime de abuso de confiança qualificado, previsto e punido pelo artigo 205°, n.° 1 e 4, alínea b) do CP, por referência ao artigo 202. ° alínea b) do mesmo diploma legal.

2º A Assistente AA apresenta requerimento de interposição de recurso, instruído com respectiva Motivação

3º Acórdão deste Tribunal da Relação de 23 de Novembro de 2021. nega provimento ao Recurso interposto pela Recorrente.

4º Deste Acórdão foram notificados os Ilustres Mandatários da Recorrente e da Recorrida mediante cartas registadas enviadas no dia 24-11-2021

5º A Magistrada do Ministério Público foi notificada, mediante termo exarado nos Autos no dia 25-11-2021.

6º Em 30 de dezembro de 2021, a Assistente interpõe recurso

7° Em 6 de Janeiro de 2022, foi exarado despacho não admite recurso ordinário interposto do Acórdão da Relação por ser confirmatório de não pronúncia de 1a instância atento o disposto na al d) do n° 1 do art° 400° do Cód. Proc Penal

8º Porém, admitiu o Recurso Extraordinário de Fixação de jurisprudência, determinando o cumprimento dos n°s 1 e 3 do art° 439° do mesmo Código

9º Há que verificar da existência dos pressupostos, quer de natureza formal, quer de natureza substancial, enumerados nos art°s 437° e 438° do Cód. Proc. Penal, de que a lei processual faz depender a admissibilidade do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência

10° A Recorrente tem legitimidade e interesse em agir.

11° Dúvidas não subsistem da irrecorribilidade Acórdão recorrido e consequentemente ser inadmissível recurso Ordinário

12° Indicou a Recorrente que o Acórdão fundamento foi proferido na 5ª SECÇÃO do Supremo Tribunal de Justiça, no dia 20-04-2017, no Proc 2263/15.8JAPRT. P1. S1, e que se encontra publicado na Base jurídica Documental da IGFEJ. em www.dgsi.pt

13° A Recorrente justifica oposição de julgados Acórdão recorrido e Acórdão fundamento

14° Dúvidas não subsistem de que «durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida», pelo que os Acórdãos foram proferidos «no domínio da mesma legislação»

15° O recurso foi tempestivamente interposto.

16° Nada obsta ao prosseguimento dos Autos,

4. Neste Supremo Tribunal de Justiça a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, depois de um paciente e proficiente relato das incidências dos autos, concluiu:

 «(…) No caso dos autos, como atrás referimos, a recorrente não indicou qual o segmento do acórdão recorrido que, no seu entender, estava em oposição com o acórdão que indicou como fundamento e em concreto com os excertos deste aresto que transcreveu. E cremos que dificilmente conseguiria fazê-lo, porque da leitura do acórdão recorrido não se descortina qualquer discussão relativa ao bem jurídico em causa no crime de violência doméstica ou quanto às situações fácticas que o crime de violência doméstica poderia abarcar, designadamente “a violência realizada ao nível do controlo financeiro da vítima e da sua subalternização também nesse conspecto”.

O acórdão recorrido cuidou, apenas, de analisar se os autos continham indícios suficientes para que se pudessem considerar provados factos susceptíveis de ser subsumidos ao crime de violência doméstica, como pretende a recorrente.

Ou seja, a decisão instrutória objecto do recurso e o acórdão recorrido, que do mesmo conheceu, consideraram não haver indícios suficientes da prática dos actos imputados à arguida BB e que poderiam integrar aquele crime, uma vez que há duas versões diferentes no processo quanto à forma como era tratado CC, pai da recorrente e companheiro da arguida, e quanto à existência, ou não, de consentimento daquele para que a arguida administrasse os seus bens.

O acórdão recorrido considerou, tão só, que a avaliação da prova feita na decisão instrutória não merecia qualquer reparo e por isso a manteve.

Como se referiu atrás a oposição de julgados pressupõe decisões contraditórias sobre a mesma questão de direito e a recorrente não demonstrou essa oposição.

Na verdade, os arestos em causa não se pronunciaram sequer sobre a mesma questão de direito.

Em conformidade com o exposto, consideramos não estarem preenchidos os requisitos de que depende a admissibilidade do recurso, pelo que somos de parecer que o mesmo deve ser rejeitado, nos termos do disposto nos artigos 420, nº 1, al. b), 440, n.ºs 3 e 4 e 441, n.º 1, do Código de Processo Penal.

Todavia, caso se considere que a motivação apresentada preenche minimamente os requisitos exigidos, consideramos não estar preenchido o pressuposto substantivo de oposição de julgados, previsto no artigo 437, nº 1, do CPP, pelo que somos de parecer que o recurso deve ser, igualmente, rejeitado, mas nos termos do disposto nos artigos 440, n.ºs 3 e 4 e 441, n.º 1, do Código de Processo Penal».

5. Colhidos os vistos e após conferência cumpre decidir, decisão que na fase preliminar do recurso se circunscreve a aquilatar da sua admissibilidade ou rejeição (art. 441.º, CPP).

II. O Direito

1. Os arts. 437.º/1/2/3 e 438.º/1/2, CPP, assim como a jurisprudência pacífica deste STJ (PEREIRA MADEIRA, Código de Processo Penal, Comentado, 2021, p. 1402), fazem depender a admissibilidade do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência dos seguintes pressupostos:

a) Formais:

1. Legitimidade do recorrente;

2. Interposição do recurso no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão recorrido;

3. Identificação do acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontra em oposição (acórdão fundamento), com menção do lugar da publicação, se publicação houver;

4. Trânsito em julgado do acórdão fundamento.

b) – Substanciais:

1. Que os acórdãos respeitem à mesma questão de direito;

2. Sejam proferidos no domínio da mesma legislação;

3. Assentem em soluções opostas a partir de idêntica situação de facto;

4. Que as decisões em oposição sejam expressas.

2. Quanto a estes dois últimos requisitos - soluções opostas a partir de idêntica situação de facto; decisões em oposição expressas -, constitui jurisprudência assente deste Supremo Tribunal que só havendo identidade de situações de facto nos dois acórdãos é possível estabelecer uma comparação que permita concluir, quanto à mesma questão de direito, que existem soluções jurídicas opostas, bem como é necessário que a questão decidida em termos contraditórios seja objeto de decisão expressa, isto é, as soluções em oposição têm de ser expressamente proferidas (ac. STJ 30.01.2020, proc. n.º 1288/18.6T8CTB.C1-A.S1, 5.ª, ac. STJ 11.12.2014, proc. 356/11.0IDBRG.G1-A.S1 – 5.ª) acrescendo que, de há muito, constitui também jurisprudência pacífica no STJ que a oposição de soluções entre um e outro acórdão tem de referir-se à própria decisão, que não aos seus fundamentos (ac. STJ 30.01.2020, proc. n.º 1288/18.6T8CTB.C1-A.S1, 5.ª, ac. de 13.02.2013, Proc. 561/08.6PCOER-A.L1.S1).

3. Em tema de legitimidade para recorrer dispõe o artigo 401.º/1/b, CPP, que tem legitimidade para recorrer o assistente de decisão contra ele proferida; acresce à legitimidade a exigência de interesse em agir, pois não pode recorrer quem o não tiver (art. 401.º/2, CPP). O interesse em agir afere-se pela verificação que da procedência do recurso advém utilidade para o sujeito processual, e tem de ser concretizável no sentido da procedência do recurso poder derivar para o recorrente um concreto benefício; o interesse em agir consiste na necessidade de usar o recurso para fazer valer ou garantir um qualquer interesse legítimo do recorrente carecido ou digno de tutela, e que o recurso vise acautelar (art. 401.º/2, CPP).

4. A decisão do TRE, na vertente que agora releva, negou provimento ao recurso da assistente AA, interposto da decisão instrutória do JI na parte em que não pronunciou a arguida BB pela prática do crime de violência doméstica, em concurso aparente com um crime de abuso de confiança. Essa decisão é consabidamente irrecorrível (art. 400.º/1/c, CPP), mas a afirmação da irrecorribilidade tem unicamente em vista a interposição de recursos ordinários, não vedando o recurso de constitucionalidade, nem o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência. O âmbito de previsão e aplicação da norma é restrito aos recursos ordinários. Relativamente à admissibilidade do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência valem as regras ou princípios gerais (art. 401.º, CPP) e as normas específicas (arts. 437.º e 440.º, CPP).

5. O acórdão recorrido foi proferido em 23.11.2021 e transitou em julgado em 09.12. 2021, pelo que interposto recurso no dia 29.12.2021, verifica-se que ocorreu no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão recorrido; foi identificado o acórdão com o qual o acórdão recorrido, na perspetiva do recorrente, se encontra em oposição (o acórdão fundamento), com menção do lugar da publicação, sendo certo que o acórdão fundamento transitou em julgado.

6. Importa indagar se as decisões respeitam à mesma questão de direito e se assentam em soluções opostas a partir de idêntica situação de facto. Vejamos:

6.1. Diz o acórdão recorrido «Esta Instância é chamada a avaliar a correção da factualidade considerada como suficientemente indiciada e não indiciada em sede de instrução e se dela decorre o preenchimento dos elementos constitutivos dos crimes de violência doméstica e de abuso de confiança». (…) E continua:

«Dizem os Recorrentes que o Tribunal cometeu um erro de apreciação da matéria de facto ao considerar como insuficientemente indicada a matéria que consta dos seus parágrafos 5, 6, 7, 8, 9 a 14, 15 e 18.

Porque entende não terem sido devidamente valorados factos que invocou e que estão demonstrados no processo, a saber (i) não ter o CC qualquer ligação à ..., para aí investir todas as suas poupanças; (ii) terem sido levantados da conta do CC € 400 000,00 (quatrocentos mil euros); (iii) se a razão do investimento na ... foi fugir às “garras” das filhas, então não se compreende que o CC com elas mantivesse uma conta bancária conjunta; (iv) as rendas provenientes da ... eram levantadas da conta bancária do CC; (v) a Arguida BB admite a posse e utilização do cartão Multibanco do CC; (vi) não havia “bolsa” do casal, pois a Arguida BB tinha a sua própria conta bancária; (vii) no período compreendido entre 2013 e 2018, a Arguida BB levou a cabo levantamentos diários das quantias permitidas pelo sistema SIBS e do Multibanco, no montante de cerca de € 58 000,00 (cinquenta e oito mil euros) e que não se relacionavam com os gastos normais ao funcionamento da casa onde habitava com o CC; (viii) não fazer sentido que o CC tenha proporcionado acesso ao seu cartão Multibanco, uma vez que estava diagnosticado com ... desde 2015; (ix) a Arguida BB medicou em excesso o CC e negligenciou os cuidados de que o mesmo necessitava; (x) a própria Arguida BB admitiu deixar sozinho em casa o CC, para ir fazer compras ao “...”; (xi) a Arguida BB só visitou o CC, em casa da filha deste, até outubro de 2018; (xii) a Arguida BB, em 2017 e quando o CC já estava diagnosticado com ..., providenciou por um testamento deste a seu favor; (xiii) a Arguida BB, após outubro de 2018, foi vista a passear, a frequentar bailes e cafés, foi de férias para a sua terra e nem pelo Natal telefonou ao seu companheiro.

Vejamos se lhe assiste razão.

A decisão recorrida, de forma detalhada, inventaria e analisa a prova produzida no processo com vista à fixação dos factos que veio a considerar – como suficientemente e insuficientemente indiciados.

Do seu exame não resulta prova incorretamente valorada, nem erro de raciocínio.

E a valoração desta prova tem pressuposto o conceito de “indícios suficientes”, devidamente explicitado em termos que também nos merecem adesão.

Às questões teóricas tratadas, com aptidão, na decisão recorrida limitamo-nos a acrescentar a definição de Justiça como a virtude cardeal que consiste na disposição da vontade de atribuir a cada um o seu direito. O seu objetivo é, precisamente, o direito de cada um, quer dizer, o que é devido a uma pessoa e pode por esta ser exigido. É, assim, manifesto, que a Justiça é algo segundo que pressupõe o direito. E que pressupõe também, para o aplicar, a verdade.

Só quando a verdade se alcança, em Tribunal, é possível aplicar o Direito e, assim, fazer Justiça.

E a verdade que se almeja, no âmbito de um processo judicial, é a concordância entre o que nele se invoca, o que nele se demonstra e o que aconteceu.

Dos autos emerge a ideia de que a família do CC, em particular as suas filhas, não viam com “bons olhos” o relacionamento amoroso do mesmo com a Arguida BB.

Olhar que se acentuou com o decurso do tempo e com a doença de ... que acometeu o CC, incapacitante e que o foi deixando mais dependente de quem tinha próximo – a Arguida BB.

Acresce que o CC era detentor de alguma riqueza.

Neste contexto, intensificou-se o conflito entre a família do CC e a Arguida BB.

Como bem reflete a decisão recorrida, a prova testemunhal recolhida nos autos, quer em sede de inquérito quer em sede de instrução, evidencia duas versões dos acontecimentos diametralmente opostas».

«(…) os familiares de CC que o mesmo se encontrava mal tratado, sujo e com marcas vermelhas na face, tratando-o BB de forma rude e sem qualquer manifestação de carinho, bem como que aquando do internamento hospitalar, tomaram conhecimento de que o mesmo se permaneceria em perigo de vida, caso permanecesse aos cuidados de BB, já que a mesma lhe administrava medicação em sobredosagem, pelo que CC foi recolhido na residência de AA com vista a que fosse garantido o seu bem-estar.

Pelo contrário, os amigos do casal referiram que BB sempre manifestou carinho e amor por CC, tratando-o com cuidado, dedicação e preocupação, acompanhando-o às consultas e administrando-lhe a medicação adequada, nunca presenciando qualquer quezília entre o casal, descrevendo-os como um casal feliz. Mais referiram que a relação de CC com as filhas não era de grande proximidade, não manifestando a mesma preocupação pelo seu estado de saúde, encontrando-se mais preocupadas com a salvaguarda do seu património. Referiram, ainda, que CC se encontra a residir na habitação de AA contra a sua vontade.»

«A documentação que se encontra junta ao processo consente interpretação que quadra com qualquer uma destas versões dos acontecimentos.

Ora, perante esta prova, teria sido fundamental ouvir o CC – para saber como era tratado pela sua companheira e se consentiu, ou não, que esta administrasse os seus bens.

Por razões que se prendem com o seu estado de saúde, o CC não pode prestar qualquer esclarecimento no âmbito dos presentes autos.

Em sede de recurso, insiste a Recorrente AA na versão dos acontecimentos que tem defendido nos autos, convocando em seu abono alguns dos documentos que lhes fez juntar e que, na sua perspetiva, a confirmam.

Nesta fase do processo, resta-nos apurar se terão sido indevidamente avaliados os documentos que a Recorrente agora indica como relevantes para demonstração dos factos que entende mal julgados.

Isto posto,

A movimentação da quantia de € 400 000,00 (quatrocentos mil euros) pertencentes ao CC ocorreu em 24 de agosto de 2011 – conforme consta do documento n.º ..., junto aos autos em 24 de março de 2021.

Nesta ocasião, não há notícia de que o CC estivesse incapacitado de gerir os seus bens, sendo certo que a doença de ... lhe foi diagnosticada “por volta de 2015”.

É certo que o CC possui conta bancária conjunta com as suas filhas, cuja movimentação exige duas assinaturas, sendo obrigatório que uma delas seja a de CC – conforme consta do documento n.º ...8 junto ao processo com o requerimento para a abertura da instrução.

Mas esta circunstância não tem a aptidão de demonstrar seja o que for no domínio das relações pessoais entre pai e filhas.

Tendo ficado suficientemente indiciado que a Arguida BB tinha acesso aos cartões bancários do CC, o desconforto da Recorrente relativamente a esta matéria não faz sentido.

A documentação junta de fls. 1 a 47 do requerimento para a abertura da instrução revela levantamentos no “Multibanco”, de conta bancária do CC, efetuados entre 2013 e meados de 2018, no valor de € 58 000,00 (cinquenta e oito mil euros).

Desses documentos não resulta quem levou a cabo esses levantamentos de dinheiro. E esta questão é relevante, uma vez que só “por volta de 2015” foi diagnosticada a doença de ... ao CC.

Dito de outra forma, não se podem imputar à Arguida BB todos os levantamentos no “Multibanco”, da conta bancária do CC, entre 2013 e meados de 2018.

Mas ainda que pudesse assim não se entender, o montante de € 58 000,00 (cinquenta e oito mil euros) dividido por 66 (sessenta e seis) meses evidencia um gasto mensal de € 878,78 (oitocentos e setenta e oito euros e setenta e oito cêntimos). Trata-se de valor que não impressiona, perante os extratos bancários juntos ao processo. E porque se desconhece onde foi gasto, não pode afirmar-se que não foi usado, também, em benefício do CC.

No que concerne à negligência da Arguida BB na prestação de cuidados ao CC, os factos constantes da sentença proferida no processo de maior acompanhado – como dela expressamente consta – estão apenas indiciariamente provados e só “valem” no respetivo processo.

Isto posto, a avaliação da prova que foi feita na decisão instrutória não merece reparo. E deve ser mantida porque os documentos que agora a Recorrente invoca não alteram o raciocínio expresso nessa decisão e que determinou a seleção factual que dela consta.

Os factos que ficaram indiciariamente provados na decisão instrutória não integram a prática de qualquer ilícito penal.

Assim sendo, o recurso improcede.

III. DECISÃO

Em face do exposto e concluindo, decide-se negar provimento ao recurso e, em consequência, manter, na íntegra, a decisão recorrida».

7. Recuperando o teor da alegação da recorrente (ponto 2.3.), quer as suas conclusões (cls 41 e 42) ganha evidência, como refere a PGA neste tribunal, que não indicou qual o segmento do acórdão recorrido que, no seu entender, estava em oposição com o acórdão que indicou como fundamento e em concreto com os excertos deste aresto que transcreveu. E como certeiramente refere dificilmente conseguiria fazê-lo, porque da leitura do acórdão recorrido não se descortina qualquer discussão relativa ao bem jurídico em causa no crime de violência doméstica ou quanto às situações fácticas que o crime de violência doméstica poderia abarcar, designadamente “a violência realizada ao nível do controlo financeiro da vítima e da sua subalternização também nesse conspecto”. O acórdão recorrido, como resulta da extensa transcrição que efetuamos, cuidou apenas de analisar se os autos continham indícios suficientes para que se pudessem considerar provados factos suscetíveis de ser subsumidos ao crime de violência doméstica, como pretende a recorrente.  Ou seja, e retomamos o Parecer da PGA neste tribunal, a decisão instrutória objeto do recurso e o acórdão recorrido, que do mesmo conheceu, consideraram não haver indícios suficientes da prática dos atos imputados à arguida BB e que poderiam integrar aquele crime. O acórdão recorrido considerou, tão só, que a avaliação da prova feita na decisão instrutória não merecia qualquer reparo e por isso a manteve.

8. O acórdão que a recorrente identificou como fundamento, o acórdão deste Supremo Tribunal de 20.04.2017, tratou de questões bem diferentes, saber (a) se entre «o crime de violência doméstica com previsão e punição no art. 152º, nº 3, al. a) do Código Penal» e o «crime de ofensa à integridade física grave qualificada dos arts. 143º, nº 1, 144º, als. b) e c), 145º, nº 1, al. c), 132º, nº 2, als. b), h) e j)» ocorre concurso real; (b) da medida concreta da pena imposta naqueles autos pelo crime de ofensa à integridade física grave qualificada pelo qual veio a ser condenado o aí arguido na pena de 7 anos de prisão; (c) a última questão foi suscitada pela assistente e era relativa ao pedido civil… Basta uma análise perfunctória para concluir, sem margem de dúvida, que as decisões do TRE e do STJ não respeitam à mesma questão de direito, pelo que não há soluções opostas, nem situação de facto é idêntica.

9. Recordemos quanto aos requisitos - soluções opostas a partir de idêntica situação de facto; decisões em oposição expressas -, que constitui jurisprudência assente deste Supremo Tribunal que só havendo identidade de situações de facto nos dois acórdãos é possível estabelecer uma comparação que permita concluir, quanto à mesma questão de direito, que existem soluções jurídicas opostas, bem como é necessário que a questão decidida em termos contraditórios seja objeto de decisão expressa, isto é, as soluções em oposição têm de ser expressamente proferidas (ac. STJ 30.01.2020, proc. n.º 1288/18.6T8CTB.C1-A.S1, 5.ª, ac. STJ 11.12.2014, proc. 356/11.0IDBRG.G1-A.S1 – 5.ª) acrescendo que, de há muito, constitui também jurisprudência pacífica no STJ que a oposição de soluções entre um e outro acórdão tem de referir-se à própria decisão, que não aos seus fundamentos (ac. STJ 30.01.2020, proc. n.º 1288/18.6T8CTB.C1-A.S1, 5.ª, ac. de 13.02.2013, Proc. 561/08.6PCOER-A.L1.S1).

10. O recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, de carácter normativo, destina-se a fixar critérios interpretativos uniformes com a finalidade de garantir a unidade do ordenamento penal e, com isso, os princípios de segurança, da previsibilidade das decisões judiciais e a igualdade dos cidadãos perante a lei. Colocados lado a lado os dois acórdãos, o seu percurso argumentativo e decisório, conclui-se que não há oposição ou contradição entre os dois acórdãos, relativamente à mesma questão fundamental de direito, pois não há identidade, mas diversidade nas situações de facto nos dois acórdãos, razão pela qual não foi a mesma a questão de direito decidida. O traço comum entre os dois acórdãos é que ambos foram proferidos em recurso em matéria criminal, num o arguido foi condenado por crime de violência doméstica, o outro confirmou a decisão instrutória de não pronúncia por crime de violência doméstica.

11. É clara a não oposição de julgados. Nem outro desfecho era de esperar quando a recorrente interpõe recurso ordinário de uma decisão consabidamente irrecorrível, suscitando questões de facto; subsidiariamente argui nulidades processuais, dando como reproduzidas as motivações do recurso ordinário e só no fim de linha é que requer «que, caso assim não se entenda, seja o presente recurso enviado, com natureza extraordinária, ao pleno das secções criminais do STJ, para decidir a contradição de julgados, quanto ao entendimento do abuso e exploração financeira, como tipo de violência doméstica e o património da vítima como bem tutelado também por essa mesma incriminação, dando-se como acórdão-fundamento o aresto do STJ. Proc. 2263/15.8JAPRT.P1.S1 de 20/04/2017. "in" www.dgsi.pt e que é citado e transcrito, a págs. 41 a 46. infra (artigo 437.°, n.° 2 e 438.° do CPP)».

*

III.

Face ao exposto, acordam em rejeitar o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência interposto por AA.

Custas pelo recorrente com a taxa de justiça de 4 UC.

*

Supremo Tribunal de Justiça, 24 de fevereiro de 2022.

António Gama (Relator)

Orlando Gonçalves