Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03P2394
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: OLIVEIRA GUIMARÃES
Descritores: RECURSO PENAL
PODERES DE COGNIÇÃO
RECURSO PARA O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
ADMISSIBILIDADE
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
MAUS TRATOS A OUTREM
MAUS TRATOS ENTRE CÔNJUGES
AMEAÇA
OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA
VIOLAÇÃO DE DOMICÍLIO
VIOLAÇÃO
MEDIDA DA PENA
Nº do Documento: SJ200310300023945
Data do Acordão: 10/30/2003
Votação: UNANIMIDADE COM 2 DEC VOT
Tribunal Recurso: T REL ÉVORA
Processo no Tribunal Recurso: 2971/02
Data: 03/25/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Sumário :
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Perante tribunal colectivo, na Comarca do Entroncamento, Círculo Judicial de Abrantes, respondeu, em processo comum, o identificado arguido A, acusado, pelo Ministério Público, da prática em autoria material, de um crime de maus tratos, previsto e punido no artigo 152º, nº. 2, do Código Penal, de um crime de violação, previsto e punido no artigo 164º, nº. 1, do Código Penal, de dois crimes de ameaça, previstos e punidos no artigo 153º, nºs. 1 e 2, do Código Penal, de um crime de violação de domicílio, previsto e punido no artigo 190º, nºs. 1 e 2, do Código Penal, e de um crime de ofensas à integridade física, previsto e punido no artigo 143º, nº. 1, do Código Penal.
Os identificados B e C, assistentes nos autos, deduziram pedido cível indemnizatório contra o sobredito arguido (demandado), peticionando a condenação do mesmo no pagamento, ao B, da quantia de 2.994 euros, a título de danos morais e no pagamento, à C, da quantia de 12.483 euros, a título de danos morais, com relegação para execução de sentença do apuramento dos danos patrimoniais, alegadamente sofridos pela referida C.
No início da audiência de discussão e julgamento, o tribunal emitiu pronúncia sobre a alegada intempestividade do petitório civil (suscitada pelo arguido-demandando), tendo tal pedido sido admitido, mediante pagamento de multa, nos termos previstos no artigo 145º, do Código de Processo Civil. (cfr. fls. 550 a 554).

Realizado o julgamento, veio o douto Colectivo a acordar no seguinte (cfr. Acórdão de fls. 582 e seguintes, designadamente, fls. 620 a 622):
a) em julgar procedente por provada a acusação deduzida pelo Ministério Público contra A e, em consequência, em condená-lo pela autoria material de um crime de maus tratos, previsto e punido no artigo 152º, nºs. 1 e 2 do Código Penal, na pena de dois anos de prisão, pela autoria material de um crime de violação, na forma consumada, previsto e punido no artigo 164º, nº. 1, do Código Penal, na pena de quatro anos de prisão, pela autoria material de dois crimes de ameaça, previstos e punidos no artigo 153º, nºs. 1 e 2, do Código Penal, nas penas de sessenta dias de multa e de cento e vinte dias de multa, pela autoria material de um crime de violação de domicílio, previsto e punido pelo artigo 190º, nºs. 1 e 3, do Código Penal, na pena de noventa dias de multa, pela autoria material de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido no artigo 143º, nº. 1, do Código Penal, na pena de quarenta e cinco dias de multa e, em cúmulo, na pena única de cinco anos de prisão e duzentos e vinte dias de multa à taxa diária de cinco euros;
b) em declarar parcialmente procedente por provado o pedido civil deduzido por B e, em consequência, em condenar A a pagar-lhe a importância global de dois mil quatrocentos e noventa e sete euros, a título de danos não patrimoniais;
c) em declarar parcialmente procedente por provado o pedido civil deduzido por C contra A e, em consequência, em absolvê-lo do pedido a liquidar em execução de sentença e referente a danos patrimoniais e em condená-lo, a título de danos não patrimoniais, a pagar-lhe a importância global de oito mil novecentos e noventa e três euros;
d) em condenar A a pagar as custas criminais e as custas dos pedidos civis na exacta proporção do decaimento, a que acresce a taxa de justiça criminal que se fixa em cinco Ucs e 1% da taxa de justiça nos termos previstos no artigo 13º, nº. 3, do decreto-lei nº. 423/91, de 30 de Outubro;
e) em condenar B e C a pagarem as custas dos seus pedidos civis na exacta proporção em que decaíram, fixando o valor do pedido ilíquido deduzido pela lesada C em dois mil e quinhentos euros;
f) em decretar o perdimento a favor do Estado do revólver de marca "Amadeo Rossi", calibre .38, com o nº. N-438667;
g) em ordenar a remessa de boletim aos serviços de identificação criminal e, bem assim, de certidão da presente decisão à Direcção Geral dos Serviços Judiciários (artigo 66º, nº. 5, do Código Penal);
h) em ordenar que o condenado continue a aguardar os ulteriores termos processuais na situação em que se encontra, uma vez que, com a prolação da presente decisão, saem reforçadas as exigências cautelares do caso;
i) em ordenar o depósito do presente acórdão, após a sua leitura, nos termos previstos no artigo 372º, nº. 5, do Código de Processo Penal.

Inconformado, recorreu o condenado arguido para o Supremo Tribunal de Justiça (cfr. motivação e conclusões, de fls. 637 a 663), com respostas do digno magistrado do Ministério Público (cfr. fls. 671 a 673) e dos assistentes B e C (cfr. fls. 674-675).
Mas, neste alto tribunal e sequentemente a parecer do Exmo. Procurador-Geral Adjunto (cfr. fls. 681-681v), foi prolatado acórdão no sentido de "não conhecer do recurso e ordenar a remessa dos autos ao Tribunal da Relação de Évora, por lhe caber o seu conhecimento - art. 428º, nº. 1 do CPP ..." (cfr. Acórdão de fls. 688 e seguintes, designadamente, fls. 695v.
No Tribunal da Relação de Évora, opinou o Exmo. Procurador-Geral Adjunto no sentido da improcedência do recurso (cfr. parecer de fls. 702 a 709), vindo aquela Veneranda Instância, realizada audiência e assinalando no segmento final do aresto proferido que "Não assiste, assim, razão ao recorrente ao alegar que o acórdão recorrido não contem a fundamentação para prova dos factos acusatórios e que o tribunal se excedeu ao valorar a prova, pelo que se desatende a sua pretensão", a decidir "em negar provimento ao recurso e, por isso, manter na integra o acórdão recorrido" (cfr. Acórdão de fls. 747 e seguintes, designadamente, fls. 766).

Irresignado, é do referido aresto do Tribunal da Relação de Évora que, agora, trás recurso, para o Supremo Tribunal de Justiça, o arguido A.
E, após extensa motivação (cfr. fls. 776 a 804), formulou as conclusões seguintes (cfr. fls. 804 a 816):

1. O Arguido, salvo o devido respeito, não se conforma com a decisão constante do douto Acórdão do Venerando Tribunal da Relação, por considerar não só que de acordo com as regras da experiência comum, a matéria de facto provada é insuficiente para a decisão tomada, como também existiu erro notório na apreciação da prova, e também não se conforma com o sentido em que o Tribunal recorrido interpretou e aplicou as normas aos factos.
2. Crime de Maus Tratos - diz-nos o artigo 152º, nº. 2, do CP "A mesma pena é aplicável a quem, infligir ao cônjuge, ou a quem com ele conviver em condições análogas às dos cônjuges, maus tratos físicos ou psíquicos".
3. Entende o Arguido que o douto Acórdão do tribunal recorrido não deu o melhor sentido à interpretação e aplicação das normas, nomeadamente do nº. 2 do artigo 152º do CP, aos factos provados e dados como assentes.
4. Os factos dados como provados resultam apenas das declarações exclusivas da Assistente, e estão em constante contradição com os outros factos também provados, ou seja,
5. Após as supostas agressões, e a suposta violação, a Assistente continuou a viver com o Arguido como se nada tivesse acontecido, inclusive,
6. Apenas saiu de casa no dia 30 de Outubro de 2001, passados 33 dias após a ocorrência das agressões.
7. Perante os factos dados como provados pelo douto acórdão recorrido e que resultaram na confirmação da decisão de 1ª instância, o Arguido apenas responde que esse juízo foi formulado sobre uma insuficiência dos factos provados para decisão final, conforme o disposto no artigo 410º, nº. 2, alínea a), do CPP.
8. Resta relembrar outros factos provados e que são: a Assistente estava casada com o Arguido há mais de 14 anos, a Assistente era licenciada e exercia a profissão de professora de ensino secundário, auferindo mais do dobro do rendimento do Arguido.
9. Factos esses que demonstram que não existia qualquer dependência económica ou emocional da Assistente em relação ao Arguido, e que lhe permitia sair de casa a qualquer momento.
10. O que pode, hipoteticamente, consubstanciar um perdão pelas desavenças mantidas com o Arguido.
11. "As ofensas corporais entre cônjuges só não são perdoáveis pelo ofendido, quando cometidas com malvadez ou por egoísmo (...)" (in Ac. da Relação de Lisboa, 04.07.1984, CJ, 1984, 4, 132)
12. Ainda, no mesmo Acórdão da Relação de Lisboa se pode ler "(...) não faria sentido que o perdão do cônjuge ofendido tivesse efeitos plenos no campo da manutenção da sociedade familiar, por não ofender gravemente esta, e não os tivesse no plano criminal, e obrigasse à punição penal de um cônjuge, em virtude de uma infracção que, para os efeitos fundamentais, é legalmente considerada como leve".
13. Mais "Admitir o contrário seria, como muito bem nota o Exmo. Juiz recorrido, uma intromissão abusiva de um Estado Totalitário na vida da sociedade familiar, não adaptada à nossa tradição, ou ao nosso sistema jurídico, e que, nos tempos actuais, não existe em qualquer Estado minimamente civilizado".
14. E ainda no mesmo Acórdão da Relação de Lisboa "Trata-se de uma agressão (...) da qual se desconhecem as condições da sua prática, excepto que o foi no decurso de uma desavença familiar, que não deverá ter sido muito grave, pois permitiu o perdão da ofendida e a manutenção da convivência conjugal".
15. Não existiu qualquer crime de maus tratos entre cônjuges, conforme descrito e punido no artigo 152º do CP.
16. "Para a verificação do crime de maus tratos a cônjuge, é necessário que a conduta agressiva revista um carácter de habitualidade (...)" (in Ac. da Relação de Évora, 23.11.1999, CJ, 1999, 5, 283).
17. Não ficou provado que o Arguido tinha condutas agressivas habituais para com a Assistente.
18. Crime de Violação - diz-nos o artigo 164º, nº. 1, do CP "Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral é punido com pena de prisão de 3 a 10 anos".
19. Entende humildemente o Arguido que o douto Acórdão do Tribunal recorrido não deu o melhor sentido à interpretação e aplicação das normas, nomeadamente do artigo 164º, nº. 1, do CP, aos factos provados e dados por assentes.
20. O crime de violação pressupõe, como bem o descreve o Acórdão do Tribunal Colectivo do 2º Juízo de Cascais de 19.03.1996 (vide Col. de Jur., 1997, 2, 285) violência física, o que não aconteceu: "A violência exigida pelo artigo 164º do Código Penal, tem de traduzir-se na prática de actos de força física contra a pessoa vítima de modo a constrangê-la a não adoptar qualquer atitude de resistência às intenções do agente ou a vencer a resistência já oferecida. O simples desrespeito pela vontade da ofendida não pode ser qualificado de violência". (sublinhado nosso).
21. O artigo 164º, nº. 1, do CP exige de facto a prática de actos de utilização da força física contra a vítima, de modo a constrangê-la a não adoptar qualquer resistência às intenções do agente.
22. O crime de violação é um dos crimes contra a liberdade sexual, e defende o Prof. Figueiredo Dias quando estabelece as regras para a tipificação legal do crime, que "não basta a simples falta de consentimento, sendo preciso, por exemplo, a violência ou a ameaça grave".
23. "Não é crime qualquer actividade sexual (qualquer que seja a espécie) praticada por adultos, em privado, e com o consentimento (in Figueiredo Dias, Actas da Comissão Revisora MJ, pág. 247 e pág. 251).
24. "A violência (no crime de violação entenda-se) pressupõe a falta de consentimento do sujeito passivo, mas esta, a ausência de permissão deve manifestar-se por inequívoca resistência, não bastando uma platónica ausência de adesão, uma recusa meramente verbal, uma oposição passiva ou inerte, a não ser que essa passividade seja gerada por um trauma físico ou psíquico, ou pelo consentimento da inutilidade de prolongar a resistência" (in Simas Santos, Código Penal Anotado, 2ª edição, II vol., Rei dos Livros, Lisboa, 1996, anotação ao art. 164º).
25. Os factos integrantes deste tipo de crime de violação não se encontram devidamente, e salvo o devido respeito, preenchidos, senão vejamos,

26. O Arguido e Assistente, como também assente, estão casados há mais de 14 anos, tinham dois filhos menores, logo não eram dois estranhos que se conheceram naquele dia, ou naquele momento, o que implica uma relação profundamente intima relacionada com a actividade sexual de um casal heterossexual casado e com filhos.
27. Existe doutrina estrangeira que defende: "que os actos de agressão sexual entre os cônjuges não integram crimes sexuais" (in Carlos Suarez Rodriguez, El delito de agresiones sexuales associadas a la violacion, Aranzi editorial, Navarra, 1995).
28. E outros entendem que "as agressões sexuais entre cônjuges seriam actos típicos mas não eram ilícitos por existir um dever conjugal" (in Enrique Ordeig, Alguns Aspectos del delito de violacion, Estudios de Derecho Penal, Tecnos, 1990, pág. 301 a 305).
29. Para o crime de violação tem de existir uma relação directa de causa e efeito (de imputação objectiva) entre a suposta violência exercida pelo Arguido e a perturbação na decisão da vontade da Assistente, traduzida esta no constrangimento à realização de cópula.
30. Tal e salvo o devido respeito não aconteceu.
31. Na realidade o acto sexual ocorrido entre o casal A/C, foi um puro acto de amor, a seguir a uma situação de tensão matrimonial, vulgar na maioria dos casais portugueses.
32. O crime de violação exige imputação a título de dolo, e para que se verifique o elemento intelectual do dolo é necessário que o Arguido (agente) tenha conhecimento da ilicitude ou ilegitimidade da prática da cópula.
33. Não ocorreu, naquele dia 27 de Setembro de 2001, qualquer crime de violação praticado pelo Arguido.

34. Defende, e bem o Prof. Costa Andrade que: "pelo próprio teor da tipicidade, sendo exemplo disso o art. 201º do CP versão original, se conclui que a acção típica terá, para o ser, de se dirigir contra, e de impor à vontade do ofendido. Em termos tais que a ocorrência do consentimento do ofendido é suficiente para converter a conduta num processo normal, mesmo socialmente positivo, de expressão no plano do tráfego jurídico, da realização sexual" (in Costa Andrade, Para uma Nova Justiça Penal, Coimbra, 1983, pág. 100).
35. Perante tal argumentação jurídica, não podia ter existido qualquer conduta do Arguido, que integrasse o crime de violação, p.p. no artigo 164º, nº. 1, do CP.
36. Relativamente aos factos dados como provados e que sustentam a prova da execução do crime de violação, entende humildemente o Arguido, que o Venerando Tribunal da Relação de Évora, ajuizou mal os factos que integram a matéria dada como provada e referente ao dia 27.09.2001, estes são insuficientes para decidir sobre a existência de um suposto crime de violação,
37. Nunca existiu qualquer exame do foro médico-ginecológico que verificasse a existência de esperma do Arguido, ou a obtenção forçada do coito vaginal.
38. Outra lacuna ao nível da prova, foi a prova material da existência das "cuecas rasgadas", pois foi dado facto como assente e provado que o Arguido agarrou violentamente as cuecas que a Assistente vestia, puxou-as e rasgou-as.
39. Nunca as cuecas rasgadas apareceram ou foram objecto de perícia judicial, prova esta fundamental para provar a violência inerente à violação.
40. Entende o Arguido que não pode ser condenado por crime de máxima complexidade, tendo por base apenas as declarações da Assistente, ora ofendida, e nunca lhe ter sido feito um exame médico ginecológico conforme seria exigido.
41. Entende o Arguido que a insuficiência dos factos provados para a decisão é gritante, logo está preenchido o vício constante do artigo 410º, nº. 1, alínea a), do CPP, podendo ser arguido em sede de recurso para o Supremo.
42. "A insuficiência da matéria de facto verifica-se quando os factos que são dados como provados não justificam, por insuficientes, a decisão que a partir deles se proferiu, insuficiência que tem de resultar da própria decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência, não sendo possível supri-la através do recurso a outros elementos externos, ainda que constantes do processo." (in Ac. STJ de 24.02.1993, BMJ, 424, 413).
43. Apreciou, ainda, o douto Tribunal da Relação que "Esta testemunha (o pai do Arguido), confrontada com as fotografias de folhas 31, nº. 2 a 33, admitindo que a assistente quando lhe mostrou a referida lesão se encontrava vestida do mesmo modo que surge nas fotografias, referiu apenas que viu naquele dia o hematoma mais pequeno que visível naquelas fotografias".
44. Também aqui há insuficiência de factos para dar como provado o crime de violação, pois o pai do Arguido testemunhou apenas aquilo que ouviu dizer, aquilo que lhe contou a Assistente, e viu um hematoma, "um vergãozinho" que, como devidamente provado nos autos, era "mais pequeno" do que aquela marca que "é visível naquelas fotografias".
45. O Arguido arrisca, inclusive, a defender que existiu um Erro Notório por parte do Tribunal, na apreciação da prova testemunhal (artigo 410º, nº. 2, alínea c) do CPP) relativa à testemunha D, pois
46. Para além de existir contradição entre o seu testemunho e as fotografias apresentadas, existe também fragilidade nas suas declarações, pois o seu depoimento é processualmente classificado como depoimento indirecto, artigo 129º, nº. 1, do CPP, ou seja testemunhou sobre aquilo que ouviu dizer.
47. Existe, ainda, Erro Notório na apreciação do testemunho de D, porque e como consequência natural da idade e das preocupações da vida familiar, este sofre de diversos problemas de saúde que o impedem de ter uma noção clara da realidade.
48. No ano de 2002, ano da realização do julgamento em 1ª instância, esta testemunha foi internada de urgência no Centro Hospitalar Medio Tejo, em Torres Novas, três vezes, conforme declarações que ora se juntam como documento nº. 1, nº. 2 e nº. 3.
49. Como se comprova, deu entrada de urgência nos dias 17 de Janeiro, 19 de Janeiro e 13 de Fevereiro de 2002, vítima de um Acidente Cardio Vascular.
50. A testemunha sofria, e conforme se atesta no relatório médico, à data do julgamento de sintomas de ansiedade e depressivos, caracterizados por dificuldades de concentração, perturbações de sono e alterações emocionais (cfr. doc. nº. 4).
51. Perante o exposto, não pode Arguido aceitar que seja especialmente relevante o depoimento da testemunha D, pois a sua condição física mental era, e é actualmente, de uma pessoa doente que não se consegue concentrar, e nem se lembrar claramente de factos passados.
52. "O STJ, como tribunal de revista, verifica a suficiência ou insuficiência da matéria de facto apurada e constante da decisão recorrida, (...) e verifica ainda se foi cometido erro notório, isto é, erro de tal modo patente que não escapa à observação de um homem de formação média. Verificadas essas situações ordenará a renovação da prova, em outro tribunal, consoante a lei prevê" (in Ac. do STJ de 1989.11.29, BMJ 391, 475).
53. Ainda e relativamente aos testemunhos do crime de violação, ficou assente e provado que todas as testemunhas foram testemunhas do depoimento indirecto, ou seja de "ouvir dizer", o que retira credibilidade às suas declarações.
54. Também estes são insuficientes (artigo 410º, nº. 2, alínea a) do CPP) para a decisão da matéria de facto provada.
55. Crime de Ameaças - diz o artigo 153º, nºs. 1 e 2, do CP quem "1. Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 1 ano ou pena de multa até 120 dias".
56. Para o Tribunal bastaram apenas as declarações do ofendido, e considerando que este falaria verdade.
57. São insuficientes as declarações do Assistente B para fazer prova da execução do acto.
58. "Pode ser utilizada como meio de prova de um crime de ameaças a cassete que contém a gravação de mensagem ditada pelo arguido para o telemóvel do ofendido, para, aí, ficar gravada" (in Ac. Rel. do Porto, 17.12.1997, Col. de Jur., 1997, 5, 240).
59. Não existiu crime de ameaças telefónicas nos termos sobre os quais foram provados.
60. Crime de Ofensas à Integridade Física Simples - Artigo 143º, nº. 1, do CP. / Crime de Violação de Domicílio - Artigo 190º, nºs. 1 e 3, do CP.
61. Relativamente a estes crimes, os factos que serviram de prova para dar como assentes e provados a execução dos crimes de violação de domicílio, p.p. no artigo 190º, nºs. 1 e 2, do CP, e o crime de ofensas à integridade física simples, p.p. no artigo 143º, nº. 1, do CP.
62. Estes crimes estão a ser objecto de apreciação em outro processo crime que corre sobre o nº. 110/02.0TAENT, no Tribunal Judicial do Entroncamento.
63. Neste processo, o ora Arguido é Assistente-ofendido nos mesmos crimes pelos quais é nos presentes autos arguido.
Em face do acima exposto, é o presente a pedir a Vossas Excelências, Excelentíssimos Senhores Juízes Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça que:

i) Anulem o acórdão recorrido, e ordenem o reenvio dos autos para prolação de nova decisão, precedida de novo julgamento.
ii) Ou se assim não entenderem, que seja aplicada sanção de brandura mais compatível com as circunstâncias em que os factos ocorreram.
iii) Solicitem ao psicólogo do Estabelecimento Prisional da Carregueira, responsável pelo acompanhamento do Arguido, um relatório sobre estado mental do mesmo, para que sirva de atenuação à pena aplicada.

ASSIM FARÃO EGRÉGIOS JUÍZES CONSELHEIROS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA COMO SEMPRE
JUSTIÇA

Respondeu, doutamente, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto o qual, em remate das considerações expendidas (cfr. fls. 824 e seguintes), explicitou conclusivo no sentido da "rejeição do Recurso nos termos do disposto no artigo 420º, nº. 1, do CPP ou, se assim se não entender (o que, aliás, se não concede), pela respectiva e total improcedência ..." (cfr. fls. 834, sublinhado nosso).
Neste Supremo Tribunal de Justiça e escudada nas razões que, com o brilho habitual, alinhou (cfr. fls. 837 a 841), suscitou a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, como questão prévia, a da inadmissibilidade do recurso interposto e, também, a da manifesta improcedência do mesmo recurso, uma e outra, conducentes à sua proposta rejeição (artigos 419º, nº. 4, e 420º, nº. 1, do Código de Processo Penal), se bem que não recusasse a eventualidade de entendimento diverso, como melhor se colhe de fls. 841 a 842.
Cumprido o disposto no nº. 2 do artigo 417º, do Código de Processo Penal (cfr. despacho de fls. 844-844v e cotas subsequentes), deram resposta os assistentes B e C, aderindo à perspectivada visão da Exma. Procuradora-Geral Adjunta (cfr. fls. 846) e o arguido-recorrente, pugnando pelo conhecimento do recurso (cfr. fls. 847 a 863).
Para julgamento se impulsionaram os autos, na entendida insubsistência das questões prévias ventiladas mas sem prejuízo do mais assinalado no despacho de exame preliminar (cfr. fls. 865 a 866v).
Recolhidos os legais vistos, teve lugar audiência.
E, cumprida que foi esta em plena conformidade com o ritualismo exigido, cabe, então e agora, apreciar e decidir.

A tanto se passa.
Como é sabido - mas não parece descabido repeti-lo - o âmbito do recurso delimita-se, essencialmente, em função das conclusões que se extraiem da respectiva motivação.
Ora, nas extensas - e algo prolixas - conclusões que o arguido-recorrente produziu, predominantemente insistindo ou prevalecentemente versando sobre a forma como as instâncias trataram a prova e sobre as ilações que dela retiraram - não se coibindo mesmo de impetrar a este Supremo a feitura de diligências probatórias (!) (1) - apenas se apercebe, em sede inequivocamente de direito o pedido - "perdido" em toda a apontada extensão conclusória - de aplicação de uma "sanção de brandura mais compatível com as circunstâncias em que os factos ocorreram" (cfr. fls. 816).
Por isso, desde já se adianta que em capítulo de definição dos poderes cognitivos do Supremo Tribunal de Justiça, embora "sem prejuízo do disposto no artigo 410º, nºs. 2 e 3" a alçada apreciativa do mesmo Supremo está condicionada pela regra de que o recurso que para ele se interponha vise "exclusivamente o reexame de matéria de direito" (cfr. artigo 434º, do Código de Processo Penal, aqui regente, uma vez que a decisão ora recorrida promana de tribunal da Relação) (2).
Seja como for, ao longo deste aresto cuidaremos, mais de perto, de tudo aquilo que é susceptível de infirmar o recurso sob exame e, sobretudo, do que limite e restrinja o mesmo recurso, mormente na amplitude com que o arguido-recorrente achou por bem tematizar os seus desideratos recursórios.
A verdade é que desde logo se dá conta - designadamente recordando o que debitou o Ministério Público a reivindicar a rejeição por manifesta improcedência - que o recurso padece de defeitos evidentes, na sua formulação e na sua concretização, dos quais o menor não é a visível inobservância do que a lei prescreve no artigo 412º, nº. 1 e 2 (e suas alíneas), do Código de Processo Penal.
Situou-se, assim, bem junto do abismo da rejeição e do gume fatal da inadmissibilidade.
Destarte, a trazida do seu conhecimento e do seu mérito para julgamento, se determinada por um generoso critério de não deixar no vestíbulo das rejeições a apreciação de casos de reconhecida gravidade, irá necessariamente envolver, nesse intuito de aproveitamento (do aproveitamento possível) um trabalho de rigorosa destrinça entre o que possa aproveitar-se e o que seja, de todo em todo, ou supérfluo ou descabido.

Convém que, antes de mais e para um visionamento de conjunto, se recorde a factualidade que as instâncias certificaram e que foi a seguinte:

1- "A" é casado com C e viveu com ela cerca de 14 anos, o que aconteceu até ao dia 30 de Outubro de 2001.
2- Nesse dia 30 de Outubro de 2001, C, porque não suportava já a forma como era tratada por A, decidiu sair da casa onde ele vivia, sita na Rua Gustavo Eiffel, nº. ..., Entroncamento, levando consigo os filhos de ambos, então com 13 e 5 anos de idade.
3- "A", enquanto viveu com C, foi revelando uma postura de grande autoritarismo e agressividade para com aquela e para com os seus filhos.
4- Quando o filho mais velho do casal tinha cerca de quinze dias de idade, A deu uma palmada num braço de C, sem qualquer razão.
5- Após o nascimento do segundo filho do casal, A tornou-se mais agressivo, sendo mais frequentes as situações em que chamava a C nomes como "filha da puta", "és uma merda".
6- Nessa altura, A passou a ingerir bebidas alcoólicas em excesso, chegando frequentemente embriagado a casa.
7- Estas situações ocorreram no interior da casa onde viviam, eram muitas vezes presenciadas pelos filhos de ambos e ocorriam sem que A tivesse motivos para agir desse modo.
8- Para além disso, A chamou frequentemente nomes ao seu filho mais velho, de nome E, chamando-lhe "cabrão", "filho da puta", "ordinário", o que aconteceu pelas mais diversas razões, de que é exemplo o facto de A, algumas vezes, não querer que o seu filho continuasse a estudar, pretendendo antes que fizesse pequenos trabalhos em casa, nomeadamente, cortar a relva e limpar dejectos de uma cadela que possuía.
9- Muitas vezes, quando A chamou os nomes antes referidos a C chegou mesmo a apertar-lhe o rosto com as suas mãos ou a dar-lhe bofetadas.
10- No dia 01 de Julho de 2001, em hora não concretamente apurada, no interior da casa onde vivia, porque se desentendeu com C por esta não querer sair de casa, A puxou-lhe os cabelos, apertou-lhe os braços e deu-lhe murros e empurrões, situação que foi presenciada pelo seu filho mais novo.
11- Como consequências dessas agressões C sofreu hematomas nos braços, na coxa e perna esquerda.
12- No dia 27 de Setembro de 2001, cerca das 22 horas, A chegou a casa conduzindo um veículo automóvel e começou a acelerá-lo fortemente.
13- C saiu e falou com A com o intuito de que o mesmo terminasse com o ruído que estava a produzir.
14- Naquele momento, A, já exaltado, disse-lhe para irem ver um portão para um canil.
15- Porque C não o quis acompanhar e quando pretendia voltar a entrar em casa, na companhia de seus filhos, A impediu-a de entrar tal como impediu os seus filhos, ficando todos na rua.
16- Perante tal situação, C pediu ajuda a duas vizinhas que se encontravam próximas, as quais, por sua vez, lhe indicaram que podia contactar com elementos da PSP que se encontravam próximos do local.
17- Um dos agentes falou com A e, após algum tempo, este acabou por deixar entrar em casa C e os seus filhos.
18- Já no interior da casa, depois de mandar os filhos para a cama, A dirigiu-se a C dizendo-lhe: "pensavas que a festa tinha acabado, agora é que vai começar".
19- Chegando perto dela empurrou-a com as mãos, tendo-a atingido na zona do peito, dando-lhe ainda um segundo empurrão que a fez embater contra uma parede.
20- De seguida, desferiu-lhe bofetadas no rosto, apertou-lhe o nariz, o pescoço e os braços, tendo-a empurrado para cima de um sofá.
21- Agarrou-a então pela saia que trazia vestida, levantou-a ao ar, acabando C por embater com a anca no braço do sofá, o que aconteceu mais do que uma vez.
22- "A", sempre fazendo uso da força, agarrou então as cuecas que C vestia, puxou-as e rasgou-as.
23- Imediatamente a seguir, contra a vontade de C, deitou-se sobre ela e introduziu o seu pénis erecto na vagina daquela, chegando mesmo a ejacular.
24- Como resultado desta conduta C sofreu lesões diversas, nomeadamente, equimose extensa na zona da anca direita, lesão punctiforme na nádega direita, equimose da asa direita do nariz e equimose na região supra-ciliar esquerda, as quais lhe provocaram 15 dias de doença, 7 dos quais com incapacidade para o trabalho, tendo como sequela destas lesões uma cicatriz linear de 15 cm de comprimento na face lateral externa da anca direita.
25- Em consequência de todas estas acções de A, C acabou por se decidir a sair de casa.
26- Não se conformando com a atitude de C, A passou a procurá-la com o intuito de a fazer regressar a casa.
27- Durante esse período, A, por várias vezes, estabeleceu contacto telefónico com o seu sogro, B, com vista a conhecer o paradeiro de C.
28- No dia 31 de Outubro de 2001, cerca das 19 horas e 30 minutos e no dia 01 de Novembro de 2001, de noite, A estabeleceu contacto telefónico com B, para a casa deste, sita na Rua Engenheiro Mário Costa, nº. ..., rés-do-chão, Entroncamento e proferiu as seguintes expressões: "seu cabrão, se não disser onde ela está mato-te!".
29- No dia 10 de Novembro de 2001, A voltou a contactar telefonicamente B e proferiu a seguinte expressão "ó cabrão se não me dizes onde ela está mato-te!".
30- Dada a repetição daquelas palavras proferidas ao telefone contra si, B receou que A concretizasse o mal que anunciou e, por isso, alterou os seus hábitos, evitando sair de casa, ou tomando cautelas quando saía.
31- "A" agiu livre e voluntariamente, com o propósito único de perturbar o sentimento de segurança de B, tendo perfeito conhecimento que tal comportamento é proibido por lei.
32- No dia 08 de Dezembro de 2001, cerca das 20 horas e 15 minutos, A, porque suspeitou que C se encontrava na casa de B, deslocou-se até lá, levando na sua posse o revólver de marca "Amadeo Rossi", calibre .38 especial, com cano de 5 cms de comprimento, o qual tinha adquirido no dia 30 de Novembro de 2001.
33- Chegado junto da porta, A tocou à companhia e, logo que a porta foi aberta, entrou repentinamente na casa de B, o que fez contra a vontade deste.
34- B disse a A para sair, por várias vezes, o que este não fez.
35- Pelo contrário, A fechou a porta da referida residência e apoderou-se das chaves da mesma.
36- De imediato, dirigiu-se para C que se encontrava no interior da residência e disse-lhe que se vestisse e o acompanhasse.
37- Perante esta atitude de A, C tentou estabelecer contacto telefónico com a polícia, tendo sido impedida por aquele, o qual lhe retirou o telemóvel que ela tinha na mão e tentava utilizar.
38- Nessa altura, B acercou-se de A, tendo-lhe este desferido um murro com o que o atingiu na testa, tendo-lhe também desferido um pontapé que o atingiu na perna direita.
39- B reagiu e empurrou A, provocando a sua queda.
40- Então, A empunhou a arma que tinha levado consigo, arma essa que estava pronta a disparar e apontou-a na direcção de B, facto que causou medo neste.
41- Só com a chegada de elementos da PSP é que A saiu da casa de B.
42- Em resultado da conduta de A, B sofreu um hematoma de 2 cm de diâmetro na região frontal, com ferida superficial e hematoma na região inferior da perna direita, com 10 cm de diâmetro e escoriações associadas, lesões que lhe causaram dez dias de doença, sem incapacidade para o trabalho, apresentando actualmente cicatriz com 1 cm de comprimento e 0,2 cm de largura na face anterior do terço superior da perna direita.
43- "A" agiu com o propósito consciente e deliberado de molestar fisicamente B, tal como procurou amedrontá-lo ao apontar-lhe a arma, bem sabendo que a lei não lhe permitia tais condutas.
44- "A" sabia que não podia entrar na casa de B, ou aí permanecer, sem para o efeito estar autorizado.
45- "A" sabia que a lei o impedia de manter as condutas anteriormente descritas contra C, como também lhe não permitia que mantivesse relações sexuais com ela contra a sua vontade.
46- "A" agiu sempre livre e voluntariamente.
47- C é a beneficiária nº. 012267007-SS, ADSE.
48- B é o beneficiário nº. 051909759, da Segurança Social Portuguesa.
49- Os factos referidos em 30 e 40 fizeram B sentir-se nervoso e depressivo e causaram-lhe medo e perturbação.
50- Este sentimento manifestou-se por largas semanas, pelo que eram frequentes as insónias.
51- A falta de descanso reflectiu-se na capacidade de concentração de B.
52- As lesões referidas em 42 provocaram a B desgosto e sofrimento, traduzido em dores físicas no momento dos factos e até à cura.
53- Os telefonemas referidos em 28 e 29 e a entrada na casa referida em 33 causaram incómodo e padecimento a B.
54- Com a necessidade de deixar a casa referida em 25 C arrendou uma casa pela qual paga mensalmente 249 euros e 40 cents.
55- A casa onde C habitou com A foi adquirida onerosamente na constância do matrimónio.
56- Em consequência da conduta de A, C apresenta depressão.
57- Este quadro clínico levou a que C permanecesse de baixa clínica durante 4 meses.
58- C é professora do ensino secundário e viu a sua capacidade de concentração, memorização e de atenção completamente alteradas, o que a tem impedido de leccionar.
59- Esta alteração das suas capacidades provoca em C desgosto e consternação, já que se sente diminuída face aos seus colegas de trabalho.
60- C teve de retirar os filhos da escola para os levar consigo, mantendo-os escondidos, zelando constantemente pela sua segurança.
61- C sofreu humilhação por ter sido atingida pelo seu marido na forma que ficou descrita.
62- Em consequência directa e necessária dos factos referidos em 23, C sofreu dores físicas e um abalo psíquico traduzido em angústia, revolta, nojo e humilhação.
63- Com as lesões referidas no nº. 24 dos factos provados C sofreu dores físicas.
64- "A" é técnico de justiça adjunto e, antes disso, foi professor de informática e de físico-química, trabalhou no ramo informático, foi oficial da força aérea durante sete anos e reprovou no curso para oficiais da GNR.
65- C aufere no exercício da sua profissão cerca de 1.306,85 euros e A aufere no exercício da sua profissão entre 847,96 euros e 897,84 euros.
66- A casa onde C e A residiam ultimamente foi adquirida com recurso a crédito bancário, por um valor situado entre 249.398,95 euros e 274.338,84 euros, importando a amortização mensal do empréstimo contraído em cerca de 598,56 euros.
67- À data da prática dos factos referidos nos nºs. 12 a 42 A padecia de perturbação de ansiedade generalizada com aspectos obsessivos e de depressão major, tendo sido internado em regime de dia na Clínica Psiquiátrica do Hospital da Universidade de Coimbra de 23 de Outubro de 2001 a 07 de Novembro de 2001.
68- "A" é primário.

Não se provou:
I- Que desde há cerca de quatro anos foram mais frequentes as situações em que A ameaçava C e lhe dizia "vai foder com todos".
II- Que A chamasse nomes ao seu filho mais novo.
III- Que nas ocasiões referidas no nº. 28 dos factos provados A tenha proferido as seguintes expressões: "vou limpar-lhe o sarampo a si e à sua filha" e "não querem a reconciliação, vou liquidá-lo a si e à sua filha".
IV- Que os factos referidos nos nºs. 30 e 40 dos factos provados tenham causado pânico a B e a insusceptibilidade deste manter a calma.
V- Que a falta de descanso de B se tenha reflectido na sua capacidade de realização das suas tarefas domésticas, sendo necessário recorrer a terceiros para as fazer.
VI- Que o medo, a perturbação, o nervosismo e o estado depressivo de B resultante dos factos provados nos nºs. 30 e 40 ainda perdura.
VII- Que B mantinha dificuldade no andar, claudicando do membro inferior direito e padecendo de desequilíbrio provocado por uma constante dor de cabeça.
VIII- Que C sempre foi uma profissional competente, com uma capacidade de trabalho acima da média, reconhecida pelos seus colegas e alunos.
IX- Que em consequência da conduta de A o rendimento de C é, por vezes, quase nulo.
X- Que C tinha uma carreira brilhante pela frente e sente neste momento dificuldade em voltar a estudar para poder ascender na carreira.
XI- Que C sofreu profundo vexame e humilhação por ter que fugir de casa, nas condições descritas na acusação e ter que se esconder em casa de pessoas amigas até lograr arrendar uma habitação, bem como pela circunstância de ter sido constantemente ameaçada de morte por A, nomeadamente quando se achava recolhida na casa de seu pai.
XII- Que tal sofrimento traduzido no receio, temor e pânico pela sua vida e de seus filhos, levou C a alterar o seu modo de vida e hábitos profissionais, pessoais e domésticos.
XIII- Que os factos referidos nos nºs. 5, 6, e 8 a 24 dos factos provados foram comentados em termos públicos na cidade do Entroncamento e no próprio local de trabalho o que provoca a C profundo desgosto e sofrimento que ainda hoje se mantêm.
XIV- Que por causa das lesões referidas no nº. 24 dos factos provados, C teve dificuldade em se sentar devido à lesão da anca direita, manteve dificuldade em respirar, em consequência da lesão no nariz e tinha dificuldade de visão.

Posto isto e em sede de saneamento preambular, logo há que restringir o âmbito da apreciação que se permite a este Supremo Tribunal de Justiça.
Senão vejamos:
Foi o arguido-recorrente condenado:
Pela prática de um crime de maus tratos do artigo 152º, nºs. 1 e 2, do Código Penal, na pena de 2 anos de prisão, sendo que a moldura legal abstracta correspondente a esse crime é a de prisão de 1 a 5 anos.
Pela prática de dois crimes de ameaça do artigo 153º, nºs. 1 e 2, do Código Penal, nas penas de 60 dias de multa e de 120 dias de multa, sendo que a moldura legal abstracta correspondente a esses crimes é a de prisão até 1 ano ou a pena de multa até 120 dias (nº. 1) ou de prisão até 2 anos ou a pena de multa até 240 dias.
Pela prática de um crime de violação de domicílio do artigo 190º, nºs. 1 e 3, do Código Penal, na pena de 90 dias de multa, sendo que a moldura legal abstracta correspondente a esse crime é a de prisão até 1 ano ou a pena de multa até 240 dias (nº. 1) ou de prisão até 3 anos ou a pena de multa (nº. 3).
Pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples do artigo 143º, nº. 1, do Código Penal, na pena de 45 dias de multa sendo que a moldura legal abstracta correspondente a esse crime é a de prisão até 3 anos ou a pena de multa.
Ora, dispõe o artigo 400º, do Código de Processo Penal no que para aqui pertina:

"1- Não é admissível recurso:
e) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, em processo por crime a que seja aplicável pena de multa ou pena de prisão não superior a cinco anos, mesmo em caso de concurso de infracções, ou em que o Ministério Público tenha usado da faculdade prevista no artigo 16º, nº. 3".


É patente, face a esta norma, que a decisão do Tribunal da Relação de Évora "a quo" é irrecorrível e, como tal, passível não sendo de recurso, definitiva e insindicável se tornou, em tudo o que se reporte aos ilícitos vindos de enumerar, pois que a nenhum deles corresponde moldura legal abstracta cujo limite superior máximo seja superior a 5 anos de prisão.
Resulta, assim, que não cabe na alçada cognitiva deste Supremo Tribunal de Justiça qualquer apreciação no tocante aos aludidos ilícitos ou a incidências a eles referentes, donde que, neste específico aspecto, não se conhece do recurso interposto por respeitar ele a segmentos decisórios que, por irrecorríveis, o fazem inadmissível (3).
Subsiste, por conseguinte, em termos de possível apreciação o crime de violação do artigo 164º, nº. 1, do Código Penal, este sim já cabível na esfera de cognição deste alto Tribunal, uma vez que lhe corresponde, como moldura legal abstracta, a de prisão de 3 a 10 anos (cfr. artigo 400º, nº. 1, alínea f), do Código de Processo Penal, "a contrário").
Circunscrito, assim, como está, o campo em que se legitima apreciar o recurso interposto, logo diremos que, nessa restrita sede - sendo que a Relação "a quo" sindicou devidamente tudo o que pertinava aos vícios invocados -, a materialidade fáctica atinente ao crime de violação (aquele sobre que sobra cuidar) não deixa dúvidas (e impermite concluir por que quaisquer reservas se tivessem colocado às instâncias) quanto à correcção da qualificação jurídico-criminal realizada, correcção essa que abonada está pela sequência facticial vertida a partir do ponto 12 da matéria de facto provada (até ao ponto 24), com destaque especial para o que factualizado ficou nos pontos 18 a 24.
E justifica-se aqui dizer que, dentro da ideia mestra de que a competência das Relações, quanto ao conhecimento de facto, esgota os poderes de cognição dos tribunais sobre tal matéria, não se pode pretender colmatar o eventual mau uso do poder de fazer actuar aquela competência, reeditando-se, perante o Supremo Tribunal de Justiça, pretensões referentes à decisão de facto pois se tem de haver como precludidas todas as razões quanto a tal decisão invocada perante a Relação, bem como as que o poderiam ter sido; e daí, que, no recurso de revista, não possa, nem deva, admitir-se a alegação de erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa (salvo se tais erros houverem implicado ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova - artigo 722º, nº. 2, do Código de Processo Civil) (4).
Ora, insusceptível de sindicância, in casu, a matéria de facto recolhida e atestada (donde que o pedido de reenvio avançado pelo recorrente é, em absoluto, inviável e inócuo) e adequada se mostrando a sua subsunção ao aludido tipo penal, apenas resta cuidar de saber se a sanção que foi estabelecida por reporte ao crime de violação (a de 4 anos de prisão, dentro da aludida moldura legal abstracta de 3 a 10 anos de prisão - cfr. artigo 164º, nº. 1, do Código Penal) se mostra conforme aos ditames proclamados pelos artigos 40º, nºs. 1 e 2, e 71º, nºs. 1 e 2, do Código Penal ou seja se é de ter por ajustada à culpa do arguido e às exigências da prevenção, com devida atenção a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depusessem a favor do arguido ou contra ele.
Temos que, no condicionalismo certificado nos autos (cfr. as assinaladas pontes) e na base do que foi evidenciado nas decisões das instâncias a propósito do aspecto que agora ajuizamos e relevado nas sucessivas tomadas de posição do Ministério Público (estas, aliás, pugnando pela manifesta improcedência do recurso em toda a sua extensão), a tudo acrescendo uma patente ausência de condimentos favoráveis ao arguido-recorrente (a sua própria primariedade criminal nem sequer adquire relevância especial, ante a natureza do crime, enquanto que o seu "status" pessoal e profissional tornam incompreensível a sua comissão) que contrabalançasse a ilicitude intensa que envolve os factos e o dolo directo que presidiu à acção (uma e outro formatando culpa expressiva) a pena desencadeada ao prefigurado crime de violação (4 anos de prisão que na referida moldura legal abstracta de 3 a 10 anos de prisão, até ronda o mínimo) se permite rotular de apropriada (se pecasse seria por defeito, não por excesso), não se justificando, assim, qualquer alteração redutora susceptível de, por seu turno, implicar renovação, igualmente da dosimetria que consubstanciou a pena única encontrada (que se ficou pelos 5 anos de prisão e por 220 dias de multa à taxa diária de 5 euros).

Em síntese conclusiva:
Não se possibilita conhecer do recurso interposto, nas vertentes relativas aos crimes de maus tratos, de ameaça, de violação de domicílio e de ofensa à integridade física simples, por ser irrecorrível o acórdão do Tribunal da Relação de Évora que, a respeito dessas vertentes, decidiu (cfr. artigo 400º, nº. 1, alínea e), do Código de Processo Penal).
No que concerne ao remanescente crime de violação (artigo 164º, nº. 1, do Código Penal), não sofre de reparo o aresto recorrido, quer em termos da análise que fez da prova atinente, quer em termos da fundamentação em que se apoiou, quer em termos da subsunção jurídica realizada, quer, enfim, em termos da medida penal que houve por bem aplicar; donde que se imponha a sua confirmação, improcedendo, consequentemente, o recurso.

Desta sorte e pelos expostos fundamentos:
a) Decide-se não conhecer do recurso do arguido A quanto às parcelas referentes aos crimes que se deixaram identificados, irrecorrível sendo, face ao disposto no artigo 400º, nº. 1, alínea e), do Código de Processo Penal, a decisão que, sobre tais parcelas, foi prolatada.
b) Decide-se, quanto ao que se reporta ao crime de violação do artigo 164º, nº. 1, do Código Penal, confirmar inteiramente o douto acórdão recorrido, com o que se nega, nesta parte, provimento ao recurso do sobredito arguido.

Fica tributado o arguido-recorrente, visto o seu decaimento, em 3 (três) Ucs de taxa de justiça.

Lisboa, 30 de Outubro de 2003
Oliveira Guimarães,
Carmona da Mota, (com a seguinte "declaração de voto")
Pereira Madeira,
Simas Santos. (Não excluiria nenhum crime do conhecimento deste STJ, dado o princípio do conhecimento amplo estatuído no nº. 1 do art. 401º do CPP).
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(1) A de obtenção de um relatório sobre o estado mental do arguido (alínea iii), a fls. 816).
(2) E daí que o Supremo Tribunal de Justiça não tivesse conhecido, originariamente, do recurso interposto pelo arguido, como se colhe do referido acórdão de fls. 688 e segtes.
(3) A irrecorribilidade da decisão, tal como se prevê na alínea e) do nº. 1 do artigo 400º, do Código de Processo Penal, afere-se, de resto e apenas, em função do limite máximo da pena de prisão ali estipulado, independentemente, portanto, da decisão ser absolutória confirmativa ou confirmativamente condenatória, como, v.g., sucede nas hipóteses contempladas nas alíneas d) e f).
(4) Cfr., a este respeito, v.g., o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 7.11.2002, proferido no processo nº. 3327/02, 5ª Secção, Sumários de Acórdãos, Secções Criminais, Edição Anual, 2002, págs. 353 a 355.
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DECLARAÇÃO DE VOTO
As instâncias - na medida da pena única - fizeram acrescer à medida das penas parcelares (de prisão ou multa) metade da soma das demais. O critério usado (embora corrente) afigura-se-me de um modo geral excessivo, constituindo até um dos principais factos por que o nosso país, no contexto europeu, apresenta, lamentavelmente, uma das mais elevadas taxas de aprisionamento. Daí que, no caso, tenha sugerido - até por razões de orientação jurisprudencial (que ao Supremo compete) - optar (XXX) por um critério que, à mais elevada das penas parcelares do concurso, se contentasse em adicionar-lhe 1/4 do somatório das demais, assim se reduzindo a pena conjunta a quatro anos e meio de prisão e cinquenta dias de multa.