Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
664/04.6TBBGC.P2.G1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: TÁVORA VICTOR
Descritores: FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL
DIREITO DE REGRESSO
SEGURADORA
RISCO
CIRCULAÇÃO AUTOMÓVEL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
ACIDENTE DE TRABALHO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 03/30/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO DOS SEGUROS - SEGURO OBRIGATÓRIO DE RESPONSABILIDADE CIVIL AUTOMÓVEL - CONTRATO DE SEGURO AUTOMÓVEL - DIREITO DE REGRESSO DA SEGURADORA / FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL.


Legislação Nacional:
BASE XXXVII DA LEI 2127: - NÚMEROS 1 E 4.
D.L. N.º 522/85, DE 31 DE DEZEMBRO: - ARTIGOS 19.º, 23.º, 26.º, 27.º.
LEI N.º 100/97 DE 13 DE SETEMBRO: - ARTIGO 31.º, N.º 4.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

-DE 17-3-2011, PROC. N.º 582/09.1TJLSB.L1-2, EM WWW.DGSI.PT .

-*-

ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 09-07-1998, PROC. N.º 97A885; DE 19-06-2012, PROC. N.º 4445/06.4TBBRG.G1.S1; 31-01-2017, PROC. N.º 850/09.2TVLSB. L1.S1; 30-05-2013, PROC. N.º 6330/03.2TVLSB.L1.S1, TODOS EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :    
I) Na vigência do DL 522/85 de 31 de Dezembro nomeadamente à luz seu artigo 26º não emerge qualquer norma que responsabilize o Fundo de Garantia Automóvel quanto ao reembolso das quantias despendidas v.g. nos acidentes de viação/trabalho – DL 522/85 de 31 de Dezembro.

II) O artigo 19º DO DL 522/85 trata do direito de regresso da empresa de seguros que tenha pago a indemnização na qualidade simultaneamente de viação e de trabalho em que o veículo responsável pelo acidente não era detentor de seguro válido e eficaz.

III) A sua obrigação de ressarcir o sinistrado não radica no instituto da responsabilidade civil extracontratual, subjectiva ou objectiva, que para tal entidade houvesse sido transferida, legal ou contratualmente, mas apenas no propósito de – socializando os riscos associados à circulação rodoviária - evitar a total desprotecção da vítima, decorrente, nomeadamente, do não apuramento da identidade do lesante.

Não se verificam, assim quanto a tal entidade, os pressupostos do direito de regresso previsto na citada disposição legal”.

IV) O mesmo se passa com a Lei dos acidentes de trabalho e doenças profissionais nº 100/97 de 13 de Setembro, cujo artigo 31º em momento algum se refere ao direito de regresso da seguradora contra o FGA.

V) De harmonia com o nº 4 do normativo supracitado tal só se verifica nos casos a que se reporta o nº 1 do citado i.e. “quando o acidente for causado por outros trabalhadores ou terceiros, o direito à reparação não prejudica o direito de acção daqueles nos termos da lei geral.

VI) Tal sucede porque o FGA não é causador do acidente nem responsável civil, limitando-se apenas a ser um garante das indemnizações devidas aos lesados em acidente nos casos de inexistência de seguro ou desconhecimento do responsável pelo sinistro.

Acautelam-se aqui os riscos associados à circulação estradal. O seu escopo não passa pelo reembolso das seguradoras, antes se mostrando imbuído de solidariedade social.

Decisão Texto Integral:
1. RELATÓRIO.



Acordam na 7ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça.



AA, por si e em representação de sua filha menor BB, deduziu acção declarativa contra Fundo de Garantia Automóvel e Herdeiros Incertos de CC pedindo que os Réus sejam condenados a pagar todos os prejuízos resultantes do acidente de viação de que resultou a morte do marido e pai das Autoras, nomeadamente, a quantia de € 416.957,93 resultante de danos vencidos até à data da petição inicial e, bem assim, aqueles que se verificarem no futuro, acrescido de juros, alegando que o veículo causador do acidente não beneficiava de seguro válido e eficaz à data do mesmo.


Contestou o Fundo de Garantia Automóvel alegando desconhecer as circunstâncias do acidente, mas imputando a sua culpa ao falecido marido e pai das Autoras, em função da análise da participação do acidente. Mais alegou que as quantias reclamadas a título de vencimentos da vítima já o foram da seguradora de acidentes de trabalho, estando a ser indemnizada.

Alegou, ainda, desconhecer a inexistência de contrato de seguro.


Foi declarada habilitada a herança jacente aberta por óbito de CC, representada por DD, irmão do falecido, prosseguindo contra ela, os autos, a par do FGA.


O Fundo de Garantia Automóvel deduziu incidente de intervenção provocada de EE, Companhia de Seguros FF, S.A. e Deutsche R…, como associados dos Autores, para que as suas reclamações sejam julgadas de uma só vez.

A Companhia de Seguros FF, SA deduziu incidente de intervenção principal espontânea pedindo a condenação do Réu a pagar-lhe a quantia de € 34.858,41 (posteriormente e sucessivamente, ampliado para € 58.917,32, € 82.816,91, € 88.385,87 e € 98.789,64), acrescida de juros de mora desde a citação, que já pagou como seguradora de acidentes de trabalho, bem como as pensões e demais despesas que se vencerem na pendência da acção.

Também “Deutsche R… – U…” (Centro de Pensões da B… F…) deduziu incidente de intervenção principal espontânea contra as Autoras e os Réus em virtude de ter pago pensões de viuvez e orfandade às Autoras por o falecido ser seu beneficiário, pedindo que os Réus sejam condenados a pagar-lhe a quantia de € 98.005,45 (posteriormente ampliada para € 120.867,28).

O Instituto de Segurança Social deduziu pedido de reembolso do subsídio por morte e pensões de sobrevivência pagas.


Foram admitidas as intervenções espontâneas e indeferida a intervenção provocada de EE.


Do despacho de indeferimento da intervenção provocada agravou o FGA, agravo que foi admitido a subir com o primeiro recurso que, depois dele, houvesse de subir imediatamente, nos próprios autos e sem efeito suspensivo.


Foi proferido despacho saneador e definidos os factos assentes e a base instrutória.

Teve lugar a audiência de julgamento, após o que foi proferido despacho de resposta aos números da base instrutória.


Foi proferida sentença, cujo teor decisório é o seguinte:

“Nesta conformidade e sem necessidade de mais considerandos decide-se:

1- Julga-se a presente acção parcialmente procedente e parcialmente provada e consequentemente condenar o réu F.G.A :

a) A pagar à A. e à sua filha, a título de danos de natureza patrimonial, a quantia de € 130.000,00 (cento e trinta mil euros).

b) A título de danos de natureza não patrimonial à A. na totalidade pelo seu sofrimento pela perda e pelo direito à vida, € 35.000,00.

c) A título de danos de natureza não patrimonial à filha da A. na totalidade pelo seu sofrimento pela perda e pelo direito à vida, € 55.000,00.

d) Condená-lo ainda ao pagamento do montante que vier a ser liquidado em execução de sentença pela perda do veículo TR.

e) Nos termos do disposto no art. 506º, nº 2 do C.C os referidos montantes indemnizatórios reduzem-se a metade, bem como, se procederá à compensação devida pela franquia referida pelo Réu.

Mais de decide:

f) Conceder o direito às referidas intervenientes: Instituto da Segurança Social, a Seguradora FF S.A e o Centro de Pensões da B… F… serem reembolsadas das quantias que pagaram em sede da peticionada sub-rogação.

g) Remeter para incidente de liquidação de execução desta sentença a quantia correspondente à perda do veículo …-…-TR na mesma proporção.

h) Absolver o F.G.A de qualquer pagamento a EE.

Bem como se condena ainda o Réu ao pagamento de juros de mora à taxa legal contados desde esta sentença até integral pagamento”.


A Companhia de Seguros FF requereu a rectificação da sentença, tendo o seu requerimento sido objecto do seguinte despacho:

“Pretende a requerente sejam aditados factos à Fundamentação de Facto da Sentença. E relativos a pagamentos efectuados à A. ao longo dos autos. Ora convém não confundir alteração da causa de pedir com ampliação do pedido. A primeira é consubstanciada em factos que gerem e originam o direito e a segunda é a concretização dos prejuízos em montantes ditados pelos factos provados. Ora, se bem vemos a requerente nunca pretendeu alterar a causa de pedir ou os factos originadores do direito. O que requereu ao longo dos autos foi tão só a ampliação do pedido de acordo com os factos alegados nos seus articulados. Numa palavra, com base na causa de pedir que se manteve inalterada ao longo dos autos (apoiada num contrato de seguro) para além das quantias pagas à A. ainda pagamos mais determinadas importâncias que se comprovam com documentos que na altura juntou. Apenas e tão só requereu a ampliação do pedido com base nos mesmos factos. E nem sequer sabemos se posteriormente entre o julgamento e a prolação desta sentença procedeu a mais pagamentos. Ou mesmo depois da prolação desta sentença que ainda não transitou. Ou seja, entende a requerente que cada pagamento deveria corresponder a alterações da causa de pedir e do pedido. É evidente que com mediana clareza se entende que o problema das sucessivas e requeridas alterações do pedido foram devidamente contempladas no dispositivo da sentença, exactamente na alínea f). Que pensamos ser clara “ reembolsada das quantias que pagaram em sede da peticionada sub-rogação”. Aliás se se tivesse escrito no dispositivo da sentença “reembolsada das quantias pagas á FF interveniente até ao momento”, poderiam não ser contempladas todas as quantias pagas por ela. E se tal acontecesse poderia eventualmente ficar prejudicada. Mas não, a redacção abrangeu tudo o que pagou. Aliás, todas as intervenientes o entenderam à excepção da requerente. Pensamos, que nem com o fundamento da ampliação do pedido, que não da causa de pedir, por parte da requerente a legitima para entender outra coisa ou dar outra interpretação ao referido segmento do dispositivo da sentença que não aquilo que se escreveu.

Outra questão quanto a nós também sem razão de o ser prende-se com o facto do referido reembolso contemplar ou não juros.

É demasiado evidente que sendo os juros frutos civis nos termos da lei tem a finalidade de satisfazer o credor pela privação de capital “ segundo Meneses Cordeiro”. É óbvio que se não fossem pagos juros não haveria reembolso das quantias pagas, mas de parte dessas quantias. Sendo que e na terminologia de Correia Neves considera-se em princípio que são compensatórios os juros que não tenham função de moratórios nem remuneratórios.

Pelo que vai indeferido o requerido pela “FF”, por manifesta falta de razão”.


O FGA e as intervenientes espontâneas recorreram. A Autora recorreu subordinadamente.

No Tribunal da Relação do Porto, deu-se provimento ao agravo, revogando-se o despacho recorrido deferindo-se o chamamento de EE. Foi considerado prejudicado o conhecimento das apelações.

Citado o interveniente e nada tendo dito, ordenou-se a remessa dos autos ao TRP para conhecimento das apelações onde, por despacho do relator, se decidiu ser aquele Tribunal incompetente, ordenando-se a remessa ao Tribunal da Relação de Guimarães.


Foi proferido Acórdão que decidiu “(…) julgar procedente a apelação do FGA e parcialmente procedentes as apelações das intervenientes FF e Centro de Pensões da B… F…, bem como da Autora, alterando-se a matéria de facto nos termos indicados e revogando-se a sentença recorrida, que se substitui por outra com o seguinte dispositivo:

1 – Julga-se a acção parcialmente procedente e, consequentemente, vão os Réus Fundo de Garantia Automóvel e herança jacente aberta por óbito de CC, solidariamente, condenados a:

  a)   Pagar à Autora e sua filha, a título de danos de natureza patrimonial, a quantia de € 130.000,00, devendo aqui ser deduzido o valor que as mesmas já receberam, a título de pensões, pela perda de rendimentos da vítima;

  b)  Pagar à Autora, a título de danos de natureza não patrimonial, a quantia de € 47.500,00 (€ 27.500,00 + € 20.000,00);

   c)  Pagar à filha da Autora, a título de danos de natureza não patrimonial, a quantia de € 62.500,00 (€ 27.500,00 + € 35.000,00);

    d)  Pagar à Autora o montante que vier a ser liquidado posteriormente pela perda do veículo TR.

    e)   Proceder ao reembolso do Instituto de Segurança Social e do Centro de Pensões da B… F…, de todas as quantias que estes já pagaram e que venham a pagar no futuro à Autora e sua filha, decorrentes da morte do seu marido e pai em virtude do acidente dos autos.

2 – Vai a Ré Herança Jacente aberta por óbito de CC, condenada a reembolsar a Seguradora FF, como seguradora laboral, de todas as quantias que esta já pagou e que venha a pagar no futuro à Autora e sua filha, a título de pensão por viuvez e orfandade e decorrentes do acidente laboral que vitimou o marido e pai daquelas.

3 – Nos termos do disposto no artigo 506.º do Código Civil, todos os montantes indemnizatórios supra referidos reduzem-se a metade, devendo, ainda, considerar-se a franquia referida pelo réu FGA e que a responsabilidade deste está limitada pelo valor do capital de seguro automóvel mínimo obrigatório vigente à data do acidente.

4 – Os valores referidos são acrescidos de juros de mora, à taxa legal, contados do trânsito em julgado da sentença, até integral pagamento, à excepção do valor de € 130.000,00 de danos patrimoniais, que vence juros a partir da citação e do pagamento dos reembolsos, que vencem juros a partir da citação/notificação das ampliações dos pedidos

5 – Absolvem-se os réus FGA e herança de qualquer pagamento a EE.

6 – Absolve-se o FGA do peticionado reembolso à Companhia de Seguros FF.

Inconformada com o decidido recorre, agora de revista, a Companhia de Seguros FF SA. tendo, no termo da sua alegação, apresentado as seguintes,


Conclusões:


1ª. Enquanto acidente de viação, ao sinistro dos autos é aplicável o disposto no DL n.º 522/85, de 31.12, actualizado pelo DL 73-A/2003, de 14.04 (art 60º).

2ª. Enquanto acidente de trabalho, ao sinistro dos autos é aplicável o disposto no DL 100/97, de 13.09, regulamentada pelo DL 143/99, de 30.04 e DL 382-A/99, de 22 de Setembro, em vigor a partir de 01.01.2000.

3ª. A lei nº 100/97 {art.º 429º) revogou a lei 2127, de 1965.

4ª. O reembolso à Interveniente FF está contemplado no artº 31° das Lei 100/97, de 13 de Setembro e no DL nº 522/85, de 31.12 (artsº 18º, 19º, 23º e alínea a) do nº 6 do artº 27º).

5ª. É de sub-rogação legal o direito que a Interveniente seguradora FF detém sobre os responsáveis civis causadores do acidente ou seus garantes.

6ª. É de sub-rogação legal passiva o dever do FGA em reembolsar a Interveniente seguradora FF em substituição do terceiro responsável por acidente de viação de veículo sem seguro automóvel.

7ª. Até à publicação do DL 291/2007, 21 Agosto, em vigor a partir de 20.10.2007, era correcta e unânime a jurisprudência e a doutrina portuguesas no sentido de que as seguradoras de acidentes de trabalho beneficiavam sobre o F.G.A. do direito de sub-rogação dos valores despendidos com os sinistrados de trabalho, em acidentes simultaneamente de viação e de trabalho e em que o veículo responsável pelo acidente não era detentor de seguro válido e eficaz.

8ª. O artigo 51.º da Lei 291/2007, que versa sobre os "Limites especiais à responsabilidade do Fundo" é nesta matéria completamente inovador, não podendo o intérprete do DL 522/85 distinguir o que o seu legislador não distinguiu, não tendo por isso aplicação retroactiva.

9ª. A decisão recorrida é errada quanto à absolvição do FGA dos valores a que a Interveniente FF tem direito a receber do responsável (e do seu garante) pelo acidente de viação.

10ª. Não pode haver distinção entre o terceiro responsável que não detém seguro automóvel e aquele cujo veículo circula protegido por um seguro de responsabilidade civil automóvel. "Ubi lex non distinguit, nec nos distinguire debemus".

11ª. Apenas a Lei nº 291/2007 veio alterar o paradigma do financiamento do FGA. e implementou uma nova forma de compensação dos fluxos financeiros entre seguradoras e FGA.    Daí que,

12ª. À data do acidente dos autos, a seguradora de acidente de trabalho goza do direito de sub-rogação sobre o F.G.A. quando o veículo conduzido responsável pelo sinistro não detém seguro válido eficaz;

13ª. Apenas a partir de 2007, nos termos do disposto no artsº 51º desta Lei do Seguro Automóvel (291/2007), o F.G.A. passou a responder apenas pelos danos não patrimoniais e pelos patrimoniais não cobertos pelo seguro de acidente de trabalho.

14ª. Na decisão recorrida foram violados: o artº 441º do C. Com., os arts.º 483°, 495°, 562° 592.º, 593. do Código Civil, o art.º nº 31º da Lei nº 100/97, de 13 de Setembro (regulamentada pelo DL 143/99, de 30 de Abril), bem como os artsº 18°, 21° e 279 do DL 522/85, de 31 de Dezembro.

Termos em que ao presente recurso deve ser dado provimento e, em consequência, revogado o acórdão recorrido e substituído por outro que condene o Réu/recorrido FGA a pagar à seguradora Interveniente FF solidariamente com a herança jacente aberta por óbito de CC metade das quantias que esta já pagou e que venha a pagar no futuro à Autora e sua filha a título de pensões de viuvez e orfandade e decorrentes do acidente laboral que vitimou o marido e pai daquelas, alterando também em conformidade a responsabilidade pelo pagamento das custas processuais.


Contra-alegou o Fundo de Garantia Automóvel pugnando pela confirmação do decidido na Relação.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.


*


2. FUNDAMENTOS.


O Tribunal da Relação deu como provados os seguintes,

2.1. Factos.

2.1.1. GG faleceu em Bragança, em 18/10/03. (A).

2.1.2. Em 03/03/98, no Posto Consular de Portugal, em …, na Alemanha, GG e AA contraíram casamento civil, sem convenção antenupcial. (B).

2.1.3. Em 23/08/99, nasceu em …, Alemanha, BB, filha de GG e de AA. (C).

2.1.4. Por escrito, titulado pela apólice n.° 2…/5. …, a Companhia de Seguros FF, SA assumiu, perante a HH - Empresa de Montagens Termo-Industriais, SA, a responsabilidade pelos danos provocados em resultado de acidentes de trabalho, bem como, os danos decorrentes de acidentes ocorridos no trajecto normal de e para o local de trabalho. (D).

2.1.5. Com base no falecimento de GG, beneficiário nº 11…, foram requeridas no ISS (CNP, pela viúva AA, por si em representação do filho menor, as respectivas prestações por morte pretensões que lhes foram deferidas. (E).

2.1.6. Por força de deferimento daquela pretensão, o ISS/CNP entregou a AA, a título de subsidio por morte e pensões de sobrevivência, no período compreendido entre 11/2003 e 7/2008, o montante global de € 8.062,40, prestações que se manterão, enquanto perdurarem os condicionalismos legais para a sua concessão, no valor mensal de € 54,58, quanto à viúva, e no valor mensal de € 18,19, quanto ao filho menor, com inclusão de um 13º mês em Dezembro e um 14º mês, de cada ano. (F).

2.1.7. No dia 18/10/03, pelas 21.45h, no 1P4, ao Km 225,866, em …, B…, ocorreu um embate, envolvendo os veículos automóveis ligeiros, matrícula …-…-TR e VG-…-… (doravante designados por TR e VG).

2.1.8. Nas circunstâncias perguntadas em 1°, o IR era conduzido por GG, que circulava no sentido Espanha-Bragança.

2.1.9. E o VG era conduzido por CC, que circulava no sentido Bragança/ Espanha.

2.1.10. Por fazer noite, ambos os veículos circulavam com as luzes acesas.

2.1.11. Na altura chuviscava.

2.1.12. No local do embate, a via forma uma recta, com três faixas de rodagem.

2.1.13. Duas faixas destinadas ao sentido de trânsito Espanha/Bragança, com a largura total de 6.50m.

2.1.14. E a outra faixa destinada ao sentido de trânsito Bragança/Espanha, com 3,60m de largura.

2.1.15. A faixa de rodagem, destinada ao sentido de trânsito Bragança/Espanha, tem berma pavimentada, com 2,40 metros.

2.1.16. No sentido de trânsito Espanha/Bragança, a berma, também pavimentada, tem 1.60m, e uma valeta em declive, cimentada, com um metro de largo.

2.1.17. As duas faixas de rodagem destinadas ao sentido de trânsito Espanha/Bragança, são marcadas com um traço central descontínuo.

2.1.18. E estão separadas da faixa de rodagem destinada ao sentido de trânsito Bragança/Espanha por um traço contínuo.

2.1.19. Nas circunstâncias perguntadas em 1.°, GG circulava pela via mais à esquerda, das duas destinadas ao sentido de trânsito Espanha/Bragança.

2.1.20. O GG circulava a subir.

2.1.21. O veículo VG circulava no sentido descendente.

2.1.22. O embate foi produzido entre as metades frontais esquerdas dos veículos.

2.1.23. Depois do embate o TR foi parar a cerca de 27 m do referido local já fora do pavimento.

2.1.24. Em consequência do embate, produziu-se a morte dos condutores dos veículos TR e VG.

2.1.25. No local de embate ficaram vestígios de plástico, vidros e óleos dos veículos.

2.1.25-A. À data do acidente o veículo VG-…-… não beneficiava de seguro válido e eficaz”

2.1.26. À data do seu decesso, GG trabalhava como pedreiro para a HH - E.M.T.I.,Lda..

2.1.27. Auferindo remuneração mensal superior de € 530,00 × 14 meses acrescido de € 825,00 × 11 meses.

2.1.28. Tinha expectativas de ascensão profissional.

2.1.29. Sonhava construir a sua casa.

2.1.30. Uma sua tia preparava-se para fazer ao casal uma doação do terreno para a construção.

2.1.31. O casal vivia em casa arrendada.

2.1.32. GG aparentava gozar de boa saúde.

2.1.33. Era dedicado chefe de família, bom pai e bom marido.

2.1.34. Era pessoa de poucos gastos, alheio ao consumo de bares, discotecas.

2.1.35. Com o seu decesso, a Autora e filha sofreram profundo desgosto.

2.1.36. Vivendo, ainda hoje, em clima de grande instabilidade emocional.

2.1.37. Após a morte do pai, a filha BB vem mostrando sinais de melancolia persistente, com progressiva perda da alegria.

2.1.38. Pergunta pelo pai, com regularidade, e sente penosamente a sua ausência.

2.1.39. O TR ficou destruído.

2.1.40. Em 18/05/03, GG era funcionário da HH, SA, encontrando-se, então, a trabalhar sob as suas ordens, direcção e fiscalização desta empresa, em V… de S. …, E….

2.1.41. Naquelas circunstâncias deslocava-se do local de trabalho para passar o fim-de-semana em casa.

2.1.42. Por força do falecimento de GG, e no âmbito nos autos de acidente de trabalho n.° 313/03.OTTBGC, que correram pelo 2.° Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de L…, a FF, SA entregou à Autora e sua filha, as quantias de:

1. € 2.852,80, a título de despesas de funeral:

2. € 4.279,20, a título de subsídio por morte;

3. € 10,00, a título de despesas de transporte;

4. € 19.759,95, a título de pensões de 19/10/03 a 31/01/06.

2.1.43. Desde 01/02/2006 até 28/02/2008, a FF entregou a título de pensões a quantia de € 28.058,91; desde 01/03/2009 até 31/12/2011, entregou a quantia de € 27.856,05; desde 01/01/2012 até 30/09/2012, entregou a quantia de € 5.568,96; desde 01/10/2012 até 31/10/2012, entregou a quantia de € 2.447,31, sempre a título de pensões.

2.1.44. Em consequência da morte de GG, a Deutsche R… – U… (Centro de Pensões da B… f…) entregou à Autora, a título de pensão de viuvez vitalícia, desde 18/10/2003 até 31/10/2012, a quantia de € 28.508,86.

2.1.45. Em consequência do mesmo decesso, entregou a BB, a título de pensão de orfandade, desde 18/10/2003 até 31/10/2012, a quantia de € 11.051,77.

2.1.46. A interveniente FF, S.A pagou a quantia de € 7.956,46 ao sinistrado EE em consequência das lesões sofridas no acidente a que os autos dizem respeito.


Após o recurso ter sido recebido no Tribunal da Relação foi pedido ao Instituto de Seguros de Portugal informação sobre se, à data de 18/10/2003, o veículo VG-…-… beneficiava de seguro válido e eficaz, tendo o mesmo informado negativamente.

Em face desta informação, entendeu-se ser possível aditar à matéria de facto provada o n.º 25-A, com a seguinte redacção: “À data do acidente, o veiculo VG-…-… não beneficiava de seguro válido e eficaz”.


*


   2.2. O Direito.


   Nos termos do preceituado nos arts.º 608.º nº 2, 635.º nº 3 e 690.º nº 1 do Código de Processo Civil, e sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal. Nesta conformidade e considerando também a natureza jurídica da matéria versada, cumpre focar os seguintes pontos:

 - O Fundo de Garantia Automóvel tem o dever de indemnizar a interveniente Companhia de Seguros FF SA. em substituição do terceiro responsável pelo acidente de viação e de trabalho em que o veículo responsável pelo acidente não era detentor de seguro válido e eficaz?


+


 2.2.1. O Fundo de Garantia Automóvel tem o dever de indemnizar a interveniente Companhia de Seguros FF, SA em substituição do terceiro responsável pelo acidente de viação e de trabalho em que o veículo responsável pelo acidente não era detentor de seguro válido e eficaz?

 

 A presente acção tem como subjacente a efectivação da responsabilidade civil, verificados que estão os respectivos pressupostos, a saber o facto ilícito, o dano e o nexo de causalidade entre um e outro.

 Não se coloca o problema da dinâmica do acidente; o objecto dos presentes autos prende-se com a problemática da indemnização e mais concretamente, in casu, com o mérito da pretensão da Companhia de Seguros FF SA. que interveio nos autos arrogando-se ao direito de sub-rogação fundamentada nos artigo 31º da Lei nº 100/97 de 13 de Setembro, artigo 441º do Código Comercial, artigos 483º, 495º, 592º e 593º do Código Civil, bem como dos artigos 18º, 21º, 23º e 27º do DL 522/85 de 31/12, a fim de ser reembolsada dos valores que despendeu com os sinistrados GG e EE, sendo certo que os mesmos eram, à data do acidente, trabalhadores da firma HH, SA., titular da Apólice nº 2…/53… pela qual estes trabalhadores estavam a coberto e se encontravam seguros no ramo de acidentes de trabalho nesta seguradora que, para eles, foi simultaneamente de viação e de trabalho.

 Discorda a recorrente do entendimento da Relação na medida em que absolveu o Fundo de Garantia Automóvel quanto ao seu alegado direito de reembolso de metade das quantias por si despendidas nos autos de acidentes de trabalho – Ponto 6 da Decisão - e consequentemente também do seu Ponto 7 no que concerne à matéria de custas.

   Considerando a data em que o acidente ocorreu será aplicável in casu o DL 522/85 de 31/12. Nesta conformidade entende a recorrente FF SA. que, nessa altura, a Jurisprudência e a Doutrina propendiam para concluir que as seguradoras de acidentes tinham o direito de regresso sobre o FGA quanto aos valores despendidos em acidentes de viação e trabalho. O artigo 19º do Diploma supracitado trata do direito de regresso da empresa de seguros que tenha pago a indemnização na qualidade simultaneamente de viação e de trabalho em que o veículo responsável pelo acidente não era detentor de seguro válido e eficaz. Em abono da sua tese chama a atenção para os artigos 26º e 27º do imediatamente supracitado Diploma Legal. Reporta-se o primeiro aos acidentes simultaneamente de viação e de trabalho em que o responsável pelo acidente interveio, tratando o segundo normativo do direito de regresso da Seguradora que tinha pago a quantia em dívida na sua qualidade de seguradora automóvel.

Não podemos concordar com a recorrente. Mau grado seja aplicável o DL 522/85 ao caso sub iudice, o certo é que não descortinamos em que medida é que possa recair sobre o FGA o dever de pagamento à seguradora com fundamento em direito de regresso. Na verdade da análise do artigo 27º do citado DL não emerge qualquer norma em tal sentido, sendo certo que o preceito que a Recorrente Companhia de Seguros cita, o nº 6 do aludido Diploma Legal tão pouco existe. Por outro lado, o artigo 23º estatui que Compete ao Fundo de Garantia Automóvel satisfazer as indemnizações por lesões consequentes de acidentes originados por veículos sujeitos ao seguro obrigatório, nos casos previstos no artigo 21º até ao limite por acidente, das quantias fixadas no artigo 6º. Em momento algum se refere que a seguradora, tendo pago a indemnização ao lesado, goza do direito de regresso sobre o FGA. No artigo 26º nº 1 não se prevê o direito de regresso da Seguradora contra o FGA, mas apenas a sub-rogação deste último nos direitos do lesado, tendo ainda direito ao juro de mora legal e ao reembolso das despesas que houver feito com a liquidação e cobrança”. Conforme tem vindo a ser entendido por este Alto Tribunal “O «direito de regresso» - outorgado pelo nº 4 da Base XXXVII da Lei 2127 à entidade empregadora ou seguradora que tiver pago a indemnização por acidente laboral - não se configura como um direito de indemnização de lesado sobre o autor do facto danoso, fundado no instituto da responsabilidade extracontratual, mas antes como uma consequência legal do facto de um dos devedores solidários «imperfeitos» ter cumprido a obrigação de ressarcimento a que estava vinculado, adiantando, no quadro de uma relação contratual destinada a garantir os riscos laborais, um valor indemnizatório que – perante a «hierarquização» das responsabilidades dos potenciais devedores – pode ser ulteriormente repercutido no património do devedor principal e definitivo da obrigação de indemnizar: o responsável civil pelo acidente de viação.

 2. Tal direito de regresso tem como destinatários apenas «os responsáveis referidos no nº 1 da referida Base, ou seja, os companheiros do sinistrado ou terceiros que tiverem causado o acidente.

 3. Não pode qualificar-se o FGA como «causador» do acidente de viação que simultaneamente se configura como acidente laboral, já que a sua obrigação de ressarcir o sinistrado não radica no instituto da responsabilidade civil extracontratual, subjectiva ou objectiva, que para tal entidade houvesse sido transferida, legal ou contratualmente, mas apenas no propósito de – socializando os riscos associados à circulação rodoviária - evitar a total desprotecção da vítima, decorrente, nomeadamente, do não apuramento da identidade do lesante – pelo que não se verificam, quanto a tal entidade, os pressupostos do direito de regresso previsto na citada disposição legal”[1]. O mesmo se passa com actual Lei 100/97 de 13 de Setembro, cujo artigo 31º em momento algum se refere ao direito de regresso da seguradora contra o FGA. De harmonia com o nº 4 do citado normativo tal só se verifica nos casos a que se reporta o nº 1 do citado normativo legal, i.e. “quando o acidente for causado por outros trabalhadores ou terceiros, o direito à reparação não prejudica o direito de acção daqueles nos termos da lei geral. Isto desde logo porque o FGA não é causador do acidente nem responsável civil, limitando-se apenas a ser um garante das indemnizações devidas aos lesados em acidente de viação nos casos de inexistência de seguro ou desconhecimento do responsável pelo sinistro. Também ao nível do artigo 19º do DL 522/85 de 31 de Dezembro se alude a qualquer direito da seguradora sobre o FGA já que entre os casos taxativos de direito de regresso não figura este organismo como alvo do mesmo. Não se subsumindo no instituto de responsabilidade civil, persegue o instituto em análise apenas o intuito de protecção da vítima socializando os riscos associados à circulação estradal. O seu escopo não passa contudo pelo reembolso das seguradoras.

   O exposto dita a negação da revista.


  Poderá assentar-se em termos de sumário e conclusões:

 1) Na vigência do DL 522/85 de 31 de Dezembro nomeadamente à luz seu artigo 26º não emerge qualquer norma que responsabilize o Fundo de Garantia Automóvel quanto ao reembolso das quantias despendidas v.g. nos acidentes de viação/trabalho – DL 522/85 de 31 de Dezembro.

  2) O artigo 19º DO DL 522/85 trata do direito de regresso da empresa de seguros que tenha pago a indemnização na qualidade simultaneamente de viação e de trabalho em que o veículo responsável pelo acidente não era detentor de seguro válido e eficaz.

 3) A sua obrigação de ressarcir o sinistrado não radica no instituto da responsabilidade civil extracontratual, subjectiva ou objectiva, que para tal entidade houvesse sido transferida, legal ou contratualmente, mas apenas no propósito de – socializando os riscos associados à circulação rodoviária - evitar a total desprotecção da vítima, decorrente, nomeadamente, do não apuramento da identidade do lesante.

  Não se verificam, assim quanto a tal entidade, os pressupostos do direito de regresso previsto na citada disposição legal”.

 4) O mesmo se passa com a Lei dos acidentes de trabalho e doenças profissionais nº 100/97 de 13 de Setembro, cujo artigo 31º em momento algum se refere ao direito de regresso da seguradora contra o FGA.

 5) De harmonia com o nº 4 do normativo supracitado tal só se verifica nos casos a que se reporta o nº 1 do citado i.e. “quando o acidente for causado por outros trabalhadores ou terceiros, o direito à reparação não prejudica o direito de acção daqueles nos termos da lei geral.

 6) Tal sucede porque o FGA não é causador do acidente nem responsável civil, limitando-se apenas a ser um garante das indemnizações devidas aos lesados em acidente nos casos de inexistência de seguro ou desconhecimento do responsável pelo sinistro.

     Acautelam-se aqui os riscos associados à circulação estradal. O seu escopo não passa pelo reembolso das seguradoras, antes se mostrando imbuído de solidariedade social.


*


   3. DECISÃO.


 Pelo exposto acorda-se em negar a revista.


Custas pela recorrente.

    

Lisboa, 30 de Março de 2017


Távora Victor (Relator)

Silva Gonçalves

António Joaquim Piçarra

__________________

[1] Cfr. Acs. deste S.T.J. de 09-jul-1998  (P. (P. 97A885)); de 19-6-2012 (P. 4445/06.4TBBRG.G1.S1); 31-1-2017 (P. 850/09.2TVLSB. L1.S1); 30-5-2013 (P. 6330/03.2TVLSB.L1.S1); da Rel Lisb. 17-3-2011 (P. 582/09.1TJLSB.L1-2), todos das Bases da DGSI.