Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
39/18.0JAPTM.E1.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: HELENA MONIZ
Descritores: RECURSO PER SALTUM
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
PRINCÍPIO DA ADESÃO
REPARAÇÃO OFICIOSA DA VÍTIMA
ADMISSIBILIDADE
MEDIDA DA PENA
ABUSO SEXUAL DE CRIANÇA
VIOLAÇÃO
PENA ÚNICA
Data do Acordão: 10/07/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :

I - Sabendo que no presente caso o arguido foi condenado em duas penas de prisão inferiores a 5 anos, mas a uma pena de prisão superior a 5 anos de prisão, e sabendo que foi condenado numa pena única de prisão igualmente superior a 5 anos de prisão, e que o recurso, na parte referente à decisão penal, versa exclusivamente matéria de direito, o Supremo Tribunal de Justiça é o competente para conhecer do recurso interposto, ainda que algumas penas de prisão aplicadas sejam inferiores a 5 anos de prisão; isto mesmo é o que resulta do acórdão de fixação de jurisprudência n.º 5/2017.

II - Articulando esta possibilidade legal de separação do pedido de indemnização civil do processo penal quando este exija a intervenção de um tribunal com uma maior composição do que aquela que irá julgar o processo penal, mas não admitindo a separação quando o tribunal competente para o processo penal seja o tribunal coletivo, e relacionando isto com a regra da conexão dos processos (sabendo, no entanto que não se trata de um caso de conexão de processo tout court) que determina a competência para o julgamento de todos os processos conexos ao tribunal de hierarquia ou espécie mais elevada (cf. art. 27.º, do CPP) , entendemos que sendo o Supremo Tribunal de Justiça competente para julgar o recurso em matéria penal, também o será para julgar o recurso quanto ao pedido de indemnização civil arbitrado.

III - Tendo concluído pela admissibilidade do recurso em matéria penal, será admitido o recurso que impugna o valor atribuído a título de reparação, nos termos do disposto no art. 82.º-A, do CPP, e do art. 16.º, n.º 2, da Lei n.º 130/2015.

IV - O facto provado quanto ao choque psicológico das menores decorre de uma presunção judicial tal como se encontra consagrado no art. 351.º, do Código Civil (CC); sabendo que os danos não patrimoniais poderiam ter sido provados com recurso a qualquer meio de prova, não estando, pois, vedada a possibilidade de utilização de qualquer meio de prova quanto aos factos que possam demonstrar a existência de danos não patrimoniais (os únicos alegados no pedido de indemnização civil) da ofendida, é admissível a presunção judicial que o Tribunal a quo fez.

Decisão Texto Integral:



Proc. n.º 39/18.0JAPTM.E1.S1

I

Relatório

1. No Tribunal Judicial da Comarca ... (Juízo Central Criminal ... — Juiz ...), por acórdão de 13.07.2020, o arguido AA foi julgado e condenado nos seguintes termos:

«a) Condenamos o arguido AA:

- pela prática de um crime de abuso sexual de criança, p. e p. pelo artº 171º, nº 1, e 2, do Código Penal (Ofendida BB) na pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão;

- pela prática de um crime de abuso sexual de criança, p. e p. pelo artº 171º, nº 1, e 2, do Código Penal (Ofendida BB) na pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão;

- pela prática de um crime de violação p. e p. pelo artº 164º, nº 1, al. a) e 177º, n.º 6, do Código Penal (ofendida CC) na pena de 6 (seis) anos 6 (seis) meses de prisão;

Operando o cúmulo jurídico das penas parcelares referidas, condenamos o arguido na pena única de 10 (dez) anos de prisão;

Condenamos o arguido na taxa de justiça de 3 (três) U.C. e nas demais custas do processo.

Consideramos parcialmente procedente por provado o pedido de indemnização formulado pela demandante civil/assistente DD e condenar o demandado civil, no pagamento àquele da quantia de €5000,00 (cinco mil euros) a título de indemnização pelos danos não patrimoniais por a vitima sofridos em consequência da prática por aquele dos crimes de abuso sexual de menores e bem assim nos juros de mora que se vencerem até integral pagamento, calculados à taxa legal sobre as quantias referidas supra desde a data da citação.

A título de reparação dos prejuízos sofridos pela vítima/ofendida CC, arbitramos a quantia de €5000,00 (cinco mil euros), a serem pagos pelo arguido, acrescido de juros desde o trânsito em julgado desta decisão até efectivo e integral pagamento. (...)

Após trânsito, cumpra-se o disposto no artigo 8º, n.º2 da Lei n.º 5/2008, de 12 de Fevereiro.»

2. Inconformado, o arguido interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Évora, tendo terminado a motivação com as seguintes conclusões:

«A.  O Recorrente foi condenado na prática, como autor material, de um crime de abuso sexual de criança, de um crime de abuso sexual de criança e de um crime de violação, previstos e punidos pelos artigos 171º nº 1 e nº 2 e 164º nº 1 al. a) e 177º nº 6, ambos do Código Penal, doravante designado de CP, na pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão, na pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão e na pena de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses   de  prisão,  respectivamente,  tendo   operando  o  cúmulo  jurídico  das  penas parcelares  referidas, na pena única de 10 (dez) anos de prisão, tendo  ainda o tribunal a quo condenado  o arguido no pagamento de uma indemnização  no valor de € 5.000,00 (cinco mil euros)  à assistente DD e de € 5.000,00 (cinco mil euros)  à ofendida CC.

B.  A decisão recorrida é desadequada, desproporcional e injusta, não tendo sido levada em conta a prova produzida em sede de Audiência de Discussão e Julgamento.

C.   O recorrente confessou parcialmente os factos constantes da acusação, relatando uma versão diferente das declarações para memória futura das ofendidas.

D.  O arguido revelou arrependimento sincero quanto às suas condutas, bem sabendo que as mesmas eram erróneas e moralmente censuráveis.

E.    Na aplicação de pena de prisão, a um cidadão que não regista antecedentes daquela natureza, e que está integrado, não necessitando ser contaminado pelo meio prisional, que, consabidamente, não obstante as finalidades da aplicação das penas, dificilmente permite  a reintegração, deverá ponderar-se, designadamente, todo o circunstancialismo do qual se destaca  a desnecessidade de aplicação de reclusão, comprometedora de toda a ressocialização.

F.    Manifestamente, para a desejável ressocialização do ora Recorrente, perante toda a matéria de facto provada, e por forma a cumprir com as exigências de prevenção especial que no caso se fazem sentir, bastar-se-á a ameaça da continuação  da aplicação da pena de prisão efectiva, havendo, por isso, que reduzir a pena a aplicar, ao ora Recorrente, para o que se verificam os legais pressupostos.

G.  Decidindo diferentemente, e aplicando, ao ora recorrente, a tão elevada pena de prisão, violou o Acórdão, nomeadamente, o Princípio Constitucional da Presunção da Inocência contido no artigo 32.º, n.º 2, da Lei Fundamental e o disposto nos artigos 40.º, n.º 1 e 2, artigo 70.º, n.º 2 e artigo 50.º do Código Penal e 127º do Código de Processo Penal, pelo que se impõe a procedência do presente Recurso.

H.  Atendendo ao disposto nos artigos 40.º e 71. º do CP, é de concluir que a aplicação ao arguido de uma pena de prisão próxima do mínimo legal, realizaria de forma adequada e suficiente as finalidades da punição explanadas   nos normativos   mencionados   e as exigências de prevenção que no caso se fazem sentir.

I.     É excessiva a medida da pena concretamente fixada ao arguido, principalmente tendo em conta que o arguido prestou declarações, confessando os factos por si praticados, o que fez em sede de audiência de discussão e julgamento, justificando todo o sucedido; O arguido não se escudou da gravidade dos factos por si praticados, e explicou ao tribunal o efetivamente sucedeu, mostrando-se profundamente arrependido e interiorizando o mal que fez.

J.   Analisando os critérios legais, poderíamos resumir toda a problemática da escolha e medida da pena na escolha da pena (art. 70.º), em que o agente deve ser apreciado como a pessoa que é e na fixação do quantum da pena (art. 71.°), sendo que o agente deve ser apreciado  por aquilo que  fez, e com uma pena  de 10 (dez) anos de prisão efectiva,  o arguido, praticamente ficará impedido de se reintegrar na sociedade.

K.   Entende o arguido que o tribunal a quo ao decidir pela aplicação de uma medida privativa da liberdade nos limites máximos, demonstra não haver tomado em consideração  as finalidades das penas que constituem  a base do sistema penal português,  à luz do qual se concretizam os objectivos da prevenção com a reintegração do agente na sociedade.

L.   Da mesma forma resultou desproporcional e injusta a quantia condenada a título de indeminização por danos não patrimoniais  e a título de reparação  no âmbito  da Lei nº 130/2015 de 4 de setembro.

M. Não se provou os danos peticionados no pedido de indeminização civil pela assistente, que o próprio tribunal a quo refere como factos não provados, pois nenhuma prova foi feita nesse sentido.

N.  O tribunal a quo condenou o arguido no pagamento da quantia de € 5.000,00 (cinco mil euros) com base   nas regras   de experiência   comum, sem, contudo, fundamentar devidamente, recorrente a critérios de equidade e à prova produzida.

O.  O montante de € 10.000,00 (dez mil euros) afigura-se assim exagerado, pelo que se impõe a sua redução.

Termos em que e nos demais de Direito deve ser dado provimento ao presente Recurso e, por via dele, ser revogado o acórdão recorrido e, em consequência, ser   a   pena   de   prisão   fixada   pelo   mínimo abstratamente aplicável, e ser reduzido os montantes a título de indemnização, fazendo-se, assim, a habitual e necessária Justiça!!»

3. No Tribunal Judicial da Comarca ..., o Senhor Procurador da República entendeu que a decisão se deve manter inalterada e terminou a sua resposta com as seguintes conclusões:

«1- O âmbito do recurso retira-se das respectivas conclusões as quais por seu turno são extraídas da motivação da referida peça legal, veja-se por favor a título de exemplo o sumário do douto Acórdão do STJ de 15-4-2010, in www.dgsi.pt,Proc.18/05.7IDSTR.E1.S1.

2- “Como decorre do artigo 412.º do CPP, é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido que se define o âmbito do recurso. É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões, exceptuadas as questões de conhecimento oficioso”.

3- São as conclusões, que fixam o objecto do recurso, artigo 417º, nº3, do Código de Processo Penal.

4- Tem o recorrente antecedentes criminais, tendo confessado parcialmente os factos.

5- Resume-se o recurso do arguido à medida da pena e também ao montante arbitrado a título de indemnização e reparação.

6- Afirma o arguido que a Douta Decisão do Tribunal “a quo” é desadequada, desproporcional e injusta.

7- Pois bem, esmiuçado o Douto Acórdão, extrai-se que o Tribunal ponderou todas as circunstâncias que havia de considerar para determinar a medida concreta da pena, tendo decidido com moderação e bom senso.

8- Para chegar à medida concreta da pena, teve em atenção o Tribunal “a quo” a culpa do agente e as exigências de prevenção de futuros crimes bem como todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele, como determina o artigo 71º do Código Penal.

9- Os limites da pena para as circunstâncias dos presentes autos, vão do mínimo de 6 anos e 6 meses de prisão, ao máximo de 15 anos e 6 meses, artigo 77º, nº2, do Código Penal.

10- Teve o Tribunal “a quo” em consideração para a escolha e medida das penas parcelares e única a que foi condenado o arguido em 1ª instância, todos os critérios referidos nos arts.40º, 70º, 71º e 77º, do Código Penal;

11- Aliados aos factos que se provaram em audiência de julgamento, mostrando-se a pena única de 10 anos de prisão, em sintonia com a culpa do arguido, e sem ter olvidado a sua ressocialização, devendo manter-se nos precisos termos que constam do Douto Acórdão.

12- Não beliscou o Douto Acórdão o disposto nos artigos 40º, 70º e 77º do Código Penal, ou qualquer outro preceito ou princípio de direito criminal, constitucional ou europeu.

13- Assim como é adequado o valor do pedido cível de 5000€, formulado pela demandante civil/assistente DD e equilibrado os 5000€ a título de reparação dos prejuízos sofridos pela vítima/ofendida CC.

14- Deve o Douto Acórdão recorrido manter-se na íntegra.

 Negando provimento ao recurso.»

4. Subidos os autos ao Tribunal da Relação de Évora, o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer considerando “que deverá o presente recurso ser remetido àquele Supremo Tribunal, por ser o competente para o apreciar e decidir.”

5. No Tribunal da Relação de Évora, por decisão sumária de 29.06.2021 (transitada em julgado a 15.07.2021), considerou-se competente o Supremo Tribunal de Justiça porquanto:

«(...) Estabelece o arto 432º nº 1 al. c) do CPPenal, “Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdãos finais proferidos pelo tribunal de júri ou pelo tribunal colectivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame de direito”.

Através do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 5/2017 fixou-se jurisprudência nos seguintes termos: “A competência para conhecer do recurso interposto do acórdão do tribunal de júri ou Tribunal Colectivo, que em situação de concurso de crimes tenha aplicado uma pena conjunta superior a cinco anos de prisão, visando apenas o reexame de direito, pertence ao Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do arto 432º nº 1 , al. c) e no 2 competindo-lhe também, no âmbito do mesmo recurso, apreciar as questões relativas às penas parcelares englobadas naquela pena iguais ou inferiores àquela medida, se impugnadas.”

Ora, no presente recurso está somente em causa matéria de direito e a pena aplicada em cúmulo jurídico é superior a 5 anos, bem como uma das penas parcelares.

Assim, nos termos do preceito e Acórdão de Uniformização de jurisprudência citados, se decide sumariamente ser o Supremo Tribunal de Justiça competente para o conhecimento do recurso, determinando-se a remessa a esse Venerando Tribunal.»

6. Uma vez subidos os autos, a Senhora Procuradora-Geral Adjunta no Supremo Tribunal de Justiça proferiu parecer, quanto à matéria criminal, considerando, em súmula apertada, que “o recurso deve improceder”.

7. Notificado os sujeitos processuais, nos termos do art. 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (CPP), não responderam.

8. Colhidos os vistos em simultâneo, e não tendo sido requerida a audiência de discussão e julgamento, o processo foi presente à conferência para decisão.

II

Fundamentação

A. Matéria de facto

1. Na decisão recorrida são dados como provados e não provados os seguintes factos:

«1. FACTOS PROVADOS

Discutida a causa resultaram provados, com relevância para a decisão da mesma, os seguintes factos:

1.º A menor BB nasceu no dia … de … de 2005 e é filha de EE e de DD.

2.º Em dia não concretamente apurado, a ofendida conheceu o arguido AA em casa de um familiar, tendo-lhe este pedido amizade no Facebook.

3.º Em Novembro de 2017, o arguido começou a entabular conversas com a menor no Messenger do Facebook.

4.º Nas referidas conversas e ao longo do tempo, o arguido foi abordando diversos temas com BB, elogiando-a, partilhando desabafos e fotografias por forma a criar intimidade com a mesma.

5.º Nas referidas mensagens do Facebook, o arguido, a 04 de Dezembro de 2017 questionou a menor em crioulo “que idade cú tem?”, ao que esta respondeu “12”, tendo o mesmo respondido: “só?”.

6.º No seguimento das conversas mantidas com a menor, o arguido acabou por questioná-la se esta seria virgem e se gostaria de que ele lhe tirasse a virgindade, dizendo-lhe que não iria doer.

7.º Nessa sequência, o arguido convenceu a menor BB a se encontrar com ele.

8.º Assim, no dia 12 de Janeiro de 2018, cerca das 14 horas, arguido e a menor encontraram-se na ..., em ..., área desta Procuradoria, tendo AA levado BB para  ..., nesta cidade.

9.º Aí chegados, o arguido e a menor ofendida subiram para um quarto pago por AA, tendo este começado por elogiar a letra de BB, questionando-a se tinha vergonha.

10.º De seguida, o arguido beijou a menor na boca dizendo-lhe que assim iria perder a vergonha.

11.º Após, deitaram-se ambos na cama começando o arguido a despir-se e a tirar a roupa a BB, colocando-se, de seguida, em cima da menor.

12.º De seguida, o arguido introduziu o pénis erecto na vagina da menor, submetendo-a à prática de cópula, sem recurso a preservativo.

13.º A menor foi virgem até este momento, tendo a penetração peniana lhe provocado dor e sangramento.

14.º Seguidamente, o arguido questionou a menor se queria tomar banho com ele ou se iria quando este acabasse, tendo a menor respondido que pretendia tomar banho sozinha.

15.º Após os banhos, saíram ambos do quarto, tendo o arguido deixado a menor na casa do primo desta de nome FF.

16.º Após o sucedido, arguido e ofendida mantiveram contacto através das redes sociais, tendo o arguido para 11 de Fevereiro de 2018, data em que BB completou 13 anos, através do Instagram, parabenizado a mesma pelo seu aniversário.

17.º No dia 15 de Fevereiro de 2018, através do Instagram, o arguido contactou a menor questionando-a quando é que a voltava a ver de novo, dizendo que tinham que marcar um dia, tendo BB respondido que não sabia quando é que se iriam poder ver.

18.º De seguida, o arguido questionou-a: “fizeste com outras pessoas depois de mim?”, dizendo após a menor ter respondido que não, “ temos que ver então”, dizendo-lhe que deveria enganar a sua progenitora afirmando que ia ao cinema para assim conseguir ir ter com ele.

19.º No dia 18 de Fevereiro de 2018, novamente o arguido insistiu com a menor para estarem juntos, dizendo ainda: “Fx era tares cmg tipo de 2 em dois dias, assim ficavas memo fx Já nem doía”.

20.º Nesse seguimento, arguido e ofendida encontraram-se, novamente, na ..., em ... a 28 de Fevereiro de 2018, após BB ter saído da escola.

21.º Assim, o arguido levou a menor para um quarto numa casa situada por detrás ....., em ....

22.º Já no quarto, BB ficou sentada na cama, tendo o arguido dito que quando quisesse para se deitar, e esta deitou-se.

23.º De seguida, o arguido despiu a menor, despindo-se de seguida, deitando-se em cima de BB e introduzindo-lhe o pénis erecto na vagina, submetendo-a à prática de cópula, sem recurso a preservativo.

24.º Após a prática do coito vaginal, o arguido questionou BB se esta já tinha tido a menstruação desde que tiveram relações, tendo-lhe esta dito que não, ordenando-lhe que fosse urinar, vestindo-se ambos de seguida.

25.º O arguido disse a BB que era melhor irem comprar um remédio porque poderia estar grávida, tendo levado a menor à farmácia do Jumbo, em ..., comprando a pílula do dia seguinte, que a menor tomou já em casa.

26.º Após este dia, o arguido entabulou conversa com a menor com vista a marcar novo encontro, não tendo tal vindo a acontecer por motivos alheios à sua vontade.

27.º O arguido tinha conhecimento da idade da menor.

28.º O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito concretizado de praticar os supra referidos actos sexuais de cópula vaginal com aquela menor com 12/ 13 anos com intenção de, por meio do corpo da menor, se satisfazer sexualmente, comprometendo dessa forma o livre desenvolvimento e formação da personalidade da menor na esfera sexual, limitava a sua liberdade de autodeterminação sexual, em função da sua pouca idade e, no entanto, quis agir do modo descrito, não se tendo, mesmo assim, abstido de as levar a cabo.

29.º O arguido aproveitou-se da incapacidade de avaliação do sentido do acto sexual da menor para melhor satisfazer os seus instintos libidinosos que prosseguiu.

30.º O arguido agiu livre, deliberada, voluntária e conscientemente, sabendo a sua conduta proibida e punível por Lei.

Ainda,

31.º O arguido conheceu a menor CC, filha de GG e de HH, nascida a … de …. de 2003, no bar “….”, na ..., ..., no dia …de Junho de 2018.

32.º A menor encontrava-se a passar o fim de semana no ..., tendo saído de casa cerca das 2 horas da madrugada para se ir encontrar com amigos no referido bar, tendo ingerido várias bebidas alcoólicas.

33.º O arguido foi apresentado à menor por um amigo em comum de nome “JJ”, que apresentou o arguido como “II”.

34.º De imediato, o arguido pediu amizade a menor nas redes sociais Facebook e Instagram.

35.º O arguido questionou a menor que idade tinha, tendo-lhe esta respondido que tinha 15 anos, tendo o arguido dito que tinha 18 anos.

36.º O arguido pagou uma bebida alcoólica à menor, tendo-lhe exibido um maço de notas com cerca de 200,00€ oferecendo à menor, em primeiro lugar, uma nota de 10€ que esta recusou e de seguida uma nota de 20,00€ que esta também recusou.

37.º Arguido e ofendida estiverem a conversar e a dançar no bar, tendo trocado um beijo já no exterior do bar, tendo a menor dito que não pretendia ter relações sexuais.

38.º A dado momento da noite, a menor precisou utilizar a casa de banho para urinar e como o wc do bar se encontrava ocupado, a mesma decidiu ir à praia, tendo o arguido acompanhado a mesma, ficando ambos a conversar na areia por pouco tempo, tendo a menor frisado que precisava urinar.

39.º Assim, a menor CC afastou-se do arguido e deslocou-se poucos metros, refugiando-se por detrás de uma rocha alta para urinar.

40.º Quando terminou de urinar, CC levantou-se, puxou as cuecas para o sítio, ajeitou o vestido e, de imediato, o arguido surgiu junto da mesma e atirou-se para cima desta, caindo ambos na areia.

41.º A menor pensou que o arguido estava a brincar, tendo-lhe este dado um beijo, tentando tirar-lhe as cuecas, tendo a menor ajudado, dizendo-lhe, contudo, que não queria fazer nada.

42.º Entretanto, CC pediu ao arguido para procurar as cuecas que ficaram perdidas na areia, levantando-se e dirigindo-se para o passeio de madeira.

43.º O arguido foi ter com a mesma dizendo que tinha perdido um dos telemóveis, tendo de seguida, a menor se deslocado de novo para o local onde tinham estado para procurar o telemóvel, ficando o arguido no passeio de madeira.

44.º Sem que a menor contasse, o arguido surgiu de repente junto de si, tendo CC regressado para o passeio de madeira, correndo, sendo seguida pelo arguido que a apanhou e atirou contra a areia, colocando-se em cima desta e apertando-lhe o pescoço com a mão, fazendo força dizendo à menor para não sair dali senão que a atirava ao mar.

45.º A menor começou a gritar, e o arguido novamente colocou-lhe a mão no pescoço, apertando e dizendo que a atirava ao mar.

46.º CC disse-lhe que não queria ter relações sexuais, apertando as pernas contra a areia.

47.º O arguido, sempre com a mão no pescoço da ofendida, dizia-lhe repetidamente para abrir as pernas que se não que a atirava ao mar e a deixava lá, forçando-as até as conseguir abrir.

48.º Enquanto o arguido agia deste modo, CC disse ao arguido que era virgem, e tentou libertar-se do mesmo e impedir que o mesmo a penetrasse.

49.º Ao que o arguido permaneceu indiferente, fazendo uso da sua superioridade física, continuando sempre os seus intentos.

50.º O arguido introduziu à força o seu pénis erecto na vagina de CC, friccionando-o, forçando-a à prática de cópula, contra a sua vontade e sem recurso a preservativo.

51.º Entretanto a menor conseguiu abandonar o local e foi com um amigo a uma farmácia comprar a pílula do dia seguinte.

52.º Sabia o arguido que, com o seu comportamento acima descrito, actuava contra a vontade da ofendida e que a compelia a sofrer, no seu corpo, actos que lesavam a sua liberdade sexual e, no entanto, quis praticar tais factos,

53.º agindo com o propósito de satisfazer os seus instintos libidinosos, para cuja concretização, usou da sua força e superioridade física e ameaça para vencer a resistência e objecção oferecidas pela ofendida, colocando-a na impossibilidade de obstar a tais propósitos, o que conseguiu e quis.

54.º Ao agir do modo descrito, o arguido pretendia constranger a menor CC a manter relações sexuais de cópula completa e satisfazer os seus instintos libidinosos, o que conseguiu.

55.º O arguido praticou os factos descritos apesar de saber que a ofendida era menor de 16 anos.

56.º O arguido agiu, em todos os momentos, com vontade livre e consciente, bem sabendo que os seus comportamentos eram e são proibidos e punidos pela lei penal.

Mais se provou,

Antes de ser preso preventivamente no final de Janeiro/2020 no Estabelecimento Prisional ... ordem do processo nº 1/19…, no qual se encontra acusado do crime de tráfico de estupefacientes, AA estava temporariamente a viver sozinho num quarto alugado em ..., mantendo desde 2018 uma relação de namoro com LL, de 19 anos, cuja família reside na Rua …, ……., na ….

A morada  .... indicada nos autos corresponde ao endereço de MM, tia materna do arguido.

De acordo com informações recolhidas a situação económica era instável, sendo os rendimentos do arguido provenientes, na sua maioria, dos concertos de acordeão que dava em estabelecimentos noturnos, embora não estivesse coletado nas Finanças como trabalhador independente.

Sendo o filho mais novo de um casal …... migrado em Portugal, AA nasceu no ... e passou a primeira infância numa barraca ……, em ..., onde os pais então residiam. Quando o grupo familiar regressou ao país de origem o arguido acompanhou os pais e fez o 1º e 2º ciclo do ensino básico em …..., apenas regressando a Portugal com 15 anos, após o falecimento dos progenitores, a mãe em 2004 e o pai em 2010.

Teve nessa altura o apoio familiar de uma tia materna e retomou os estudos, completando o 9º ano de escolaridade. Ainda se matriculou num curso de cozinha/pastelaria promovido pelo Centro de Emprego ……. do IEFP que lhe daria equivalência ao ensino secundário, mas desistiu ao fim de um ano.

A partir dos 17 anos começou a trabalhar em empregos part-time de curta duração na época alta, tendo passado pelo ………, um ……. no …, uma …… na ... e uma ……, este último através de uma firma de trabalho temporário.

Em 2018 esteve uns meses na área…… (…), onde tem alguns familiares, a trabalhar na……, mas voltou para Portugal.

Residiu durante algum tempo na zona ..., onde conheceu a atual namorada e aprendeu a ………, tendo começado a dar pequenos concertos em 2019. No último ano antes da prisão foi vivendo entre ... e a ..., mas envolveu-se no processo de tráfico de droga do qual aguarda ainda julgamento. Já em 2016, na companhia de amigos/pares jovens foi acusado e condenado no processo nº 65/16… por crimes de condução de veículo sem habilitação legal e furto qualificado numa pena suspensa com a duração de 2 anos, transitada em julgado em 05/03/2018.

AA não mantem contactos próximos com os seus irmãos, um dos quais cumpre pena de prisão em ..., mas tem na tia MM e na família da namorada LL suporte familiar, apesar da sua situação jurídico-penal. No EP ….... o arguido trabalhou como faxina cerca de um mês, mas no presente não exerce funções laborais. Realiza regularmente vídeo chamadas com a namorada.

Dos antecedentes criminais.

No âmbito do processo n.º 65/16…, foi o arguido condenado por decisão transitada em julgado em 05.03.2018, pela pratica em 21.03.2016 e 22.03.2016, de um crime de furto qualificado e de um crime de condução de veiculo sem habilitação legal, na pena de 60 dias de multa à razão diária de €5,00 e bem assim na pena de 1 ano e 7 meses de prisão suspensa na sua execução por um período de 2 anos.

Factos provados relativos às ofendidas:

As menores sofreram um choque psicológico inapropriado à sua idade.

*

2. FACTOS NÃO PROVADOS

Não se provou qualquer outro facto com relevância para a decisão da causa, bem como não se provaram os factos constantes do pedido de indemnização civil que acima não se encontram provados.»

2. Na fundamentação da matéria de facto e no que respeita à matéria civil consta o seguinte:

«Já no que se reporta aos factos atinentes ao pedido de indemnização civil que não se encontram provados, nenhuma prova foi feita nesse sentido.

O facto atinente ao pedido de indemnização civil provado foi-o com base nas regras de experiência comum

A. Matéria de direito

1. Analisando o recurso interposto, são as seguintes as questões a analisar:

a) medida da pena aplicada ao arguido, considerando, em súmula, que se devia ter tido em conta a “confissão parcial e sem reservas do arguido”, o “arrependimento e vergonha pelo sucedido”, e a culpa “diminuta” do arguido, pelo que a pena a aplicar devia ser próxima do mínimo legal, concluindo que a pena de 10 anos é excessiva e desproporcional;

b) entende também que os montantes das indemnizações arbitradas não cumprem os “critério de equidade”, nem correspondem à prova produzida dado que, tal como foi afirmado na decisão, não se provaram os danos peticionados, e concluindo que o montante de 10 000 euros é exagerado impondo-se a sua redução.

2.1. Nos termos do art. 432.º, n.º 1, al. c), do CPP, é admissível o recurso diretamente para o Supremo Tribunal de Justiça das decisões que apliquem pena de prisão superior a 5 anos de prisão e visem exclusivamente matéria de direito.

Sabendo que no presente caso o arguido foi condenado em duas penas de prisão inferiores a 5 anos, mas a uma pena de prisão superior a 5 anos de prisão, e sabendo que foi condenado numa pena única de prisão igualmente superior a 5 anos de prisão, e que o recurso, na parte referente à decisão penal, versa exclusivamente matéria de direito, o Supremo Tribunal de Justiça é o competente para conhecer do recurso interposto, ainda que algumas penas de prisão aplicadas sejam inferiores a 5 anos de prisão. Isto mesmo é o que resulta do acórdão de fixação de jurisprudência n.º 5/2017[1].

2.2.1. Todavia, o recurso abrange não só a decisão quanto à matéria penal, mas também a decisão quanto à matéria civil. E por força do disposto no art. 400.º, n.º 2, do CPP[2], o recurso apenas é admissível quando “o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada”. Ora, o Tribunal recorrido neste caso é o Tribunal da Comarca e, nos termos do art. 44.º, da Lei Orgânica do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26.08 e alterações posteriores), a alçada é de 5 000 euros. Sabendo que:

- o pedido de indemnização civil formulado [pela assistente DD em representa dação da ofendida (menor) BB] é de 10 000 euros,

- a decisão impugnada atribuiu a esta ofendida uma indemnização 5000 euros, e

- o recorrente entende que o tribunal não fundamentou devidamente a decisão (conclusão N) e que a indemnização é exagerada,

ficamos sem saber ao certo em que medida o recorrente entende que a decisão lhe é desfavorável;

mas considerando que a partir da conclusão N (apresentada no recurso interposto) o recorrente considera que não devia ter sido arbitrada qualquer indemnização, necessariamente teremos que concluir que a decisão impugnada lhe foi desfavorável em 5 000 euros (porque foi a indemnização arbitrada). Assim sendo, a decisão foi-lhe desfavorável em valor superior a 2500, 01 euros, pelo que o recurso seria admissível para o Tribunal da Relação. Porém, o recurso foi rejeitado pelo Tribunal da Relação considerando-se incompetente. Poderemos, desta feita, e porque se admitiu o recurso quanto à matéria penal, admitir também o recurso quanto a esta parte da matéria civil?

Na verdade, ainda que este pedido de indemnização civil tivesse (por absurdo, dado que no âmbito do processo penal vale o princípio da adesão — cf. art. 71.º, do CPP) sido julgado em ação autónoma, nunca seria admissível o recurso per saltum para o Supremo Tribunal de Justiça, por força do disposto no art. 678.º, n.º 1, do CPC. Por força deste dispositivo, o recurso per saltum apenas é admissível quando cumulativamente se verificam os pressupostos ali elencados. Ora, de entre os requisitos cumulativos previstos no art. 678.º, n.º 1, do CPC, está o que exige que o valor da causa seja superior à alçada da Relação; ora, aferindo este valor pelo pedido (que foi de 10 000 euros) e sendo a alçada da Relação de 30 000 euros, então, desde logo este requisito não está verificado. Ou seja, pelas regras processuais civis, o recurso para este Supremo Tribunal de Justiça não seria admissível.

Teremos, então, que concluir não ser admissível o recurso?

Se concluíssemos pela inadmissibilidade do recurso para este Supremo Tribunal de Justiça quanto à indemnização civil, necessariamente ocorreria uma de duas situações:

- ou o Supremo Tribunal de Justiça limitava a sua apreciação à parte penal, remetendo a parte civil para o Tribunal da Relação — o que constituiria um caso de fragmentação dos autos em desrespeito pelo princípio da adesão,

- ou considerávamos que apenas poderemos apreciar da parte em que somos competentes sem que conhecêssemos da parte relativa à indemnização civil, quando, no caso, o recorrente interpôs o recurso para o Tribunal da Relação, e este Tribunal é que se considerou incompetente.

Não fosse um caso de separação do pedido de indemnização civil do processo penal fora dos casos expressamente previstos no art. 72.º, do CPP, e em desrespeito pelo princípio da adesão, e tenderíamos a considerar que o recurso quanto à indemnização civil não seria admissível para este Supremo Tribunal de Justiça. Porém, não podemos deixar de salientar que, nos termos do art. 72.º, n.º 1, al. g), do CPP, admite-se a apreciação do pedido de indemnização civil em separado quando o valor deste permitir a intervenção do tribunal coletivo e o processo penal correr perante tribunal singular. O que se compreende uma vez que, sendo competente para o julgamento do pedido de indemnização civil um tribunal coletivo, não poderia este ser julgado pelo tribunal singular. Mas o inverso já não admite o julgamento do pedido de indemnização civil em separado: se para o julgamento do pedido de indemnização civil for competente o tribunal singular, mas o processo penal deva ser julgado em tribunal coletivo, mantém-se a adesão.

Ora, articulando esta possibilidade legal de separação do pedido de indemnização civil do processo penal quando este exija a intervenção de um tribunal com uma maior composição do que aquela que irá julgar o processo penal, mas não admitindo a separação quando o tribunal competente para o processo penal seja o tribunal coletivo, e relacionando isto com a regra da conexão dos processos (sabendo, no entanto que não se trata de um caso de conexão de processo tout court) que determina a competência para o julgamento de todos os processos conexos ao tribunal de hierarquia ou espécie mais elevada (cf. art. 27.º, do CPP) , entendemos que sendo o Supremo Tribunal de Justiça competente para julgar o recurso em matéria penal, também o será para julgar o recurso quanto ao pedido de indemnização civil arbitrado.

2.2.2. Mas, o arguido termina o recurso apresentado considerando que a indemnização de 10 000 euros arbitrada é excessiva, estando assim a referir-se não só à indemnização atribuída à assistente DD em representação da ofendida (menor) BB no valor de 5000 euros, mas também à reparação da vítima CC, atribuída por força do disposto no art. 82.º-A, do CPP, e do art. 16.º, n.º 2, da Lei n.º 130/2015, de 04.09, no valor de 5 000 euros.

Também aqui o recorrente parece querer a redução do montante arbitrado (cf. conclusão O) sem que, contudo, se perceba em que medida se considera prejudicado. Ora, nos termos do art. 82.º-A, n.º 3, do CPP, esta reparação será tida em conta em ação que venha a conhecer do pedido de indemnização civil. Não constitui, porém, um valor arbitrado a título de indemnização civil, pelo que consideramos que as regras de admissibilidade do recurso interposto devem ser as que vigoram para a parte penal da decisão. Pelo que, tendo nós concluído pela admissibilidade do recurso em matéria penal, também nesta parte o recurso será admitido, apenas conhecendo da atribuição da quantia de 5 000 euros a título de reparação, nos termos do disposto no art. 82.º-A, do CPP, e do art. 16.º, n.º 2, da Lei n.º 130/2015.

3. O arguido entende que as penas aplicadas são excessivas e desproporcionais não tendo em conta, nomeadamente, a confissão parcial dos factos, o arrependimento do arguido, a não existência de antecedentes criminais em crimes desta natureza. Analisemos, pois, as penas aplicadas, sem esquecer, todavia, que sendo este Supremo Tribunal de Justiça apenas competente em matéria de direito (cfr. art. 434.º, do CPP) apenas conhecerá das questões apresentadas com base na matéria de facto provada tal como consta do acórdão recorrido.

A determinação da pena concreta, a aplicar ao arguido por cada um dos crimes praticados, tem como limite máximo o admitido pela culpa, e como limite mínimo o determinado pelas exigências de prevenção geral impostas pela comunidade de acordo com os crimes em questão; será dentro destas balizas que em função das exigências de prevenção especial de cada arguido que se determinará a medida concreta da pena.

A determinação da pena, realizada em função da culpa e das exigências de prevenção geral de integração e da prevenção especial de socialização (de harmonia com o disposto nos arts. 71.º, n.º 1 e 40.º, do CP), deve, no caso concreto, corresponder às necessidades de tutela dos bens jurídicos em causa e às exigências sociais decorrentes daquela lesão, sem esquecer que deve ser preservada a dignidade da pessoa do delinquente. Para que se possa determinar o substrato da medida concreta da pena, dever-se-á ter em conta todas as circunstâncias que depuseram a favor ou contra o arguido, nomeadamente os fatores de determinação da pena elencados no art. 71.º, n.º 2, do CP. Nesta valoração, o julgador não poderá utilizar as circunstâncias que já tenham sido utilizadas pelo legislador aquando da construção do tipo legal de crime, e que tenham sido tomadas em consideração na construção da moldura abstrata da pena (assegurando o cumprimento do princípio da proibição da dupla valoração).

Acresce que o nosso sistema de reações criminais é claramente caracterizado por uma preferência pelas penas não privativas da liberdade ─ cf. art. 70.º do CP ─ devendo o tribunal dar primazia a estas quanto se afigurem bastantes para que sejam cumpridas, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição.

O arguido vem condenado por dois crimes de abuso sexual de criança, nos termos do art. 171.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal (CP), cuja pena é de prisão de 3 a 10 anos, e por um crime de violação, nos termos do art. 164.º, n.º 1, al. a) [na redação à data da prática dos factos , e que corresponde ao atual art. 164.º, n.º 2, al. a)[3]] e 177.º, n.º 6[4], ambos do CP, cuja moldura é prisão de 4 anos a 13 anos e 4 meses. O arguido foi condenado pelos crimes de abusos sexual de criança na pena de prisão de 4 anos e 6 meses, e pelo crime de violação na pena de prisão de 6 anos e 6 meses.

Aquando da determinação das penas concretas o Tribunal a quo fundamentou a decisão do seguinte modo:

«No caso em análise, são elevadíssimas as necessidades de prevenção geral, quanto aos crimes em presença, pelas razões acima referidas e, em especial, pela frequente ocorrência de ilícitos destas naturezas e pelo aumento progressivo que se regista da prática de tais crimes, impondo-se a severidade das penas, como forma de face a esta situação.

Atendendo, aos factos referidos, ao modo de execução dos factos, às circunstâncias de cada uma das infracções, é de concluir que é elevado o grau de ilicitude dos factos e elevadas as suas consequências.

Ao nível das exigências de prevenção especial, temos que concluir que são elevadas, pois que o arguido nem sequer confessou os factos e não mostrou qualquer arrependimento convicto, até apresentando uma versão totalmente distorcida dos factos em relação a ofendida CC.» (p. 23-24 do ac. recorrido).

Ou seja, foram as elevadas exigências de prevenção geral positiva e de prevenção especial positiva, o elevado grau de ilicitude dos factos praticados que impôs as penas concretas aplicadas em respeito pelo princípio da culpa.

Na verdade, considerando a culpa como uma atitude contra o dever-ser jurídico penal, e sabendo que ficou provada a atuação dolosa (factos provados 28, 29 e 30), o cometimento dos crimes de abuso sexual contra uma criança de 12/13 anos de idade por um arguido de 20 anos[5] que ainda se devia recordar da sua própria juventude, o limite máximo que esta permite é bastante elevado, muito acima das penas concretas aplicadas. Mas as exigências de prevenção geral são igualmente elevadas mostrando à comunidade que o sistema judicial em respeito pelas normas pune estes crimes de modo a assegurar a manutenção da norma violada. E as exigências de prevenção especial são também relevantes. O arguido tem antecedentes criminais (por um crime de furto e um crime de condução de veículo sem habilitação legal) tendo sido punido com pena de multa e pena de prisão suspensa na sua execução (cf. factos provados) — esta decisão transitou em julgado a 05.03.2018, ou seja, pouco depois dos factos julgados nestes autos, demonstrando que aquele primeiro contacto com o sistema judicial em nada o demoveu no sentido de levar uma vida longe da prática de crimes (cf. idem); além disto, já tinha um processo a correr (antes de ter sido preso preventivamente em janeiro de 2020) onde estava acusado pelo crime de tráfico de estupefacientes. Com isto torna-se evidente a escalada da prática de crimes em que vinha desenvolvendo a sua vida, a determinar fortes exigências de prevenção especial. Acresce que não consta da matéria de facto provada qualquer arrependimento pela prática dos crimes pelos quais agora está a ser julgado, e segundo a motivação da matéria de facto “O arguido começou por referir não quer falar da primeira situação pois de facto «curtiram normal» durante dois/três meses e gostava dela.” (p. 10 do ac. recorrido).

Ora, sabendo que a moldura penal de ambos o crime de abuso sexual é de pena de prisão de 3 anos a 10 anos, uma pena como a aplicada de 4 anos e 6 meses, próximo do limite mínimo, mostra-se ajustada e adequada, pelo que improcede o recurso interposto.

E a mesma conclusão necessariamente resulta para o crime de violação agravado, cuja moldura é de 4 anos a 13 anos e 4 meses, tendo o arguido sido punido com a pena de 6 anos e 6 meses. Também aqui a culpa do arguido é elevada, demonstrando uma completa insensibilidade quanto à norma que impõe a todos nós a omissão de práticas como as realizadas com uso da sua superioridade física (cf. factos provados 44, 45, 47, 49, 50 e 53) e sem qualquer respeito ou sensibilidade (cf. facto provado 49) perante a vontade da menor manifestada de forma veemente e expressa (cf. factos provados 45, 46, 47, 48, 50, 52) e com dolo (cf. factos provados 53, 54, 55 e 56).

As exigências de prevenção geral mostram-se igualmente elevadas, assim como as exigências de prevenção especial. Também aqui não foi dado como provado qualquer arrependimento do arguido, e apesar de ter confessado a prática dos factos afirmou que teriam sido praticados com mútuo consentimento — “Já nos que se reporta à segunda atuação, referiu ser verdade que mantiveram relações sexuais, mas por mútuo consentimento. Foram ambos para a praia, aí tiveram relações sexuais e depois voltaram e até trocaram contactos do «instangram». Tudo correu normalmente, mas como ela quando chegou novamente ao bar não encontrou as amigas, deve ter dito aquilo para se desculpar perante a mãe.” (motivação da decisão de facto, p. 10 do ac. recorrido).

Entende-se, pois, que no âmbito da moldura em causa, a pena de 6 anos e 6 meses mostra-se proporcional e adequada, bem abaixo do limite máximo imposto pela culpa.

3.2. A determinação da medida da pena, em sede de concurso de crimes, apresenta especificidades relativamente aos critérios gerais do art. 71.º do CP.

Nos casos de concurso de crimes (e em obediência ao princípio constitucional da legalidade criminal, a pena única apenas pode ser aplicada caso estejam verificados os seus pressupostos de aplicação, isto é, caso estejamos perante uma situação de concurso efetivo de crimes), a determinação da pena única conjunta tem que obedecer (para além daqueles critérios gerais) aos critérios específicos determinados no art. 77.º, do CP. A partir dos critérios especificados é determinada a pena única conjunta, com base no princípio do cúmulo jurídico. Assim, após a determinação das penas parcelares que cabem a cada um dos crimes que integram o concurso, é construída a moldura do concurso, tendo como limite mínimo a pena parcelar mais alta atribuída aos crimes que integram o concurso, e o limite máximo a soma das penas, sem, todavia, exceder os 25 anos de pena de prisão (de harmonia com o disposto no art. 77.º, n.º 2, do CP).

A partir desta moldura, é determinada a pena conjunta, tendo por base os critérios gerais da culpa e da prevenção (de acordo com o disposto nos arts. 71.º e 40.º, ambos do CP), ao que acresce um critério específico — na determinação da pena conjunta, e segundo o estabelecido no art. 77.º, n.º 1, do CP, "são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente". Assim, a partir dos factos praticados, deve proceder se a uma análise da "gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique”. Na avaliação da personalidade, ter-se-á que verificar se dos factos praticados pelo agente decorre uma certa tendência para o crime ou se estamos apenas perante uma pluriocasionalidade, sem possibilidade de recondução a uma personalidade fundamentadora de uma "carreira" criminosa. Apenas quando se possa concluir que se revela uma tendência para o crime, quando analisados globalmente os factos, é que estamos perante um caso onde se suscita a necessidade de aplicação de um efeito agravante dentro da moldura do concurso. Para além disto, e sabendo que também influem na determinação da pena conjunta as exigências de prevenção especial, dever-se-á atender ao efeito que a pena terá sobre o delinquente e em que medida irá ou não facilitar a necessária reintegração do agente na sociedade; exigências, porém, limitadas pelas imposições derivadas de finalidades de prevenção geral de integração (ou positiva).

São estes os critérios legais estabelecidos para a determinação da pena e, em particular, para a determinação da pena única conjunta.

Nos termos do art. 77.º, n.º 2, do CP, a pena única conjunta, a aplicar a um caso de concurso crimes, é determinada a partir de uma moldura que tem como limite mínimo “a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes”, e como limite máximo “a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes”. Pelo que as penas concretas aplicadas a cada crime constituem os elementos a partir das quais se determina aquela moldura.

Nestes termos, no presente caso, a moldura do concurso de crimes a partir da qual deve ser determinada a pena concreta a aplicar tem como limite mínimo 6 anos e 6 meses de prisão (a pena concreta mais elevada) de prisão, e como limite máximo 15 anos e 6 meses (correspondente à soma das penas concretas aplicadas, nos termos do art. 77.º, n.º 2, do CP).

Tendo em conta esta moldura, logo se terá que concluir que a pretensão do arguido em ver a pena fixada em 5 anos de prisão (cf. ponto 57 da motivação) não pode proceder.

O arguido foi punido com a pena única de 10 anos de prisão, o que coincide, grosso modo, com a metade da moldura penal do concurso que se situa aproximadamente nos 10 anos de prisão. E analisados globalmente os factos, dada a sua gravidade e a persistência do arguido na prática deste comportamentos com menores  num espaço curto de tempo (entre janeiro/fevereiro e junho de 2018), não nos permitem concluir já por uma carreira criminosa, porém, articulando com os outros factos ilícitos e típicos praticados, revelam já alguma propensão para a prática de crimes, pelo que consideramos como adequada e proporcional a pena aplicada de 10 anos de prisão, improcedendo, também aqui, o recurso interposto.

4. O arguido recorre ainda dos montantes atribuídos a título de indemnização e de reparação das vítimas (cf. conclusão L).

4.1. Começa por alegar que não se provaram os factos peticionados no pedido de indemnização civil (cf. pontos 59 e 60 da motivação e conclusão M) apresentado pela assistente DD (em nome da menor BB), considerando também que a decisão não foi devidamente fundamentada (ponto 61 da motivação de recurso e conclusão N), considerando o montante total das indemnizações atribuídas (10 000 euros) exagerado (conclusão O).

4.1. Vejamos se não houve prova que nos permitisse atribuir a indemnização civil ou se há nulidade da decisão por falta de fundamentação.

Confrontando a matéria de facto provada, verifica-se que os factos provados 1 a 18 revelam o modo como os factos praticados, mas em parte alguma se referem aos alegados danos não patrimoniais alegados pela ofendida aquando do pedido de indemnização civil.

Naquele pedido a ofendida alegou:

«(...) 4.° — Pelos factos ocorridos em 12/01/2018 e 28/02/2018 que configuram a prática consumada de dois crimes de abuso sexual de crianças, previsto e punido pelo artigo 171.°, n.° 1 e n.° 2 do Código Penal, a menor BB, sofreu danos não patrimoniais, que se traduzem em ofensa contra a autodeterminação sexual, com sequelas de ordem psicológica.

5.° — A Ofendida sofreu danos morais irreparáveis, particularmente quanto às sequelas psicológicas pela situação gravosa e violenta a que esteve sujeita, enquanto vítima de atos de cariz sexual de relevo, para saciar os instintos libidinosos do Arguido, aproveitando-se este da sua inexperiência, inocência e idade da Ofendida BB.

6.° — As sequelas mencionadas têm influência na personalidade e comportamento da Ofendida BB.

7.º — A Ofendida BB é uma adolescente de 14 anos que desde os factos tem dificuldade em socializar, falar com colegas de escola, sentindo-se envergonhada e inclusive tendo receio de relações interpessoais, ainda que sejam básicas.

8.º — Durante a noite, sempre que se aproxima da sua cama para se deitar, a Ofendida BB fica receosa, ansiosa, amedrontada e nervosa, recordando-se sempre dos momentos temorosos causados pelo Arguido.

9.º — Outrossim, demora muito tempo para adormecer, receando os pesadelos noturnos que tem vindo a ter desde os factos diária e insistentemente.

10.º — Sempre que adormece tem pesadelos com os momentos assustadores que sofrendo, acabando por os reviver diariamente.

11.º — Ademais, o momento mágico de se tornar mulher, num processo natural e mágico, a Ofendida BB não vai poder vivenciar nunca na sua vida, tendo-o perdido para sempre.

12.º — Aliás, quando a Ofendida BB se tornar adulta por força da idade, temerá certamente qualquer tipo de relações sexuais e até mesmo amorosas.

13.º — Ora, pelo disposto no artigo 77.°, n.° 2 e artigo 75.°, n.° 2 do Código de Processo Penal, vem a Assistente em nome da Ofendida deduzir Pedido de Indemnização Civil.

14.° — Por isso, em conformidade com o artigo 496.° do Código Civil, e por o Arguido ter praticado os factos agindo, em todos os momentos, com vontade, livre e consciente, bem sabendo que as suas condutas são vedadas e punidas pela lei penal, bem como sabendo que a sua tua atuação teria, certamente, reflexo na esfera comportamental e personalidade da Ofendida, como ainda pelo transtorno, medo, angústia e ansiedade, introversão, tristeza e vergonha que causou à Ofendida BB, deve o Arguido indemniza-la pelos danos não patrimoniais que sofrera.

15.° — O valor da indemnização pelos danos não patrimoniais que o Arguido causou nunca deverá ser inferior a €10.000,00 (dez mil euros).»

Ora, compulsada a matéria de facto provada, em parte alguma estão dados como provados quaisquer factos relativos a danos não patrimoniais que a ofendida tenha sofrido.

E disso mesmo o Tribunal a quo teve consciência.

Na verdade, não só referiu expressamente nos “factos não provados” que “não se provaram os factos constantes do pedido de indemnização civil que acima não se encontram provados” (cf. p.9 do ac. recorrido) (pese embora como se percebe tenha considerado que os factos dados como provados já de si são suficientes para alguma conclusão quanto ao pedido de indemnização civil formulado), como aquando da fundamentação da matéria de facto referiu expressamente que “no que se reporta aos fatos atinentes ao pedido de indemnização civil que não se encontram provados, nenhuma prova foi feita nesse sentido.

O facto atinente ao pedido de indemnização civil provado foi-o com base nas regras de experiência comum” (p. 13 do ac. recorrido). E por isso consideraram provado que “as menores sofreram um choque psicológico inapropriado à sua idade”.

Ou seja, o facto provado quanto ao choque psicológico das menores decorre de uma presunção judicial tal como se encontra consagrado no art. 351.º, do Código Civil (CC). Vejamos se tal é admissível, sendo certo que, nesta apreciação, o Supremo Tribunal de Justiça não está a analisar a matéria de facto provada (sedimentada, uma vez que não houve recurso quanto a esta), mas sim a analisar se houve alguma violação de alguma regra em matéria de prova, limitando‑se a sindicar a aplicação de normas jurídicas assim refletindo somente sobre matéria de direito.

Tal como este Supremo Tribunal de Justiça afirmou:

 “Da conjugação do disposto nos artigos 682.º e 674.º n.º 3 do Código de Processo Civil com os artigos 349.º e 351.º do Código Civil, retira-se que o Supremo Tribunal de Justiça pode exercer o controlo sobre a construção ou desconstrução das presunções judiciais, utilizadas pelas instâncias, sindicando se a utilização das mesmas violou alguma norma legal, se carecem de coerência lógica ou, ainda, se falta o facto base, ou seja se o facto conhecido não está provado.”[6]. Assim se entendeu porquanto:

«O art.º 682.º, n.º 1 e 2, do Código de Processo Civil, dispõe:

Aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, o Supremo Tribunal de Justiça aplica definitivamente o regime jurídico que julgue adequado.

A decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excecional previsto no n.º 3, do art.º 674.º.

Por seu turno, o art.º 674.º, n.º 3, do mesmo diploma legal, estatui:

O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.

Resulta destas disposições legais que os tribunais da relação têm a última palavra na fixação da matéria de facto com interesse para a composição do litígio, exercendo os poderes conferidos pelo art.º 662.º, n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil, sendo certo que quanto a essa matéria não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, como determina o n.º 4 da mesma disposição legal.

O Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista, define e aplica o regime jurídico que julgue adequado aos factos fixados, podendo ter, quanto à fixação da matéria de facto, uma intervenção residual quando considere que ocorreu alguma violação dos preceitos legais que exijam determinada espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força probatória de determinado meio de prova.

Pode ainda o Supremo Tribunal de Justiça determinar que o processo volte ao tribunal recorrido, caso entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, ou que ocorrem contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizem a decisão jurídica do pleito, nos termos do n.º 3, do art.º 682.º, do Código de Processo Civil.

Como observa o Juiz Conselheiro António Abrantes Geraldes [4 — Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2016 -3.ª Edição, Almedina, pág. 367.] “Afinal, em tais situações, defrontamo-nos com verdadeiros erros de direito que, nesta perspetiva, se integram também na esfera de competência do Supremo”, acrescentando “Em concretização de cada uma destas exceções, o Supremo Tribunal de Justiça pode cassar uma decisão sustentada em determinado facto cuja prova, dependente de documento escrito, foi declarada a partir de depoimento testemunhal, de documento de valor inferior, de confissão ineficaz ou de presunção judicial”.

No caso concreto dos autos o tribunal da relação considerou que, atentos os factos provados, a 1ª instância não podia presumir, nos termos dos artigos 349.º e 351.º do Código Civil, ter sido a A., ou alguém a seu mando, a danificar o dispositivo de Sistema de Posicionamento Global (GPS).

Na definição legal as presunções são ilações que a lei ou julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido (art.º 349.º do Código Civil), sendo certo que as presunções judiciais só são admitidas nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal (art.º 351.º do mesmo diploma legal).

O Professor Manuel A. Domingues de Andrade [5 — Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora Limitada, pág. 215.] conceitualiza a figura da presunção como sendo a “prova por indução ou inferência (prova conjetural) a partir dum facto provado por outra forma – e não destinado a representar nem mesmo a indicar (como o sinal ou contramarca) o facto que constitui a matéria a provar. Chama-se presunção a própria inferência; ou ainda (menos propriamente) o facto que lhe serve de base- facto que, mais rigorosamente, se designará por base da presunção.”

O Professor Antunes Varela [6 — Manual de Processo Civil, Coimbra Editora Limitada, em coautoria com J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, pág. 484] dá-nos uma noção clara da figura ao afirmar que “ diz-se prova por presunção a que, partindo de determinado facto, chega por mera dedução lógica à demonstração da realidade de um outro facto”, clarificando ainda mais “A presunção consiste na dedução, na inferência, no raciocínio lógico por meio do qual se parte de um facto certo provado, ou conhecido, e se chega a um facto desconhecido.”

A possibilidade de o Supremo Tribunal de Justiça poder controlar as presunções judiciais utilizadas pelas instâncias tem-se revestido de alguma controvérsia, como se faz eco na doutrina e é demonstrado pela jurisprudência.

O Professor Miguel Teixeira de Sousa [7 — Estudos sobre o novo processo civil, Lex, pág.442.] refere que “o erro sobre a fixação dos factos materiais da causa também pode incidir sobre as presunções judiciais baseadas nos factos apurados nas instâncias, isto é, sobre as ilações extraídas desses factos com fundamento em regras de experiência”, acrescentando que “a incompetência do Supremo Tribunal de Justiça relativamente à matéria de facto implica, com as restrições constantes no art.º 722.º, n.º 2, 2.ª parte, (atual art.º 674.º, n.º 3), que esse órgão não pode controlar a escolha e a decisão sobre essa matéria realizadas nas instâncias. Mas daí nada resulta quanto ao controlo pelo Supremo das presunções judiciais utilizadas pelas instâncias com base nos factos considerados adquiridos, porque a inadmissibilidade de alterar a matéria de facto nada pode significar quanto ao controlo sobre essas presunções. Quer dizer: quaisquer que sejam as limitações quanto à alteração pelo Supremo da matéria de facto, essas restrições nada valem para o controlo das presunções judiciais, porque este toma como base a matéria apurada nas instâncias e não envolve qualquer modificação desta matéria.”

Esta tomada de posição do referido Professor leva-o a rejeitar a corrente jurisprudencial que recusa ao Supremo Tribunal de Justiça qualquer possibilidade de controlo sobre as presunções judiciais utilizadas pelas instâncias, citando, entre outros, um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 17/11/1994, com anotação discordante do Professor Vaz Serra, BMJ 441, 284.

Ainda na linha crítica ao radicalismo de tal posição, sustenta o Professor Miguel Teixeira de Sousa que no mínimo “ainda que se considerasse que as presunções judiciais deveriam ser tratadas, quanto à possibilidade do seu controlo pelo Supremo, como a generalidade da matéria de facto, haveria que concluir que, pelo menos, lhes seriam aplicáveis os poderes gerais de controlo do Supremo sobre a matéria de facto”, sublinhando que é neste sentido que vai a corrente maioritária da jurisprudência que admite que o Supremo Tribunal de Justiça possa verificar se o Tribunal da Relação usou adequadamente ou deixou indevidamente de usar esses poderes de controlo sobre a coerência da presunção judicial com os factos apurados (neste sentido, entre outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/10/1994, CJ/S-94/3, pág. 277).

São consideradas situações que exigem intervenção do Supremo Tribunal de Justiça quando a fixação de um facto através de uma presunção judicial viola a exigência de um certo meio de prova (por exemplo quando a lei exige que determinado facto só possa ser provado por documento), ou quando ocorra uma ofensa da força probatória de um desses meios (quando a presunção contraria um facto que se encontra plenamente provado).

Ainda seria de admitir o controlo sobre presunções judiciais baseadas em regras da experiência conhecidas da generalidade da opinião pública, que podem ser consideradas factos notórios, podendo o Supremo Tribunal de Justiça usar da faculdade prevista no art.º 412.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

A jurisprudência mais recente alinha no sentido desta orientação que admite um controle pelo Supremo Tribunal de Justiça sobre a construção ou desconstrução das presunções judiciais, podendo verificar se a utilização das mesmas pelo Tribunal da Relação violou alguma norma legal, se carecem de coerência lógica ou, ainda, se falta o facto base, ou seja se o facto conhecido não está provado.

Vejamos alguma dessa jurisprudência, mais emblemática, da secção social, do Supremo Tribunal de Justiça:

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03-04-2013 - Recurso n.º 241/08.2TTLSB.L1.S1 - 4.ª Secção, relatado pelo Juiz Conselheiro Gonçalves Rocha:

- As presunções são ilações que a lei ou o julgador tira dum facto conhecido para firmar um facto desconhecido, conforme estabelece o artigo 349.º do Código Civil.

- Tratando-se dum meio probatório que é admitido para prova de factos suscetíveis de serem provados por prova testemunhal, conforme determina o artigo 351.º do Código Civil, está por isso vedado ao Supremo Tribunal de Justiça sindicar o uso deste meio probatório pelas instâncias, visto a sua competência, afora as situações de controlo de prova tabelada, se restringir a aplicar definitivamente o regime jurídico que julgue adequado aos factos fixados pelas instâncias, conforme resulta dos artigos 722.º, n.º 3, e 729.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

- No entanto, já poderá o Supremo Tribunal de Justiça aferir se as presunções extraídas pelas instâncias violam os artigos 349.º e 351.º do Código Civil, por se tratar duma questão de direito, podendo assim sindicar se as ilações foram inferidas de forma válida, designadamente se foram retiradas dum facto desconhecido por não ter sido dado como provado e bem assim se contrariam ou conflituam com a restante matéria de facto que tenha sido dada como provada, após ter sido submetida ao crivo probatório.

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 09-01-2008 - Recurso n.º 2902/07 - 4.ª Secção, relatado pelo Juiz Conselheiro Sousa Grandão:

- A Relação, conhecendo de facto, pode extrair dos factos materiais provados as ilações que deles sejam decorrência lógica e pode sindicar as presunções judiciais tiradas pela primeira instância no que respeita a saber se elas alteram ou não a factualidade apurada e, bem assim, se elas constituem, ou não, decorrência lógica de uma concreta factualidade apurada, atividade esta que não é, por norma, sindicável pelo STJ.

- Ao STJ cabe apenas indagar se é, ou não, admissível a utilização das referidas presunções, face ao estatuído no art.º 351.º do Código Civil, ou seja, apenas lhe cabe determinar se certo facto pode ser tido como provado com base em mera ilação, ou se, na espécie, se exige um grau superior de segurança na prova (art.º 722.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).

- Também se a ilação extraída contraria ou entra em colisão com um facto que foi submetido a concreta discussão probatória e que o tribunal houve como não provado, o STJ pode intervir corretivamente nos termos do art.º 729.º, n.º 3 do Código de Processo Civil, bastando-se a correção com a simples eliminação da ilação extraída.

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26-01-2006 - Recurso n.º 3228/05 - 4.ª Secção, relatado pelo Juiz Conselheiro Sousa Peixoto:

- É lícito às instâncias, lançando mão do mecanismo das presunções judiciais, extrair ilações da factualidade que foi dada como provada.

- Tal mecanismo inspira-se nas máximas da experiência, nos juízos correntes de probabilidade, nos princípios da lógica e nos próprios dados da intuição humana e traduz-se num juízo de valor formulado sobre os factos provados que se integra na matéria de facto.

- Relativamente às ilações assim extraídas, o Supremo só pode verificar se elas exorbitam o âmbito dos factos provados ou se deturpam o sentido normal dos factos de que foram retiradas, isto é, averiguar se foram extraídas dentro dos limites contidos nos artigos 349.º e 351.º do CC.

- Se aqueles limites não tiverem sido respeitados, estaremos perante um caso de violação da lei e, então, porque se trata já de uma questão de direito, caberá ao Supremo intervir, controlando e decidindo em ordem a fazer respeitar a conteúdo fáctico que foi dado como provado.

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10-11-2010 - Recurso n.º 3411/06.4TTLSB.S1- 4.ª Secção, relatado pelo Juiz Conselheiro Sousa Grandão:

- Porque as presunções judiciais se inserem no julgamento da matéria de facto e constituem um meio probatório da livre apreciação do julgador, está vedado ao Supremo proceder à sua avocação, visto que a sua competência funcional, afora as situações de controlo da prova tabelada, se restringe à apreciação definitiva do regime jurídico, que julgue adequado, aos factos materiais fixados pelas instâncias e, pela mesma razão, não pode o Supremo sindicar o uso, ou não uso, pela Relação, desse meio probatório.

- Por ser uma questão de direito, o Supremo já pode intervir para averiguar se as presunções extraídas pelas instâncias violam os artigos 349.º e 351.º do Código Civil, ou seja, se foram inferidas de factos desconhecidos – designadamente por não terem sido provados – ou irrelevantes para o efeito – designadamente porque o facto presumido exige um grau superior de segurança na prova – e, bem assim, se a ilação extraída conflitua com factualidade provada ou contraria outra que, submetida expressamente ao crivo probatório, tenha sido dada como não provada.

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07.07.2016 - Proc. n.º 487/14.4TTPRT.P1.S1 (Revista – 4.ª Secção), relatado pela Juíza Conselheira Ana Luísa Geraldes:

- Ao Supremo Tribunal de Justiça, em regra, apenas está cometida a reapreciação de questões de direito (art. 682.º, n.º 1, do NCPC), assim se distinguindo das instâncias encarregadas também da delimitação da matéria de facto e da modificabilidade da decisão sobre tal matéria.

- A sua intervenção na decisão da matéria de facto está limitada aos casos previstos nos arts. 674.º, n.º 3 e 682.º, n.º 3, do CPC, o que exclui a possibilidade de interferir no juízo da Relação sustentado na reapreciação de meios de prova sujeitos ao princípio da livre apreciação, como são os depoimentos testemunhais e documentos sem força probatória plena ou o uso de presunções judiciais.

- Não está, porém, vedado legalmente ao Supremo verificar se o uso de presunções judiciais pelo Tribunal da Relação ofende qualquer norma legal, se padece de alguma ilogicidade ou se parte de factos não provados.

Também na jurisdição cível a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem seguido esta, mais recente, orientação.

Vejamos, a título de exemplo, o acórdão de 10/01/2017, Revista 841/12.6.TBMGR.C1.S1, relatado pelo Juiz Conselheiro António Joaquim Piçarra:

- Na fixação da matéria factual relevante para a solução do litígio a Relação tem a derradeira palavra, através do exercício dos poderes que lhe são conferidos pelos n.ºs 1 e 2 do art.º 662.º do Cód. de Proc. Civil, acrescendo que da decisão proferida nesse particular pela Relação não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (art.º 662º, n.º 4, do Cód. Proc. Civil).

- É residual a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça no apuramento da factualidade relevante da causa, restringindo-se, afinal, a fiscalizar a observância das regras de direito probatório material, a determinar a ampliação da matéria de facto ou o suprimento de contradições sobre a mesma existentes.

- O uso de presunções não se reconduz a um meio de prova próprio, consistindo antes, como se alcança do art.º 349º do Cód. Civil, em ilações que o julgador extrai a partir de factos conhecidos (factos de base) para dar como provados factos desconhecidos (factos presumidos).

- A presunção traduz-se e concretiza-se num juízo de indução ou de inferência extraído do facto de base ou instrumental para o facto essencial presumido, à luz das regras da experiência, sendo admitida nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal (art.º 351º do Cód. Civil).

- Face à competência alargada da Relação em sede da impugnação da decisão de facto (art.º 662º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil), é lícito à 2ª instância, com base na prova produzida constante dos autos, reequacionar a avaliação probatória feita pela 1ª instância, nomeadamente no domínio das presunções judiciais, nos termos do n.º 4 do art.º 607º, aplicável por via do art.º 663º, n.º 2, ambos do Cód. Proc. Civil.

- Todavia, em sede de recurso de revista, a sindicância sobre a decisão de facto das instâncias em matéria de presunções judiciais é muito circunscrita, admitindo-se, ainda que com alguma controvérsia, que o Supremo Tribunal de Justiça apenas poderá sindicar o uso de tais presunções pela Relação se este uso ofender qualquer norma legal, se padecer de evidente ilogicidade ou se partir de factos não provados.»[7]

Sabendo que os danos não patrimoniais poderiam ter sido provados com recurso a qualquer meio de prova, não estando, pois, vedada a possibilidade de utilização de qualquer meio de prova quanto aos factos que possam demonstrar a existência de danos não patrimoniais (os únicos alegados no pedido de indemnização civil) da ofendida, é admissível a presunção judicial que o Tribunal a quo fez. Na verdade, a partir dos factos provados que relatam as circunstâncias e o modo como a conduta do arguido se desenvolveu, ou seja, tomando como referência estes factos-base, a partir das regras da experiência comum[8] o facto indeterminado — a existência de danos não patrimoniais — torna-se claro (cf. art. 349.º, do CC), e a presunção não padece de qualquer ilogicidade[9]. Além disto, este mesmo facto indeterminado — danos não patrimoniais — decorre do facto provado de que as “menores sofreram um choque psicológico”.

Assim sendo, e sabendo que nos termos do art. 674.º, n.º 3, do CPC (ex vi art. 4.º, do CPP) “o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”, não se encontra, na decisão recorrida, qualquer violação das regras de direito probatório. Na verdade, [um dos princípios assentes em termos probatórios é o de que é lícito às instâncias retirarem ilações lógicas da materialidade assente, podendo esclarecê-la e desenvolvê-la[10], e “o erro sobre a substância de um tal juízo presuntivo só será sindicável pelo Tribunal de Revista em caso de manifesto contra senso e/ou desrazoabilidade[11]. Ora, não se afigurando irrazoável, ou ilógico, que se considere que dos factos provados e praticados pelo arguido advieram sequelas psicológicas para a ofendida, necessariamente terá que improceder, nesta parte, o recurso.

E também não se pode concordar com a existência de qualquer omissão de fundamentação. Ainda que de forma bastante sintética o Tribunal a quo fundamentou a atribuição da indemnização civil nos seguintes termos:

«Estabelece o artigo 129º, do Código Penal, que a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil. Para se considerar que o lesado tem direito a indemnização por perdas e danos que sofreu terá que previamente verificar-se se o demandado civil incorreu em responsabilidade pela prática de facto ilícito.

A norma que define este tipo de responsabilidade é a do artigo 483º, do Código Civil, que no n.º 1 estabelece que “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.”

A doutrina e a jurisprudência estabelecem tradicionalmente cinco pressupostos para que esteja preenchido no caso concreto este tipo de responsabilidade, e que consistem em: 1- que exista uma facto voluntário por parte do agente; 2- que o facto praticado seja ilícito, ou seja, que haja violação de um direito subjectivo ou de uma lei que proteja interesses privados alheios; 3- que haja um nexo de imputação do facto ao agente, isto é, que tenha actuado com culpa; 4- que depois da violação do direito subjectivo ou a da lei sobrevenha um dano para o lesado; 5- que exista um nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pela vítima (Cfr. Prof. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado, Volume I, 4ª edição, página 471).

No que se refere aos danos não patrimoniais, invoca a demandante que sofreu danos morais irreparáveis, particularmente quanto às sequelas psicológicas a que esteve sujeita pela situação gravosa e violenta, enquanto vítima de actos de cariz sexual, entre outros.

Ora, tendo em atenção o que fica provado e recorrendo a critérios de equidade, considera este Tribunal justo e equitativo atribuir a quantia de €5.000,00 (cinco mil euros) a título de danos não patrimoniais sofridos pela vítima.

Estabelece o artigo 805º, n.º 1, do Código Civil que o devedor só fica constituído em mora após a sua interpelação para cumprir realizada judicialmente ou extrajudicialmente.

Em conformidade, a demandante civil terá igualmente direito a exigir ao responsável pelos danos, ou seja, o arguido, os juros de mora contados desde a citação, calculados à taxa que vigorar para os juros civis, até ao integral pagamento da indemnização em causa.» (p. 25-26 do ac. recorrido).

E a fundamentação apresentada, juntamente com uma análise dos factos provados, e dada a evidência da efetiva lesão de um direito à autodeterminação sexual de uma menor de 14 anos, tanto mais que no segundo período os factos ocorreram depois da insistência do arguido (cf. facto provado 19), permite concluir que estão verificados os pressupostos da responsabilidade civil por danos não patrimoniais.

Nos termos do art. 496.º, n.º 1, do Código Civil “Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do Direito”, devendo a indemnização fixar-se de acordo com critérios de equidade (n.º 3, 1.ª parte). É de notar que a indemnização por danos não patrimoniais não é uma indemnização no sentido próprio por não ser equivalente do dano um qualquer valor que reponha as coisas no status quo ante. Trata-se, tão somente, de uma satisfação ou compensação do dano sofrido que, em bom rigor, não é avaliável em dinheiro. Como expõe Antunes Varela, a indemnização reveste, no caso dos danos não patrimoniais, uma natureza acentuadamente mista; por um lado, visa reparar, de algum modo, os danos sofridos pelo lesado; por outro, não lhe é estranha a ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico e com meios próprios do direito privado, a conduta do agente[12]. Realçando a componente punitiva da compensação por danos não patrimoniais, pronunciou-se Menezes Cordeiro, referindo que “a cominação de uma obrigação de indemnizar danos morais representa sempre um sofrimento para o obrigado; nessa medida, a indemnização por danos morais reveste uma certa injunção punitiva, à semelhança, aliás, de qualquer indemnização, que cumpre aplaudir”[13].

Além disto, tem também uma finalidade de atenuar, minorar e de algum modo compensar os desgostos e sofrimentos suportados e a suportar pelo lesado através de uma quantia em dinheiro que, permitindo o acesso a bens, vantagens e utilidades, seja capaz de permitir ao lesado a satisfação das mais variadas necessidades e de, assim, lhe proporcionar um acréscimo de bem-estar que contrabalance os males sofridos, as dores e angústias suportadas e a suportar.

Ora, atentos os factos praticados pelo arguido (e constantes da matéria de facto provada) contra a ofendida menor de 12/13 anos são suscetíveis de provocar um choque psicológico que a ofendida sofreu, tal como decorre do facto provado. E perante este, a indemnização atribuída de 5000 euros não se mostra de moldo algum excessiva ou desproporcionada.

Pelo que improcede, também aqui, o recurso interposto.

4.2. Quanto à reparação atribuída por fora do disposto no art. 82.º-A, do CPP; e art. 16.º, n.º 1, da Lei n.º 130/2015, de 04.09, alega o recorrente que não concorda com os montantes atribuídos (ponto 59 da motivação e conclusão L) e considera que o Tribunal, pese embora invocando os dispositivos referidos, fê-lo “sem, contudo, fundamentar em que moldes e pressupostos o fez” (ponto 63 da motivação).

Ora, comecemos por salientar que o Tribunal a quo foi explícito quanto aos motivos que o levaram a determinar que o arguido fosse condenado ao pagamento de 5000 euros a título de reparação. Começou por considerar que a menor ofendida se integrava no conceito de vítima especialmente vulnerável, e constatando que não foi interposto um pedido de indemnização civil, pese embora não tenha sido provado qualquer dano não patrimonial (embora tenha sido considerado provado o choque psicológico, inapropriado à sua idade, que sofreu — cf. factos provados), atentos os factos provados praticados pelo arguido estes lesaram a ofendida e constituindo um dano que deve ser indemnizado arbitrou a reparação de 5000 euros.

Foi a seguinte a fundamentação do acórdão recorrido:

«Há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal em relação a vítimas especialmente vulneráveis, excepto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser, nos termos do disposto no artigo 16.º, n.º 2, da Lei 130/2015, de 4 de Setembro.

Da disposição normativa conjugada do art. 67º-A nº 1 al. b) e nº 3, e art. 1º nº 1 als. l) e j), todos do Código de Processo Penal, resulta, em face da matéria fáctica apurada, que a ofendida integra o conceito positivado de vítima especialmente vulnerável pois lê-se no art. 16º nº 2 da lei nº 130/2015 de 4 de Setembro que há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal em relação a vítimas especialmente vulneráveis, excepto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser.

Na verdade, o artigo 67.º-A do CPP 1 - Considera-se: (...) b) 'Vítima especialmente vulnerável', a vítima cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua idade, do seu estado de saúde ou de deficiência, bem como do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social; (...) 3 - As vítimas de criminalidade violenta e de criminalidade especialmente violenta são sempre consideradas vítimas especialmente vulneráveis para efeitos do disposto na alínea b) do n.º 1. E: Artigo 1.º Definições legais Para efeitos do disposto no presente Código considera-se: (...) j) 'Criminalidade violenta' as condutas que dolosamente se dirigirem contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou a autoridade pública e forem puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 5 anos; l) 'Criminalidade especialmente violenta' as condutas previstas na alínea anterior puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 8 anos”.

É exactamente este o caso dos autos.

No mencionado art. 82º-A nº 1 do CPP lê-se que não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado (...) o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de protecção da vítima o imponham. O nº 3 do mesmo artigo estatui a quantia arbitrada a título de reparação é tida em conta em acção que venha a conhecer de pedido civil de indemnização.

No caso dos autos não foi deduzido pedido de indemnização pela ofendida CC (ou pela mãe em sua representação) e, na sequência do supra exposto, haverá lugar a condenação do arguido. Não houve oposição expressa de à fixação de indemnização a seu favor.

Não se apurou a existência de qualquer dano patrimonial sofrido pela ofendida.

Sobre a reparação da vítima em casos especiais, preceitua, por sua vez, o art. 82º-A do CPP, no nº 1, que “Não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72º e 77º, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de protecção da vítima o imponham” e, no nº3, que “A quantia arbitrada a título de reparação é tida em conta em acção que venha a conhecer de pedido civil de indemnização”.

Deste modo, face à condenação do arguido pelo crime de violação, cuja conduta ilícita afectou definitivamente a personalidade da ofendida, causando-lhe danos não patrimoniais, tais danos são merecedores da tutela do direito e devem ser indemnizados, segundo critérios de equidade, nos termos previstos nos arts. 496º/1 e /3 e 494º do Código Civil, sendo que não se apurou oposição da vítima, pelo que se arbitra à ofendida, com recurso à equidade e oficiosamente, a indemnização de €5000,00 (cinco mil euros) a pagar pelo arguido.» (p. 27-28 do ac. recorrido).

Também aqui se mostra adequada, pelo menos, a indemnização arbitrada. Na verdade, dada a oposição firme da ofendida e a persistência, com uso da sua superioridade física, do arguido, a violência psicológica dos atos praticados contra a ofendida é por demais evidente, pelo que a reparação do dano não patrimonial decorrente do sofrimento resultante do choque psicológico (inapropriado para a idade — cf. factos provados) através do pagamento de uma quantia de 5000 euros não merece qualquer censura, a não ser pelo seu valor diminuto.

Improcede, pois, o recurso do arguido.

III

Conclusão

Termos em que, pelo exposto, acordam os Juízes da secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA, mantendo integralmente o acórdão recorrido.

Custas com 8 UC.

Supremo Tribunal de Justiça, 7 de outubro de 2021          


Os Juízes Conselheiros,


Helena Moniz(Relatora)

Eduardo Loureiro

___________________________________________________

[1] «A competência para conhecer do recurso interposto de acórdão do tribunal do júri ou do tribunal coletivo que, em situação de concurso de crimes, tenha aplicado uma pena conjunta superior a cinco anos de prisão, visando apenas o reexame da matéria de direito, pertence ao Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 432.º, n.º 1, alínea c), e n.º 2, do CPP, competindo-lhe também, no âmbito do mesmo recurso, apreciar as questões relativas às penas parcelares englobadas naquela pena, superiores, iguais ou inferiores àquela medida, se impugnadas.» — DR, 1.ª série, de 23.06.2017.

[2] Regra idêntica ao disposto no art. 629.º, n.º 1, do CPC; é certo que nos termos do art. 678.º, do CPC, é admissível o recurso per saltum para o Supremo Tribunal de Justiça, todavia dependente da verificação cumulativa de diversos requisitos e, entre eles, o de que o valor da causa tenha que ser superior à alçada da Relação; ora, aferindo este valor pelo pedido (que foi de 10 000 euros) e sendo a alçada da Relação de 30 000 euros, então, desde logo um dos requisitos não está verificado. Ou seja, mesmo que o pedido de indemnização civil não estivesse enxertado no processo penal (por força do princípio da adesão — cf. art. 71.º, do CPP) não era admissível o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.       

[3] Embora isto não seja claro a partir do dispositivo do acórdão recorrido, é afirmado de forma clara quando se procede ao “enquadramento jurídico-penal” dos factos: “É imputado ao arguido a prática de

- dois crimes de abuso sexual de crianças, previstos e punidos pelo artigo 171.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal na pessoa de BB

- um crime de violação agravado, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 164.º, n.º 1, alínea a) (à data da pratica dos factos e da dedução da acusação, agora, 164º, n.º2, alínea a) do CP) e 177.º, n.º 6, ambos do Código Penal na pessoa de CC” (p. 14 do ac. recorrido).

E mais tarde é ainda referido: “Do crime de Violação previsto e punido pelo artigo 164º, n.º 1, alíneas a) do Código penal (à data da prática dos factos).

Refira-se desde já que este artigo foi alterado pela lei n.º 101/2019, de 06 de setembro, por forma a lhe dar nova redação ainda que apenas tenha sido alterado os números do artigo, de modo a passar para o nº 2 a redação do número 1 e para o nº1 a redação do numero 2, pois considerou assim o legislador iniciar pelo tipo menos gravoso do crime no n.º 1 e mais gravoso no n.º 2, aliás como é já previsto por quase todo o código penal.

Assim, sendo a moldura penal exatamente a mesma, ainda que tenha a previsão penal trocado de números, opta-se por aplicar a lei penal à data da prática dos factos, aliás como vem acusado.” (p. 18 do ac. recorrido). Os factos referentes aos crimes de abuso sexual de criança ocorreram a 12.01.2018 (facto provado 8 e ss) e a 28.02.2018 (facto provado 20 e ss).

[4] À altura dos factos (a 10.06.2018 – cf. facto provado 31 e ss) já se previa neste dispositivo uma agravação dos limites mínimos e máximos no caso de crimes previstos no art. 164.º, e quando a vítima fosse menor de 16 anos.

[5] Ao arguido não foi aplicado o regime especial de jovens adultos (previsto no Decreto-Lei n.º 401/82, de 23.09) porquanto:

Resulta da factualidade provada que, o arguido, à data da prática dos factos, tinha menos de 21 anos de idade, pelo que, lhe é passível de ser aplicável o regime penal especial para jovens, constantes do D.L. nº 401/82, de 23 de setembro, nos termos do seu artº 1º, nºs 1 e 2.

                Considerando o facto de possuir antecedentes criminais, ter praticado neste processo o mesmo tipo de crime por três ocasiões seguidas, não tem o Tribunal razões sérias para crer que da atenuação especial da pena de prisão resultam vantagens para a reinserção social do arguido, pelo que não aplicará este regime.” (p. 23 do ac. recorrido).

Tal decisão não foi objeto do recurso interposto e agora em análise.

[6] Ac. de 18.05.2017, proc. n.º 20/14.8T8AVR.P1.S1, Relator: Cons. Chambel Mourisco, in www.dgsi.pt.

[7] Idem.Na mesma linha da jurisprudência citada, cf. acórdão do STJ, de 24.11.2020 (proc. n.º 2350/17.8T8PRT.P1.S1, Relatora: Cons. Ana Paula Boularot)

[8] E tal como foi referido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 24.11.2020, supra citado “As presunções judiciais, não constituem meios de prova, proprio sensu, mas antes operações «de elaboração das provas alcançadas por outros meios», no dizer de Antunes Varela, in RLJ, Ano 123,58, ou «meios lógicos ou mentais ou operações firmadas nas regras da experiência».” (sublinhado nosso). (in www.dgsi.pt).

[9] Também neste sentido cf. ac. do STJ, de 11.04.2019, proc. n.º 8531/14.9T8LSB.L1.S1, Relatora: Cons. Rosa Tching, in www.dgsi.pt — “O erro sobre a substância do juízo presuntivo formado, em sede probatória, pelo Tribunal da Relação com apelo às regras da experiência, não se afere em função de questões de natureza jurídica, mas sim em função dos factos materiais que as suportam, pelo que, neste contexto, o mesmo só será sindicável pelo tribunal de revista em caso de manifesta ilogicidade.”

[10] Ac. do STJ, de 24.11.2020, supra citado.

[11] Idem.

[12] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 10.ª ed., Coimbra: Almedina, 2000, p. 608.

[13] Tratado de Direito Civil, vol. VIII (Direito das Obrigações), Coimbra: Almedina, 2014, p. 515.