Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
44/18.6YHLSB.L1.S2
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO (CÍVEL)
Relator: FERREIRA LOPES
Descritores: PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
INTERNET
DEVER DE VIGILÂNCIA
INTERMEDIÁRIO
PROPRIEDADE INDUSTRIAL
MARCAS
LOGÓTIPO
TRANSPOSIÇÃO DE DIRETIVA
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
Data do Acordão: 12/10/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário : I - O regime legal do comércio electrónico consta do DL nº 7/2004 de 07.01, que transpôs para o direito interno a Directiva 2000/31/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 08.06;

II – Do mesmo resulta que devem ser qualificados como “prestadores intermediários de serviços em rede”, as pessoas, singulares ou coletivas, que intervindo de forma autónoma, permanente e organizada, criam e disponibilizam os meios técnicos para que um determinado conteúdo circule na internet.

III – O art. 12º do citado DL 7/2004, ao isentá-los do “dever de vigilância”, consagra a regra da irresponsabilidade dos “servidores intermediários de serviços em rede” pelo conteúdo das informações colocadas por terceiros acessíveis a partir de espaço por eles disponibilizado, salvo se de algum modo participaram, ou tiveram intervenção na autoria dos conteúdos.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



Modelo Continente Hipermercados, S.A., instaurou acção declarativa com processo comum no Tribunal da Propriedade Intelectual, contra Eviano Digital, SL, sociedade de direito espanhol, inscrita no Registo Mercantil de Barcelona, alegando, em resumo, que a Ré faz uso no seu sítio na internet dos sinais Continente de que a Autora é titular, sem a sua autorização, o que lhe causa prejuízos. Em consequência, pede a condenação da Ré a:

1. Abster-se de anunciar ou publicitar qualquer produto ou serviço, designadamente descontos e outras vantagens económicas, bem como utilizar por qualquer meio e para qualquer finalidade os sinais distintivos Continente e outros semelhantes;

2. Abster-se de emitir quaisquer tipos de vales de descontos ou outros documentos semelhantes, para serem utilizados nos estabelecimentos comerciais da Autora;

3. A pagar à Autora uma indemnização por perdas e danos, em valor a fixar pelo tribunal, com recurso à equidade, nos termos previstos no nº 5 do art. 338 do C.P.I,, que compreenda, designadamente as despesas em que a Autora incorreu para a defesa dos seus direitos de propriedade industrial;

4. A pagar uma sanção pecuniária compulsória, a dividir em partes iguais entre a Autora e o Estado, no valor diário de €500,00, posterior ao trânsito em julgado da decisão da acção, em que a Ré não cumprir algumas das injunções que forem decretadas.


A acção foi contestada.

Tramitados os autos, foi proferida sentença que julgou a acção procedente, condenando a Ré Eviano Digital SL nos termos seguintes:

-  Abster-se de anunciar ou publicitar qualquer produto ou serviço, designadamente descontos e outras vantagens económicas, bem como utilizar por qualquer meio e para qualquer finalidade os sinais distintivos Continente e outros semelhantes;

- Abster-se de emitir quaisquer tipos de vales de descontos ou outros documentos semelhantes, para serem utilizados nos estabelecimentos comerciais da Autora;

- Pagar à Autora uma indemnização no montante de €12.000,00 (doze mil euros);

 Fixo uma sanção pecuniária compulsória no montante diário de €500.00 (quinhentos euros) por cada dia, posterior ao trânsito em julgado desta sentença em que a Ré não cumprir o decidido em a) e b).


A Ré interpôs recurso de apelação da sentença, mas sem sucesso pois que o Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 11.02.2020, confirmou inteiramente a sentença.


Ainda inconformada, a Ré interpôs revista excepcional, na qual formula as seguintes conclusões úteis:

5. Apesar da situação de dupla conforme, entende a Recorrente que os requisitos para interposição de recurso de revista excecional, previstos nos artigos 672.º, n.º 1, alíneas a) e b) do Código de Processo Civil, estão preenchidos no presente caso;

6. Pelo que vem requerer a apreciação das questões referentes à (i) interpretação do conceito de prestador de intermediário de serviços em rede, no sentido de saber se se exige a prestação exclusiva dos referidos serviços e (ii) do artigo 16.º do Decreto-Lei n.º 7/2004, no sentido de saber se o mesmo exige a prestação exclusiva dos serviços de armazenamento em servidor;

7. O conceito de prestador intermediário de serviços em rede vem definido no artigo 4.º, n.º 5 do Decreto-Lei n.º 7/2004 e o seu regime de responsabilidade e eventual isenção consta dos artigos 9.º e seguintes do mesmo diploma normativo;

8. Da conjugação dos referidos artigos resulta que o conceito de prestador intermediário de serviços em rede é construído pelo legislador de forma aberta, entendendo a doutrina que tal se justifica à luz da versatilidade do prestador intermediário de serviços em rede e da multiplicidade de tarefas que o mesmo pode desempenhar;

9. A jurisprudência não se tem pronunciado acerca do conceito em análise, pelo que parece que a única decisão judicial a ter em referência em casos futuros corresponde ao acórdão proferido pelo douto Tribunal da Relação de Lisboa, de que ora se recorre;

10. Do referido acórdão resulta um conceito de prestador intermediário de serviços em rede restritivo e incongruente com o conceito consagrado na lei e defendido pela doutrina;

11. Face à contrariedade entre as posições da jurisprudência, por um lado, e do legislador e da doutrina, por outro, entende a Recorrente que as questões em causa permanecem por esclarecer e, enquanto assim permanecerem, causam incerteza e insegurança jurídica não só junto da comunidade jurídica, mas também de todos os interessados na prática de serviços em rede;

12. Paralelamente, entende a Recorrente, salvo melhor opinião, que mal andou o douto Tribunal a quo ao concluir pela exclusão do regime de prestador intermediário de serviços em rede, constante do artigo 16.º do Decreto-Lei n.º7/2004, com fundamento no teor do objeto social da Recorrente e possibilidade e de a mesma praticar atividades que extravasam o mero armazenamento de dados;

13. Ao concluir da forma exposta, considera a Recorrente que o douto Tribunal a quo incorreu em erro de interpretação dos artigos 4.º,n.º5 e16.º, ambos doDecreto-Lei n.º 7/2004, interpretando restritivamente o conceito de prestador intermediário de serviços em rede;

14. O conceito de prestador intermediário de serviços em rede deve ser analisado em função do conceito de prestador de serviços da sociedade de informação, do qual faz parte e que vem definido no artigo 2.º, alínea b) da Diretiva 2000/31/CE, mas não encontra expressão no Decreto-Lei n.º 7/2004;

15. A definição de prestador intermediário de serviços em rede, no Decreto-Lei n.º7/2004, sem que o mesmo defina prestador de serviços da sociedade de informação, deve-se à tentativa de facilitar o processo de imputação de responsabilidade, de acordo com a doutrina;

16. Da definição de prestador intermediário de serviços em rede, prevista no artigo 4.º, n.º 5 do Decreto-Lei n.º 7/2004, não consta qualquer exigência de exercício exclusivo de serviços em rede ou de constituição da pessoa coletiva para esse efeito;

17. De acordo com o que vem sendo entendido pela doutrina, os artigos 14.º, 15.º e 16.º do Decreto-Lei n.º 7/2004 limitam-seapenas a facilitar a imputação, ou não, de responsabilidade ao prestador intermediário de serviços em rede em face da divulgação de conteúdo ilícito, não se destinando a categorizar, de forma estanque, as atividades desenvolvidas pelo mesmo;

18. A realização de várias atividades pelo prestador intermediário de serviços em rede, correspondam todas, ou não, a serviços em rede, é admitida pela ICP – Autoridade Nacional de Comunicações (ICP – ANAOM), enquanto entidade de supervisão central;

19. Mais, o exercício de outras atividades, para além dos serviços em rede, é indiretamente admitido pela Diretiva 98/34/CE, que elenca determinadas atividades excluídas dos prestadores de serviços da sociedade de informação e, consequentemente, dos prestadores intermediários de serviços em rede;

20. O exercício em simultâneo de várias atividades, correspondentes todas a serviços em rede ou não, pelo prestador intermediário de serviços em rede é uma realidade da nossa sociedade, admitida pela doutrina, pelo que a não qualificação da Recorrente como prestadora intermediária de serviços em rede, no presente caso, é injustificada;

21. De acordo com o artigo 9.º, n.º 1 do Código Civil, a interpretação da lei não se deve limitar à sua letra, devendo antes ter também em consideração a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições do tempo em que é aplicada;

22. Assim, tendo ficado demonstrado que, na atualidade, o prestador intermediário de serviços em rede é suscetível de praticar mais atividades para além dos simples serviços em rede, em razão da liberdade negocial, bem como que as disposições legais ao mesmo aplicável não visam uma restrição da sua qualificação, entende a Recorrente que o artigo 4.º, n.º 5 do Decreto-Lei n.º 7/2004 deve ser interpretado no sentido de o prestador intermediário de serviços em rede não estar limitado ao exercício de serviços em rede;

23. Ao concluir pela não qualificação da Recorrente como prestadora intermediária de serviços em rede, o douto Tribunal da Relação de Lisboa promoveu uma interpretação desconforme à lei e à realidade social a que a mesma se aplica e incorreu em erro de interpretação da norma jurídica em discussão;

24. Uma vez analisado o conceito de prestador intermediário de serviços em rede, tipificado no artigo 4.º, n.º 5 do Decreto-Lei n.º 7/2004, resulta inequívoco que a Recorrente preenche todos os seus requisitos, face ao elenco de factos provados, elencado pelo Tribunal da Propriedade Intelectual e confirmado pelo Tribunal da Relação de Lisboa;

25. Com efeito, resultou provado que a Recorrente é uma sociedade de direito espanhol, que cedeu o domínio da página de internet “porso1euro.com” à sociedade West Pacific, para que esta aí publicasse, atualizasse e gerisse conteúdo, pelo que a qualificação da Recorrente como prestadora intermediária de serviços em rede é por demais evidente, não obstante se ter proposto a praticar outros atos para além dos serviços em rede;

26. Considera a Recorrente que resultou igualmente demonstrado o cumprimento dos requisitos constantes do art. 16º do Decreto Lei nº 7/2004, devendo a mesma gozar do regime de isenção de responsabilidade aí previsto.

27. De acordo com interpretação doutrinária e análise comparativa com o artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 7/2004, o artigo 16.º do mesmo diploma legal não exige a prestação exclusiva dos serviços de armazenagem em servidor, para que se aplique o regime de isenção de responsabilidade aí previsto;

28. Tendo ficado demonstrado em juízo que a Recorrente prestou serviços de armazenagem em servidor em relação à sociedade West Pacific, entende a Recorrente que se deve aplicar o artigo 16.º do Decreto-Lei n.º 7/2004, ainda que tenha sido contratada a prestação de outros serviços;

29. A informação ilícita em causa corresponde a uma promoção para serviços da Recorrida, não autorizada, mas que não preenche o conceito de manifesta ilicitude, exigido pelo artigo 16.º do Decreto-Lei n.º 7/2004, considerando que não se trata de informação que seja percetível como fraudulenta ao homem médio;

30. Mais, sobre a Recorrente não recaia qualquer dever de vigilância ou de investigação da licitude das informações e atividades publicadas no seu domínio da internet, nem tinha a mesma possibilidade de se aperceber da ilicitude da informação em causa;

31. Ainda que não se revelasse exigível – considerando que os restantes requisitos da responsabilização da Recorrente, enquanto prestadora intermediária de serviços em rede, não se verificavam – após ter sido proferida decisão no procedimento cautelar apenso aos presentes autos, a Recorrente promoveu diligências no sentido da remoção do conteúdo em causa e da obtenção de esclarecimentos quanto à questão, junto da sociedade West Pacific;

32. Resultam, assim, inequívocas a qualificação da Recorrente como prestadora intermediária de serviços em rede e a sua isenção de responsabilidade no presente caso, nos termos do disposto no artigo 16.º do Decreto-Lei n.º 7/2004;

33. Pelo que, em consequência, entende a Recorrente que deverá ser modificada a douta decisão proferida, no sentido da improcedência da presente ação de condenação contra si instaurada.

Não foram apresentadas contra alegações.

O recurso foi admitido pela Formação a que alude o art. 672º, nº3 do CPC, pelo interesse que pode revestir o conceito de prestador intermediário de serviços em rede, e da inexistência até agora de pronúncia do Supremo Tribunal de Justiça sobre tal matéria.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

Fundamentação.

Vem provada a seguinte matéria de facto:

1. A Autora é titular do registo do logótipo n° 16500 CONTINENTE, requerido em 11/07/1990 e concedido em 24/03/1993;

2. A Autora é titular do registo do logótipo n° 16529  -X., requerido em 06/06/2005 e concedido em 02/10/2006.

3. A requerente é titular do registo da marca comunitária n° 6974001 requerido em 09/06/2008 e concedido em 22/12/2010, para assinalar, nomeadamente, os serviços da classe 35, publicidade e negócios (não incluídos noutras classes), importação, exportação e representação, serviços de divulgação publicitária por todos os meios de difusão, distribuição de prospectos;

4. A R. é uma sociedade espanhola constituída em 15/07/2013 que se dedica à criação e desenvolvimento, alojamento, assessoria, gestão e exploração de páginas web, plataformas de formação e páginas de venda online e gestão de cobrança e pagamentos por conta dos seus clientes;

5. Em 23/09/2014 na página de internet www.porso1euro.com. acedia-se a uma promoção de "por só 1 € aproveite 50€ nas suas compras no continente" e ainda o logótipo e o nome CONTINENTE.

6. O nome do domínio <porso1euro.com> está registado em nome da R. desde 04/10/2012;

7. Das condições gerais do domínio <porso1euro.com> consta que a sociedade Eviano Digital SL é titular do site Porsoieuro.com e presta serviços de intermediação;

8. Das condições gerais do <porso1euro.com> consta: "A empresa Eviano Digital S.L atua como prestadora de serviços de intermediação. Não obstante, tanto o gerenciamento de conteúdo acima e edição da website são de exclusiva responsabilidade da Sociedade West Pacific International, com sede em Hong Kong, Sala de 1906-7, 19 /F, ING Tower, número 308, Des Voeux Estrada Central e registrada sob o número 1794061 (em adiante, a "Sociedade")."

9. Nessa mesma página de internet consta como contacto a morada da Eviano Digital.

10.  Nessa página e sob o título "Informações Legais" consta: Para poder
usufruir de todas as vantagens do
porso1euro.com, deve subscrever-se a 24,90€
mensal, extensível e sem compromisso de duração. A empresa Eviano Digital, com sede
em Barcelona, atua como prestadora de serviço de intermediação. Contacte-nos por e-
mail: dique aqui."

11.  A R. também é titular de outras páginas semelhantes em
Espanha.
www.porsolo1euro.com e no Brasil: www.soporlreal.com;

12.   Em Junho de 2013 a McDonalds Portugal publicou um comunicado na
sua página de internet (que continuava disponível em 6.02.2015) alertando os
consumidores de que o vale de desconto que o web site "porsoleuro" andava a divulgar
era falso;

13. Na página do Facebook " Máxima poupança" foi emitido um alerta (em 8.02.2013, estando disponível ainda em 11.02.2015) sobre o carácter enganoso das ofertas do "porsoleuro", exemplificando com a coca-cola;

14. Os serviços "soporlreai" foram objecto de queixas dos consumidores no Brasil;

15.  Em 11 de Março de 2014, com efeitos retroactivos a Dezembro de 2013, a R. e a "West Pacific International", sociedade registada em Hong Kong, celebraram um acordo escrito, definindo os termos contratuais essenciais da parceria que ambas as entidades iriam iniciar de forma a que a Eviano Digital fornecesse os serviços web hosting e e-mail dos endereços electrónicos web, assim como os serviços de facturação e cobrança do cliente:

- www.persolo1euro.com

- www.furnur1euro.com

- www.tylkozalzlotv.com

- www.porso1euro.com

-

O mencionado acordo teve por objecto estabelecer as bases para regulamentar as condições de prestação de serviço de web hosting dos supra mencionados endereços electrónicos.

17. Do acordo supra consta que "A Eviano Digital assume a obrigação de tornar acessível ao cliente a capacidade de armazenamento e transferência necessários, de acordo com as especificações técnicas do conteúdo do endereço electrónico, garantido às partes estabelecer com mais detalhe os requisitos técnicos que a Eviano Digital deve ter, de forma a cumprir com os requisitos do cliente. Além disso, a Eviano Digital assume a obrigação de estabelecer uma conexão permanente de acesso remoto com o servidor, para a gestão e actualização de conteúdos".

18 .Consta ainda do texto do mencionado acordo que a "Eviano Digital fará, com carácter periódico, e, em qualquer caso, a pedido de cliente a gestão e fecho dos serviços da facturação e cobrança, tendo a obrigação de providenciar ao cliente toda a documentação comprovativa. Assim que o fecho supra mencionado tiver sido realizado, a Eviano Digital irá reter, por forma de compensação, 5% do valor total recepcionado na sua conta bancária, em relação aos pagamentos efectuados pelos clientes finais, tendo também a obrigação de transferir os restantes 95% do valor total recebido para o Cliente. A Eviano Digital irá emitir uma factura ao cliente dos 5%".

19. Bem como que "O Cliente é responsável por todo e qualquer conteúdo colocado nos endereços electrónicos, armazenados no servidor contratado, assumindo a obrigação que nenhum dos conteúdos dos endereços electrónicos contêm elementos contrário à Lei, moral ou ordem pública".

20. A A. não autorizou a R. a efectuar qualquer promoção ou publicidade ligada à marca CONTINENTE, nem a usar os sinais CONTINENTE;

21.  Com esta acção e anterior procedimento cautelar a A. suportou, com
taxas de justiça, honorários com Advogados e tradução de documentos, o valor total de
€ 10.381,62.


*


O direito.

Está em causa saber se a Recorrente deve ser responsabilizada pela violação do direito de propriedade da Recorrida sobre a marca e logotipo “Continente” tutelado pelo art. 224º, nº1, do Código da Propriedade Industrial.

As instâncias entenderam que sim, por o direito da Autora à marca “Continente” ter sido violado a partir de um domínio da internet www.porso1euro.com – que se encontra registado em nome da Ré/recorrente desde Outubro de 2012, e a Ré não poder ser considerada mera prestadora intermediária de serviços, motivo por que também é responsável perante a Autora pelos conteúdos disponibilizados no seu site.

A Recorrente discorda do decidido, defendendo que deve ser considerada “prestadora intermediária de serviços em rede”, e como tal estar dispensada do dever de vigilância nos termos do art. 12º do DL 7/2004 de 07.01; por outro lado, uma vez que se limitou a prestar serviços de armazenagem à sociedade West Pacific, cuja ilicitude não era manifesta, deve ser isenta de responsabilidade nos termos do art. 16º do DL 7/2004.

Vejamos.

O regime legal aplicável consta do DL nº 7/2004 de 07 de Janeiro, que transpôs para o direito interno a Directiva nº 2000/31/CE do Parlamento e do Conselho de 8 de Junho, relativa a certos aspectos legais dos serviços da sociedade de informação, em especial do comércio electrónico.

As actividades que podem ser qualificadas como serviços da sociedade de informação são múltiplas e variadas.

Claudia Trabuco, em “A responsabilidade dos prestadores de serviços nas Redes Digitais, (Direito da Sociedade de Informação, vol. III, Associação Portuguesa de Propriedade Intelectual) esclarece “que é possível reconduzir as diversas actividades desenvolvidas pelos prestadores de serviços da sociedade de informação às seguintes funções essenciais:

- fornecimento directo de conteúdos, ou seja a colocação dos mais directos em linha à disposição dos utilizadores;

- a prestação de mero acesso dos utilizadores à rede informática;

- a prestação de outros serviços, que incluem a disponibilização de meios que possibilitam ou facilitam a prestação e recepção dos diversos serviços prestados através das redes digitais;

- a disponibilização de espaço, isto é, a colocação de uma certa área do ciberespaço à disposição de outrem quer para a criação de uma página ou para envio e recepção de informações de e pelos utilizadores (de que são exemplo as “salas” de chat), quer para a colocação em rede dos mais variados conteúdos, nomeadamente através da gestão e organização da informação disponibilizada por terceiros. 

Quanto aos “prestadores intermediários de serviço em rede”, o art. 4º, nº5  do art. do DL nº 7/2004, diz que “são os que prestam serviços técnicos para o acesso, disponibilização e utilização de informações ou serviços em linha independente da geração da própria informação ou serviço.”

Joel Timóteo Pereira, Compêndio Jurídico da Sociedade de Informação, Quid Juris, 2004, pag. 870, refere que “na prática, são os intermediários de serviços em rede que permitem o acesso à internet e distribuição de mensagens de correio ou de comunicação electrónica.”

Sem qualquer interferência, controlo ou edição das informações dispostas pelo utilizador” (Vera Dias, A Responsabilidade dos Prestadores de Serviços em Rede – As inovações do DL nº 7/2004).

Como observa João Moreira da Costa, “uma das principais características que está subjacente aos prestadores de serviços intermédios é a sua posição neutra face aos conteúdos que transmitem, isto é, não interferem na criação do conteúdo, limitando-se a proceder a um tratamento automático do mesmo no âmbito da actividade de prestação de serviços que exercem.”  (“A responsabilidade civil pelos conteúdos ilícitos colocados e difundidos na Internet”, Dissertação de Mestrado em Direito Civil, da Faculdade de Direito da Universidade do Porto.)

Os prestadores intermediários de serviços em rede, ao contrário dos prestadores de serviços em rede, estão isentos do dever de vigilância. Diz o art. 12º:

 “Os prestadores intermediários de serviços em rede não estão obrigados a uma obrigação geral de vigilância sobre as informações que transmitem ou armazenam ou de investigação de eventuais ilícitos praticados no seu âmbito”.

Refere Cláudia Trabuco, local citado:

Esta isenção de responsabilidade refere-se unicamente a condutas de terceiros, em relação às quais estas entidades desempenham unicamente um papel de intermediários, sem qualquer interferência ou controlo sobre a informação transmitida ou armazenada.

Restringem-se, assim, as situações de responsabilidade aos casos em que o prestador de serviços abandona aquela neutralidade e passa, de algum modo, mesmo que indireto, a participar da autoria dos conteúdos.”

Posto isto, vejamos o que resulta de relevante da matéria de facto:

- A Recorrente dedica-se à criação e desenvolvimento, alojamento, assessoria, gestão e exploração de páginas web, plataformas de formação e páginas de venda online e gestão de cobrança e pagamentos por conta dos seus clientes;

- É titular do site Porsoieuro.com e presta serviços de intermediação;

- Em 11 de Março de 2014, com efeitos retroactivos a Dezembro de 2013,  celebrou com a "West Pacific International", sociedade registada em Hong Kong, um acordo escrito, que teve por  objecto estabelecer as bases para regulamentar as condições de prestação de serviço de web hosting de endereços electrónicos.

- Do acordo supra consta que "A Eviano Digital assume a obrigação de tornar acessível ao cliente a capacidade de armazenamento e transferência necessários, de acordo com as especificações técnicas do conteúdo do endereço electrónico, garantido às partes estabelecer com mais detalhe os requisitos técnicos que a Eviano Digital deve ter, de forma a cumprir com os requisitos do cliente. (…) a Eviano Digital assume a obrigação de estabelecer uma conexão permanente de acesso remoto com o servidor, para a gestão e actualização de conteúdos".

- E ainda que a "Eviano Digital fará, com carácter periódico, e, em qualquer caso, a pedido de cliente a gestão e fecho dos serviços da facturação e cobrança, tendo a obrigação de providenciar ao cliente toda a documentação comprovativa.

- O "O Cliente é responsável por todo e qualquer conteúdo colocado nos endereços electrónicos, armazenados no servidor contratado, assumindo a obrigação que nenhum dos conteúdos dos endereços electrónicos contêm elementos contrário à Lei, moral ou ordem pública".

- A. não autorizou a R. a efectuar qualquer promoção ou publicidade ligada à marca CONTINENTE, nem a usar os sinais CONTINENTE;


Á luz da factualidade provada, entendemos que a Recorrente deve ser qualificada como prestadora intermediário de serviços em rede: os serviços que presta são de ordem meramente técnica,  assim sucedeu no  contrato que celebrou com West Pacific,  em ordem a regulamentar as condições de prestação de serviço de web hosting de endereços electrónicos, sem qualquer intervenção nos conteúdos da informação ou serviço, que eram da exclusiva responsabilidade do cliente.

O facto de ser titular do site a partir do qual foi violado o direito da Autora não a torna responsável pelos conteúdos aí disponibilizados, o que só sucederia, à luz do princípio do art. 12º, se e de alguma forma, participasse ou tivesse interferência sobre o conteúdo da informação transmitida ou armazenada.

O que não se provou, e dada a sua qualidade de prestadora intermediária de serviços em rede, nos termos do art. 12º está isenta de responsabilidade pelas informações transmitidas ou armazenadas.

A irresponsabilidade da Recorrente resulta ainda por força do disposto nos arts. 14º e 16º do DL 7/2004.

Preceitua o primeiro:

1. O prestador intermediário de serviços que prossiga apenas a actividade de transmissão de informações em rede, ou de facultar o acesso a uma rede de comunicações, sem estar na origem da transmissão nem ter intervenção no conteúdo das mensagens transmitidas, nem na selecção destas ou dos destinatários, é isento de toda responsabilidade pelas informações transmitidas.

2. A irresponsabilidade mantém-se ainda que o prestador realize a armazenagem meramente tecnológica das informações no processo de transmissão, exclusivamente para as finalidades de transmissão e durante o tempo necessário a esta

Por sua vez, estatui o art. 16º, sob  a epígrafe Armazenagem principal, que dispõe:

1. O prestador intermediário do serviço de armazenamento em servidor só é responsável, nos termos comuns, pela informação que armazenar se tiver conhecimento de actividade ou informação cuja ilicitude for manifesta e não retirar ou impossibilitar logo o acesso a essa informação.

2. Há responsabilidade civil sempre que, perante as circunstâncias que conhece, o prestador do serviço tenha ou deva ter consciência do carácter ilícito da informação.

3. Aplicam-se as regras comuns de responsabilidade sempre que o destinatário do serviço actuar subordinado ao prestador ou for por ele controlado.

Como esclarece João Moreira da Costa, obra citada, pag. 86, “o art. 16º (e o correspondente art. 14º), reporta-se fundamentalmente, às actividades de hosting, isto é, de alojamento de conteúdos a pedido de um determinado utilizador para ser visualizado e/ou descarregado por outros.”

O contrato celebrado entre a Recorrente e a West Pacific teve como objecto a  prestação de serviços de hosting, e nos termos dos preceitos citados a Recorrente só seria responsável se soubesse ou devesse ter conhecimento da ilicitude da actividade ou informação, ou que a ilicitude fosse manifesta.

Ora, nem a ilicitude era manifesta, nem resulta da matéria de facto que a Recorrente soubesse ou devesse saber do caracter ilícito da informação, nem consta que lhe tenha sido solicitado que removesse a informação.

 Neste sentido decidiu o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02.06.2016, P. 1086/10.5PVPRT.L1.S1:

- O art. 12º do DL 07/2004 declara que os prestadores intermediários de serviços em rede não estão sujeitos a um dever de vigilância sobre as informações que transmitem e armazenam,  consagrando-se nesse diploma, um regime específico de responsabilidade dessas entidades pelo desempenho dessa actividade que conforme o regime geral de responsabilidade civil do Cód. Civil;

   - Posto que os AA não alegaram que, infrutiferamente, recorreram à entidade de supervisão para conseguirem a remoção dos conteúdos contestados, não pode nascer a responsabilidade dos prestadores intermediário de serviços, a qual, nessa circunstância, apenas poderia derivar da manifesta ilicitude daqueles.  

   A revista merece, pois, provimento, não podendo manter-se o acórdão recorrido.           

Sumário (art. 663º, nº7 do CPC):

I - O regime legal do comércio electrónico consta do DL nº 7/2004 de 07.01, que transpôs para o direito interno a Directiva 2000/31/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 08.06;

II – Do mesmo resulta que devem ser qualificados como “prestadores intermediários de serviços em rede”, as pessoas, singulares ou coletivas, que intervindo de forma autónoma, permanente e organizada, criam e disponibilizam os meios técnicos para que um determinado conteúdo circule na internet.

III – O art. 12º do citado DL 7/2004, ao isentá-los do “dever de vigilância”, consagra a regra da irresponsabilidade dos “servidores intermediários de serviços em rede” pelo conteúdo das informações colocadas por terceiros acessíveis a partir de espaço por eles disponibilizado, salvo se de algum modo participaram, ou tiveram intervenção na autoria dos conteúdos.

Decisão.

       Pelo exposto, concede-se provimento à revista, revoga-se o acórdão recorrido, e absolve-se a Ré dos pedidos.

       Custas pela Recorrida.

Lisboa, 10.12.2020

                                                                      

Ferreira Lopes (Relator)

Manuel Capelo                                                                      

Tibério Silva

      Nos termos do art.15º-A do DL nº 10-A de 13.03., aditado pelo Dl nº 20/20 de 01.05, o relator declara que o presente acórdão tem o voto de conformidade dos restantes juízos que compõem este colectivo.