Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3036/04.9TBVLG.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores: PRIVAÇÃO DO USO DE VEICULO
ACIDENTE DE VIAÇÃO
RECURSO DE MATÉRIA DE FACTO
Data do Acordão: 05/08/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 566.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 712.º, 722.º, 729.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 5 DE JULHO DE 2007, PROC, Nº 07B1849;
- DE 10 DE SETEMBRO DE 2009, PROC. Nº 376/09.4YLSB;
- DE 5 DE NOVEMBRO DE 2009, PROC. Nº 381-2002.S1;
- DE 28 DE OUTUBRO DE 2010 PROC. Nº272/06.7TBMTR.P1.S1;
- DE 1 DE MARÇO DE 2012, PROC. Nº 353/2000.E1.S1;
TODOS EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :

1. A apreciação que a Relação fez de depoimentos de testemunhas, prestados no processo e considerados na participação policial do acidente não é susceptível de controlo em recurso de revista

2. A privação do uso de um veículo é, em si mesma, um dano indemnizável, desde logo por impedir o proprietário (ou, eventualmente, o titular de outro direito, diferente do direito de propriedade, mas que confira o direito a utilizá-lo) de exercer os poderes correspondentes ao seu direito.

3. O cálculo da correspondente indemnização há-de ser efectuado com base na equidade, por não ser possível avaliar “o valor exacto dos danos” (nº 3 do artigo 566º do Código Civil).

4. A equidade tem de partir da consideração dos factos que ficaram provados e, sendo indissociável da consideração específica da concreta situação de facto, o controlo pelo Supremo Tribunal limita-se à “verificação acerca dos limites e pressupostos dentro dos quais se situou o (…) juízo equitativo formulado pelas instâncias face à ponderação casuística da individualidade do caso concreto ‘sub iudicio’” (acórdão de 28 de Outubro de 2010 (www.dgsi.pt, proc. nº272/06.7TBMTR.P1.S1, em parte por remissão para o acórdão de 5 de Novembro de 2009).

5. Normalmente, a indemnização pela privação do uso de um veículo acidentado deverá ter como limites temporais, por um lado, a ocorrência do sinistro e, por outro, o pagamento efectivo da indemnização; no caso, todavia, sabe-se que, a partir do momento em que o autor adquiriu um outro, a falta de disponibilidade do veículo sinistrado, cuja perda total havia sido declarada, deixou de se traduzir num dano para o autor.
Decisão Texto Integral:

Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:

1. AA e mulher, BB, propuseram uma acção contra o Fundo de Garantia Automóvel e CC, pedindo a sua condenação solidária no pagamento, ao autor, de € 11.066,42 e, à autora, de € 3.905,80, com juros, à taxa lega, contados desde a citação.

Para o efeito, alegaram que, no dia 29 de Novembro de 2001, ocorreu um acidente de viação entre o veículo ligeiro conduzido pela autora e um outro, conduzido pelo segundo réu e causado por sua culpa exclusiva, por circular em excesso de velocidade e ter invadido a faixa de rodagem onde circulava a autora, em sentido contrário; que desse acidente resultaram danos, cuja indemnização pretendem; que o segundo réu circulava sem contrato de seguro.

Os réus contestaram por impugnação e por excepção, separadamente. O Fundo de Garantia Automóvel sustentou que o acidente resultou de culpa de ambos os condutores; que, a não se provar a culpa, ter-se-ia que o atribuir em partes iguais ao risco próprio dos veículos; que o custo da reparação do veículo do autor era significativamente superior ao respectivo valor, razão pela qual a indemnização teria de ser inferior à pedida; que, em caso de perda total, a indemnização pela paralisação não é devida “a partir do momento em que o lesado toma conhecimento do direito que lhe assiste e da inviabilidade da reparação”.

CC invocou a prescrição, por ter sido citado apenas em 10 de Janeiro de 2005; sustentou que a autora foi a única culpada do acidente, por ter ocupado “a metade esquerda da faixa de rodagem”, circulando em excesso de velocidade; que a gravidade das avarias sofridas pelo veículo do autor tornavam inexigível e desaconselhável a reparação, que, aliás, o autor nunca mandou fazer; e que era excessiva a indemnização pedida.

Houve réplica.

No despacho saneador, por entre o mais, foi admitida a ampliação do pedido, consistente em “serem ainda os RR. condenados a pagarem ao A. a quantia diária de € 24,94, pela privação do uso do veículo até que seja satisfeita a indemnização correspondente” e indeferida a prescrição invocada.

Pela sentença de fls. 308, a acção foi julgada procedente, tendo-se decidido:

a)Condenar o Réu CC a pagar ao Autor AA a quantia de € 299,30 (duzentos e noventa e nove euros e trinta cêntimos);

b)Condenar os Réus CC e Fundo de Garantia Automóvel a pagarem ao Autor AA, em regime de solidariedade, a quantia de € 1402,42 (mil quatrocentos e dois euros e quarenta e dois cêntimos) (€ 1701,72 - € 299,30), acrescida de juros, à taxa legal, contados desde a citação e até efectivo e integral pagamento;
c) Condenar os Réus CC e Fundo de Garantia Automóvel a pagarem ao Autor AA, em regime de solidariedade, a quantia de € 36 440,00 (trinta e seis quatrocentos e quarenta), acrescida de juros, à taxa legal, vencidos desde a presente data e até efectivo e integral pagamento;

d)Condenar os Réus CC e Fundo de Garantia Automóvel a pagarem ao Autor AA, em regime de solidariedade, a quantia de € 10,00 (dez euros), por cada dia que decorra desde a presente data e até ao pagamento da quantia referida em b);
e) Condenar os Réus CC e Fundo de Garantia Automóvel a pagarem à Autora BB, em regime de solidariedade, a quantia de € 2500,00 (dois mil e quinhentos euros), acrescida de juros, à taxa legal, ven­cidos desde a presente data e até efectivo e integral pagamento;
f) Absolver os Réus CC e Fundo de Garantia Automóvel do demais peticionado pelos Autores AA e BB.

Para o efeito, e em síntese, considerou-se na sentença:

– que o acidente “resultou da conduta” de CC, uma vez que o veículo que conduzia “invadiu a hemi-faixa esquerda, atento o seu sentido de trânsito”, em violação das regras do Código da Estrada;

– que, por isso, se presume a respectiva culpa;

– que o valor comercial do veículo, à data do acidente, era de  € 1.496,39, e o dos salvados era de € 299,28; que, em equidade, a indemnização pela perda respectiva se deve fixar em € 2.000,00 - € 299,28, ou seja, em € 1.701,72;

– que a indemnização equitativa para o dano de privação do uso do veículo deve calcular-se, de forma actualizada, em € 36.440,00 (€10,00x3644 dias), montante ao qual se tem de acrescentar, “como dano futuro previsível, o montante de € 10,00 por cada dia” que decorra “até que seja paga a indemnização devida pela perda (…)”;

– que é equitativamente adequado o montante de € 2.500,00 pelos danos não patrimoniais da autora;

– que é solidária a responsabilidade dos réus, cabendo todavia ao segundo o pagamento da franquia de € 299,30 “a deduzir do montante a cargo do Fundo”.

Ambos os réus recorreram. O Tribunal da Relação do Porto, pelo acórdão de fls. 427, concedeu provimento à apelação do Fundo de Garantia Automóvel e provimento parcial à apelação de CC. Revogou a sentença e decidiu:

“b)Julgar parcialmente procedente a acção e, em consequência, (…):

- Condenar o Réu CC a pagar ao Autor AA a quantia de € 149,65 (cento e quarenta e nove euros e sessenta e cinco cêntimos), acrescida de juros, à taxa legal, contados desde a citação e até efectivo e integral pagamento;

- Condenar os Réus CC e Fundo de Garantia Automóvel a pagarem ao Autor AA, em regime de solidariedade, a quantia de € 701,21 (setecentos e um euros e vinte e um cêntimos) (€ 1701,72 - € 299,30 x 50%), acrescida de juros, à taxa legal, contados desde a citação e até efectivo e integral pagamento;

- Condenar os Réus CC e Fundo de Garantia Automóvel a pagarem ao Autor AA, em regime de solidariedade, a quantia de € 500,00 (quinhentos euros), acrescida de juros, à taxa legal, vencidos desde a presente data e até efectivo e integral pagamento;

- Condenar os Réus CC e Fundo de Garantia Automóvel a pagarem à Autora BB, em regime de solidariedade, a quantia de € 1.250,00 (mil duzentos e cinquenta), acrescida de juros, à taxa legal, vencidos desde a data da sentença da 1ª instância e até efectivo e integral pagamento;

f) Absolver os Réus CC e Fundo de Garantia Automóvel do demais peticionado pelos Autores AA e BB.”

Em resumo, a Relação alterou alguns pontos da decisão de facto e entendeu:

– Quanto à apelação interposta pelo Fundo de Garantia Automóvel: “No caso em apreço, o autor demonstrou que usava o veículo sinistrado nas suas deslocações diárias, para o trabalho e de lazer e que ficou privado dessas utilidades durante 103 dias.

Tal factualidade mostra-se suficiente para justificar a atribuição duma indemnização a título de privação do uso, durante esse período de tempo (…).

Porém, carece de razoabilidade e de fundamento, salvo melhor opinião, a atribuição de uma indemnização pelo não uso da viatura depois daquele período de tempo, até à actualidade, pois que não está demonstrado no processo que, não fora a privação, o autor usaria normalmente o -------, vendo frustrado esse propósito, tanto mais que se provou que adquiriu um outro automóvel três ou quatro meses depois da data do acidente.

(…) Por isso, entende-se como equitativo fixar em € 1.000,00 o prejuízo (dano patrimonial) decorrente da privação do uso da viatura do autor, no mencionado período de tempo”;

– Relativamente ao recurso interposto por CC, considerou não haver prova que permita atribuir o acidente a culpa de um ou de outro dos condutores; que, portanto, são aplicáveis as regras relativas à responsabilidade pelo risco, que neste caso se presume igual (artigo 506º do Código Civil); e que os réus devam ser “condenados a pagar solidariamente a quantia fixadas, com ressalva, no que tange aos danos materiais sofridos pelo Autor, da franquia de € 299,30, a deduzir no montante a cargo do Fundo (art. 21/3 do DL n.º 522/85)”

2. Os autores recorreram para o Supremo Tribunal de Justiça. O recurso, ao qual não são aplicáveis as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, foi admitido como revista, com efeito suspensivo.

Nas alegações que apresentaram, formularam as seguintes conclusões:

A- O douto acórdão da relação não se fundamentou correctamente nos factos alegados e dados como provados, estando arredada do melhor direito aplicável.

B - O Tribunal da Relação no uso dos poderes conferidos pelos n°s 1 e 2 do Artº  712° do C.P.C. não agiu dentro dos limites traçados por lei para os exercer, pois entendemos que aquele Tribunal só podia sindicar a convicção do Tribunal de 1a Instância , se essa convicção se apresentasse manifestamente contrária às regras da experiência, da lógica e dos conhecimentos científicos , na verdade:

C- E no que diz respeito à dinâmica do sinistro e apuramento da culpa , tendo o Tribunal de 1a instancia lançado mão de presunção judicial e da livre apreciação da prova, ainda nos juízes de probabilidade, alicerçados no depoimento de uma testemunha do A. e de uma outra testemunha amigo do R  CC , e por este arrolada, DD ; não poderia responder de outra forma que não fosse considerar culpado do sinistro o R.

D- Tal posição tomada pelo Tribunal de 1a instância também se alicerçou no facto da participação policial e os intervenientes terem tomado posições que não se contradizem, dizendo a A. que o veículo do R. que lhe embateu foi fora de mão, ao passo que o R. CC não imputou a responsabilidade à A., sendo certo que cada interveniente faz a sua declaração sem conhecimento da outra.

E- A alteração da Relação quanto a estes factos não foi adequada com o preceito legal, e não impunha decisão diversa da proferida em 1ª  instância.

F- Outra discordância do douto acórdão da Relação diz respeito ao período de privação do veículo e a correspondente valorização indemnizatória em foram os RR. condenados, se "não vejamos: Resulta provado nos quesitos 16 e 17 do Acórdão da Relação que o..... ainda hoje se mantém por reparar e o..... continua sem poder circular, pelo que se impunha, como o fez o Tribunal de Ia Instância, a condenação dos RR. até à sentença proferida, tanto mais que se demonstrou que o FUNGA não colocou à disposição do A. qualquer quantia, nem um veículo de substituição.

G – Para a indemnização ter lugar é suficiente como se provou que o veículo fosse utilizado em beneficio do lesado e da sua família, e não é pelo facto de ter adquirido outro veículo que perde o direito a essa indemnização, pois continuou a deixar de usufruir do gozo e vantagens desse veículo.

H- E fazendo aplicação do direito a esses factos dados como provados , resultava como resultou em condenação proferida pelo Tribunal de 1ª Instância”.

 Contra-alegou o Fundo de Garantia Automóvel, sustentado a manutenção do acórdão recorrido.

3. Vem provado o seguinte (transcreve-se do acórdão recorrido, tendo em conta as alterações nele determinadas):

“1) No dia 29 de Novembro de 2001, pelas 12.15 horas, o veículo com a matrícula ------- circulava na Rua de ................., lugar de ................., freguesia de Alfena, Valongo, no sentido nascente – poente, e era conduzida pela Autora (alínea A) dos factos assentes).

2) No mesmo circunstancialismo de tempo, o veículo de matrícula .......... seguia na Rua de ..........., lugar de.........., Alfena, Valongo, no sentido poente – nascente, e era conduzido pelo Réu CC (alínea B) dos factos assentes).

3) Na Rua de ..........o trânsito processa-se quer no sentido poente – nascente, quer no sentido contrário (resposta ao n.º 26 da base instrutória).

4) A faixa de rodagem tem 5,10 metros de largura e que, no local onde ocorreu o embate, tem a forma de uma curva (resposta ao n.º 27 da base instrutória).

5) Quanto a Autora circulava numa curva para a sua esquerda, surgiu o .. (resposta ao n.º 4 da base instrutória).

6) Os veículos...... e -------, no dia, hora e local referidos em 1), colidiram um com o outro (resposta ao quesito 9º, da base instrutória).

7) Na sequência do embate descrito, o ------- sofreu danos na porta da frente, no lado esquerdo, no pisca, no pára-choques, no guarda-lama, na longarina esquerda, no pára-brisas, no tablier e no painel central (resposta ao n.º 10 da base instrutória).

8) A reparação do mesmo foi orçada em 1 616 066$00 na oficina Auto-................., em Alfena (resposta ao n.º 11 da base instrutória).

9) A viatura ------- esteve imobilizada para reparação, tendo o Autor ficado privado de utilizar a mesma nas suas deslocações para o emprego e passeios durante 103 dias (resposta ao n.º 12 da base instrutória).

10) A propriedade do ------- encontra-se registada a favor do Autor AA Fernando, cf. documento de fls. 92 que aqui se dá por integralmente reproduzido (alínea C) dos factos assentes).

11) O Autor não dispunha de outro veículo para se deslocar para o seu trabalho e passear com a família, durante o período de tempo referido na resposta ao quesito 12º, tendo adquirido um veículo automóvel cerca de três ou quatro meses depois da data do acidente. (resposta aos números 13 e 14 da base instrutória).

12) O ------- é um ligeiro de passageiros da marca Opel, modelo Corsa 1.2 S Swing (resposta ao n.º 36 da base instrutória).

13) O ------- já tinha desde o seu fabrico até à data referida em A) já tinha percorrido 107 mil quilómetros (resposta ao n.º 37 da base instrutória).

14) Antes do sinistro tinha o valor comercial de € 1.496,39 (resposta ao n.º 38 da base instrutória).

15) Os seus salvados valiam € 299,98 (resposta ao n.º 39 da base instrutória)

16) O Autor marido ainda hoje mantém o ------- por reparar (resposta ao n.º 42 da base instrutória).

17) O ------- continua sem poder circular (resposta ao n.º 44 da base instrutória).

18) Na sequência do aludido embate, a Autora foi transportada para o Hospital de S. João, onde foi assistida (resposta ao n.º 16 da base instrutória).

19) Sofreu lesões nas pernas e costas, com traumatismo da grade costal e esterno e traumatismo e escoriações em ambas as pernas (resposta ao n.º 17 da base instrutória).

20) Ficou incapacitada para trabalhar durante um mês, devido a toracalgia e dor nas pernas (resposta ao n.º 18 da base instrutória).

21) A Autora trabalhava como empregada de escritório, auferindo o salário mínimo nacional (resposta ao n.º 19 da base instrutória).

22) Durante mais de dois meses, fez tratamentos ambulatórios (resposta ao n.º 20 da base instrutória).

23) Sofreu dores de grau dois numa escala de sete graus de gravidade crescente no momento do embate e nos tratamentos que lhe sucederam (resposta ao n.º 21 da base instrutória).

24) Ficou em estado de choque e sentiu pânico (resposta ao n.º 22 da base instrutória).

25) Ainda hoje, com a mudança de tempo e quando se mantém algum tempo em pé, sente dores (resposta ao n.º 23 da base instrutória).

26) Na data referida em 1), a responsabilidade civil resultante da circulação do ------- não estava transferida para qualquer companhia de seguros (acordo das partes).”

4. Os recorrentes colocam, assim duas questões (nº 3 do artigo 684º do Código de Processo Civil):

– Indevida alteração da decisão sobre a matéria de facto, não tendo a Relação agido “dentro dos limites traçados por lei para” exercer os poderes que lhe são conferidos pelos nºs 1 e 2 do artigo 712º do Código de Processo Civil;

– Incorrecta fixação do período de privação da utilização do veículo sinistrado, a contar para efeitos indemnizatórios.


5. Tal como o Fundo de Garantia Automóvel observa nas contra-alegações, as alterações introduzidas pela Relação na decisão da matéria de facto não são susceptíveis de apreciação pelo Supremo Tribunal de Justiça. Assim resulta do disposto no nº 2 do artigo 722º e no nº 2 do artigo 729º do Código de Processo Civil, como tem sido repetidamente recordado pelo Supremo Tribunal [cfr., a mero título de exemplo, o acórdão de 1 de Março de 2012, proc. nº 353/2000.E1.S1: “por princípio apenas existe um grau de recurso quanto à decisão sobre a matéria de facto. A intervenção do Supremo Tribunal de Justiça nesse domínio está limitada aos casos previstos no nº 2 do artigo 722º e no nº 2 do artigo 729º do Código de Processo Civil, ou seja, às situações em que o erro no julgamento de facto resulta, não de uma desajustada ponderação das provas produzidas, à luz do princípio da livre apreciação (artigo 655º do Código de Processo Civil), mas de uma incorrecta aplicação de critérios legalmente definidos relativamente à sua admissibilidade ou ao seu valor (cfr., por exemplo, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 2 de Novembro de 2006, de 31 de Maio de 2007, de 26 de Junho de 2008, de 18 de Dezembro de 2008 ou de 20 de Janeiro de 2010, disponíveis em www.dgsi.pt como processos nºs 06B2641, 07B1333, 07B335, 07B3434 e 09B195” e os acórdãos de 10 de Setembro de 2009, www.dgsi.pt, proc. nº 376/09.4YLSB e de 7 de Janeiro de 2013, www.dgsi.pt, proc. nº 3557/07.1TVLSB.L1.S1].

Com efeito, e pese embora a afirmação de que a Relação infringiu os limites definidos pelos nºs 1 e 2 do artigo 712º do mesmo Código, as críticas que os recorrentes dirigem ao acórdão recorrido, quanto à decisão de facto, não respeitam a esses limites, mas antes à apreciação que a Relação fez de depoimentos de testemunhas, prestados no processo e considerados na participação policial. Segundo alegam, os “elementos fornecidos pelo processo” não impunham “decisão diversa” da que foi proferida em 1ª Instância (al. b) do nº 1 do artigo 712º do Código de Processo Civil); mas assim não decidiu a Relação, em reapreciação insusceptível de controlo em recurso de revista.

Não procede, assim, este primeiro fundamento do recurso.

6. Como se viu, a sentença condenou os réus simultaneamente no pagamento do valor que o veículo tinha à data do sinistro (€ 2.000,00) deduzido do valor dos salvados (€ 298,28), por considerar excessivamente onerosa “a reconstituição natural (através da reparação)”, e no pagamento da quantia de € 10,00 por dia (“valor médio do aluguer de um veículo ligeiro de passageiros de mediana categoria/cilindrada”), desde a data do acidente até ao pagamento da “indemnização perla perda” (quantia essa que, no momento da sentença, era de € 36.440,00).

A Relação, todavia, considerou que se não justificava a atribuição de uma indemnização por tempo superior àquele em que, segundo ficou provado, o autor se viu privado da utilidade que representava a utilização do veículo, 103 dias (cfr. ponto 9 da matéria de facto provada): “carece de razoabilidade e de fundamento, salvo melhor opinião, a atribuição de uma indemnização pelo não uso da viatura depois daquele período de tempo, até à actualidade, pois que não está demonstrado no processo que, não fora a privação, o autor usaria normalmente o -------, vendo frustrado esse propósito, tanto mais que se provou que adquiriu um outro automóvel três ou quatro meses depois da data do acidente.” E, recorrendo à equidade para cálculo da indemnização a atribuir, concluiu nestes termos:

“Apurou-se, no que agora releva, que:

- Os réus declinaram, com parcial razão, a responsabilidade na produção do acidente ();

- A reparação do ------- foi considerada excessivamente onerosa e quantificou-se o valor da viatura em € 2.000,00, a que se deduzirá o valor dos salvados (€ 298,28);

- O Autor não dispunha de outro veículo para se deslocar para o seu trabalho e passear com a família, durante o período de tempo referido na resposta ao quesito 12º (103 dias), tendo, porém, adquirido um veículo automóvel, cerca de três ou quatro meses depois da data do acidente.

Deste modo, tratando-se, como se explicará, de uma situação de responsabilidade pelo risco (artº 506º, do CC), em que não há culpa e ilicitude, tendo havido condenação dos demandados no pagamento do valor da viatura -------, não se justifica, salvo melhor opinião, a fixação de uma indemnização pela privação do uso do referido veículo para além do referido período de tempo (103 dias).

Por isso, entende-se como equitativo fixar em € 1.000,00 o prejuízo (dano patrimonial) decorrente da privação do uso da viatura do autor, no mencionado período de tempo.”

Tendo em conta a repartição do risco por igual, a Relação condenou solidariamente os réus no pagamento da “quantia de € 500,00 (quinhentos euros), acrescida de juros, à taxa legal, vencidos desde” a data do respectivo acórdão “até efectivo e integral pagamento”


Está portanto em causa saber se deve ou não ser também considerado o tempo posterior a esses 103 dias, sustentando os recorrentes que se deve manter o que foi decidido em 1ª Instância.

7. Entende-se que a privação do uso de um veículo é, em si mesma, um dano indemnizável, desde logo por impedir o proprietário (ou, eventualmente, o titular de outro direito, diferente do direito de propriedade, mas que confira o direito a utilizá-lo) de exercer os poderes correspondentes ao seu direito (assim, por exemplo, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 5 de Julho de 2007, www.dgsi.pt, proc, nº 07B1849, ou de 10 de Setembro de 2009, já citado); e que o cálculo da correspondente indemnização, tal como se decidiu no acórdão recorrido, há-de ser efectuado com base na equidade, por não ser possível avaliar “o valor exacto dos danos” (nº 3 do artigo 566º do Código Civil).

Claro que a equidade tem de partir da consideração dos factos que ficaram provados (mesmo nº 3 do artigo 566º citado); e, sendo indissociável da consideração específica da concreta situação de facto, o controlo pelo Supremo Tribunal limita-se à “verificação acerca dos limites e pressupostos dentro dos quais se situou o (…) juízo equitativo formulado pelas instâncias face à ponderação casuística da individualidade do caso concreto ‘sub iudicio’” (acórdão de 28 de Outubro de 2010 (www.dgsi.pt, proc. nº272/06.7TBMTR.P1.S1, em parte por remissão para o acórdão de 5 de Novembro de 2009, www.dgsi.pt).

Nesta perspectiva, nenhuma censura merece a ponderação efectuada pelo acórdão recorrido. Com efeito, e apesar de ser exacto que, normalmente, a indemnização pela privação do uso de um veículo acidentado deverá ter como limites temporais, por um lado, a ocorrência do sinistro e, por outro, o pagamento efectivo da indemnização, a verdade é que, no caso presente, se sabe que, a partir do momento em que adquiriu um outro, a falta de disponibilidade do veículo sinistrado deixou de se traduzir num dano para o autor.

Manter os termos da condenação determinada em 1ª Instância, para mais tendo em conta que, à data do acidente, 29 de Novembro de 2001, o mesmo veículo havia percorrido 107.000 km (ponto 13 dos factos provados) e tinha dez anos de idade (cfr. fundamentação do julgamento de facto, de fls. 301), traduzir-se-ia num enriquecimento injustificado do autor, não compatível com a teoria da diferença, que é a regra básica do cálculo da indemnização no âmbito da responsabilidade civil (nº 2 do artigo 566º do Código Civil).

Improcede também este fundamento do recurso.

8. Nestes temos, nega-se provimento ao recurso.

Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 8 de Maio de 2013

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (Relatora)

Lopes do Rego

Orlando Afonso