Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1825/09.7TBSTS.P1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: GABRIEL CATARINO
Descritores: RECURSO
ERRO NA APRECIAÇÃO DAS PROVAS
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
REAPRECIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
GRAVAÇÃO DA PROVA
ALEGAÇÕES DE RECURSO
Data do Acordão: 07/01/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: ANULADO O ACÓRDÃO
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / PROCESSO / INSTRUÇÃO DO PROCESSO / RECURSOS.
Doutrina:
- Castanheira Neves, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 143.º, N.º 3984, Janeiro-Fevereiro de 2014, Coimbra Editora.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC), REDACÇÃO EMERGENTE DO DL N.º 303/2007, DE 24-08: - ARTIGOS 522.º - C, 685.º-B, 690.º-A.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 24-05-2001, DISPONÍVEL EM WWW.STJ.PT ;
-DE 19-10-2004, COL. AC. S.T.J., XII, 3º, 72;
-DE 20-09-2007, COL. AC. S.T.J., XV, 3º, 58;
-DE 12-03-2009;
-DE 24-09-2009, PROC. N.º 4303/05;
-DE 3-11-2009, PROC. N.º 3931703.
-DE 16-12-2010, IN WWW.STJ.PT ;
-DE 22-02-2011, COL. AC. S.T.J., XIX, 1º, 76;
-DE 2-03-2011;
-DE 4-07-2013;
-DE 24-09-2013, PROC. Nº 1965/04.
Sumário :
I - O legislador exige que o recorrente seja meticuloso, incisivo e concernido na forma como impugna a decisão de facto, impondo-lhe a especificação dos concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados e quais os concretos meios probatórios, constantes e existentes no processo, que impõem decisão factual diversa, exigindo, também, que o tribunal de recurso seja meticuloso e consciencioso no momento em que procede à reapreciação da prova.

II - À 2.ª instância cabe proceder ao julgamento da decisão de facto por forma a corrigir erros de julgamento patentes nos tribunais de 1.ª instância, mas dentro de limites que não podem exacerbar ou expandir-se para além do que a lei comina.

III - Não podendo o julgamento a que o tribunal de recurso procede redundar num novo e total julgamento da causa, não deixa de ser menos verdade que, tal como o legislador entendeu dever regular o recurso da decisão de facto – cf., v.g, arts. 690.º-A e 522.º-C, do CPC, na redacção emergente do DL n.º 303/2007, de 24-08 –, não pode esse tribunal eximir-se à reapreciação da prova, escoltado e respaldado numa ausência de indicação expressa das passagens das gravações em que se encontrem registados os depoimentos que impõem decisão diversa.

IV - Se, em concreto, se extrai das alegações de recurso que é feita uma resenha dos depoimentos das testemunhas que, no juízo do recorrente, serviram para contraditar a solução que o tribunal tinha conferido aos enunciados de facto a que devia dar resposta e fez menção das gravações em que tais depoimentos se encontravam inseridos, o recorrente cumpriu, no essencial, o comando legal, pelo que o tribunal deveria ter procedido à reapreciação da decisão de facto.
Decisão Texto Integral:

I. – RELATÓRIO.
Os Autores AA e esposa, BB, intentaram, em 24-04-2009, na Comarca de Santo Tirso – 3º Juízo Cível, a acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra os Réus CC, DD e esposa, EE, tendo pedido a respectiva condenação dos Réus a:  
“a) A reconhecerem que o A. marido é dono e legitimo possuidor, com exclusão de outrem, do prédio identificado no art. 1º da petição [prédio rústico sito no Lugar …, ..., inscrito na Matriz sob o artº … e descrito na Conservatória sob o n …].
b) Que sobre os prédios doados ao 1º R. e melhor identificados no art. 10.º da petição, se encontra constituída uma servidão de passagem permanente, a pé, com tractores ou outros veículos automóveis, em beneficio do prédio do A. marido melhor identificado no Art.º 1º da petição, a qual se desenvolve no sentido nascente/poente, tendo o caminho uma extensão de cerca de 27 m de comprimento e uma largura média de 5 a 5,5 m, e pelo qual se faz o acesso do prédio do A. marido para a via pública (a nascente) e da via pública para este prédio.
c) A retirarem as colunas e portão melhor referido no Art. 21 da petição [implantados sobre o leito do caminho, nas proximidades da via pública e a vedar o acesso], e a estrutura de ferro e rede referida no antecedente Art. 26 da petição [sobre a entrada rampeada e igualmente a vedar a entrada], repondo assim o traçado do caminho de servidão do prédio dos AA, desde a entrada referida no Art. 12º [parte norte do prédio dos AA] até à via pública a nascente, livre de obstáculos que impeçam o acesso dos AA. a pé e com veículos, da via pública ao seu prédio e vice-versa, sempre que o desejem.
d) A pagar aos AA. uma indemnização pelos danos materiais e não materiais descritos sob os Arts. 45 a 50 da petição [derivados do impedimento de acederem e cultivarem o seu prédio], a liquidar em sede de execução de sentença.”
Substanciaram os pedidos com a factualidade que a seguir, em súmula queda extractada:
 - O A. marido é dono e legítimo possuidor de certo prédio rústico situado no Lugar da … (id. no item 1 da pi), adquirido por sucessão hereditária, e por usucapião e cuja propriedade se encontra a seu favor registada. Tal prédio (verba 9 da relação de bens apresentada no Inventário) fazia parte, com outros contíguos, de um conjunto, formado por dois urbanos e três rústicos, pertencente ao de cujus.
- Dois outros prédios desse mesmo conjunto (verbas 6 e 8) foram adjudicados à Cabeça de Casal e esta, por sua vez, doou-os ao 1º R. (CC).
- Desde tempos imemoriais, mas seguramente desde há mais de 20 anos, o acesso permanente de pessoas, a pé e com veículos, nomeadamente, tractores agrícolas e outros automóveis, do prédio do A. para a via pública – situada a nascente – e vice-versa, se vem fazendo através de um caminho (de servidão) implantado sobre aqueles dois prédios doados ao 1º R.. Com efeito, na parte norte do prédio do A. – na confrontação com o referido caminho –, existe uma abertura rampeada que faculta o acesso directo daquele a este, sendo que, nos dois prédios do citado 1º R, existe um caminho hoje pavimentado a cubos de granito, de largura variável mas em média com cerca de 5 a 5,5 metros, que se desenvolve em rampa de nascente para poente e cujo lado sul define a estrema com o prédio do A..
- Até há cerca de 5-6 anos esse caminho, nas proximidades da via pública (situada a nascente) não era vedado, era constituído por terra “batida”, nele eram visíveis, permanentemente, em toda a sua extensão, por toda a gente, sulcos e trilhos marcados pela passagem de pessoas e veículos para o prédio do A.. Assim, os AA, para acederem ao seu prédio, partiam do referido caminho público (localizado a nascente dele), passavam no dito caminho (o de servidão), neste percorriam cerca de 27 m e, flectindo, depois, para a sua esquerda, entravam naquele através da descrita abertura rampeada; no regresso, faziam percurso inverso.
- Assim era e se procedia já no tempo em que o prédio dos AA e os dos RR pertenciam todos ao mesmo dono (o de cujus) – tendo-se, com a separação, constituído uma servidão de passagem por destinação de pai de família ou, caso assim se não entendesse, por usucapião.
- Porém, há cerca de 5 anos, o 1º R. e seus pais (2ºs RR), implantaram sobre o leito do caminho (de servidão) e nas proximidades da via pública, sem autorização dos AA, umas colunas e um portão, que veda no sentido transversal todo o caminho de servidão, impedindo o acesso a quem não disponha de chaves para o abrir.
- Nessa ocasião, os RR ainda entregaram aos AA uma chave desse portão para eles o abrirem e passarem de e para o seu prédio sempre que necessitassem.
- Adrega que, há cerca de três anos atrás, os RR. mudaram a fechadura do dito portão, mas não entregaram (e recusam-se a entregar) aos AA. a nova chave, com o que estes ficaram impedidos de aceder ao seu prédio. Ainda na mesma ocasião, os RR mandaram colocar uma estrutura feita de tubo e rede de arame (tipo cancela), sobre a referida entrada rampeada, igualmente impeditiva do acesso ao prédio dos AA. Como este se situa a uma cota em média de mais de 3 m acima, em relação à via pública confinante (lado nascente) e a delimitação é feita por muro granítico, de nenhum outro acesso dispõem, a não ser naquele colocando uma escada móvel. 
- O facto de se verem impedidos de exercer sobre o seu prédio os actos que pretendiam e lhes são facultados como deles, proprietários, lhes causa danos patrimoniais e não patrimoniais, impossíveis de liquidar ainda.
Na contestação que opuseram ao peticionado pelos demandantes, vieram a refutar a existência de servidão de passagem (por qualquer das formas de constituição alegadas), impugnando a matéria de facto articulada relativa aos alegados sinais visíveis e permanentes reveladores da serventia (que dizem não existir e, por isso, inviabilizar a constituição por usucapião), à confrontação do prédio, a norte, com o caminho dos RR (que dizem ser com terreno onde se encontram castanheiros e um loureiro e não aquele), negando a existência de qualquer passagem, rampa ou acesso, sendo certo que o caminho a que se referem os AA foi pelo 1º R construído há cerca de 7 anos quando construiu um prédio urbano e dele necessitou para possibilitar a entrada de veículos (que a entrada existente no local “oposto” não permitia) e que o acesso ao prédio do 1º R. se fazia pela parte superior dos prédios e não pelo caminho alegado, que é obra recente. Nunca os AA exerceram actos de posse sobre o prédio de que se arrogam proprietários nem sobre o alegado acesso, nunca por este passaram (a pé ou com qualquer veículo). Os autores nunca deram ao prédio destino ou demonstraram interesse económico no cultivo do mesmo, podendo aceder dele à via pública, bastando para tal retirar terra junto a esta. O prédio dos AA nunca fez parte de um conjunto de prédios que o de cujus (pai do A e avô do 1º R) administrasse ou fruísse como um todo.
Após audiência de discussão e julgamento, foi proferida a decisão sobre a matéria de facto – cfr. fls. 279 a 285 – e na sentença prolatada veio a ser decidido: “(…) o tribunal julga parcialmente procedente a acção e, em consequência:
1. Condena os réus: a) A reconhecer que o A. marido é dono e legitimo possuidor do prédio melhor identificado no art. 1º da petição; b) Que sobre os prédios doados ao 1º R e melhor identificados no art. 10º da petição, se encontra constituída uma servidão de passagem permanente, a pé, com tractores ou outros veículos automóveis, em benefício do prédio do A. marido melhor identificado no Art. 1º da petição, a qual se desenvolve no sentido nascente/poente, tendo o caminho uma extensão de cerca de 27 m de comprimento e uma largura não inferior a 1,70 metros mas também não superior a 2 metros, e pelo qual se faz o acesso do prédio do A. marido para a via pública (a nascente) e da via pública para este prédio; c) A franquearem aos autores a passagem de pessoas e veículos pelo caminho de servidão, designadamente através da entrega àqueles de uma chave do portão melhor referido no Art. 21º da petição, repondo assim o traçado do caminho de servidão do prédio dos AA, desde a entrada (abertura rampeada) referida no Art. 12º da petição até à via pública a nascente, livre de obstáculos que impeçam o acesso dos AA. a pé e com veículos, da via pública ao seu prédio e vice-versa, sempre que o desejem.
d) A pagar aos AA. uma indemnização pelos danos patrimoniais descritos no ponto 33 da apurada factualidade, a liquidar ulteriormente em incidente de execução.
2. No mais, absolve os réus dos pedidos formulados pelos autores.”
Irresignados, impulsaram os demandados, recurso de apelação, que, a 19 de Setembro de 2014, veio a obter decisão de conformidade com o julgado proferido na 1.ª instância, com unanimidade de todos os Senhores Juízes Desembargadores intervenientes no Colectivo.
Detectada contradição entre uma questão apreciada no aresto – pressupostos da reapreciação, pelo Tribunal de 2.ª instância, da decisão de facto – exalçaram, os recorrentes, CC e outros, recurso de revista excepcional, que por douto acórdão da comissão de formação de apreciação preliminar, de 22 de Abril de 2014, obteve pronúncia positiva.    
Nas conclusões – cfr. fls. 420 a 440 – os recorrentes pugnam pela existência de contradição do julgado – não conhecimento, ou rejeição, da impugnação da decisão de facto, por ausência de referência/indicação (especificada) aos concretos passos da gravação da prova produzida em audiência - com o decidido no douto acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 4 de Julho de 2013, proferido na revista n.º 1727/07.1TBSTS-L.P1.S1 [[1]] – para além da eventual relevância jurídica da questão em pleito – o que justificaria a admissibilidade da peticionada revista excepcional. 

I.A. – QUESTÕES A MERECER APRECIÇÃO.

Em vista da pronúncia da comissão de formação de apreciação preliminar dos pressupostos da excepcionalidade da revista – foi afastado o pressuposto da relevância jurídica da questão objecto do litígio -, a única questão que importa perquirir prende-se com a interpretação a conferir ao estatuído no artigo 640.º do Código Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho

II. – FUNDAMENTAÇÃO.

II.A. – DE FACTO.

O Tribunal de 1.ª instância deu como provada, no que veio a ser coonestado pelo aresto em revista, a factualidade que a seguir queda extractada.
“1. Existe um prédio rústico denominado cultura, ramada e 2 castanheiros, com a área de 3.200m2, sito no lugar da ... (Aula), freguesia de ..., do concelho de Santo Tirso, a confrontar, actualmente, de norte com FF e caminho de servidão; sul com GG e rego; nascente com caminho e poente com FF, descrito na Conservatória actualmente sob o n.º … - freguesia de ..., e inscrito na matriz rústica respectiva sob o Art.º ….
2. Tal prédio foi adjudicado ao autor marido no processo de Inventário n.º 607/94, que correu termos pelo 1º juízo cível do Tribunal de Santo Tirso, por óbito de seu pai HH, conforme documento de fls. 30, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
3. A aquisição de tal prédio encontra-se registada definitivamente a favor do autor marido pela apresentação 21 de 20/08/1996.
4. Existe o prédio destinado à habitação, composto de um pavimento, com a área de S.C. 65 m2, Q. 3.000 m2 e D. com 24 m2, a confrontar de norte, sul e poente com caminho e do nascente com II, inscrito na matriz predial urbana sob o Art.º … e o qual faz parte do descrito na Conservatória do Registo Predial com o n.º …, com o valor tributável de 9.368$00.
5. Existe cultura, ramada, 3 fruteiras e 2 oliveiras, com a área de 1.490 m2, a confrontar de norte com JJ (Herd.) e outro; nascente com caminho; sul com urbano do próprio e caminho e do poente com estrada, inscrito na matriz predial rústica sob o Art.º … e o qual faz parte do descrito na Conservatória do Registo Predial com o n.º …, com o valor tributável de 14.004$00.
6. Os prédios identificados em 4 e 5 foram adjudicados no Inventário à cabeça de casal FF, e posteriormente, por esta doados a CC.
7. Nos prédios identificados em 4 e 5, existe um caminho hoje pavimentado a cubos de granito, com uma largura não uniforme, mas que em média atinge cerca de 5 m a 5,5m.
8. A cota de nível da superfície do terreno identificado em 1 é superior à cota de nível do caminho.
9. Sempre os autores, por si e antepossuidores, desde há mais de 20 anos que se encontram na posse do prédio identificado no ponto 1, lavrando, semeando, fazendo plantações, colhendo dele os frutos directamente por si ou dando de arrendamento, pagando as respectivas contribuições e impostos, de uma forma ininterrupta, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja e sempre na convicção de que estão a exercer um direito próprio e não lesar direitos alheios.
10. O prédio identificado no ponto 1, em vida do inventariado, já referido HH, juntamente com outros prédios contíguos entre si e também propriedade deste, formavam um conjunto, que o inventariado administrava e fruía como um todo.
11. Esse conjunto era constituído pelos imóveis constantes das verbas n.ºs 6, 7, 8, 9, 10 e 12 da Relação de Bens, e todos descritos na Conservatória do Registo Predial, de então como fazendo parte do n.º 14288, e inscritos respectivamente nos Arts. 84 e 85 urbanos, 462, 463 e 464 rústicos, todos da freguesia de ..., desta comarca.
12. Desde tempos imemoriais, mas seguramente desde há mais de 20 anos, que o acesso permanente de pessoas a pé e com veículos, nomeadamente, tractores agrícolas e outros veículos automóveis, do prédio identificado no ponto 1 para a via pública a nascente e vice-versa se vem fazendo através de um caminho implantado nos prédios identificados em 4 e 5.
13. Na parte norte do prédio dos autores existe uma abertura rampeada, que permite o acesso directo do prédio identificado no ponto 1 ao caminho, implantado no prédio doado ao 1º réu, sendo o lado sul desse caminho que define a estrema com o prédio dos autores, identificado no ponto 1.
14. Até há cerca de 6 anos (relativamente à data da entrada da petição inicial), no início de tal caminho só havia um pau de mimosa a servir de cancela.
15. O caminho tinha o seu piso em terra batida, bem puída, sendo bem visíveis os sulcos e trilhos como sinais da passagem das pessoas e veículos, para o prédio dos autores.
16. Para aceder ao seu prédio, os autores partiam do caminho público existente a nascente, entravam no caminho implantado nos prédios identificados em 4 e 5, circulavam nele cerca de 27m e flectindo para a esquerda entravam no seu prédio pela abertura rampeada.
17. Os autores, para se dirigirem do seu prédio à via pública, faziam exactamente o mesmo trajecto, mas agora em sentido contrário.
18. Do seu prédio passavam ao caminho pela entrada rampeada, viravam à direita e percorriam cerca de 27 m descendo até atingir a via pública.
19. Os autores, além do caminho referido nos prédios identificados em 4 e 5, não dispõem de outro acesso à via pública.
20. A cota de nível da superfície do terreno dos autores é separada do caminho, por um muro de pedras graníticas.
21. No tempo em que o prédio dos autores e os doados ao 1º réu pertenciam ao mesmo dono, HH, era pelo referido caminho, que à época possuía uma largura não inferior a 1,70 metros mas também não superior a 2 metros, que se fazia o acesso do prédio identificado no ponto 1 à via pública.
22. Nessa altura, existia o caminho com piso em terra batida e com os trilhos bem marcados no terreno, tal como a entrada rampeada.
23. Estes sinais revelavam-se de forma permanente, sendo visíveis em toda a largura e extensão do caminho.
24. Tais sinais eram visíveis por toda a gente, incluindo os autores e os réus, e por todos havidos como revelando inequivocamente serventia de passagem do prédio dos autores para a via pública e vice-versa.
25. Ao tempo da separação do prédio dos autores do doado aos réus, nada foi declarado que contrariasse a continuação da serventia, nos termos em que esta se vinha fazendo quando os prédios eram do mesmo dono.
26. Os autores e seus antepossuidores, sempre que o desejavam, por si ou por interpostas pessoas, saíam da via pública a pé ou com veículos automóveis, de carga ou tractores agrícolas, subiam pelo caminho hoje empedrado existente nos prédios doados ao 1º réu, circulavam nele mais ou menos 27 m, e virando à esquerda penetravam no seu prédio através do acesso rampeado.
27. Fazendo trajectória inversa, quando pretendiam sair do seu prédio para a via pública.
28. Sempre o fizeram, quando o desejassem, desde há mais de 20 anos, á vista de toda a gente, de forma ininterrupta, sem oposição de ninguém e sempre na convicção de exercer um direito próprio e não lesar direitos alheios.
29. Os 2ºs réus são quem, juntamente com o 1º réu, administram os prédios doados a este, e nele decidem e executam as obras e benfeitorias que aí fazem ou mandam fazer.
30. Há cerca de 5 anos (com referência à data da entrada da petição inicial), o 1º e 2ºs réus, (sem autorização dos autores), implantaram sobre o leito do caminho, e nas proximidades da via pública, umas colunas e um portão, que veda no sentido transversal todo o caminho, impedindo o acesso a quem não disponha de chaves para abrir o portão.
31. Nessa ocasião, os réus entregaram aos autores, uma chave do referido portão para que estes o pudessem abrir e franquear a passagem de pessoas e veículos, sempre que necessitassem de se deslocar ao seu prédio.
32. Há cerca de três anos atrás, os réus mudaram a fechadura do portão, mas não entregaram aos autores a nova chave.
33. O prédio referido no ponto 1. tem uma área de terreno de 3.200m2, mas os autores estão impedidos de cultivar esse terreno e de, aí fazerem sementeiras, plantações, fazer limpezas, plantar árvores ou abatê-las e colher os respectivos frutos, o que impede os autores de receber o lucro que isso lhe traria (assim se corrigindo a redacção que por lapso evidente foi dada ao art. 35º da base instrutória).
34. Os autores não conseguem visitar o prédio identificado no ponto 1, desfrutá-lo, atempadamente decidir melhorias a fazer ou tomar atitudes que lhes evitem prejuízos, o que lhes causa desconforto.
35. O caminho actualmente existente no local é o que resulta de obras de alargamento efectuadas pelo réu CC, há cerca de 7 anos, no caminho referido no ponto 21, quando aquele necessitou de construir o edifício de que é proprietário, de forma a possibilitar a entrada de veículos pesados, pois a entrada existente no local oposto não permitia o acesso para veículos pesados de mercadorias.”

II. – DE DIREITO.

II.A.- PRESSUPOSTOS DA REAPRECIAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO PELO TRIBUNAL DE 2.ª INSTÂNCIA – FUNDAMENTOS DA REJEIÇÃO DO RECURSO.

Insurgem-se os recorrentes pela falta de conhecimento da impugnação da matéria de facto – ou pelo menos na amplitude que lhe conferiram no recurso, por referência à prova testemunhal produzida em audiência de julgamento – por, em seu aviso, haverem cumprido os ditames/requisitos – cfr. artigo 685.º-B do Código Processo Civil, a que corresponde o artigo 640.º do Código Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho - de que depende a cognoscibilidade da impugnação da decisão de facto proferida no tribunal de 1.ª instância.

Depois de acoimarem a decisão de facto de contraditória – contradição que escrutaram nas respostas conferidas aos quesitos 39.º e 40.º da base instrutória – e de obscuridade entre pontos (que não especificaram das respostas à matéria de facto – os recorrentes insurgem-se contra a rejeição da impugnação por o tribunal não ter atendido á indicação por banda dos recorrentes quanto aos pontos de facto que julgavam ter sido erradamente decididos, com a justificação de que (sic):”(…) Sucede que, a respeito das respostas aos quesitos 39 e 40 (cfr. conclusões 28 e 30), e no que tange a prova pessoal gravada, nenhuma passagem dos depoimentos invocados (cfr. conclusões 26 e 27) foi exactamente indicada, limitando-se os apelantes a relatar, nas suas palavras, a sua percepção do que terá sido admitido, da pretensa unanimidade sobre a matéria em causa e da postura com que aqueles terão sido prestados e a discordar da credibilidade dada a outras testemunhas que nomearam, tecendo depois os seus próprios comentários sobre as conclusões por si extraídas.

O mesmo acontece quanto às respostas aos quesitos 8 a 15, 25, 27 a 34 e 36. Os apelantes limitam-se a dizer, sumariamente, o que, em sua perspectiva e por suas palavras, cada uma das seis testemunhas por si arroladas “referiu” no sentido que pretensamente corrobora a sua tese.

A lei, para facultar a reapreciação, não se basta, naturalmente, com tal reporte. Exige que o tribunal superior seja confrontado com a gravação dos depoimentos (em discurso directo) na parte relevante (na medida em que apontada como fundamental) para o fim pretendido ou com a sua transcrição e, para tal, que o recorrente as indique com precisão (por forma a que, como se compreende, o tribunal, ao longo de extensos depoimentos de várias horas, localize eficazmente essa parte e a ouça) ou transcreva (para que as leia).

Não tendo, injustificadamente, feito tal indicação por forma a colocar o tribunal ante as passagens dos depoimentos que entendessem relevantes e a, com base nelas, facultar-lhe a reapreciação do decidido à luz das alegações e contra-alegações, a sanção consiste na imediata rejeição do recurso no que se refere a tal impugnação.”

Adrega de o tribunal “(…) embora estando os apelantes impossibilitados de fazer valer os depoimentos testemunhais e o tribunal impedido de os reapreciar, o recurso não pode ser totalmente rejeitado e deve prosseguir em ordem a apurar-se e decidir-se se, com base na prova documental indicada, pode ter lugar a pretendida alteração.” 

Vale dizer que o tribunal, ainda que tendo descartado, pelas razões explicitadas no aresto, a reapreciação da decisão de facto, com base na deficiente alegação/indicação das concretas passagens em que a impugnação se baseava, o facto é que acabou por apreciar a pretendida impugnação tão só com base na prova documental existente no processo.

A apreciação do objecto/tema recursivo cinge-se à específica questão da rejeição do recurso quanto à impugnação da decisão de facto, por carência da indicação concreta dos pontos da gravação em que se encontravam gravados os depoimentos em que se fundava a divertida interpretação/ilação factual que conduziria a um diverso juízo probatório relativamente aos enunciados de facto propostos pelo tribunal para prova da versão dos recorrentes/demandados.

Importa atentar que a lei adjectiva, a partir do DL n.º 39/95, de 15-02 introduziu significativas alterações no procedimento judiciário quanto ao regime de registo de prova, inculcando a ideia de pretender consagrar e fincar um segundo grau (efectivo) de recurso da decisão de facto que, até aí, resultava bastante difuso. Ao instituir, como regime-regra a gravação da prova produzida, em audiência de julgamento, o legislador pretendeu concavar, aprofundando, um grau de recurso que atentasse e procedesse - dentro dos limites que uma gravação, deserta e despida dos factores possibilitados pela imediação, consentisse uma verdadeira e conscienciosa reapreciação da decisão de facto.

Daí que, tendo uma audiência decorrido com recurso a gravação da prova, o recurso que vier a ser interposto da decisão de facto deva seguir regras muitas apertadas de conhecimento, sob pena de se frustrar o espírito que o legislador pretendeu inculcar com a consagração de um efectivo e eficaz grau de decisão da matéria de facto.

O propósito do legislador – que, tendo como finalidade na alteração produzida um efectivo segundo grau de recurso da decisão de facto, não pretendeu uma reedição irrestrita e ilimitada do julgamento da matéria de facto – terá sido o de lindar e confinar as tenções e a tentação dos intervenientes processuais de pretenderem que o tribunal de segunda (2.ª) instância realizasse um segundo julgamento, desbordando aquele que houvera sido efectuado na primeira (1.ª) instância, por um lado, e por outro, para evitar impugnações generalizantes ou generalizadoras, o legislador cingiu e apertou as malhas para o recurso da matéria de facto, introduzindo exigências e mecanismos de contenção através da exigência/necessidade de concreção dos elementos exigíveis para a impugnação da matéria de facto, o que importa um controlo apertado pela instância de recurso por forma a comprimir e reduzir os impulsos recursórios deficientes e/ou inapropriados.

Tendo presente este quadro normativo, torna-se natural que as exigências que são cometidas aos recorrentes devam ter uma contrapartida da parte das instâncias de recurso. Vale por dizer que, se o legislador exige que o recorrente seja meticuloso e parcimonioso na forma como impugna a decisão de facto, impondo-lhe, nomeadamente, a especificação dos concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgadas e quais os concretos meios probatórios, constantes e existentes no processo, que impõem decisão factual diversa, também exige, que o tribunal de recurso, seja meticuloso e consciencioso no momento em que procede à reapreciação pedida.

As exigências que o legislador impõe, itera-se, prendem-se com a necessidade de o recorrente indicar os concretos pontos da decisão de facto que estima que, em face da prova constante do processo - documental, pericial ou testemunhal -, deva merecer uma decisão diversa. Relativamente à obrigatoriedade da indicação dos meios de prova, o legislador impõe ónus ou injunções de procedimento que atinam com o principio de impugnação recursiva especificada ou confinada, isto é, com a imposição de o recorrente não estender o recurso a todo o julgamento, mas tão só aqueles pontos que estima merecerem outra decisão, em face da prova, que indicará. Daí a imposição injungida ao recorrente de, com os pontos de facto impugnados, proceder a uma concreta e especifica indicação das passagens do registo ou gravação da prova que contraminam ou colocam em crise a valoração/apreciação da decisão de facto formulada pelo tribunal de primeira (1.ª) instância. Com essa indicação – das passagens da gravação ou de registo áudio -, cingida e dirigida aquela concreta impugnação, o legislador pretende que o julgamento efectuado na segunda instância não se transforme num segundo (pleno e total) julgamento da causa, retirando o sentido primacial e determinante a quem julga em primeira (1.ª) instância, nomeadamente pela valorização que o legislador atribui ao princípio da imediação e da oralidade e da percepção que deles resulta para o julgador na afirmação de juízos valorativos directa e imediatamente percepcionados e compreendidos. Será, pela valorização e assumpção determinante e axial que o legislador confere a estes princípios, que na impugnação da decisão de facto formulada pela primeira (1.ª) instância que a lei cinge e limita pela forma descrita o recurso da decisão de facto. Não será, certamente alheio a este desígnio e propósito legislativo, o facto de não ser possível reeditar, em segunda (2.ª) instância todo o material probatório que serviu de base á decisão de facto, com todas as vicissitudes que nele podem ocorrer, e, com isso, o tribunal de segunda (2.ª) dever estar limitado aos meios de prova já produzidos, a menos que estime que não foram produzidos todos aqueles que deveriam ter sido, em face da matéria a demandar prova, mas neste caso abstém-se de julgar e ordena a produção dessa prova. Em suma, o julgamento da decisão de facto, se deve ser uma aspiração/direito legalmente consagrado, não pode transformar o tribunal de segunda (2.ª) instância em tribunal de substituição total e pleno, anulando, de forma plena e absoluta, o julgamento que foi realizado por um tribunal a quem cabe, em primeira e decisiva linha, fazer uma aproximação, imediata e próxima, das provas que lhe são presentes. [[2]] À segunda instância cabe proceder ao julgamento da decisão de facto por forma a corrigir erros de julgamento patentes nos tribunais de 1.ª instância, mas dentro de limites que não podem exacerbar ou expandir-se para além do que a lei comina.

É, pois, função, no regime de recurso da matéria de facto, que o tribunal de recurso aja ou se comporte como um tribunal de instância – que é – e exerça o seu múnus de proceder a um reexame cingido e impressivo das provas que foram produzidas no tribunal de 1.ª instância. Não se pode bastar com a alegação generalizadora e remissiva de que o tribunal de 1.ª instância, no razoamento a que procedeu para fundamentação da decisão de facto, colheu as provas necessárias e congraçou os argumentos por forma a conferir um lastro de coerência, logicidade e coesão de raciocínio à fundamentação da decisão de facto. O que se pede ao julgador de 2.ª instância é que revisite as provas com que o recorrente abonou a impugnação por forma a atestar ou infirmar a razão probatória fundamentadora utilizada pela 1.ª instância para conferir determinada decisão sobre um concreto ponto de facto.

Este Supremo Tribunal já teve ocasião de pronunciar sobre essa necessidade/exigência jurídico-processual em acórdão desta secção tendo-se firmado ou vincado a posição de que: “Não é compatível com a exigência da lei, em termos de reapreciação da matéria de facto, o exercício (apenas formal) por parte da Relação de um poder que se fique por afirmações genéricas de não modificação da matéria de facto, por não se evidenciarem erros de julgamento ou se contenha numa simples adesão aos fundamentos da decisão, ou numa pura aceitação acrítica das provas, abstendo-se de tomar parte activa na avaliação dos elementos probatórios indicados pelas partes ou adquiridos oficiosamente pelo tribunal.[[3]]

Impressivo o acórdão deste Supremo Tribunal de 12-03-2009 que doutrinou: “1. Após a entrada em vigor do Decreto-lei 183/2000, de 10 de Agosto, tendo ocorrido, em julgamento, gravação dos depoimentos prestados, e sendo impugnada, nos termos do art. 690.º-A do CPC, a decisão de facto com base neles proferida, a reapreciação das provas em que assentou a parte impugnada da decisão, a efectuar pela Relação, nos termos do n.º 2 do art. 712º do mesmo Código, implica, além do mais, que esta ouça ou visualize os depoimentos indicados pelas partes, como o impõe o n.º 5 daquele art. 690º-A. 2. Nesse caso, a Relação vai, na sua veste de tribunal de apelação, reponderar a prova produzida em que, no tocante aos pontos de facto visados, assentou a decisão impugnada. 3. Essa reapreciação tem, quanto aos pontos sobre que incide, a amplitude de um novo julgamento em matéria de facto, podendo a Relação, no uso da sua liberdade de convicção probatória, aderir ou não aos fundamentos e à decisão da 1ª instância: a liberdade de julgamento a que alude o n.º 1 do art. 655º vale também nesta reapreciação. 4. Só assim se assegura um duplo grau de jurisdição em matéria de facto e se vai além de um mero controlo formal da motivação da decisão da 1ª instância, dando-se concretização a uma das garantias judiciárias fundamentais das partes. 5. Se, não obstante a gravação da prova, a Relação não cumpre o poder-dever de a reapreciar nos moldes supra referidos, não procedendo à sua audição e não fazendo o exame crítico, concreto e pontual dos meios de prova invocados pelo recorrente e pelo recorrido, deve o Supremo anular o acórdão recorrido e fazer baixar o processo à Relação para que aí, se possível pelos mesmos juízes, se proceda à reapreciação em termos devidos, e se profira nova decisão. [[4]/[5]]

Adentrando-nos na apreciação das questões suscitadas pelos demandados/recorrentes, a primeira exsurge da incorrecta avaliação que o tribunal de recurso fez da forma como os recorrentes procederam á impugnação da decisão da matéria de facto que estimavam haver sido incorrectamente julgada pelo tribunal de primeira (1.ª) instância. Na perspectiva da recorrente o modo com essa impugnação foi efectuada cumpriu, os ditames e exigências determinadas nos preceitos adrede, notadamente o artigo 685.º-B do Código Processo Civil, porquanto para além de ter referido os testemunhos em que alicerçava a sua discrepância ou dissensão relativamente ao julgamento dos concretos pontos de facto propostos ao tribunal para solução fáctico-jurídica fez indicação dos suportes digitais em que os testemunhos que indicou se encontravam gravados.

Concedemos que não é essa exigência, tão abrangente e genérica, que o legislador comina na normação adrede, mas também é verdade que não podemos exigir que, numa matéria tão sensível, como é a de um recurso, com a função modificativa e/ou de alteração da decisão de facto, o recorrente deva cumprir, escrupulosa e pontualmente, todos os ditames e especificações dos preceitos legais. Repontar-se-á que se não se exige e zela pelo cumprimento das normas, principalmente os tribunais superiores, então para que se exige a todos os cidadãos o estrito cumprimento dos comandos (imperativos) que a lei geral determina? Aceitando a objecção, importa introduzir factores de ponderação e morigeração que atinam com as concretas circunstâncias de cada caso. A validade o direito [[6]] afirma-se num permanente diálogo e dialéctica tensional e interrogante da norma com a realidade que aquela pretende conformar e regular, não sendo possível conceber um direito positivo inerme e paralisante da vivência societária. Não se pode restringir o corpo normativo a um mero repositório de injunções prescritivas despojadas de sentido vivencial e com uma função de regulação abstracta. Antes, deve estar – por tudo e acima de tudo – ao serviço do individuo e da concreta e real vivência do Ser. Vale dizer, que as normas devem, se cumpridas com um mínimo de arrimo sociojurídico e ser interpretadas não na sua literalidade lógico-positiva, mas moldando-lhe o sentido e conferindo-lhe poder significante casuisticamente considerado.                        

Dir-se-á que a admitir-se uma impugnação em tão alargada latitude, isto é, fazendo tão só a indicação de onde o depoimento está gravado, sem a concreta indicação das passagens que colidem com os pontos de facto (concretos) que pretendem sejam novamente objecto de julgamento, pelo tribunal de recurso, estamos a permitir que o julgamento se processe em termos tão vastos que frusta o objectivo do legislador e abre a porta a impugnações genéricas e desprovidas de especificação que o legislador quis evitar e, quiçá, proibir. 

O legislador, na sua ponderação de não alargar em demasia a impugnação da decisão de facto e conter o eventual ímpeto recursivo quanto a esta matéria, apenas impôs e injungiu regras procedimentais para que o recurso possa ser aceite e obtenha conhecimento no tribunal de recurso. Ainda assim, pensamos, que o plano das exigências inscritas no preceito ordenador e que se prendem com o apertado formalismo imposto aos recorrentes – indicação dos concretos pontos de facto cuja decisão pretendem ver alterada, por estimarem estarem incorrectamente julgados; quais os concretos meios probatórios que impõem diverso julgamento (dos concretos pontos de facto indicados), e quando os meios probatórios tenham sido gravados, quais os depoimentos em que funda a discordância – tem de permitir a aceitação de um parâmetro de admissibilidade compaginável com a função e a finalidade do recurso da decisão de facto, qual seja a de que, desde que o apelante cumpra, no essencial com o ónus imposto na lei, o tribunal não pode deixar de proceder à reapreciação da decisão de facto. Isto mesmo, resulta do doutrinado no acórdão fundamento quando refere (sic):”[Aliás], as diferenças entre o anterior preceito (Art.º 690º-A) e o actual, no que aqui interessa considerar, apenas se verificam em relação ao n.º 2 dos preceitos.

Quanto ao n.º 1, as redacções são coincidentes.

Assim, em ambos os casos se exige a indicação concreta dos pontos de facto que se consideram incorrectamente julgados, bem como a indicação, igualmente concretizada, dos meios probatórios constantes do processo, do registo ou da gravação, que impunham decisão diversa.

Ora, a simples leitura da alegação da Ré (na apelação) permite concluir, com toda a evidência, que foram integralmente cumpridos os ónus referidos no aludido n.º 1 (de qualquer dos preceitos).

A Ré identificou concretamente os pontos de facto tidos por mal julgados, e indicou com toda a clareza os meios de prova constantes do processo (documentos) e da gravação (depoimentos), que, na sua opinião, impunham decisão diversa sobre os pontos de facto impugnados.

Já quanto ao n.º 2 dos preceitos, encontram-se, na verdade, algumas diferenças.

Em síntese, pode dizer-se que o D.L. 303/2007 faz a distinção entre os casos em que é possível a identificação precisa e separada dos depoimentos, nos termos do n.º 2 do art.º 522º-C do C.P.C., ou seja, através da sua localização na gravação, e os casos em que tal identificação não é possível.

No primeiro caso, não é obrigatória a transcrição da passagem da gravação em causa (embora o recorrente possa tomar a iniciativa de o fazer).

Em vez disso, exige-se a indicação exacta (com exactidão, diz a lei) das passagens da gravação em que se funda a impugnação.

Como se faz, na prática, essa indicação exacta, não o diz a lei, omissão que é susceptível de criar dúvidas e interpretações diferentes com todos os inconvenientes facilmente previsíveis.

Há, então, que interpretar o preceito com grande cuidado, mas também com suficiente abertura, em ordem a não se frustrar, na prática, em muitos casos, o recurso sob a matéria de facto que a lei quis proporcionar aos recorrentes.

O critério interpretativo, deve, portanto, ter em conta os objectivos da lei, que pretende evitar a impugnação generalizada da matéria de facto, delimitando-a a determinados pontos concretos, em função de concretos meios de prova.

Assim, numa primeira abordagem, dir-se-á que a indicação exacta das passagens da gravação, referida no preceito, deve bastar-se com a indicação do depoimento ou depoimentos, e a identificação de quem os prestou, sem a obrigatoriedade da sua transcrição (integral ou por excerto) visto que a lei a dispensa, nem de as referenciar ao assinalado na acta, como era exigido pelo Art.º 690º-A, uma vez que tal exigência desapareceu do preceito.

No segundo caso, devem as partes proceder à transcrição das passagens da gravação em que funda a impugnação, ao que parece, sem se exigir a transcrição completa dos depoimentos, mas apenas das passagens (ou excertos) relevantes.” [[7]]    

 Se é inquestionável que o julgamento a que o tribunal de recurso procede, na sua função de escrutinar e sindicar eventuais erros de julgamento – error in judicando –, praticados no tribunal recorrido, não pode redundar num novo e total julgamento da causa, não deixa de ser menos verdade que, tal como o legislador entendeu dever regular o recurso da decisão de facto, não pode o tribunal de recurso eximir-se a essa reapreciação escoltado e respaldado numa ausência de indicação, estreme, das passagens das gravações em que se encontrem gravados os depoimentos que, no juízo do recorrente, impõem decisão do impugnado enunciado fáctico. Não pode, o tribunal de recurso, em nosso aviso, deixar de conhecer do recurso da decisão de facto se, tendo o recorrente cumprido, ainda que, com alguma parcimónia, o dever injungido pelo comando legal.

No caso em apreço, como se refere, o douto acórdão proferido pela comissão de apreciação preliminar, “[no] que respeita à interpretação do citado n.º 2 do art. 685.º-B, parece claro que a interpretação restritiva e literal adoptada pelo acórdão recorrido se opõe à interpretação extensiva do acórdão fundamento, de modo que aplicando-se este último critério interpretativo, as referências feitas ao que terá sido pelas testemunhas concretamente identificadas pelos apelantes a respeito dos pontos de facto impugnados, igualmente identificados na alegação, apesar de não aparecerem com a transcrição directa do que constará na gravação, nem concretamente localizadas por referência ao assinalado na acta (o que, aliás, nem seria possível, porquanto da acta não consta o inicio e o termo da gravação de cada depoimento, sem que se veja que os apelantes tenham qualquer responsabilidade), seriam suficientes para se ter com cumprido, no essencial, o ónus imposto à parte pelo dito preceito.”           

Como se extrai das conclusões – transcritas na parte interessante nas conclusões do recurso de revista – o apelante fez uma resenha – súmula ilativa - dos depoimentos das testemunhas que, em seu juízo, serviam para contraditar a solução que o tribunal tinha conferido aos enunciados de facto a que devia dar resposta e fez menção/indicação das gravações em que tais depoimentos se encontravam ineridos.

O recorrente/apelante cumpriu, no essencial, com o comando legal inscrito no artigo violado pelo que o tribunal deveria ter procedido à reapreciação da decisão de facto, não só por referência aos elementos documentais insertos no processo, mas também com referência à prova testemunhal indicada na apelação. 

III. – DECISÃO.

Na defluência do exposto, acordam os juízes que compõem este colectivo, na 1.ª secção do Supremo Tribunal de Justiça, em:

- Conceder a revista, e, em consequência, anular a decisão recorrida que deverá ser substituída por outra que reaprecie a decisão de facto, tal como pretendido pelos recorrentes;

- Sem custas, por os recorridos não terem deduzido oposição ao recurso.

  Lisboa, 25 de Junho de 2014

 Gabriel Catarino (Relator)

Maria Clara Sottomayor

 Sebastião Póvoas

____________________________

[1] Queda transcrito o sumário adrede. ““II - O DL n.º 303/2007, de 24-08, faz a distinção entre os casos em que é possível a identificação precisa e separada dos depoimentos, nos termos do n.º 2 do art. 522.º-C do CPC, ou seja através da localização na gravação, e os casos em que tal identificação não é possível. No primeiro caso, não é obrigatória a transcrição da passagem da gravação em causa; exigindo--se, em vez disso, a localização exacta das passagens da gravação em que se funda a impugnação; III - A indicação exacta das passagens da gravação deve bastar-se com a indicação do depoimento ou depoimentos, e a identificação de quem os prestou, sem obrigatoriedade da sua transcrição (integral ou por excerto) visto que a lei a dispensa, nem com a necessidade de as referenciar ao assinalado na acta - como era exigido pelo art. 690.º-A do CPC -, uma vez que tal exigência desapareceu do preceito; IV - A delimitação concreta dos pontos de facto considerados incorrectamente julgados e demais ónus impostos pelo art. 685.º-B do CPC, há-de ser efectuada no corpo da alegação; nas conclusões bastará fazer referência muito sintética aos pontos de facto impugnados, e às razões porque se pretende a sua alteração, sem necessidade de transcrever (ou copiar) o que a respeito se escreveu no corpo da alegação sobre a matéria; V - Existindo gravação da audiência final e, portanto, dispondo a Relação de uma visão de conjunto de toda a prova produzida, é claro que, decidindo alterar determinados pontos de facto impugnados, pode e deve "adaptar" outros., mesmo que não impugnados expressamente, de modo a evitar contradições; VI - A reapreciação da prova, permitida ao abrigo do disposto nos arts. 685.º-B e 712.º, n.º 1, al. b) e n.º 2 do CPC, assenta, na verdade, na análise crítica da prova em que se fundamentou a parte impugnada da decisão de facto e pode conduzir à sua alteração, quer porque o tribunal de recurso entenda que aquela prova foi mal apreciada ou interpretada, quer porque constate a existência de outros elementos probatórios relevantes, invocados pela recorrente na sua alegação, que não foram tidos em consideração pelo julgador de 1.ª instância.” 

[2] Veja-se a este propósito o douto Ac. STJ de 16-12-2010; in www.stj.pt: “I – Em face do estatuído nos arts. 668.º, n.º 1, al. d) e 660.º, n.º 2, do CPC, o juiz deve pronunciar-se sobre todas as questões que sejam submetidas à sua apreciação, mas não deve tomar conhecimento de questões não submetidas ao seu conhecimento. No primeiro caso existirá omissão de pronúncia, no segundo ocorrerá um excesso de pronúncia. II – Os recorrentes ao invocarem, em sede de recurso de revista, documentos juntos ao processo – que constituem meios de prova –, demonstram o seu inconformismo face aos factos que as instâncias deram como assentes. Mas quanto a isso, o STJ nada pode fazer, sabendo-se que, em regra, este tribunal apenas trata de saber da aplicação correcta dos factos ao direito. III – O STJ só poderá proceder à análise/modificação da matéria de facto nas limitadas hipóteses contidas nos arts. 722.º, n.º 2, e 729.º, n.ºs 2 e 3, do CPC, i.e., quando a decisão das instâncias vá contra disposição expressa da lei que exija certa prova para a existência do facto ou fixa a força de determinado meio de prova (prova vinculada), quando entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, ou quando ocorrem contradições da matéria de facto que inviabilizem a decisão jurídica do pleito. IV – O DL n.º 39/95, de 15-02, introduziu profundas alterações no ordenamento jurídico ao prever a possibilidade do registo das audiências finais e da prova produzida, conferindo aos interessados o exercício de um completo controlo sob a prova produzida, possibilitando o recurso a um verdadeiro duplo grau de jurisdição. Esta possibilidade foi reforçada com a publicação dos DL(s) n.ºs 329-A/95, de 12-12, 180/96, de 25-09, e 183/2000, de 10-08, tendo o legislador aditado ao CPC um conjunto de normas relativas ao registo dos depoimentos, designadamente o disposto nos arts. 512.º, n.º 1, 552.º-A, 552.º-B, 522.º-C e 690.º-A. V – Quando exista gravação dos depoimentos prestados em audiência, a Relação reapreciará e reponderará a prova produzida sobre que assentou a decisão impugnada, atendendo aos elementos indicados, de modo a formar a sua própria convicção. Só assim se assegurará o duplo grau de jurisdição. VI – A reapreciação da prova que compete à Relação deve ultrapassar o mero controlo formal da motivação da decisão da 1.ª instância em matéria de facto, pelo que tendo o recorrente indicado os depoimentos em que funda a sua pretensão de alteração da matéria de facto, transcrevendo inclusivamente o teor desses testemunhos, cabe ao tribunal proceder a uma análise e observação deles e de outros elementos de probatórios, para formar a sua própria convicção (art. 655.º do CPC). VII – Não tendo o tribunal a quo procedido a uma correcta reavaliação da matéria de facto, procurando a sua própria convicção, não cumpriu o que estipula sobre o tema o disposto no art. 712.º, n.º 2, do CPC, não se tendo assegurado o duplo grau de jurisdição, pelo que é de anular o acórdão recorrido e determinar que os autos baixem à Relação para que proceda à reapreciação da matéria de facto impugnada.

[3] Cfr. Acórdão deste Supremo Tribunal de 02-03-2011 cujo sumário por pertinente se deixa transcrito: “

“I - O STJ só poderá conhecer do juízo da prova sobre a matéria de facto, formado pela Relação, quando esta deu como provado um facto sem a produção da prova considerada indispensável, por força da lei, para demonstrar a sua existência, ou quando ocorrer desrespeito das normas reguladoras da força probatória dos meios de prova admitidos no ordenamento jurídico, de origem interna ou de origem externa. II - Se o recorrente pretende que o STJ sindique o correcto ou incorrecto uso dos poderes da Relação, no tocante à alteração ou modificação da matéria de facto, solicitando, no fundo, que se avalie se a Relação, ao efectuar a dita apreciação, se conformou, ou não, com a lei, a avaliação sobre o assunto a realizar será de direito e da competência do STJ. III - O legislador ao afirmar que a Relação “reaprecia as provas”, acrescentando que na reapreciação se poderá atender a “quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão” (cf. art. 712.º, n.º 2, do CPC), pretendeu que o tribunal de 2.ª instância fizesse novo julgamento da matéria de facto, fosse à procura da sua própria convicção e, assim, se assegurasse o duplo grau de jurisdição em relação à matéria de facto. IV - A Relação ao referir-se, sem qualquer especificação, aos depoimentos das testemunhas, de uma e outra parte, concluindo de forma vaga que “a decisão recorrida ponderou toda a prova produzida, não resultando na sua apreciação manifesto erro, nem flagrante desconformidade entre os elementos probatórios”, furta-se a formar a sua própria convicção, não reapreciando, como devia, as provas apresentadas em que assentou a parte impugnada da decisão “tendo em atenção o conteúdo das alegações do recorrente e recorrido” (cf. art. 712.º, n.º 2, do CPC). V - Não é compatível com a exigência da lei, em termos de reapreciação da matéria de facto, o exercício (apenas formal) por parte da Relação de um poder que se fique por afirmações genéricas de não modificação da matéria de facto, por não se evidenciarem erros de julgamento ou se contenha numa simples adesão aos fundamentos da decisão, ou numa pura aceitação acrítica das provas, abstendo-se de tomar parte activa na avaliação dos elementos probatórios indicados pelas partes ou adquiridos oficiosamente pelo tribunal. VI - Não tendo o tribunal a quo procedido a uma correcta reavaliação da matéria de facto, procurando a sua própria convicção, não cumpriu o que a lei impõe, não se tendo assegurado o duplo grau de jurisdição em matéria de facto, pelo que tem de ser anulado o acórdão recorrido, determinando-se a baixa do processo à Relação para que se proceda à devida reapreciação da prova.”

No mesmo sentido o acórdão deste Tribunal de Ac. STJ de 16-12-2010: “I - Sempre que a impugnação da decisão de facto tenha sido feita com observância do disposto nos n.ºs 1 e 2 do art. 690.º-A do CPC, estipula o n.º 5 do citado preceito que a Relação ouça os depoimentos gravados. II - A circunstância de as partes poderem estar de acordo quanto à existência de deficiências na gravação das provas não legitima, por si só, a recusa da 2.ª instância em efectuar a respectiva audição. III - Só assim se compreende o disposto nos arts. 9.º do DL n.º 39/95, de 15-02, e 712.º, n.º 3, do CPC, dado que a Relação não pode exercer cabalmente a faculdade legal de determinar a renovação dos meios de prova produzidos em 1.ª instância se, no que toca às provas gravadas, ela própria não tiver procedido à respectiva audição, em ordem a apurar concretamente: a) se existem ou não deficiências no registo dos depoimentos; b) no caso afirmativo, se tais deficiências inutilizam no todo ou em parte o registo efectuado; c) e, por fim, se as falhas detectadas são irrelevantes ou, pelo contrário, incidem em aspectos que possam ser decisivos para a reapreciação das provas que lhe compete levar a cabo. IV - O citado art. 9.º do DL 39/95, de 15-02, aponta no sentido de se poder considerar as anomalias na gravação das provas como uma irregularidade especial, a que se aplica um regime de igual modo especial e particularmente expedito e oficioso, que de resto se impõe à luz do manifesto interesse de ordem pública que visa alcançar-se com a gravação da audiência. V - A especialidade mais saliente deste regime legal traduz-se, justamente, na circunstância de a Relação poder ordenar por sua iniciativa a repetição das provas que se encontrem imperceptíveis sempre que isso se revele, no seu entendimento, essencial ao apuramento da verdade. VI - A convicção da Relação acerca da essencialidade da repetição das provas gravadas não pode ser alcançada sem a sua prévia audição. VII - A inaudibilidade de um ou mais depoimentos – facto que sempre terá de ser constatado pela 2.ª instância – equivale praticamente, quando esteja em causa reapreciar as provas em sede de apelação, à inexistência da prova produzida; e se a inaudibilidade for influente no exame da causa, ela é impeditiva da real concretização do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto (que, no caso, foi precisamente o direito que os recorrentes pretenderam exercer na apelação levada à Relação). VIII - Sem ouvir os depoimentos e proceder à sua análise crítica segundo o princípio da livre apreciação das provas fixado no art. 655º, n.º 1, do CPC, a Relação não pode optar com inteira segurança por manter ou modificar o julgado em 1.ª instância. IX - Se a Relação não tiver procedido à audição dos depoimentos gravados, violando, assim, os arts. 690.º-A, n.º 5, e 712.º, n.º 2, do CPC, há lugar à anulação do acórdão recorrido e ao reenvio do processo ao tribunal recorrido para reapreciação da matéria de facto impugnada e posterior conhecimento da apelação de harmonia com os factos que vierem a ser apurados.”

[4] No mesmo sentido ainda o recente acórdão proferido nesta secção, quanto a esta matéria, em 24-05-01 Conselheiro Garcia Calejo), disponível em www.stj.pt “II – Com vista à concretização do duplo grau de jurisdição sobre a matéria de facto impõe-se a gravação e registo da prova, abrindo-se assim o recurso amplo sobre a matéria de facto, tendo o legislador, para a prossecução desse desiderato, aditado ao CPC um conjunto de normas relativas ao registo dos depoimentos, designadamente os arts. 512.º, n.º 1, 522.º-A, 522.º-B, 522.º-C, 3 690.º-A; III – O legislador ao afirmar que a Relação “reaprecia as provas”, acrescentando que na reapreciação se poderá atender a “quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão” (cf. art. 712.º, n.º 2, do CPC), pretendeu que o tribunal de 2.ª instância faça novo julgamento da matéria de facto, vá à procura da sua própria convicção e, assim, se assegure o duplo grau de jurisdição em relação à matéria de facto. IV – Quando exista gravação dos depoimentos prestados em audiência, a Relação reapreciará e reponderará a prova produzida sobre que assentou a decisão impugnada, atendendo aos elementos indicados, de modo a formar a sua própria convicção; V - Não é compatível com a exigência da lei, em termos de reapreciação da matéria de facto, o exercício (apenas formal) por parte da Relação de um poder que se fique por afirmações genéricas de não modificação da matéria de facto, por não se evidenciarem erros de julgamento, ou se contenha numa simples adesão aos fundamentos da decisão, ou numa pura aceitação acrítica das provas, abstendo-se de tomar parte activa na avaliação dos elementos probatórios indicados pelas partes ou adquiridos oficiosamente pelo tribunal; VI – Não tendo o tribunal a quo procedido a uma correcta reavaliação da matéria de facto, procurando a sua própria convicção, não cumpriu o disposto no art. 712.º, n.º 2, do CPC, não tendo assegurado o duplo grau de jurisdição, em termos de matéria de facto, pelo que tem de ser anulado o acórdão recorrido, determinando-se a baixa do processo à Relação para que se proceda à devida reapreciação da prova.”

[5] Cfr. ainda quanto ao dever de fundamentar a sua (própria) decisão de facto, o modo com o tribunal de instância deve proceder à reapreciação da decisão de facto, os seguintes arestos deste tribunal: Ac. S.T.J. de 19-10-2004, Col. Ac. S.T.J., XII, 3º, 72; Ac. S.T.J. de 22-2-2011, Col. Ac. S.T.J., XIX, 1º, 76); Acs STJ de 24.09.2009, Proc. n.º 4303/05 e de 24.09.2013, Proc. nº 1965/04; Ac. S.T.J. de 20-9-2007, Col. Ac. S.T.J., XV, 3º, 58; Ac. S.T.J. de 3-11-2009, Proc. n.º 3931703.
[6] A propósito da validade do Direito, veja-se Castanheira Neves, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 143.º, N.º 3984, Janeiro-Fevereiro de 2014, Coimbra Editora

[7] cfr. citado acórdão de 4-07-2013, relatado pelo Conselheiro Moreira Alves. No mesmo sentido o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, relatado pelo Conselheiro Nuno Cameira, em que a propósito se escreveu: “I - Impugnado, no recurso de apelação, o julgamento da 1.ª instância sobre a matéria de facto e tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, não desrespeita os ónus estabelecidos no art. 690.º-A do CPC o recorrente que não indicou, na sua alegação, o início e o termo do registo áudio dos depoimentos das testemunhas, se o que ficou a constar das actas das várias sessões da audiência foi apenas “depoimento registado em suporte digital”, sem mais nenhuma especificação. II - Se em circunstância alguma há justificação para interpretar o aplicar o art. 690.º-A do CPC dum modo tão rigorista que, atribuindo aos ónus a cargo do recorrente um grau de exigência irrazoável, se lhe negue, na prática, o direito ao recurso em matéria de facto, por maioria de razão tal não deve acontecer quando a observância da lei em toda a sua dimensão se torna impossível por motivos a que o recorrente é alheio e imputáveis ao tribunal recorrido. III - Tendo a Relação sido convocada no sentido de reapreciar, além de prova testemunhal, prova documental identificada com nitidez, ainda que os depoimentos prestados não pudessem ser reapreciados por incumprimento, imputável ao recorrente, dos ónus impostos pelo referido art. 690.º-A, sempre restaria o dever da Relação se pronunciar acerca dos documentos em que o apelante também se estribou para censurar o veredicto da 1.ª instância e pedir a sua alteração. IV - Valendo na 2.ª instância, com amplitude idêntica à da 1.ª, o princípio fundamental da livre apreciação das provas fixado no art. 655.º, n.º 1, do CPC, nada impede que a Relação possa – e até deva, segundo a lei – expressar a convicção a que chegue acerca da matéria de facto impugnada no recurso, mesmo que, por qualquer razão de natureza formal, se revele inviável a reapreciação de todas as provas para o efeito indicado pelo recorrente, designadamente da prova gravada.”