Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
48/17.6GCALM.L1-A.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: CONCEIÇÃO GOMES
Descritores: REVISTA EXCECIONAL
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
INTEGRAÇÃO DE LACUNAS
Apenso:
Data do Acordão: 05/18/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - O âmbito do presente recurso cinge-se à matéria cível (art. 403.º, n.º 2, al. b), do CPP).

II - Pretende a recorrente que seja admitida a revista excecional, prevista no art. 672.º, do CPC, integrado no art. 400.º, n.º 3, do CPP, aplicável ex vi do art. 4.º, mesmo Código.

III - Em processo penal e em matéria de recursos, o CPP prevê e regulamenta autónoma e exaustivamente o modelo e os tipos de recurso. E a lei processual penal contém norma expressa que veda o duplo grau de recurso num caso como o presente. Duplo grau de recurso que a Constituição não consagra, sendo jurisprudência desde sempre pacífica, do TC, que o direito ao recurso constitucionalmente assegurado se basta com a garantia de um grau de recurso.

IV - E as normas processuais civis cuja utilização se pretende não tem aplicação em processo penal, desde logo porque o art. 4.º, do CPP, pressupõe a existência de uma lacuna, a qual não ocorre em matéria de recursos. Não ocorre seguramente ao nível das grandes linhas de organização do modelo e de classificação dos vários tipos de recursos, ordinários e extraordinários.

V - A decisão da formação é definitiva, mas esgota-se na questão que decidiu e sobre a qual foi chamada a pronunciar-se: a da verificação dos pressupostos referidos no n.º 1, do art. 672.º, do CPC, em apreciação preliminar sumária.

VI - E a apreciação preliminar sumária da formação não condiciona a admissão do recurso pela Secção criminal, pois não interfere com a decisão sobre a (ir)recorribilidade do acórdão da Relação. Não vincula a Secção criminal sobre tal decisão, da recorribilidade do acórdão da Relação, que só à secção criminal cumpre proferir (acórdão do STJ, de 12-01-2022, Proc n.º 519/16.8T8LLE.E1.S1).

VII – Pelo que, o recurso de revista excecional não é admissível, motivo pelo qual tem que ser rejeitado.

Decisão Texto Integral:

Acordam, na 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça



1. RELATÓRIO

1.1. No Juízo Local Criminal ...-Juiz ... do Tribunal Judicial da Comarca ..., foi julgado em processo comum singular o arguido AA, divorciado, nascido em .../.../1961, natural da freguesia ..., ..., filho de BB e de CC, residente na Rua ..., ..., por tendo sido decidido, na parte que aqui releva:

Condenar a demandada civil, Companhia de Seguros Allianz Portugal, S.A. no pagamento aos Assistentes, DD e EE, do montante global de € 349.782,94 (trezentos e quarenta e nove mil, setecentos e oitenta e dois euros e noventa e quatro cêntimos), correspondente a:

a. € 4.910,00 a título de danos patrimoniais sofridos por EE e referentes às consultas de psicologia e psiquiatria.

b. € 4.872,94 igualmente a título de danos patrimoniais e referente às despesas de funeral do ofendido FF.

c. € 200.000,00 pelo dano morte.

d. € 80.000,00 devidos a EE pelos danos morais sofridos com a perda do seu filho.

e. € 60.000,00 devidos a DD pelos danos morais sofridos com a perda do seu filho.

1.2. Inconformados com a sentença dela interpuseram recurso o arguido AA e a demandada seguradora Companhia de Seguros Allianz Portugal S.A. para o Tribunal da Relação ..., e por acórdão 30 de janeiro de 2020 foi deliberado julgar improcedentes os recursos interpostos pelo arguido AA e pela demandada Companhia de Seguros Allianz Portugal S.A., confirmando integralmente a decisão recorrida.

1.3. Inconformada com o acórdão do Tribunal da Relação ... a demandada COMPANHIA DE SEGUROS ALLIANZ PORTUGAL. S.A. veio interpor recurso de Revista Excecional, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 672º, nº 1, alíneas b) e c) do Código de Processo Civil, ex vi artigo 4º do Código de Processo Penal.

1.4. Por acórdão de 18 de novembro de 2020, desta 3ª Secção Criminal foi decidido ordenar a remessa dos autos à distribuição pelas secções cíveis, tendo sido proferido acórdão em 12 de janeiro de 2021 pela formação a que alude o art.672º, do CPC admitida a revista excecional.

1.5. Na sequência de tal acórdão, por despacho de 21 de janeiro 2021 foi ordenada a remessa dos autos à distribuição pelas secções cíveis.

1.6. Por despacho de 08 de fevereiro de 2021 foram os autos devolvidos a esta 3ª secção criminal para apreciar a revista excecional.


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2. O DIREITO

O âmbito do presente recurso cinge-se à matéria cível (art. 403º, nº2, al. b), do CPP).

Pretende a recorrente que seja admitida a revista excecional, prevista no art. 672.º do CPC, integrado no art. 400º, nº 3, do CPP, aplicável ex vi do art. 4º, mesmo Código.

Em processo penal e em matéria de recursos, o Código (de processo penal) prevê e regulamenta autónoma e exaustivamente o modelo e os tipos de recurso. E a lei processual penal contém norma expressa que veda o duplo grau de recurso num caso como o presente. Duplo grau de recurso que a Constituição não consagra, sendo jurisprudência desde sempre pacífica, do Tribunal Constitucional, que o direito ao recurso constitucionalmente assegurado se basta com a garantia de um grau de recurso.

E as normas processuais civis cuja utilização se pretende não tem aplicação em processo penal, desde logo porque o art. 4.º do CPP pressupõe a existência de uma lacuna, a qual não ocorre em matéria de recursos. Não ocorre seguramente ao nível das grandes linhas de organização do modelo e de classificação dos vários tipos de recursos, ordinários e extraordinários.

Como se afirma, no AC do STJ de 27 de janeiro de 2021, processo nº 266/07.5TATNV.E1. S1, Relator Nuno Gonçalves, que seguimos de perto, «A jurisprudência mais recente deste Supremo Tribunal entende uniformemente que o regime dos recursos quanto à questão penal está regulado completa e autonomamente no CPP. Na motivação do AUJ n.º 9/2005, expendeu-se que: “O regime de recursos em processo penal, tanto na definição do modelo como nas concretizações no que respeita a pressupostos, à repartição de competências pelos tribunais de recurso, aos modos de decisão do recurso e aos respetivos prazos de interposição, está construído numa perspetiva de autonomia processual, que o legislador pretende própria do processo penal e adequada às finalidades de interesse público a cuja realização está vinculado.

O regime de recursos em processo penal, tributário e dependente do recurso em processo civil no Código de Processo Penal de 1929 (CPP/29), autonomizou-se com o Código de Processo Penal de 1987 (CPP/87), constituindo atualmente um regime próprio e privativo do processo penal, tanto nas modalidades de recursos como no modo e prazos de interposição, cognição do tribunal de recurso, composição do tribunal e forma de julgamento.

No CPP/29, o recurso em processo penal seguia a forma do processo civil, sendo processado e julgado como o agravo de petição em matéria cível (artigo 649.º do CPP/29); não existia, então, como regra, regulamentação própria e autónoma, privativa do processo penal.

A autonomização do modelo de recursos constituiu mesmo um dos momentos de reordenamento do processo penal no CPP/87. A lei de autorização legislativa (Lei n.º 43/86, de 26 de Setembro), que concedeu autorização para a aprovação de um novo Código de Processo Penal, definiu expressamente como objetivo a construção de um modelo, que se pretendia completo, desde a conceção das fases do processo até aos termos processuais da reapreciação das decisões na concretização da exigência - que é de natureza processual penal no plano dos direitos fundamentais - de um duplo grau de jurisdição. A lei consagrou imposições determinantes no que respeitava ao regime de recursos, apontando para uma perspetiva autónoma e para uma regulação completa.

Os pontos 70 a 75 do n.º 2 do artigo 2.º da lei de autorização (sentido e extensão), referidos especificamente às orientações fundamentais em matéria de recursos, impunham, decisivamente, a construção de um modelo com autonomia, desligado da tradição da referência aos recursos em processo civil.

Por seu lado, a nota preambular do CPP/87, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de fevereiro, qualifica o regime de recursos como «inovador», estabelecido na perspetiva da obtenção de um amplo efeito («potenciar a economia processual numa ótica de celeridade e eficiência e, ao mesmo tempo, emprestar efetividade à garantia contida num duplo grau de jurisdição autêntico»), assim autonomizado como modelo próprio para realizar finalidades específicas do processo penal.

A intenção e a autonomia do modelo mantêm-se após a reformulação do regime de recursos na reforma de 1998 (Lei n.º 58/98, de 25 de Agosto), a formulação reguladora das diversas modulações nos recursos (tribunal singular, tribunal coletivo e tribunal do júri; matéria de facto e matéria de direito; tribunais da relação e Supremo Tribunal de Justiça; oralidade e audiência no tribunal de recurso) continua a constituir um sistema com regras próprias e específicas do processo penal (cf. a exposição de motivos da proposta de lei n.º 157/VII, nos 15 e 16).

A autonomia do modelo e das soluções processuais que contempla coloca-o a par dos regimes de recursos de outras modalidades de processo, independente e com vocação de completude, com soluções que pretendem responder, por inteiro e sem espaços vazios, às diversas hipóteses que prevê”[4].

No Ac. de 15-11-2006, deste Supremo Tribunal sustenta-se: “o legislador do CPP87 conferiu ao sistema dos recursos em processo penal «uma tendencial autonomia relativamente ao processo civil”. “Por isso se deve entender que o CPP esgota a disciplina da matéria da admissibilidade do recurso, sem hipótese, pois, de apelo às regras do CPC, por não se verificar aí (não ser susceptível de se verificar) qualquer lacuna”[5].

Adianta-se que a autonomia do regime dos recursos em processo penal não consente a admissibilidade doregime processual civil da revista excecional, previsto no art. 671.º, n.º 3 d 672.º, do CPC). A arquitetura dos recursos no processo penal não foi influenciada – e podia tê-lo sido – com qualquer das alterações introduzidas no processo civil - mormente a partir do Dec. Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, que introduziu a «revista excecional», (art. 721º - A CPC) reforma essa coeva, faça-se notar, da processual penal introduzida pela Lei nº 48/2007.[6]».

A decisão da formação é definitiva, mas esgota-se na questão que decidiu e sobre a qual foi chamada a pronunciar-se: a da verificação dos pressupostos referidos no n.º 1 do art. 672.º do CPC, em apreciação preliminar sumária.

E a apreciação preliminar sumária da formação não condiciona a admissão do recurso pela Secção criminal, pois não interfere com a decisão sobre a (ir)recorribilidade do acórdão da Relação. Não vincula a Secção criminal sobre tal decisão, da recorribilidade do acórdão da Relação, que só à secção criminal cumpre proferir.[1]

Do exposto se conclui que o recurso de revista excecional não é admissível, motivo pelo qual tem que ser rejeitado.


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3. DECISÃO.

Termos em que acordam os Juízes que compõem a 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça, em rejeitar o recurso interposto pela demandada cível “COMPANHIA DE SEGUROS ALLIANZ PORTUGAL. S.A., nos termos dos arts. 400º, nº3 e 671º, nº s 1 e3, do CPC.

Custas pela recorrente fixando a taxa de justiça em 5 (cinco) UC’s, e ao abrigo do disposto no art. 420º, nº3, do CPP, em 4 (quatro) UC’s.

Processado em computador e revisto pela relatora (art. 94º, nº 2, do CPP).


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Lisboa, 18 de maio de 2022


Maria da Conceição Simão Gomes (relatora)

Paulo Ferreira da Cunha

Nuno Gonçalves (Presidente da Secção)

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[1]AC do STJ de 12JAN22, proc nº 519/16.8T8LLE.E1.S1.