Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
212/12.4TVLSB.L1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: MARIA DO ROSÁRIO MORGADO
Descritores: CONTRATO-PROMESSA
TERMO ESSENCIAL
OBRIGAÇÃO PURA
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
ABUSO DE DIREITO
COMPORTAMENTO CONCLUDENTE
INTERPELAÇÃO ADMONITÓRIA
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
MATÉRIA DE DIREITO
MATÉRIA DE FACTO
AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DA PROVA
BEM IMÓVEL
SINAL
RESTITUIÇÃO DO SINAL
ESCRITURA PÚBLICA
Data do Acordão: 11/23/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / JULGAMENTO DO RECURSO / RECURSO DE REVISTA.
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DOS DIREITOS / PROVAS – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS / CONTRATO-PROMESSA.
Doutrina:
-Brandão Proença, Do incumprimento do Contrato Promessa Bilateral, Coimbra Editora, 88, 89 e 112 ; A resolução do contrato no Direito Civil, 128;
-Calvão da Silva, Sinal e contrato‑promessa, 12.ª Edição, 144;
-Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 217.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 662.º, N.º 4, 674.º, N.ºS 1, ALÍNEA B) E 3 E 682.º, N.ºS 1, 2 E 3.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 334.º, 342.º,N.º 2, 412.º E 442.º.
LEI DE ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO (LOSJ), LEI N.º 62/13, DE 26 DE AGOSTO: - ARTIGO 46.º.
LEI N.º 41/2013, DE 26 DE JUNHO.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 07-02-2017, PROCESSO N.º 3071/13.6TJVNF.G1.S1.
Sumário :
I - O STJ só conhece matéria de direito, sendo as decisões proferidas pela Relação no plano dos factos, em regra, irrecorríveis (art. 46.º da LOSJ e arts. 662.º, n.º 4, 674.º, n.º 3, e 682.º do CPC).

II - Há, porém, situações excepcionais em que o Supremo pode sindicar o julgamento no plano dos factos, designadamente, quando, ao abrigo do disposto no art. 682.º, n.º 3, 1.ª parte, do CPC, aprecia a suficiência ou (in)suficiência da matéria de facto provada ou não provada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito. Nestes casos, se concluir que a decisão da causa está prejudicada pela omissão de factos tidos por relevantes, cabe-lhe determinar a remessa dos autos à Relação para se proceder à ampliação da matéria de facto.

III - Tal não se justifica quando a ré, nos artigos da contestação em relação aos quais pretende a ampliação da matéria de facto, se limitou a impugnar a matéria de facto alegada pelo autor na petição inicial, tendo a versão do autor, de harmonia com as regras de distribuição do ónus da prova (art. 342.º do CC), sido levada à base instrutória.

IV - Nas obrigações de termo essencial, quando a prestação não é executada no prazo ou no momento devidos, já não se pode cumprir; nas obrigações puras, o vencimento depende de interpelação.

V - Tendo as partes clausulado no contrato-promessa que a escritura de compra e venda do imóvel teria lugar até ao dia 10-07-1997, sem que a escritura tenha chegado a ser outorgada, face à circunstância de, posteriormente, o promitente-comprador ter efectuado o pagamento da última prestação do preço acordado e recebido do promitente-vendedor as chaves do imóvel, conclui-se que a prestação manteve utilidade e que as partes não quiseram atribuir ao decurso do prazo o efeito de termo final ou essencial.

VI - Independentemente da estipulação, ou não, de um prazo pelas partes e da sua natureza, em face de um comportamento do devedor que exprima inequivocamente a vontade de não cumprir a obrigação principal, verifica-se, desde logo, um quadro de incumprimento definitivo.

VII - A recusa tanto pode ser expressa e categórica como pode ser valorada a partir de outras atitudes inequívocas e concludentes daquele comportamento, como seja a dedução em juízo de um pedido de restituição do imóvel objecto do contrato-promessa pelos herdeiros do promitente-vendedor, o que legitima o promitente-comprador a recorrer às sanções previstas para o incumprimento do contrato-promessa, designadamente, a restituição do sinal em dobro nos termos do art. 442.º do CC.

VIII - O exercício de tal direito por parte do promitente-comprador não configura uma situação de abuso do direito ainda que este tenha habitado por um determinado período de tempo no imóvel ou o tenha cedido a terceiros, uma vez que o fez sem a oposição da contraparte.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça




I – Relatório


1 – AA intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra BB, CC, DD, EE, FF, GG e HH, todos devidamente identificados nos autos, pedindo a condenação dos réus no pagamento de EUR 29.481,96, acrescido de juros de mora já vencidos, no montante de EUR 565,41, e vincendos, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.

Para tanto, alegou, em síntese, que:

Em 20/9/1995, o A. celebrou com II, entretanto falecido, um contrato promessa de compra e venda relativo a uma subcave de um prédio urbano, que identifica, pelo preço de Esc. 3.000.000$00 (equivalente a EUR 14.740,98), tendo entregue, a título de sinal e princípio de pagamento, a quantia de Esc. 1.100.000$00.

Em 18/8/1997, o autor pagou ao promitente vendedor a última prestação do preço convencionado, passando, desde então, sem oposição de quem quer que fosse, a utilizar a subcave como arrecadação, cedendo o seu uso a terceiros, fazendo obras de remodelação e pagando as despesas de água, eletricidade e gás.

Em 17 de março de 2006, após o falecimento do promitente vendedor, a ré BB, mandou arrombar a porta da subcave e proceder à sua substituição, desta forma impedindo o autor de aceder ao seu interior.

Na sequência deste facto, o autor instaurou contra os herdeiros do falecido II (ora réus) uma ação judicial, pedindo, além do mais, a condenação dos ali réus a restituir-lhe a subcave, objecto do contrato promessa (doravante apenas designada como “subcave”).

Nesse processo, a ré BB contestou, alegando serem, os demandados, os proprietários da subcave, por a terem adquirido por sucessão, pedindo, em reconvenção, a condenação do autor a reconhecer o seu direito de propriedade e a restituir-lhe a subcave.

Foi, então, proferida sentença, já transitada em julgado[1], que condenou o ora autor a reconhecer que a ré/reconvinte BB é comproprietária da subcave e a determinar a sua restituição à dita ré.

Em cumprimento do julgado, o autor, em 8 de Abril de 2011, entregou a subcave à ré.

Nesta conformidade, entende o autor que a situação descrita configura um incumprimento pelos réus do contrato promessa, assistindo-lhe, portanto, o direito à restituição, em dobro, do sinal entregue.

2. Citados os RR.[2], apenas contestou a ré BB, pugnando pela improcedência da ação, por alegada inexistência de incumprimento definitivo e pedindo, por via reconvencional, a condenação do A. a pagar-lhe:

a) A quantia que se vier a liquidar posteriormente, a título de enriquecimento sem causa, na medida em que o autor nunca entregou qualquer contrapartida pela utilização indevida do imóvel durante nove anos;

b) A importância de EUR 3.409,50, acrescida de juros de mora, a título de indemnização, montante que a ré se viu obrigada a despender em obras de reparação do imóvel, em consequência de atos praticados pelo autor que o tornaram inabitável.

3. Foi proferido despacho saneador em que, além do mais, se absolveu o autor da instância reconvencional quanto ao pedido mencionado em supra nº 2, alínea a).

4. Realizado o julgamento, foi proferida sentença que, julgando a acção procedente, e o pedido reconvencional improcedente:

- Condenou os réus, solidariamente, a pagar ao autor a quantia de EUR 29.481,96, acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal civil, desde a data da citação e até integral pagamento;

- Absolveu o autor/reconvinte do pedido reconvencional.

5. Inconformada com a sentença, na parte em que condenou os réus no pedido formulado pelo autor,[3] a ré BB interpôs recurso de apelação, tendo o Tribunal da Relação de …, com um voto de vencido, confirmado a decisão da 1ª instância.

6. De novo inconformada, aquela ré interpôs recurso de revista.

Nas suas alegações, disse a título de conclusão (transcrição):

1. O douto acórdão do Tribunal da Relação de … do qual se recorre manteve o decidido pela 1ª Instância, não alterando a matéria de facto que esta deu por provada e limitando-se a remeter para os termos da matéria de Direito da decisão da 1ª Instância, a qual determinou que "estando comprovado nos autos o incumprimento definitivo do contrato-promessa outorgado entre o aqui Autor e II, há fundamento para a resolução do contrato (implicitamente contida no pedido de condenação dos Réus no pagamento do dobro do sinal) " e condenando os Réus, entre os quais a aqui Recorrente "enquanto herdeiros de II, no pagamento da quantia de €29.481,96, correspondente ao dobro do sinal pago pelo Autor ao suprarreferido II" acrescido de juros de mora, calculados à taxa legal civil, contados desde a data da citação e até integral e efetivo pagamento.

2. Deu por provado o Tribunal de 1ª instância e reiterou o Venerando Tribunal da Relação que, a 20 de Setembro de 1995, II, prometeu vender ao A. um objecto não transacionável - a subcave de um prédio indiviso sito na Rua …, n.º … a …-A, em Lisboa - de um prédio que não pertencia ao vendedor- pois era apenas um dos herdeiros da herança proprietária do mesmo - pelo valor de €3.000,000,00 (três milhões de escudos), valor cujo pagamento se concluiu a 18 de Agosto de 1997 (vd. factos provados 1 a 5 e 9 a 16), sendo certo que o prazo para outorga da escritura pública de compra e venda da referida subcave tinha sido fixado pelos outorgantes para 10 de Julho de 1997 (vd. facto provado 32).

3. Mais deu por provado o Tribunal de 1ª Instância e reiterou o Venerando Tribunal da Relação, que, em 20 de Setembro de 1995, o A. sabia que a referida subcave não era uma fracção autónoma, uma vez que não se encontrava constituída a propriedade horizontal relativa ao prédio onde esta se situa, e sabia também que o II não era o respectivo proprietário (vd. facto provado 29).

4. Deu, ainda, por provado o Tribunal de 1ª Instância e reiterou o Venerando Tribunal da Relação, que o A. deteve a referida subcave e a utilizou e arrendou a terceiros, desde esse dia 18 de Agosto de 1997 e até 17 de Março de 2006, data em que a R. mandou substituir a fechadura da respectiva porta (vd. factos provados 17, 18 e 22).

5. Insolitamente e, salvo o devido respeito, ao arrepio das regras sobre o ónus da prova, consignou o Tribunal de 1ª Instância e reiterou o Venerando Tribunal da Relação, como "não provado" um facto negativo o de que (sic) "quer em vida, quer depois da morte de II, o A. nunca interpelou os RR. para cumprimento do [sobredito] contrato [promessa]”, asserção esta, por tal, inexistente sendo, isso sim certo, que não existe, nos autos, qualquer prova que tal tenha ocorrido.

6. Salvo o devido respeito, resulta incompreensível e inaceitável a decisão de (i) conferir ao A. o direito a receber da herança que a R. integra o dobro do valor que aquele pagou, em 18 de Agosto de 1997, por conta da compra de um bem que o R. sabia não ser transacionável e não pertencer à pessoa que lho prometeu vender, bem este que, durante nove anos e nove meses, o A. arrendou a terceiros, fazendo suas as rendas que cobrou; (ii) fundamentar esse direito do A. num incumprimento, pela herança R., de um contrato que o A. manifestamente sabia, logo no momento em que o outorgou, ser impossível de cumprir sem que, pelo contrário, fosse feita qualquer prova do incumprimento culposo da herança R. de uma qualquer sua efetiva obrigação contratual, nem facultada a prova do contrário - ou seja, da boa-fé da Recorrente.

7. Começando-se por onde acima se concluiu, adere-se ao douto voto de vencido ínsito no douto acórdão recorrido, o qual assenta num princípio básico do processo, que é o de que todas as alegações das partes que possam ter interesse para a decisão da causa, devem ser trazidas ao processo e conhecidas pelo Tribunal.

8. Como bem refere o douto voto de vencido, a R. alegou, no art.° 56.° da sua contestação que o A. era "visto, bem como as pessoas que ocupavam a subcave, quer antes quer depois de 1997, pela R. BB como arrendatários de um bem da herança", só tendo esta consciência que este se arrogava promitente-comprador do mesmo (sic art.°57.°) "após ter sido nomeada cabeça-de-casal e ter assumido a administração do património da herança indivisa, e após ter constatado que o A. não era inquilino da herança" sendo que, então, "a R. BB opôs-se de imediato à posse do referido bem, tendo inclusivamente mandado substituir as chaves do referido imóvel".

9. E como refere o douto voto de vencido "essa factualidade suprarreferida alegada pela R. BB não foi levada ou incluída na base instrutória, a qual se torna essencial para a descoberta da verdade material, nomeadamente com vista ao apuramento global de toda a atuação que motivou a substituição da fechadura da subcave pela R. BB. Por outras palavras dir-se-á que toda a matéria fáctica acima enunciada será de primordial importância para demonstrar (ou não) que a conduta da R. BB preenche os requisitos da figura da recusa do cumprimento, dai se retirando, posteriormente, as devidas consequências jurídicas".

10. Acrescentando que "estando em causa a elaboração da base instrutória, não são aplicáveis as normas do NCPC, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 41/2013, de 26-06, mas sim o anterior Código, em conformidade com o princípio lex tempus regit actum: se o novo Código de Processo Civil de 2013 só entrou em vigorem 01-09-2013, não poderia regular um ato processual já integralmente passado.

11. Constituem a base instrutória os factos que sejam relevantes para a decisão da causa segundo qualquer das soluções plausíveis da questão de direito, como estatuía do art 511º, n° 1, do CPC, aplicável ao processamento anterior à decisão impugnada. Não está, por isso, vedado ao Tribunal proceder à ampliação da base instrutória, nos termos do art.º 650°, n° 1, f), do CPC, de igual modo o podendo fazer o Tribunal da Relação, mesmo de forma oficiosa, levando até à repetição do julgamento [ex vi art.º 712º, n° 4, do CPC, atualmente art.º 662° n° 2 c) do NCPC], na verificação de uma situação objetiva de falta de seleção de factos relevantes à decisão da causa.

12. Neste contexto, independentemente dos motivos pelos quais se bate a recorrente para pedir a reapreciação da prova, e por nos situarmos num momento lógica e juridicamente anterior, prévio a tal reapreciação, justifica-se a ampliação da matéria de facto, de modo a que todos os factos alegados nos arts 56° e 57° da contestação sejam inscritos na base instrutória, repetindo-se julgamento no que concerne aos pontos da matéria de facto acima aludidos, que devem ser averiguados para o Tribunal possa aquilatar e sopesar o "grau" de comportamento e de conduta da R. BB.

13. Ora, constituindo o n° 3 do art 650° do CPC um corolário do princípio do contraditório, na medida em que concede às partes a faculdade de apresentarem provas quanto ao aditamento da base instrutória, no caso em apreço, este Tribunal não tem ao seu dispor todos os elementos que permitam a reapreciação da matéria de facto. E porque assim é e ao abrigo do estatuído na alínea c) do n° 2 do art 662° do NCPC, importa declarar nula e de nenhum efeito toda a sentença proferida nestes autos peio Tribunal de 1ª Instância, a fim de ser ampliada a matéria de facto, nos termos suprarreferidos, de molde a que seja produzida prova sobre a mesma, com as ulteriores consequências na sentença que vier a proferir."

14. Sem prescindir do acima alegado e peticionado, entende a Recorrente, que, mesmo os factos provados, acima transcritos, se forem apreciados à luz das regras da experiência, da lógica e do bom senso - o que inclui apreciar os atos de terceiros à luz dessas regras, i.e. assumir que, também estes, avaliam a realidade e atuam com base nas regras da experiência, da lógica e do bom senso - levariam àquelas conclusões.

15. Tais regras parecem impor que, a partir de uma demonstrada inércia de nove anos e nove meses em promover a cumprimento de um contrato-promessa de compra e venda de um imóvel, cujo preço já se pagou, mediante a marcação da respectiva escritura pública, a interpelação para alguma diligência prévia a esta, e/ou a promoção da sua execução específica (expressamente prevista na cláusula 4.a do contrato "sub judice'), se tenha de concluir por uma das seguintes causas: (i) o desconhecimento da existência desse contrato-promessa; (ii) o conhecimento da existência desse contrato-promessa e a convicção de que o mesmo não é exequível, ou seja, que é impossível o seu cumprimento.

16. Com efeito, ditam as regras da experiência, da lógica e do bom senso, que só uma parte contratual que sabe, e se representa, que não é exequível a concretização da compra de um bem imóvel, pelo qual já pagou a totalidade do preço, e que detém, é que não pratica, durante nove anos e nove meses, qualquer ato promovendo esse propósito. Ora, essa foi a conduta do aqui A. - que, durante nove anos e nove meses, recebeu rendas pelo arrendamento da subcave "sub judice", sem jamais ter interpelado a Recorrente, o seu pai, ou qualquer outro herdeiro do direito do prédio do qual a mesma faz parte, para promover qualquer diligência tendente à formalização da compra desse espaço, pelo qual já tinha pago a totalidade do preço.

17. Por isso mesmo, decorre das regras da experiência, da lógica e do bom senso, que o A. não tinha a menor convicção de que fosse exequível o contrato-promessa que tinha outorgado com o II para compra de uma subcave que não pertencia a este e não era, nem é, transacionável, limitando-se a ir recebendo rendas pela cedência a terceiros desse espaço.

18. Também de acordo com as regras da experiência, da lógica e do bom senso, a inexistência da prática de qualquer ato promovendo a compra de um bem imóvel -inscrito no registo predial em nome de outrem - por uma pessoa que usa e goza, em exclusivo, desse mesmo bem, durante nove durante nove anos e nove meses, faz supor a terceiros que esse bem é detido por título não translativo da propriedade, v.g., que lhe foi emprestado ou arrendado. E, por isso mesmo a ora Recorrente nunca se representou, quando mudou a fechadura da subcave do prédio da herança de que é cabeça-de-casal, sito na Rua …, n.º … a …-A, em Lisboa, estar a incumprir culposamente um contrato-promessa.

19. Não sendo a matéria de facto provada susceptível de ser alterada por esse preclaro Tribunal, as conclusões retiradas desses factos são certamente susceptíveis de ser alteradas, e, contendendo de modo tão flagrante com as mais evidentes regras da experiência, da lógica e do bom senso, deverão, segundo parece, sê-lo.

20. Sem conceder quanto à alegação supra, e aceitando como boas as conclusões extraídas pela 1ª Instância dos factos provados, a que a Relação aderiu, é certo que, à data em que outorgou com II a compra da subcave "sub Júdice", 20 de Setembro de 1995, o A. sabia que esta não era uma fracção autónoma, pois não se encontrava constituída a propriedade horizontal relativa ao prédio onde esta se situa, e sabia também que o aí vendedor não era o respectivo proprietário (facto provado 29), pelo que se tratava de um bem futuro e coisa alheia.

21. Decorre daí, que existia uma obrigação implícita, a cargo de promitente-vendedor de prestações de facto de terceiros - os demais herdeiros da herança proprietária do bem e até entidades administrativa, a saber: a promoção de um procedimento de constituição de propriedade horizontal e a transmissão, em sede de partilhas, da propriedade da futura e eventual fracção autónoma correspondente à subcave, para que, posteriormente, lhe fosse possível celebrar o contrato prometido.

22. Ora, está provado que, decorridos mais de 21 (vinte e um) anos sobre a outorga do contrato-promessa, nenhuma dessas duas condições se concretizou, sendo certo que o prazo originalmente fixado para a outorga da escritura pública de compra e venda era 10 de Julho de 1997.

23. O decurso de mais de duas décadas sem que, (i) por um lado, se tenham concretizado as condições a que as partes num contrato-promessa subordinaram a concretização do negócio prometido, e sem que, (ii) por outro, o A. alguma vez tenha interpelado os herdeiros do promitente-vendedor para o que quer que fosse para concretização desse negócio, não pode ser indiferente para qualificar a conduta da parte que, no entender do Tribunal de 1ª Instância, a que o Venerando Tribunal da Relação, aderiu, pela "substituição de fechadura do imóvel e a dedução de pedido reconvencional no âmbito da acção de restituição de posse movida aos aqui Réus pelo Autor, revela [ou] inequivocamente e salvo melhor opinião, a vontade de não querer cumprir o contrato-promessa outorgado por II" [...] "O que permite ao Autor reclamar o pagamento do sinal em dobro, sem passar pelo artigo 808°, do Código Civil".

24. Sendo certo que o presente contrato-promessa está submetido ao regime legal aplicável à generalidade dos contratos - incorrendo o devedor que não cumpre numa presunção de culpa - parece que essa "presunção" deveria considerar-se ilidida pelo decurso destes 21 (vinte e um) anos, sem a sua concretização e sem qualquer interpelação da contraparte para o efeito, e pela clamorosa impossibilidade de cumprimento do contrato-promessa nos termos em que as partes o convencionaram, ou seja, para se cumprido em 10 de Julho de 1997.

25. Fazer, como fizeram o Tribunal de 1ª Instância e a Relação de …, equivaler o incumprimento, nestas condições, ao incumprimento culposo ou até doloso, aplicando aos RR. a sanção que a lei prevê para este (o pagamento do sinal em dobro), equivale - releve-se a analogia - a sancionar a tentativa impossível com a mesma pena do crime. Ora, tal como nesta situação, só se justifica a sanção se o bem jurídico existe. Se, como no caso da tentativa impossível - e no caso presente - o bem jurídico já não existe - pois resulta evidente face às regras da experiência, da lógica e do bom senso o contrato-promessa "sub judice" seria, ontologicamente, impossível de cumprir -existindo apenas uma aparência de bem jurídico - penalizar a tentativa impossível com a sanção prevista para o crime cuja comissão é impossível repugna ao Direito, pois as sanções devem corresponder aos bens jurídicos lesados.

26. Admitindo-se que, para lá do bem jurídico lesado, possa relevar a apreciação do desvalor da acção do agente - a qual pode justificar punição, não obstante não existir o bem jurídico - certo é que, nos termos expendidos pelo douto voto de vencido transcrito supra, o próprio Tribunal de 1.a Instância impossibilitou essa apreciação, ao excluir da base instrutória a factualidade alegada pela A. "com vista ao apuramento global de toda a atuação que motivou a substituição da fechadura da subcave [e que seria] de primordial importância para demonstrar (ou não) que a conduta da R. BB preenche os requisitos da figura da recusa do cumprimento, daí se retirando, posteriormente, as devidas consequências jurídicas."

27. Inexistindo prova de culpa da R. no incumprimento, e afastada a presunção legal da mesma pelo decurso de duas décadas e a absoluta inércia do A. durante as mesmas; e sendo manifesta, por essas razões, e por continuarem por concretizar, após 21 (vinte e um) anos, as duas condições suspensivas do negócio que as partes ajustaram finalizar em 10 de Julho de 1997, não é aplicável a sanção de devolução do sinal em dobro, que pressupõe o incumprimento não só definitivo, mas também culposo do devedor.

28. Como acima se referiu, acha-se provado que, em 20 de Setembro de 1995, quando outorgou com II o contrato-promessa que invoca para - até agora com sucesso - peticionar o reembolso, em dobro, do que por conta dele prestou, o A. sabia que não estava a contratar com o proprietário do objecto do negócio, e sabia ainda que esse objecto não podia ser vendido ou comprado, uma vez que não era uma fracção autónoma, mas uma mera parte de um prédio indiviso. Mais se acha provado, que o A. deteve a referida subcave e a utilizou para arrendar a terceiros, desde esse dia 18 de Agosto de 1997 e até 17 de Março de 2006.

29. Consta dos autos, junta pelo A. aos 15.02.2012 (ref. 9…2), e por este invocada, expressamente, na sua petição inicial, a douta sentença proferida, aos 28.09.2010, no processo n.º 5134/06.5TVLSB, acção de restituição de posse, proposta pelo aqui A. contra os aqui RR., que correu termos na 2.a Secção da 7.a Vara Cível de … - da qual consta como facto provado - e alegado pelo A. - que "O Autor deixou de auferir a quantia mensal de € 375,00, desde Março de 2006, a título de renda" (facto 30).

30. Na mesma douta sentença, justifica-se que o aqui A. não estava obrigado a indemnizar a aqui R. pelos montantes recebidos a títulos de rendas, porquanto "a ocupação do imóvel pelo Autor surgiu no âmbito de um acordo estabelecido com a pessoa que à data tinha a seu cargo a administração da herança. Tal acordo não é gerador de nenhum direito real susceptível de posse, mas, em todo o caso, deu origem a uma ocupação lícita, através de um direito pessoal de gozo, pelo que está excluída a ilicitude da ocupação, com vista à indemnização no quadro da responsabilidade civil extracontratual por violação do direito de propriedade e prejuízo dela decorrente".

31. Conformando-se a aqui (e ali) R. com a licitude das vantagens patrimoniais que o A. retirou dos nove anos e nove meses em que ocupou a subcave "subjudice" "através de um direito pessoal de gozo", é um facto indiscutível - e expressamente alegado em juízo pelo A. - que tais vantagens existiram, e que, como tudo o que se provou em juízo que existiu, têm de ser consideradas pelos Tribunais nas suas decisões.

32. Uma mera operação aritmética permite concluir que um valor de renda mensal de €375,00 (trezentos e setenta e cinco euros) que o A. invocou e provou em juízo ter recebido por conta da ocupação da subcave, permitiria realizarem 40 (quarenta) meses os €3.000.000,00 (três milhões de euros) i.e. €14.740.98 (catorze mil setecentos e quarenta euros e noventa e oito cêntimos) que o A. pagou ao II por conta da promessa deste lhe vender uma subcave que o A. sabia que não pertencia àquele e que não podia ser comprado nem vendido. E o A. esteve na posse desse andar não 40 (quarenta) meses, mas 117 (cento e dezassete) meses.

33. Assim, a pretensão do A. a, em excesso do que já recebeu - nove anos e nove meses de rendas "através de um direito pessoal de gozo" - recuperar, em dobro, o montante que despendeu para receber essas rendas - o custo do "direito pessoal de gozo" que o habilitou a, licitamente, as cobrar - é uma pretensão patentemente ofensiva da Justiça e dos ditames da boa-fé. Salvo o devido respeito, o A. conseguiu que dois Tribunais Judiciais afastassem, a seu favor, a tese de que "não há almoços grátis". Mais, o A., não só come "almoço", como, depois, recebe em dobro o que pagou pelo "almoço".

34. Tal resultado devia repugnar, segundo parece, à consciência jurídica, pelo que nunca poderá ser produzido pelas normas jurídicas aplicadas pelos Tribunais, sob pena de se violar o disposto no art° 334.° do Código Civil, que determina que "É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito".

35. E, manifestamente, o "fim social ou económico" do instituto do sinal não é permitir que alguém que outorgou um contrato-promessa de um bem não transacionável, com outrem que sabia não ser o proprietário desse bem, e sem dar cumprimento às mais elementares exigências de forma, faça seus, não só os frutos desse bem durante nove anos e nove meses (sem nunca tentar promover o cumprimento desse contrato-promessa, pois bem sabia a sua inviabilidade), como, sucessivamente, o valor que o habilitou a receber tais frutos, em dobro.

36. E, manifestamente, o putativo titular do direito a receber o sinal em dobro "excede manifestamente os limites impostos pela boa-fé" quando, tendo recebido, durante nove anos e nove meses os frutos de um bem, que sabia não ser transacionável, e por força de um contrato que outorgou com pessoa que sabia não ser o seu dono, e sem dar cumprimento às mais elementares exigências de forma, vem pedir a sanção de restituição de sinal em dobro pelo incumprimento desse contrato, que, por isso mesmo, sempre soube, ou teve a obrigação de saber, não poderia ser cumprido.

37. Citando um douto aresto desse mesmo Supremo Tribunal de Justiça "O abuso do direito, exceção perentória imprópria de conhecimento oficioso, está legalmente previsto em termos de ser ilegítimo o exercício de um direito quando o seu titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito (artigo 334° do Código Civil). Rege para as situações concretas em que é clamorosa, sensível e evidente a divergência entre o resultado da aplicação do direito subjetivo e alguns dos valores impostos pela ordem jurídica para a generalidade dos direitos ou dos direitos de certo tipo".

38. Contanto que os factos que o demonstram tenham sido alegados e provados - como foram todos os factos acima expendidos - ou sejam decorrência destes, por força das regras da experiência, lógica e bom senso, ou sejam de notoriedade geral, impõe-se ao Tribunal conhecer da verificação do abuso de direito, mesmo que não tenha sido apreciada pelo Tribunal recorrido e/ou não tenha sido especificadamente suscitada (n.º 2 do art.° 571.° e art.° 579.° do CPC).

39. Mais: a Relação e o Supremo Tribunal de Justiça, não só podem, como devem conhecer, em recurso, de questões de Direito não especificamente suscitadas pelas partes no Tribunal "a quo", quando se tratam de questões de conhecimento oficioso e houver factos assentes que o permitam - como é o caso do abuso de direito, e como sucede no caso "subjudice". Tal cabe no seu dever de selecionar, interpretar e aplicar aos factos provados as normas jurídicas que lhes correspondam, sem sujeição às alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das regras de Direito (art.° 5.°, n.º 2 do art.° 607.°, e 679.° do CPC).

40. Pelo que também por este motivo - isto é, por a procedência do pedido do A. conformar um manifesto abuso de direito, consistindo a atribuição, a este, do sinal em dobro, no exercício de um direito de modo que "excede manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes [e] pelo fim social ou económico desse direito - o douto acórdão posto em crise viola, salvo melhor opinião, a Lei.

Deve, assim, ser revogado o douto acórdão recorrido, e substituído por outro conforme as conclusões supra, assim se fazendo JUSTIÇA.

7. Nas respetivas contra-alegações, o autor e o Ministério Público, este em representação das rés ausentes, pugnaram pela improcedência da revista.

8. Sendo que à revista é aplicável o regime processual introduzido pela Lei 41/2013, de 26 de Junho[4], cumpre apreciar e decidir as seguintes questões:[5]

- Se há lugar a ampliação da matéria de facto;

- Se se verifica erro de apreciação da matéria de facto;

- Se os réus incumpriram definitivamente o contrato promessa e se o autor tem direito à restituição do sinal em dobro.

- Se se verifica abuso de direito.


* * *


II - Fundamentação de facto

9. Factualidade dada como provada no acórdão recorrido:

1. Por morte de JJ sucederam-lhe, como herdeiros legitimários, o seu marido KK e o seu filho II, e como herdeiros testamentários da nua propriedade da quota disponível dos seus bens, BB, CC e DD, conforme documento junto a fls. 79 e ss. dos autos e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido (al. A) dos Factos Assentes).

2. No seu testamento, outorgado em 16 de Março de 1978, JJ declarou: «(...) Deixa também a seu dito marido o usufruto vitalício de todos os bens que à data da sua morte vierem a constituir e se compreendam na sua quota disponível e a nua propriedade dos mesmos bens deixa-a a seus netos, BB, de dezassete anos, DD, de quinze anos, e CC de onze anos (...)», conforme documento de fls. 84 e ss. e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido (al. S) dos Factos Assentes).

3. Mediante testamento, KK instituiu sua universal herdeira a sua mulher, a supra referida JJ, conforme documento de fls. 22 e ss. anexo à P1 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido (al. D) dos Factos Assentes).

4. KK faleceu em 8 de Fevereiro de 1996, conforme documento 2 anexo à PI (fls. 17 e ss.) e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido (al. E) dos Factos Assentes).

5. No dia 18 de Abril de 2000, no 1.° Cartório Notarial de …, foi outorgada a escritura pública de habilitação após falecimento de KK, anexa à Petição Inicial como documento n.º 2 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido (al. F) dos Factos Assentes).

6. Em 3 de Junho de 2004 faleceu II, no estado de casado com FF, conforme documento n.º 1 anexo à Contestação (al. G) dos Factos Assentes).

7. O falecido II deixou testamento público pelo qual instituiu um legado e «deixou a quota disponível da posição sucessória de que era titular na herança por morte de sua mãe JJ e na herança por morte do marido de sua mãe, KK, em representação legal, a sua mulher FF», conforme documento junto a fls. 315 e ss. (al. I) dos Factos Assentes).

8. Foram habilitados como herdeiros de II, BB, CC, DD, EE, FF, GG e HH (al. H) dos Factos Assentes).

9. Da herança de JJ faz parte o prédio sito na Rua …, n.º … e …-A, descrito na 6ª Conservatória do Registo Predial de … com o n.º 2…7 e inscrito na matriz predial sob o art. 682 da freguesia de S. …, em Lisboa (al. B) dos Factos Assentes).

10. A propriedade horizontal referente ao imóvel sito no n.º 129 e n.º 129-A da Rua … ainda não foi constituída (al. Q) dos Factos Assentes).

11. No supra descrito imóvel situa-se, no n.º 129-A, uma subcave (al. C) dos Factos Assentes).

12. Em 20 de Setembro de 1995, II prometeu vender ao Autor e este prometeu comprar-lhe, pelo preço de € 14.740,98, a subcave sita no n.º 129-A da Rua …, em Lisboa (art. 1.° da Base Instrutória).

13. O contrato supra referido foi formalizado no documento n.º 3 junto pelo Autor e que consta de fls. 39 e ss. dos autos (art. 2.° da BI).

14. II fez a declaração escrita constante do documento n.º 4 junto pelo Autor e constante de fls. 43-44 (art. 5.° da Base Instrutória).[6]

15. O Autor pagou e II recebeu a quantia de € 14.740,98 (art. 3.° da Base Instrutória).

16. A última prestação referente ao preço foi entregue pelo Autor ao referido II em 18 de Agosto de 1997 (art. 4.° da Base Instrutória).

17. Desde 18 de Agosto de 1997 que o Autor tem as chaves da subcave sita no n.º …-A da Rua …, em Lisboa, utilizando-a de forma ininterrupta como arrecadação e cedendo o seu gozo a terceiros até 17 de Março de 2006 (al. J) dos Factos Assentes).

18. O Autor fez obras na subcave supra referida, com a finalidade de arrendar o espaço a terceiros (art. 8.° da Base Instrutória).

19. O Autor praticou os factos referidos na al. J) dos Factos Assentes sem oposição de quem quer que seja, designadamente, dos Réus BB, CC e DD (art. 6.° da Base Instrutória).

20. DD residia e reside no prédio (art. 7.° da Base Instrutória).

21. A partir de Dezembro de 2004, a herança de JJ passou a ser administrada pela Ré BB (art. 11.° da Base Instrutória).

22. Em 17 de Março de 2006, a Ré BB mandou substituir a fechadura da porta da subcave sita no n.º …-A da Rua …, em Lisboa (art. 12.° da Base Instrutória).

23. O Autor intentou uma acção de restituição de posse referente à subcave sita no n.º …-A da Rua …, em Lisboa, a qual correu termos sob o n.º 5…4/06.5 na 2ª secção da 7ª Vara Cível de …, conforme documento junto a fls. 87 e ss. dos autos e cujo teor aqui se dê por integralmente reproduzido (al. L) dos Factos Assentes).

24. No âmbito dos autos n.º 5…4/06.5, BB deduziu pedido reconvencional, pedindo o reconhecimento do seu direito de comproprietária e a restituição da subcave supra referida (al. M) dos Factos Assentes).

25. A sentença referente ao processo n.º 5…4/06.5 foi proferida em 16 de Dezembro de 2010, tendo transitado em julgado em 7 de Janeiro de 2011, e ordenou a entrega do locado sito na subcave sita no n.º …-A da Rua …, conforme documento de fls. 87 e ss. (al. N) dos Factos Assentes).

26. O Autor entregou a chave da subcave à Ré BB em 8 de Abril de 2011 (al. O) dos Factos Assentes).

27. Foi na sequência do facto supra referido em (22) que o Autor instaurou a acção referida na al. L) dos Factos Assentes (art. 13.° da Base Instrutória).

28. No âmbito dos autos de inventário que correrem termos sob o n.º 749/07.7 na 2ª secção do 2.° juízo cível de …, por óbito de JJ e KK, a Ré BB, na qualidade de cabeça de casal apresentou a relação de bens mencionando a existência de um contrato-promessa de compra e venda com tradição a favor do aqui Autor quanto ao prédio referido na al. D) dos Factos Assentes (al. P) dos Factos Assentes).

29. Em 20 de Setembro de 1995, o Autor sabia que não se encontrava constituída a propriedade horizontal relativa ao prédio melhor identificado na al. D) dos Factos Assentes e que II não era o proprietário do mesmo (art. 14.° da Base Instrutória).

30. Quando o Autor entregou o imóvel as paredes estavam pintadas de azul-escuro e a janela das traseiras estava pintada, o que impossibilitava entrada de luz solar (art. 17.° da BI).

31. As obras no imóvel, mandadas efetuar pela Ré BB, ascenderam à quantia de € 3.409,50;

32. O prazo para a outorga da escritura de compra e venda havia sido fixado pelos outorgantes para a data de 10 de Julho de 1997 (art. 21.° da BI)

10. Não se provou que:

1. As obras referidas no art. 8.° da Base Instrutória foram feitas no período compreendido entre 25 de Janeiro de 2006 e 27 de Fevereiro de 2006 e que as mesmas consistiram em pintura, substituição de canalização e de sistema elétrico (art. 8.° da BI)

2. Desde o ano de 1999 que o Autor pagou as despesas de água e de eletricidade e as do gás, a partir de 2000, tendo mandado instalar os respectivos contadores (art. 9.° da BI)

3. Desde essa altura que o Autor fez trabalhos de conservação e beneficiação da subcave (art. 10.° da BI)

4. Das contas da administração da herança não resultam quaisquer verbas que tenham sido entregues a título de preço pelo imóvel referido na al. C) dos Factos Assentes (art. 16.° da BI)

5. O valor das obras referido no art. 18.° da Base Instrutória foi suportado pela Ré BB (art. 19.° da BI)

6. A entrega das chaves referida no art. 4.° da BI ocorreu porque não foi cumprido o prazo para a outorga da escritura de compra e venda (art. 20.° da BI);

7. Quer em vida, quer depois da morte de II, o Autor nunca interpelou os Réus para cumprimento do contrato referido no art. 1.° da BI (art. 15.° da Base Instrutória).



* * *


III - Fundamentação de direito

11. Da insuficiência da matéria de facto para a decisão da causa

A recorrente pede a anulação da decisão recorrida a fim de ser ampliada a matéria de facto, alegando que não foram incluídos na base instrutória os factos alegados nos arts. 56º e 57º, da contestação, omissão que, em seu entender, compromete a solução de direito.

Como se sabe, o Supremo Tribunal de Justiça só conhece matéria de direito, sendo as decisões proferidas pela Relação no plano dos factos, em regra, irrecorríveis (art.º 46.º, da Lei de Organização do Sistema Judiciário – Lei n.º 62/13, de 26 de Agosto – e arts. 662.º, n.º 4, 674º, nº 3, e 682º, do CPC).

Cabe-lhe, pois, aplicar o direito aos factos que as instâncias fixarem (art.º. 682º, nºs 1 e 2, do CPC).

Há, porém, situações excepcionais em que o Supremo pode sindicar o julgamento no plano dos factos. Assim, sucede, por exemplo, quando, ao abrigo do disposto no art.º. 682º, nº3, 1ª parte, do CPC, aprecia a suficiência ou (in)suficiência da matéria de facto provada e não provada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito. Nestes casos, se concluir que a decisão da causa está prejudicada pela omissão de factos tidos por relevantes, cabe-lhe determinar a remessa dos autos à Relação para se proceder à ampliação da matéria de facto (art.º. 682º, nº3, 1ª parte, do CPC).

Não é esta a situação dos autos.

Na verdade, como adiante melhor se compreenderá, a matéria que a ré pretende ver incluída na base instrutória não assume qualquer relevância no julgamento da causa.

Não deixará, ainda assim, de se salientar que, nos supramencionados artigos da sua contestação, a ré, visando a improcedência da ação, se limitou a impugnar a matéria de facto alegada pelo autor nos arts. 11º e 12º, da petição inicial. Ora, de harmonia com as regras do ónus da prova (art.º. 342º, do CC), foi a versão do autor (e não da ré) que, como se impunha, foi levada à base instrutória (cf. arts. 6º e 7º) e que, produzida a prova, veio a ser consignada nos termos que constam dos pontos 19 e 20, da fundamentação de facto da sentença.

Não se vislumbra, portanto, qualquer anomalia no plano dos factos, que possa contender com a apreciação da decisão proferida sobre o mérito da causa.

Improcede, assim, a pretensão da recorrente.

12. Do erro de julgamento quanto à decisão proferida sobre matéria de facto

Alega a recorrente que “insolitamente e, salvo o devido respeito, ao arrepio das regras sobre o ónus da prova, consignou o Tribunal de 1ª Instância e reiterou o Venerando Tribunal da Relação, como "não provado" um facto negativo o de que (sic) "quer em vida, quer depois da morte de II, o A. nunca interpelou os RR. para cumprimento do [sobredito] contrato [promessa] ", quando não existe nos autos qualquer prova de que tal tenha ocorrido.

Insurge-se, assim, contra a decisão constante do ponto 7, dos factos não provados, correspondente à matéria  alegada pela ré, na sua contestação (v.g. nos arts 37, 44 e 45) e vertida no art.º. 15º, da base instrutória.

Pois bem.

Como já acima dissemos, em regra, o Supremo Tribunal de Justiça só conhece matéria de direito. Pode, no entanto, sindicar a decisão proferida sobre a matéria de facto se for invocada uma violação das regras substantivas de direito probatório (art.º 674º, nº 3, 2ª parte, do CPC), ou seja, quando esteja em causa um erro de direito.

Os poderes do Supremo nesta matéria abarcam ainda o controlo da aplicação da lei adjetiva em qualquer das dimensões destinadas à fixação da matéria de facto provada e não provada – art.º 674º, n.º 1, al. b), do CPC –, com a restrição que emerge do disposto no art.º 662º, nº 4, do CPC que exclui a sindicabilidade do juízo de apreciação da prova efetuado pelo Tribunal da Relação e a aferição da formação da convicção desse Tribunal a partir de meios de prova sujeitos ao princípio da livre apreciação.[7]

Ora, no caso em apreço, o Tribunal da Relação analisou circunstanciadamente a prova produzida e concluiu pela ausência de elementos probatórios suficientes para formar a sua convicção no sentido positivo, quanto à matéria acima referida.

Nesta conformidade, não se estando perante uma situação enquadrável na 2ª parte do art.º. 674º, n3, do CPC, nem se patenteando qualquer violação das regras do ónus da prova (arts. 342º. nº2, do CC), resta concluir pela improcedência da alegação da recorrente.


* * *


13. Do incumprimento definitivo do contrato e do direito do autor à restituição do sinal em dobro.

No contrato-promessa em causa, as partes clausularam que a escritura de compra e venda teria lugar até ao dia 10/07/1997, escritura que, não obstante, acabou por não ser outorgada.

Nas obrigações de termo essencial, como se sabe, quando a prestação não é executada no prazo ou momento devidos já não se pode cumprir: o retardamento da prestação acarreta desde logo a impossibilidade definitiva, por razões que em regra se prendem com o desaparecimento da utilidade da prestação para o credor, dada a natureza da prestação ou a específica finalidade do contrato.

No caso em apreço, porém, não nos encontramos, manifestamente, perante um termo final ou essencial.

Como bem observou o acórdão recorrido, os factos ocorridos posteriormente a esse momento, concretamente as circunstâncias de o autor ter pago a última prestação referente ao valor acordado já depois de decorrido aquele prazo [em 18/08/1997 – facto nº 16] e de ter recebido as chaves do imóvel na mesma data [factos nº 16 e 17], mostram que a prestação manteve utilidade e que as partes não quiseram atribuir ao decurso do prazo fixado aquele efeito fatal, sendo ainda certo que que, não sendo possível concluir com segurança que o prazo é absoluto, deve o mesmo presumir‑se relativo (cf. Brandão Proença, Do incumprimento do Contrato Promessa Bilateral, Coimbra editora, 112, e Calvão da Silva, Sinal e contrato‑promessa, 12ª edição, 144).

Vale por dizer que posteriormente a 10/07/1997 o contrato em causa ficou sem prazo, tornando-se puras as obrigações dele emergentes.

O vencimento das obrigações puras (maxime, em matéria de contrato-promessa, as atinentes à marcação e celebração da "escritura") depende de interpelação.

Todavia, independentemente da estipulação, ou não, de um prazo pelas partes e da sua natureza, em face de um comportamento do devedor que exprima inequivocamente a vontade de não cumprir a obrigação principal, verifica-se, desde logo, um quadro de incumprimento definitivo.

O mesmo se diga da violação de um dever acessório da prestação principal (i.e., destinado a preparar ou a assegurar a perfeita execução da prestação) que, em face das circunstâncias concretas do caso, seja de considerar indispensável (ou determinante) à regular execução do programa contratual, como paradigmaticamente é o caso da constituição em propriedade horizontal da fração que seja objeto de contrato-promessa de compra e venda (cfr. facto provado nº 10).

Por outro lado, a recusa tanto pode ser expressa e categórica, como pode ser valorada a partir de outras atitudes inequívocas e concludentes daquele comportamento (cf. Brandão Proença, Do cumprimento do contrato promessa bilateral, pp. 88 89 e A resolução do contrato no Direito Civil, p. 128).

É o que ocorre no caso dos autos:

- Em 17 de Março de 2006, a Ré BB mandou substituir a fechadura da porta da "subcave";

- A sentença referente ao processo n.º 5…4/06.5, proferida em 16 de Dezembro de 2010, transitada em julgado em 7 de Janeiro de 2011, ordenou – na sequência de pedido reconvencional deduzido pela ré - a entrega da "subcave" à dita ré, o que autor fez, em obediência ao ordenado (cf. factos provados nº 22, 25 e 26).

Tudo a configurar uma situação de recusa/desistência do cumprimento do contrato-promessa por parte daquela e, consequentemente, de definitivo inadimplemento contratual, sendo certo que é apodítico que os réus, herdeiros do primitivo promitente-vendedor, tiveram conhecimento da existência e dos precisos termos do contrato-promessa, pelo menos, aquando da sua citação para os termos do sobredito processo n.º 5…4/06.5.

Nesta conformidade, o comportamento inequívoco da ré/recorrente demonstrativo da vontade de não cumprir não pode deixar de ter consequências jurídicas (cf. art. 412º, CC), legitimando o autor a recorrer às sanções previstas para o incumprimento, designadamente no art. 442º, do CC, como, aliás, foi expressamente clausulado no contrato promessa (cf. clª quarta).



* * *


14. Do abuso de direito

Nas alegações da revista, a ré partindo do pressuposto de que o autor, ao longo dos anos, obteve determinado rendimento com a fruição da subcave, veio invocar que, sob pena de abuso de direito, não pode ser-lhe reconhecido o direito à restituição do sinal em dobro, conforme peticionado nesta ação.

Pois bem.

O abuso de direito - art. 334º do Código Civil - traduz-se no exercício ilegítimo de um direito, resultando essa ilegitimidade do facto de o seu titular exceder manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

Não basta que o titular do direito exceda os limites referidos, sendo necessário que esse excesso seja manifesto e gravemente atentatório daqueles valores.

Não se exige, porém, que o titular do direito tenha consciência de que o seu procedimento é abusivo, que tenha a consciência de que, ao exercer o direito, está a exceder os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes e pelo seu fim social ou económico, basta que na realidade (objetivamente) esses limites tenham sido excedidos de forma nítida e clara, assim se acolhendo a conceção objetiva do abuso do direito (cf. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, pág. 217).

Ora, na situação dos presentes autos, a ré assenta a sua pretensão em meros exercícios aritméticos, procurando chegar a determinado resultado, cujas premissas não logrou comprovar.

Em todo o caso, ainda que, por mera hipótese, o autor tivesse obtido rendimento com a cedência da subcave a terceiros, a verdade é que o fez sem oposição dos réus, concretamente da ora recorrente (cf. facto provado nºs 17 e 19).

Neste contexto, nada permite obstar a que o autor se possa prevalecer do direito que lhe assiste a receber o correspondente ao sinal em dobro, nos termos já acima expendidos.

Tão pouco o facto de o promitente-comprador ter habitado no prédio durante um determinado lapso de tempo, é - só por si - suscetível de configurar abuso de direito, nos termos preconizados pela recorrente.

Improcede, pois, in totum, a revista.


15. Em face do exposto, acorda-se em julgar improcedente o presente recurso de revista, mantendo-se integralmente o acórdão recorrido.


Custas a cargo da recorrente.


Lisboa, 23 de novembro de 2017


Maria do Rosário Correia de Oliveira Morgado (Relatora)

José Sousa Lameira

Hélder Almeida

_________________


[1] Cf. certidão de fls. 87 e ss.
[2] As RR. FF, GG e HH foram citadas editalmente, encontrando-se representadas pelo Ministério Público.
[3] Como se refere no acórdão recorrido, a sentença proferida em 1ª instância transitou em julgado no que concerne à absolvição do autor quanto ao pedido reconvencional.

[4] Não obstante a presente ação ter sido instaurada em 29 de Setembro de 2011, é aplicável o novo regime processual, nomeadamente a norma ínsita no art.º. 671º, nº 3, do CPC, uma vez que a sentença da 1ª instância e o acórdão recorrido foram proferidos em data posterior à entrada em vigor da referida Lei (cf. arts. 5º, nº 1 e 7º, nº1,  da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho).

[5] Para além daquelas que devam ser conhecidas oficiosamente (art. 608.º, n.º 2, in fine, do CPC), o STJ conhece de todas as questões suscitadas nas conclusões das alegações de recurso, excetuadas as que venham a ficar prejudicadas pela solução, entretanto dada a outra ou outras (arts. 608.º, n.º 2, 635.º e 639.º, n.º 1, e 679º, do mesmo diploma), sendo de ter presente que, para este efeito, as «questões» a conhecer não se confundem com os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, aos quais o tribunal o tribunal não se encontra sujeito (art. 5.º, n.º 3, também do CPC).

[6] Trata-se de uma declaração endereçada aos filhos, ora réus, pedindo que a sua vontade seja respeitada, no que se refere à promessa constante de contrato promessa celebrado com o ora autor.
[7] Entre muitos, cf. o ac. do STJ de 7/2/2017, proferido no proc. 3071/13.6TJVNF.G1.S1, relatado pelo Exmo. Juiz Conselheiro Sebastião Póvoas.