Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
526/12.3TBPVZ-A.P1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: GARANTIA BANCÁRIA AUTÓNOMA
GARANTIA AUTÓNOMA
GARANTIA NÃO AUTOMÁTICA
REQUISITOS
ÓNUS DA PROVA
TÍTULO EXECUTIVO
Data do Acordão: 11/25/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS / GARANTIAS ESPECIAIS DAS OBRIGAÇÕES.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - ACÇÃO EXECUTIVA / TÍTULO EXECUTIVO - PROCESSO DE EXECUÇÃO.
Doutrina:
- Antunes Varela, RLJ, 121.°-148.
- Castro Mendes, Teoria Geral do Direito Civil, II volume, edição de 1995, pp. 366, 368.
- Coelho da Rocha, Instituições, §110 (1, 63-64).
- Fátima Gomes, in “Direito e Justiça”, Revista da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa, volume VIII, Tomo 2, 1994, p. 134.
- Francisco Cortez, “A Garantia Bancária Autónoma-Alguns problemas”, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 52, vol. II, Julho 1992, pág. 530.
- Galvão Telles, in “O Direito”, Ano 120, pág. 275 e seguintes.
- H. Hörster, A parte geral do Código Civil português…, p. 512.
- Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário, 4ª edição, 2010, pp. 763/764.
- Menezes Leitão, Garantias das Obrigações, p. 153
- Miguel Pestana de Vasconcelos, Direito das Garantias, pp. 132-133,
- Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição, por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, p. 446 e segs..
- Paulo Mota Pinto, Declaração Tácita, 1995, p.208.
- Pedro Romano Martinez, “Garantias Bancárias”, em Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles”, vol. II, 2, p. 280.
- Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil”, Anotado, vol. I, pp. 233, 367.
- Remédio Marques, Curso de Processo Executivo Comum, pp. 55-56, 150-151.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 224.º, N.º3, 236.º, 237.º, 280.º, 294.º, 334.º, 405.º, 627.º, N.º2, 631.º, 632.º, N.º1, 637.º, 638.º, 640.º, AL. A), 651.º,
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 46.º AL. C), 804.º.
Legislação Estrangeira:
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 29.2.1996, IN CJSTJ, 1996, I, 102;
-DE 14.1.1997, IN CJSTJ, 1997, I, 47;
-DE 28.9.2006, PROC. N.º 06A2412, IN WWW.DGISI.PT;
-DE 4.2.2010, PROC. N.º 5943/07.8YYPRT-A.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :

I. Com base no contrato de garantia bancária autónoma, o garante, em regra um Banco, obriga-se a pagar a um terceiro – beneficiário – certa quantia, verificado o incumprimento de um contrato-base, sendo mandante ou ordenante (preferimos “ordenante” a “ordenador”) o devedor nesse contrato, sem que o garante possa opor ao beneficiário (credor no contrato-base) quaisquer excepções reportadas ao contrato fundamental.

II. A autonomização em relação ao contrato-base é um dos traços distintivos da garantia bancária e uma das características que lhe conferem autonomia, que na fiança não existe por esta ser caracterizada pela acessoriedade. A característica da autonomia é mais patente quando a garantia deve ser prestada à primeira solicitação, “on first demand”.

III. Dada a característica da autonomia, o garante, sendo a garantia bancária autónoma à primeira solicitação, não pode socorrer-se de meios de defesa senão os decorrentes do próprio contrato de garantia.

IV. A garantia bancária pode ser automática ou não automática. Sendo automática, em regra, à primeira solicitação (mas podendo não revestir esta modalidade), o garante deve pagar, não podendo discutir ou fundamentar a recusa reportando-se ao contrato-base, como, no caso, entrar a discutir se houve ou não incumprimento do contrato-base.

V. Na garantia à primeira solicitação, o garante bancário está obrigado a pagar, face à autonomia, à potestividade e à automaticidade do contrato, mas esta obrigação não é incompatível com a exigência de prova do incumprimento do ordenante.

VI. A fronteira entre a garantia automática ou não automática não passa pela consideração de que naquela, o beneficiário pede ao garante e este sem mais deve pagar, por contraponto à garantia não automática em que o garante pode, reportando-se ao contrato de garantia, questionar se o pressuposto da sua responsabilidade se verifica, mormente, no caso em que se acertou que o pedido de pagamento contemplado na garantia ficava dependente de prova, não de factos relacionados com o contrato-base (em relação ao qual o garante é alheio), mas em relação ao contrato de garantia.

VII. Na fiança, em função da sua característica da acessoriedade – art. 627º, nº2, do Código Civil – não existe o efeito automático de responsabilização do fiador ante o incumprimento lato sensu do afiançado, porque o fiador, só renunciando ao benefício da excussão prévia – art. 638º e 640º a) do Código Civil – e assumindo a qualidade de obrigado principal, ou principal pagador, deixa de poder opor ao credor os meios de defesa deste.

VIII. Exercendo o co-recorrente a actividade profissional bancária não pode, como se leigo fosse, prevalecer-se de qualquer equivocidade das suas declarações, sabendo o contexto em que, como no caso, emite uma garantia solicitada pelo ordenante.
Não valendo como ultima ratio interpretativa a literalidade do texto, não é contudo razoável considerar que um Banco, quando presta uma garantia bancária, possa afirmar que prestou uma fiança, escudando-se no facto de o texto da garantia dizer que “se obriga como principal pagador” para sustentar que o que prestou foi uma fiança bancária sendo que no texto utiliza as palavras “beneficiário” e “parte ordenadora” que, segundo os usos bancários, são utilizadas quando se está perante garantia autónoma, figura diversa da fiança bancária.

IX. Na garantia autónoma simples, sendo ela condicionada e não absoluta, compete ao beneficiário a prova do incumprimento por parte do ordenante/devedor. Tendo o beneficiário executado o garante, pedindo o pagamento da garantia, compete ao executado a prova da inexistência de factos que evidenciem o preenchimento do requisito de que depende o cumprimento do contrato de garantia.

X. Da junção do contrato promessa, da declaração emitida pelo ordenante e do contrato de garantia não resultando, desde logo, uma situação de incumprimento pontual das obrigações do ordenante, não se pode afirmar que tais documentos “importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético…”, como exige o citado art. 46º c) do Código de Processo Civil, na redacção aplicável, e por isso, não dispõe o exequente/beneficiário de título executivo.
Decisão Texto Integral:

Proc. 526/12.3TBPVZ-A.P1.S1

R-476[1]

Revista

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

            Na Oposição à Execução para Pagamento de Quantia Certa em que é Exequente AA, e Executados:

- Banco BB, SA, sendo interveniente CC, Lda., veio o Banco BB, S.A, deduzir, em 26.3.2012, oposição à execução pendente no Tribunal Judicial da Comarca da Póvoa de Varzim – 2º Juízo Cível – e Incidente de Intervenção Provocada, pretendendo que, pela procedência da mesma, seja julgada extinta a execução.

            Alegou o Oponente, em resumo, o seguinte:

                       

- inexiste título executivo pois que, do teor da garantia bancária que serve de título executivo à presente execução, as obrigações assumidas pelo Banco perante o Exequente reportam-se, exclusivamente, a garantir “o bom e pontual cumprimento da obrigação de conclusão e entrega do imóvel ao Beneficiário por parte da Ordenadora, no âmbito do contrato promessa de permuta de bem presente por bem futuro, celebrado em 27 de Janeiro de 2008” obrigando-se o Banco “como principal pagador, a fazer as entregas de quaisquer importâncias que se tornem necessárias, até àquele limite [€ 200.000,00], se “CC, Lda o não fizer em devido tempo”, pelo que o Banco prestou uma fiança a favor do Exequente.

Logo, contrariamente ao que acontece nas garantias autónomas, na fiança, a obrigação do fiador é acessória da que recai sobre o principal devedor, o que significa que o fiador pode opor ao credor os meios de defesa de que pode valer-se o devedor;

                       

- É verdade que o Banco BB emitiu por ordem de CC Lda. – e a favor do Exequente AA, a garantia bancária no valor de € 200.000,00, emitida em 3 de Abril de 2008, com a validade de trinta e seis meses, o que vale por dizer que o Beneficiário só a podia executar até ao dia 3 de Abril de 2011 e que o Exequente, no dia 2 de Março de 2011, solicitou ao Banco que honrasse a garantia prestada não tendo o Banco satisfeito a pretensão do Exequente, tendo em conta que este não logrou demonstrar o incumprimento da obrigação de conclusão e entrega do imóvel por parte do Ordenador. Antes pelo contrário, foi o próprio Ordenador que conseguiu demonstrar que não havia incumprido aquela obrigação pois que o atraso na entrega definitiva da obra ficou a dever-se a diversas e sucessivas alterações/aditamentos ao caderno de encargos, assim como a diversas alterações de ordem estrutural exigidas pelo Exequente;

           

            - o Ordenador pediu ao Banco que não honrasse a garantia uma vez que, tendo o atraso na entrega da obra ficado a dever-se ao Exequente (e só a este), tinha chegado a acordo com ele no sentido de ser prorrogado o prazo da garantia ou ser emitida nova garantia bancária com o mesmo conteúdo, mas com um prazo mais lato. Perante a pretensão, tanto do Ordenador, como do Beneficiário, o Banco aceitou, logo no dia 31 de Março de 2011, proceder à emissão de uma nova garantia bancária nos termos acima descritos. No entanto só o faria se, no momento da emissão de nova garantia bancária, o Beneficiário devolvesse ao Banco o original da garantia bancária nº … e entregasse um documento em que aquele expressamente declarasse que desistia do seu accionamento, o que comunicou ao Beneficiário e ao Ordenador.

           

            Porém, desde aquela data de 31 de Março de 2011, o Banco não foi mais contactado pelo Exequente para proceder à emissão da nova garantia bancária. Perante tal omissão e durante os meses de Abril, Maio e Junho de 2011, o próprio Banco tentou contactar o Exequente, quer na sua própria pessoa, quer por intermédio do seu advogado, para averiguar o que se passava, o que se revelou infrutífero.

Mais alega que, todas e cada uma das alterações solicitadas pelo Exequente, quer ao Ordenador, quer a outras empresas, conduziu a um inevitável atraso na conclusão e entrega da moradia, atraso este que, insista-se, é exclusivamente imputável ao Exequente.

           

            Foi nesta conformidade que o Banco Réu se absteve de pagar o valor da fiança por si prestada.

                       

Conclui, pedindo que seja reconhecida a falta de título executivo, seja pela via dos fundamentos da oposição propriamente dita, deve esta ser julgada inteiramente provada e procedente, com a consequente extinção total da execução. Subsidiariamente, pede a intervenção acessória provocada de CC, Lda.

            Proferiu-se despacho que admitiu liminarmente a oposição.

            Notificado o exequente, veio contestar, defendendo-se por impugnação, alegando, ainda, que a garantia bancária é independente da relação causal, a qual não reveste a natureza de fiança e porque se verificam os pressupostos para ser accionada, atenta a confissão dos factos pelo executado, concluiu pelo prosseguimento da execução de acordo com o aí peticionado e pela improcedência do pedido de intervenção requerido pela Oponente.

Foi proferido o despacho saneador, dispensando-se a fixação da matéria de facto assente e a provar, nos termos do art. 787º Código de Processo Civil.

            Admitiu-se a intervenção de CC, Lda. e procedeu-se à respectiva citação.

           

A interveniente veio aderir aos fundamentos da oposição apresentada pelo executado.

            Realizou-se o julgamento, com gravação da prova.

                       

O despacho que contém as respostas à matéria de facto consta de fls. 337 a 347.

***

            A final, foi proferida sentença com a decisão que se transcreve:

                       

Nestes termos e pelos fundamentos expostos, julgando pela procedência desta oposição, declaro a extinção da execução”.

***

Inconformado, o Exequente recorreu para o Tribunal da Relação do Porto, que por Acórdão de 2.6.2014 – fls. 670 a 734 – revogou a sentença recorrida, julgando improcedente a oposição e ordenando que a execução prosseguisse.

***

O BBB e CC, Lda., recorreram para este Supremo Tribunal de Justiça e, alegando, formularam as seguintes conclusões:

1ª) O presente recurso vem interposto de um acórdão que, revogando na totalidade a sentença proferida nos autos, mandou prosseguir a presente execução, sob o fundamento de que a garantia em causa se reconduz, não a uma fiança, mas sim a uma garantia autónoma simples que constitui título executivo à luz do decantado art. 46° al. c) do Código de Processo Civil, juntamente com uma declaração do ordenador da garantia na qual assume o incumprimento da obrigação e ainda uma carta de interpelação dirigida ao Banco garante;

2ª) O acórdão recorrido entendeu ainda que, uma vez admitida a execução, recaía sobre o garante, em sede de oposição, alegar e provar que não ocorreu o facto constitutivo do direito do exequente, ou seja, que o ordenador não incumpriu a obrigação garantida — não o tendo feito, a presente oposição teria de sucumbir;

3ª) O Tribunal a quo laborou num tremendo erro de julgamento: primeiro, porque a garantia dos autos é uma fiança e, desde logo, por este fundamento a oposição procederia pois inexistiria título executivo à luz do disposto na al. c) do art. 46° do Código de Processo Civil; depois, porque todos e cada um dos factos que o Banco logrou provar nos autos são bem demonstrativos de que o ordenador da garantia não incumpriu a sua obrigação;

Vejamos,

4ª) A grande característica que distingue a fiança da garantia autónoma simples é que, enquanto a primeira é acessória da obrigação principal, a segunda é autónoma da obrigação principal: não existindo no contrato de garantia qualquer alusão expressa a nenhuma destas figuras, mas sendo necessário descortinar a sua natureza, é preciso saber, recorrendo à interpretação do negócio, “se as partes pretenderam que a obrigação do garante ficasse ou não dependente das excepções oponíveis à obrigação principal, devendo, em caso de dúvida, presumir-se pela mera estipulação da fiança por se tratar de uma garantia prevista na lei” — cfr. Acórdão recorrido.

5ª) A garantia dos autos reconduz-se a uma fiança uma vez que o documento que a titula: a) não contém qualquer declaração de renúncia do Banco à invocação de excepções derivadas do contrato-base; b) contém uma cláusula de renúncia ao benefício da excussão prévia, benefício este que configura um direito no âmbito da fiança (cfr. art. 638° do Código Civil); c) contém uma referência à falta de cumprimento da obrigação de conclusão e entrega do imóvel, o que significa que o Banco não prescindiu de controlar o cumprimento pelo Ordenador do contrato base;

6ª) Não colhem, assim, os argumentos expendidos no acórdão recorrido para afastar o entendimento de que estamos perante uma fiança: da mesma forma que as partes não exararam no corpo da garantia a palavra “fiança” também não exararam, em vez de garantia bancária, “garantia bancária autónoma simples”; no texto do contrato de garantia contém igualmente expressões típicas da fiança; não se vê no texto da garantia qualquer declaração de renúncia do Banco à invocação de excepções derivadas do contrato-base; na fiança o garante tem o direito de fiscalizar o cumprimento do contrato garantido, não constituindo esse direito qualquer dever; nada na lei impõe que a fiança acompanhe toda a vida do contrato.

7ª) Redunda numa clamorosa violação do princípio da liberdade contratual, que norteia estes contratos, afirmar-se que a garantia dos autos é uma garantia bancária autónoma simples, impedindo o garante de discutir a relação de base quando nenhuma cláusula de exclusão foi contratada;

8ª) De resto, tenha-se absolutamente presente que em caso de dúvida quanto à interpretação do negócio de garantia, o mesmo presume-se ser de fiança: daí que o acórdão recorrido, se não surpreendeu qualquer alusão concreta que o levasse a concluir estar perante uma garantia autónoma — in casu, uma cláusula de exclusão/renúncia do Banco à invocação de excepções derivadas do contrato-base — então, na dúvida, deveria ter decidido tratar-se de uma fiança (veja-se a este respeito o que se decidiu nos acórdãos citados em texto do TRP de 16.06.2011 e TRL 17.12.2009);

9ª) Ainda quando se entendesse que a garantia oferecida à execução nestes autos se reconduz a uma garantia autónoma simples, a presente acção falecia da mesma forma pela inexistência de título executivo: não se tendo o Banco responsabilizado pelo pagamento de € 200.000,00, mas apenas pela entrega da quantia que se tomasse necessária até aquele limite se o ordenador incumprisse a obrigação de pagamento, a obrigação por si assumida não é de montante “determinado ou determinável por simples cálculo aritmético”, o que significa que não pode ser havida como título executivo para efeitos da al. c) do n° 1 do art. 46° do Código de Processo Civil (cfr. acórdão do TRL de 15.04.2010, citado em texto), sendo este vício de conhecimento oficioso;

10ª) E ainda quando se entendesse que a garantia dos autos poderia ser enquadrada naquele decantado artigo 46° — e não pode — ainda assim a presente oposição teria de proceder uma vez que lei prescreve que a obrigação exequenda tem de ser líquida e a Exequente não lançou mão do disposto no art. 805° do Código de Processo Civil: este vício da falta de pressuposto processual da liquidez impede o Tribunal de dar satisfação à pretensão executiva e é, igualmente, de conhecimento oficioso;

De todo o modo,

11ª) Nunca o Tribunal a quo poderia afirmar que o Exequente, através da declaração em que o ordenador afirma não poder cumprir com o prazo de entrega da obra, logrou fazer prova complementar do título executivo nos termos do art. 804°: isto porque, à luz do teor da garantia, o facto constitutivo do seu direito decompõe-se não só no incumprimento da obrigação de entrega do imóvel, como também no não pagamento pelo Ordenador das quantias que se tornem necessárias até ao limite dos € 200.000,00, o que significa que, abstractamente, era sobre a verificação destas duas circunstâncias que a Exequente tinha de fazer prova; Ora,

12ª) Nem a declaração junta ao requerimento executivo faz qualquer prova do incumprimento da Ordenadora da obrigação de conclusão e entrega do imóvel, pois apenas atesta que aquela não poderá cumprir com o prazo de entrega, omitindo se tal conduta foi culposa; nem a Exequente fez qualquer prova do não pagamento pela Ordenadora das importâncias que alegadamente se tornaram necessárias até ao limite dos € 200.000,00 o que sempre determinaria a inexistência de título executivo; Sem prescindir,

13ª) Figurando, contra o que resolutamente se espera, que este Alto Tribunal entende que a garantia que foi oferecida a esta execução é uma garantia autónoma simples e que o Exequente logrou fazer prova complementar do título para efeito de se poder afirmar que o mesmo existe, a oposição à execução deduzida pelo Banco executado sempre terá de proceder;

14ª) No âmbito das garantias autónomas simples o Banco constitui-se no direito de não as honrar perante o seu beneficiário em três circunstâncias autónomas: primeiro, se o beneficiário não lograr provar perante si o incumprimento da obrigação garantida por parte do ordenador; depois, se a garantia se tiver extinguido por cumprimento, resolução ou caducidade; por fim, opondo excepções reportadas à relação principal (contrato-base) desde que haja evidentes e graves indícios de actuação de má fé, nela se incluindo o abuso de direito;

15ª) No caso dos autos verificaram-se, exactamente, as três elencadas circunstâncias, o que significa que o Banco não se encontra constituído na obrigação de honrar a garantia dos autos;

16ª) É verdade que a Ordenadora da garantia, por declaração de 01.03.2011, atestou que “não poderá cumprir com o prazo de entrega do imóvel objecto do contrato de promessa de permuta de bem presente por bem futuro”, tendo o Banco, perante essa declaração, diligenciado por saber as causas que determinaram essa não entrega pontual do imóvel, uma vez que a declaração era omissa e só existindo culpa da Ordenadora é que era possível imputar-lhe qualquer incumprimento (é isto que nos diz o art. 798° do Código Civil);

17ª) Foi então que a Ordenadora da garantia lhe comunicou e comprovou que a não entrega do imóvel no prazo acordado se devia, única e exclusivamente, às diversas e sucessivas alterações e aditamentos ao caderno de encargos exigidas pelo Exequente: essa prova não foi apenas feita perante o Banco aquando da interpelação da beneficiária, pois foi também exaustivamente feita no âmbito deste processo, sendo isto mesmo que traduzem os factos provados!

18ª) Ou seja, não só a beneficiária da garantia não logrou provar, como lhe competia, que a ordenadora faltou culposamente à obrigação de entrega e conclusão da obra, como foi a própria Ordenadora que logrou provar perante o Banco, e até perante o Tribunal, exactamente o inverso: que a não entrega e conclusão da obra se ficou a dever, única e exclusivamente, à beneficiária da garantia, quer em virtude das alterações ao caderno de encargos que solicitou na eminência do término do prazo inicialmente estipulado de entrega, quer em virtude de não ter pago os diversos trabalhos que solicitou a outras empresas e não pagou, levando a que estas não concluíssem os trabalhos e abandonassem a obra (cfr. neste particular os factos dados como provados sob os pontos 17, 21, 24, 25, 28, 30, 34, 35, 36 a 50, 52, 53, 54 e 56);

19ª) Significa isto que a interpelação do beneficiário para que o Banco honrasse a garantia traduz um comportamento clamorosamente violador da boa fé, consubstanciando uma fraude manifesta: sabendo que era titular de uma garantia de 200.000,00 € que poderia ser accionada caso o seu ordenador não lhe entregasse o imóvel concluído em determinado prazo, provoca o atraso da obra, para depois vir alegar perante o Banco que a obra não foi concluída no prazo e assim embolsar aqueles 200.000,00 € e ainda ficar com um imóvel praticamente concluído.

20ª) De todo o modo, a Exequente não alegou nem provou perante o Banco aquando da interpelação para pagamento (nem tão pouco no âmbito desta acção) que se havia verificado a outra circunstância de que dependia o nascimento do seu crédito: que a CC não pagou as importâncias que se haviam tornado necessárias até ao limite dos 200.000,00 € – e esse facto não se presume!

21ª) Resultou ainda provado nos autos a seguinte factualidade: a garantia em causa caducava no dia 3 de Abril de 2011; o beneficiário interpelou o Banco para a honrar no dia 2 de Março de 2011; no dia 28 de Março de 2011 o ordenador da garantia e o beneficiário solicitaram ao Banco a substituição daquela garantia por outra com um prazo de mais três meses; o Banco anuiu a essa pretensão, comunicando ao beneficiário e ao ordenador que só o faria caso aquele devolvesse ao Banco o original da garantia e lhe entregasse um documento em que expressamente declarasse que desistia do seu accionamento; desde 31 de Março de 2011 o Banco não foi mais contactado pelo beneficiário, durante os meses de Abril, Maio e Junho, para proceder à emissão da nova garantia nem tão pouco este se mostrou disponível para falar com o Banco, não obstante as inúmeras tentativas que foram feitas nesse sentido; entretanto o ordenador faz saber ao Banco que estava avançar com a obra sob o acompanhamento do beneficiário e que havia acordado com ele no sentido da desnecessidade de emissão da nova garantia; o Banco visitou de surpresa a obra e constatou que, de facto, a construção continuava a ser efectuada (cfr. factos provados n°s 6 a 20).

22ª) Eis que, surpreendentemente, após três meses de absoluto silêncio o beneficiário da garantia, em 20 de Junho de 2011, vem interpelar novamente o Banco para pagar a garantia que já havia caducado no dia 3 de Abril de 2011, sob o pretexto de ter estado “3 meses sem respostas”, tendo resultado nestes autos provado que essa afirmação é totalmente falsa!

23ª) O Tribunal a quo ao afirmar que a factualidade supra descrita não merecia relevo uma vez que a circunstância do exequente não ter diligenciado pela substituição da garantia não lhe é imputável em virtude do regime geral das garantias bancárias determinar que é sobre o ordenador que incumbe essa diligência é absolutamente surpreendente, desde logo porque nem sequer este regime está tipificado: mais uma vez o Tribunal a quo fez tábua rasa do princípio da liberdade contratual, aplicável no âmbito destes contratos de garantia, e esqueceu-se que o beneficiário sabia que a substituição da garantia dependia apenas da sua diligência e nada, absolutamente nada, fez ou comunicou ao Banco, daí que a circunstância do exequente não ter diligenciado pela substituição da garantia lhe ser totalmente imputável.

24ª) No dia 20 de Junho de 2011 a garantia prestada já havia, obviamente, caducado; e não só caducou como também o comportamento do Exequente, ao interpelar o Banco, se demonstra de todo abusivo e contrário à boa fé: não só perante o Ordenador da garantia, como também perante o próprio Banco, pois foi criada a legítima convicção de que não mais iria accionar a garantia em causa nestes autos. Por fim,

25ª) Mal, muito mal, andou o Tribunal a quo ao eliminar da matéria de facto provada quatro pontos por entender que os mesmos eram conclusivos: definindo-se como conclusivos os factos que traduzem meras formulações de um juízo de valor que se deve extrair de factos concretos objecto de alegação e prova, não se percebe como é que os factos sob apreciação (saber se as alterações exigidas pelo exequente determinaram, ou não, um atraso na obra; se a ordenadora comunicou determinada factualidade ao Banco, se a exequente contratou outros trabalhos para além dos que constavam no caderno de encargos) podem ser havidos como conclusivos, impondo-se, por isso, que este Alto Tribunal os reintegre na factualidade dos autos;

26ª) Mas, ainda quando pudessem ser havidos como conclusivos — e não podem não se crê que, à luz do disposto no art. 646°, que a consequência seria terem-se por não escritos; de todo o modo, os factos que o Tribunal a quo manteve inalterados são mais do que suficientes para determinar a procedência da presente oposição à execução e conduzir ao lapidar entendimento que, quer se entenda que a garantia dos autos constitui uma fiança, quer se entenda que constitui uma garantia bancária autónoma, o Banco recusou legitimamente o pagamento da garantia dos autos;

27ª) Decidindo como decidiu, o acórdão recorrido violou, entre outras, os artigos 798°, 334°, 762°, 627° e ss, todos do Código Civil, 46° al. c), 646°, 802°, 804°, 816° todos do Código de Processo Civil.

Termos em que, na procedência de todas e cada uma das conclusões desta alegação, deve o douto aresto recorrido ser revogado e substituído por acórdão que julgue procedente a presente oposição, declarando extinta a execução.

O Exequente respondeu, pugnando pela confirmação do Julgado.

***

Colhido os vistos legais, cumpre decidir, tendo em conta que a Relação considerou provados os seguintes factos:

Do requerimento executivo:

1. O Exequente é uma pessoa singular, que transmitiu por efeito de permuta uma das suas propriedades para a empresa CC Lda., na data de 07de Abril de 2008 – (art. 1º).

2. Para garantia do bom e pontual cumprimento da obrigação de permuta, constituiu aquela empresa, na data de 03 de Abril de 2008, uma garantia bancária com o n.º …, emitida pelo DD, no valor de 200.000,00 € (duzentos mil euros), junta aos autos de execução como documento nº 1, com o teor que se transcreve:

                       

“Em nome e a pedido da CC, Lda. com sede no lugar da ..., … ..., o Banco BB, SA, sociedade aberta, com o capital social 3 611 329 567,00Euros matriculado na Conservatória do Registo Comercial do Porto, sob o número único de matrícula e de Identificação Fiscal …, com sede na ..., …, … Porto e estabelecimento na Rua ..., …, …º, … Porto vem declarar que oferece uma garantia bancária no valor de € 200 000,00 (duzentos mil euros), relativa ao bom e pontual cumprimento da obrigação de conclusão e entrega do imóvel ao Beneficiário por parte da Ordenadora, no âmbito do contrato-promessa de permuta de bem presente por bem futuro, celebrado em 22 de Janeiro de 2008, pelo que se obriga como principal pagador, a fazer as entregas de quaisquer importâncias que se tornem necessárias até aquele limite, se CC, Lda. o não fizer em devido tempo.

O valor total da presente garantia, é pois de EUR 200 000,00 (duzentos mil euros) e é válida pelo período de 36 (trinta e seis) meses, a contar desta data.

O prazo de interpelação para o pagamento de quaisquer quantias devidas pelo Banco BB, SA, por força desta garantia, expira em 3 de Abril de 2011, pelo que não poderá ser atendido qualquer pedido entrado nos serviços deste Banco depois desse momento.

Porto 3 de Abril de 2008

Banco BB, SA

Duas assinaturas ilegíveis/ nº 1760/nº 4909” – (art. 2º, 3º, 4º).

                       

3. Na data de 01 de Março de 2011 o Exequente recebeu, em mãos, a declaração da empresa CC Lda. devidamente assinada e carimbada, junto com o requerimento executivo como documento nº 2, com o seguinte teor:

“CC, Lda., contribuinte fiscal nº … com sede na Zona Industrial … – Pav. … – ..., declara para os devidos e legais efeitos, que não poderá cumprir com o prazo de entrega do imóvel objecto do contrato promessa de permuta de bem presente por futuro, celebrado em 22 de Janeiro de 2008, com AA, contribuinte fiscal nº ….

Por ser verdade vai a presente declaração assinada e carimbada pelo legal representante do declarante.

..., 01 de Março de 2011

Carimbo e assinatura ilegíveis– (art. 5º).

                       

4. Em 02 de Março de 2011, o Exequente interpelou o Executado para que efectuasse o pagamento do montante de € 200.000,00, cfr. teor do documento junto com o requerimento executivo sob o nº 3 que a seguir se transcreve, quantia que o Executado até hoje não pagou.

                       

“DD

  Assunto: Garantia Bancária a accionar por incumprimento da obrigação de conclusão e entrega do imóvel ao beneficiário.

Ex.mos Senhores

Relativamente ao assunto referido em epígrafe, venho por este meio solicitar ao DD que se accione pela sua totalidade a Garantia Bancária NRº … , emitida pelo DD a 3 de Abril de 2008 no valor de EUR 200 000,00 (duzentos mil euros). Valor a depositar no Banco DD em conta do beneficiário AA, portador do Nº de contribuinte ….

Esta solicitação para accionar a Garantia Bancária NRº … resulta do incumprimento da obrigação de conclusão e entrega do imóvel ao beneficiário por parte da Ordenadora CC, Lda., contribuinte fiscal nº …, no âmbito do contrato promessa de permuta de bem presente por bem futuro.

A empresa CC, Lda. já comunicou ao beneficiário de forma oral e escrita através de Declaração (anexa a este documento) redigida para os devidos e legais efeitos, o incumprimento da obrigação assumida contratualmente.

Anexa cópia dos seguintes documentos: cópia da garantia bancária, declaração emitida pela CC, Lda., Contrato Promessa de Permuta de bem presente por bem futuro e escritura de permuta.

Póvoa de Varzim 02 de Março de 2011” – (art. 7º).

                       

Da petição inicial:

5. Da garantia bancária mencionada em 2) consta que as obrigações assumidas pelo Banco perante o Exequente reportam-se, exclusivamente, a garantir “o bom e pontual cumprimento da obrigação de conclusão e entrega do imóvel ao Beneficiário por parte da Ordenadora, no âmbito do contrato promessa de permuta de bem presente por bem futuro, celebrado em 27 de Janeiro de 2008” obrigando-se o Banco “como principal pagador, a fazer as entregas de quaisquer importâncias que se tornem necessárias, até aquele limite [€ 200.000,00], se CC, Lda. o não fizer em devido tempo” – (art. 1º, 15º).

6. A garantia, emitida em 3 de Abril de 2008, tem a validade de trinta e seis meses – (art. 16º).

                       

7. Aquando da solicitação do pedido de accionamento da garantia por parte do Exequente, o Banco, por carta registada com aviso de recepção datada de 4 de Março de 2011, disso deu conhecimento ao seu cliente (CC, Lda.), cfr. Teor de fls. 50 cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais – (art. 22º).

                       

8. A chamada “CC Lda.” por fax datado de 15 de Março de 2011 respondeu ao Banco Executado respondeu nos termos constantes de fls. 51 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais – (art. 23º).

9. Eliminado.

                       

10. CC, Lda. entregou em mão à Executada carta datada de 15 de Março de 2011solicitando a prorrogação do prazo da garantia bancária nº…por si prestada a favor do Exequente pelo prazo de 3 meses junta aos presentes autos a fls. 52 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais (art. 27º).

                       

11. O Exequente entregou uma declaração ao Banco onde fez constar, entre o mais, o seguinte:

 “Comprometo-me a cancelar a accionada Garantia Bancária com a V/Ref.: …  desde que seja entregue uma nova garantia bancária no valor de EUR 200.000,00 € (duzentos mil euros) ao beneficiário AA, contribuinte numero…, a emitir pelo DD sobre as mesmas condições da Garantia Bancária accionada e com validade para esta nova garantia bancária por um período de 3 (três) meses a iniciar contagem ainda dentro do prazo de interpelação da garantia bancária com V/Ref.: …”, cfr. teor de fls. 54 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais – (art. 28º).

12. Perante a pretensão, tanto da CC Lda. como do Exequente o Banco Executado aceitou, logo no dia no dia 31 de Março de 2011, proceder à emissão de uma nova garantia bancária nos termos acima descritos – (art. 29º).

                       

13. No entanto só o faria se, no momento da emissão de nova garantia bancária, o Beneficiário devolvesse ao Banco o original da garantia bancária nº … e entregasse um documento em que aquele expressamente declarasse que desistia do seu accionamento, o que comunicou ao Beneficiário e ao Ordenador – (art. 30º).

14. Desde aquela data de 31 de Março de 2011 o Banco não foi mais contactado pelo Exequente para proceder à emissão da nova garantia bancária – (art. 32º).

15. Perante tal omissão e durante os meses de Abril, Maio e Junho de 2011, o próprio Banco tentou contactar o Exequente, quer na sua própria pessoa, quer por intermédio do seu advogado, para averiguar o que se passava – (art. 33º).

16. Tentativas estas infrutíferas, uma vez que o Exequente sempre se demonstrou indisponível para falar com o Banco – (art. 34º).

17. Durante os meses de Abril, Maio e Junho, o Banco também contactou o seu cliente (CC, Lda.) que lhe fez saber que estava avançar com a obra sob o acompanhamento do Exequente, que a construção estava a ser feita “à medida” do Exequente e que teriam chegado a acordo no sentido da desnecessidade de emissão de nova garantia bancária, daí nunca mais terem contactado o Banco – (art. 35º, 36º).

18. Como forma de confirmar o que lhe havia sido transmitido pela sociedade CC, um funcionário do Banco visitou (de surpresa) a obra e constatou que, de facto, a construção continuava a ser efectuada – (art. 37º).

19. No dia 20 de Junho de 2011, o Exequente enviou para o Banco carta a reiterar o pagamento da garantia bancária nº…, com o seguinte conteúdo:

“ (…) Venho por este meio e depois de quase 3 (três) meses sem respostas informar V. Exas. que aguardo e reclamo o pagamento da Garantia Bancária NRº … já accionada no DD em virtude como é do conhecimento de V. Exas. da ausência de apresentação de nova Garantia Bancária no indicado e em devido tempo, assim como, por não se ter feito cumprir as condições que apresentei na Declaração emitida e entregue a V. Exas. no dia 28 de Março do corrente ano. Assim sendo, aguardo o pagamento da Garantia Bancária que foi accionada após a ordenadora a empresa CC Lda., contribuinte fiscal nº … ter comunicado ao beneficiário de forma oral e escrita através de Declaração (já do conhecimento de V. Exas.) redigida para os devidos e legais efeitos, o incumprimento da obrigação assumida contratualmente”, cfr. teor do documento junto a fls. 55 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido – (art. 38º).

                       

20. Desde o dia 28 de Março de 2011 (data em que entregou no Banco declaração onde solicitava a emissão de nova garantia bancária) até ao dia 20 de Junho de 2011, o Exequente nunca mais contactou o Banco para formalizar a emissão da nova garantia bancária, nos termos por si queridos e não mais se demonstrou disponível para falar com o Banco perante as inúmeras tentativas de contacto por si levadas a cabo – (art. 40º, 41º).

                       

21. A obra continuou a ser desenvolvida sob a orientação do Exequente tendo efectuado pagamentos à CC Ordenadora durante o mês de Abril – (art. 44º).

                                

22. Perante este novo pedido de accionamento da garantia bancária o Banco disso deu conhecimento à CC que solicitou ao Banco Executado, por carta de 1 de Julho de 2011, para que não procedesse ao pagamento da quantia titulada pela garantia bancária “tendo em conta que da n/ parte não existiu qualquer incumprimento contratual”, cfr. Teor do documento junto a 56 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais - ( art. 45º, 46º ).

                       

23. Pedido este que fundamentou, através de carta que fez enviar para o Banco a 6 de Julho de 2011, alegando para tanto que de facto existia atraso na construção e consequente entrega da moradia ao Beneficiário, mas que esse atraso era exclusivamente imputável ao Exequente:

 “Na verdade, a existir mora na entrega da moradia prometida vender e resultante da celebração do contrato de permuta de bem presente por bem futuro entre o beneficiário e o aqui exponente, tal situação devesse ao comportamento do próprio beneficiário AA, que durante a execução dos trabalhos de empreitada, foi sucessivamente requerendo e/ou solicitando diversas e sucessivas alteração/aditamentos ao caderno de encargos, bem como requeridas diversas alterações de ordem estrutural na própria obra (…) o que provocou/originou que a sociedade CC – …, Lda., tendo em conta todas as alterações pretendidas, atrasasse mais tempo do que o previsto o acordado para proceder à entrega definitiva da moradia em questão”, cfr. teor de fls. 57 e 58 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais - ( art. 47º ).

                       

24. As alterações/aditamentos ao caderno de encargos assim como as alterações de ordem estrutural na própria obra solicitadas pelo Exequente ao Ordenador foram as seguintes: criação de uma lavandaria externa; execução de obras para aplicação de um novo portão no alçado lateral direito; construção de uma piscina dentro da área atribuída ou correspondente à moradia; realização de diversos trabalhos para colocação da tubagem necessária para a aplicação da domótica: criação de estruturas para aplicação do sistema de alarme; construção de uma nova dispensa no interior da moradia; demora na escolha do material a aplicar - ( art. 48º ). 

                       

25. Todas e cada uma das alterações mencionadas em 24) foram solicitadas à CC em data anterior ao accionamento da garantia bancária ocorrido em 2 de Março de 2011 por muito que, para as concretizar, o trabalhos se tenham também concretizado nos meses de Março, Abril, Maio e Junho - ( art. 49º ).

                       

26. O atraso no início da obra se ficou a dever à morosidade na obtenção da licença de construção por parte da Câmara Municipal da Trofa, apesar da CC Lda. ter tomado as diligências necessárias e convenientes para o efeito  - ( art. 50º ).

                       

27. A própria licença de utilização da fracção prometida vender e objecto do contrato de permuta, por se inserir num empreendimento em regime de propriedade horizontal, só seria emitida pela Câmara Municipal da Trofa quando todas as fracções e as partes comuns estivessem concluídas  - ( art. 51º ).

                       

28. Como forma de sustentar a alegada diferença entre a descrição da obra no caderno de encargos inicial e adjacente ao contrato de permuta e o que há data de Julho de 2011 estava edificado, a CC Lda. enviou ao Banco a planta que atesta o que havia sido projectado e fotografias que comprovam o que foi alterado, cfr. teores de fls. 59 a 72 que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais ( art. 52º ).

                       

29. Eliminado.

30. No dia 28 de Abril de 2011, o Exequente entregou à chamada CC Lda. um cheque no valor de 3.500 € como forma de pagamento das despesas com a construção da piscina, cheque esse cuja cópia se encontra junta aos autos a fls. 73 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais - ( art. 54º ).

                       

31. O Banco Executado enviou, no dia 23 de Agosto de 2011, carta ao Exequente a informar que não honraria a garantia, cfr. teor de fls. 74 e 74/verso cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais - ( art. 57º ).

                       

32. O Exequente voltou a reiterar o accionamento da garantia bancária, o que fez através de carta de 30 de Agosto de 2011 junta a fls. 75 e 76 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais - ( art. 58º ).

                       

33. O Banco Executado deu conhecimento à CC Lda. da insistência por parte do Exequente para que se honrasse a garantia - ( art. 59º ).

                       

34. A CC Lda. enviou à Executada a carta registada junta de fls. 77 a 81 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais - ( art. 60º ).

                       

35. Os trabalhos descritos no documento mencionado em 34) foram executados e concluídos até ao dia 3 de Abril de 2011 pela CC Lda. -  ( art. 70º ).

                       

36. O Exequente não pagou o seu preço, apesar de tudo ter mandado fazer como trabalhos a mais, não previstos no caderno de encargos  - ( art. 71º ).

                       

37. O Exequente ficou de proceder à compra do portão da garagem e de o colocar no local construído para o efeito pela CC, nunca o tendo feito - ( art. 72, 73º ).

                       

38. Tal omissão impede que a obtenção por parte da CC Lda. da licença de utilização assim como do pedido de vistoria  - ( art. 74º ).

                       

39. O Exequente solicitou à CC Lda. a realização de trabalhos de construção da lavandaria que não constava do projecto ou caderno de encargos, o que levou a que se alterasse novamente o projecto, condicionando a entrega da obra no prazo previsto - ( art. 75º ).

                       

40. Solicitou ainda o Exequente ao Ordenador a construção de um poço para captação de águas para a qual não existia licença -  ( art. 76º ).

                       

41. Não obstante a falta de licença, a Executada ainda assim fez a vontade ao Exequente, iniciando os trabalhos de construção - ( art. 77º ).

                       

42. Esta construção, motivada por denúncia de terceiros, foi embargada pela GNR, o que levou a que fosse requerida licença, atrasando assim a entrega da obra  - ( art. 78º ).

                       

43. Solicitou também o Exequente ao Ordenador, em data anterior a 3 de Abril de 2011, a construção de uma piscina, construção esta que não constava do caderno de encargos, nem estava licenciada - ( art. 79º ).

                       

44. Esta obra foi concluída pela CC Lda. e foi paga pelo Exequente no dia 28 de Abril de 2011 - ( art. 80º ).

                       

45. O Exequente contratou a sociedade EE – ..., Lda. para proceder à instalação do sistema de domótica, sem que tais serviços constassem do caderno de encargos  - ( art. 81º ).

                       

46. Estes trabalhos não foram concluídos por falta de pagamento por parte do Exequente, cfr. teor de fls. 82 que aqui se dá por integralmente reproduzido ( art. 82º ).

47. Eliminado.

                       

48. Estes trabalhos não foram concluídos por falta de pagamento do Exequente, cfr. teor de fls. 83 que aqui se dá por integralmente reproduzido - ( art. 85º ).

                       

49. No caderno de encargos ficou acordado que a madeira a aplicar na obra seria sucupira  - ( art. 86º ).

                       

50. O Exequente solicitou à CC Lda. a substituição da madeira sucupira por madeira Wengué.

                       

51. Esta alteração envolveu um agravamento do preço orçamentado e aceite, cfr. documento junto a fls. 84 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido - ( art. 88º ).

                       

52. O Exequente, apesar de estar obrigado a pagar o diferencial do preço decorrente da substituição da madeira, não o pagou ainda ao empreiteiro da obra de carpintaria, o que levou a que este tomasse a decisão de a não acabar - ( art. 89º, 90º ).

                       

53. Quanto à instalação eléctrica o Exequente mandou executar inúmeras alterações ao caderno de encargos, a vários níveis, nomeadamente: Pré instalação da domótica a funcionar com telerruptores; Pré instalação de música ambiente; Pré instalação de câmaras de vigilância; Pré instalação de alarme de intrusão; Pré instalação de alarme contra incêndio; Pré instalação de alarme de inundação; Pré instalação de gradeamento eléctrico nas portas do rés-do-chão; Alimentação piscina; Portões eléctricos - ( art. 92º ).

                       

54. Estes trabalhos não foram pagos, o que motivou a que o seu responsável não desse seguimento à certificação da instalação eléctrica e telecomunicações, cfr. teor de fls. 86 que aqui se dá por integralmente reproduzido  - ( art. 93º ).

                       

55. Eliminado

                       

56. Todas e cada uma das alterações solicitadas pelo Exequente, quer à CC Lda. quer a outras empresas, conduziu a um atraso na conclusão e entrega da moradia - ( art. 97º ).

                       

57. O Banco Executado enviou ao Exequente a carta de 19 de Setembro de 2011 junta a fls. 87 dos autos cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais - ( art. 101º ).

                       

Da contestação:

                       

58. Exequente e CC outorgaram o contrato promessa de permuta e contrato definitivo juntos de fls. 105 a 113 cujos teores se dão aqui por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais  - ( art. 8º ).

                       

59. A Câmara Municipal da Trofa transmitiu ao Exequente a informação constante de fls. 114 a 116 e cujo teor se dá aqui por reproduzido para todos os efeitos legais -  ( art. 18º).

Fundamentação:

Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente , que, em regra, se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – importa saber:

- se a garantia prestada pelo Banco, invocada como causa de pedir da execução, é uma fiança bancária ou uma garantia bancária autónoma simples;

- seja qual for a garantia se constitui título executivo;

- se, mesmo que seja qualificada como garantia bancária simples,  o Banco pode, no caso, opor ao beneficiário as excepções emergentes do contra-base, mormente, o incumprimento por parte deste nas suas relações com a CC na veste de ordenante por actuação contrária à boa fé e por ser abusiva do direito:

- se ocorreu caducidade da garantia por ter sido excedido o prazo  por que valia;

- se a Relação agiu em violação da lei eliminados os pontos 9, 29, 47 e 55 da matéria de facto advinda provada na sentença recorrida.

 Vejamos:

Entre o exequente e CC, Lda. foi pactuado um “Contrato Promessa de Permuta de Bem presente por Bem Futuro”, (assim o apodaram) celebrado em 27.2.2008, através do qual o exequente trocava dois lotes de terreno urbano seus como contrapartida da entrega por parte desta de um imóvel que ela mesma construiria: “uma moradia, devidamente construída e concluída, cumprindo o caderno de encargos da generalidade do empreendimento, com uma área de construção nunca inferior a 300 m2, composta por três frentes, e constituída por cave ou anexo que servirá para garagem e lavandaria, rés-do-chão que será uma loja para funcionamento de um estabelecimento comercial,   composto por dois W.C. e instalações para um terceiro W.C. primeiro andar constituído por três quartos, sala, cozinha despensa, e dois WC. tudo conforme caderno de encargos que se junta e faz parte integrante deste contrato.” – Cláusula Terceira, nº2.

No nº4 dessa Cláusula foi acordado – “A segunda outorgante, compromete-se a apresentar no acto da escritura de permuta de bem presente por bem futuro, que será realizada no prazo estabelecido na cláusula décima primeira, uma garantia bancária no valor de € 200.000,00 (duzentos mil euros), que será accionada pelo primeiro outorgante em caso de incumprimento do segundo outorgante, com validade de três anos, prazo de conclusão e entrega do imóvel ao primeiro outorgante.”.

O Exequente, considerando ter havido incumprimento daquele contrato por parte da construtora CC, instaurou execução contra o Banco, exigindo o pagamento da garantia, por este prestada àquela sociedade, do qual é beneficiário.

O Banco deduziu oposição, alegando, além do mais, que a garantia invocada como título executivo é uma fiança bancária, no que diverge do entendimento do exequente que considera que se trata de uma garantia bancária autónoma simples.

            É o seguinte o teor do documento emitido pelo Banco:

“Em nome e a pedido da CC, Lda., com sede no lugar da ..., … ..., o Banco BB, SA, sociedade aberta, com o capital social 3 611 329 567,00 Euros matriculado na Conservatória do Registo Comercial do Porto, sob o número único de matrícula e de Identificação Fiscal …, com sede na ..., …, …. Porto e estabelecimento na Rua ..., …, 2°, … Porto, vem declarar que oferece uma garantia bancária no valor de € 200 000,00 ( duzentos mil euros ), relativa ao pontual cumprimento da obrigação de conclusão e entrega do imóvel ao Beneficiário por parte da Ordenadora, no âmbito do contrato-promessa de permuta de bem presente por bem futuro, celebrado em 22 de Janeiro de 2008, pelo que se obriga como principal pagador, afazer as entregas de quaisquer importâncias que se tornem necessárias até aquele limite, se CC, Lda. o não fizer em devido tempo.

O valor total da presente garantia, é pois de EUR 200 000,00 (Duzentos mil euros) e é válido  pelo período de 36 (trinta e seis) meses, a contar desta data.

O prazo de interpelação para o pagamento de quaisquer quantias devidas pelo Banco BB, SA, por força desta garantia, expira em 3 de Abril de 2011, pelo que não poderá ser atendido qualquer pedido entrado nos serviços deste Banco depois desse momento.

Porto 3 de Abril de 2008.

Banco BB, SA

Duas assinaturas ilegíveis/ n°1760/n° 4909” – ( arts. 2º, 3°, 4° )

Partindo do mesmo texto, as partes dissentem sobre a qualificação da garantia prestada: como antes dissemos, o Banco entende que se trata de uma fiança bancária e o exequente de um contrato de garantia bancária autónoma.

Importa, antes de mais confrontar as figuras em questão na tentativa de surpreender os seus traços juridicamente relevantes e que sem dúvida as definem.

O contrato de garantia autónoma é um negócio atípico, inominado, que o princípio da liberdade contratual – art. 405º do Código Civil – admite, porque não violador das normas abertas dos art. 280º e 294º do Código Civil.

Com base nesse contrato, o garante, em regra um Banco, obriga-se a pagar a um terceiro – beneficiário – certa quantia, verificado o incumprimento de um contrato-base, sendo mandante ou ordenante (preferimos “ordenante” a “ordenador”) o devedor nesse contrato, sem que o garante possa opor ao beneficiário (credor no contrato-base) quaisquer excepções reportadas ao contrato fundamental.

A autonomização em relação ao contrato-base é um dos traços distintivos da garantia bancária e uma das características que lhe conferem autonomia, que na fiança não existe por esta ser caracterizada pela acessoriedade. A característica da autonomia é mais patente quando a garantia deve ser prestada à primeira solicitação, “on first demand”.

Na revista “O Direito”, Ano 120, pág. 275 e seguintes, o Professor Galvão Telles, aborda com mestria, o regime de tal figura.

 Na definição dada por este tratadista:

“A garantia autónoma é a garantia pela qual o banco que a presta se obriga a pagar ao beneficiário certa quantia em dinheiro, no caso de alegada inexecução ou má execução de determinado contrato (o contrato-base), sem poder invocar em seu benefício quaisquer meios de defesa relacionados com esse mesmo contrato.

Estamos a pensar na hipótese, de longe a mais frequente, de a garan­tia autónoma se reportar a obrigações contratuais, mas nada obsta a que verse sobre obrigação de diversa índole.

 O garante paga ao credor sem discutir; depois o devedor tem de reembol­sar o garante, também sem discutir.

 E será, por último, entre o devedor e o credor que se estabelecerá controvérsia, se a ela houver lugar, cabendo ao devedor o ónus de demandar judicialmente o credor para reaver o que houver desembolsado, caso a dívida não existisse e ele portanto não fosse, afinal, verdadeiro devedor.”- pág. 283.


O eminente civilista afirma serem inconfundíveis, a garantia autónoma e a fiança, nos seguintes termos:

“Existe tendência para confundir a garantia autónoma com a fiança; mas essa tendência é errónea.

Sem dúvida, as duas correspondem a preocupações semelhantes, na medida em que ambas têm uma função específica de garantia; não podem, todavia, assimilar-se, porque as separam traços fundamentais.

A fiança é o contrato pelo qual uma pessoa se obriga para com o credor a cumprir a obrigação de outra pessoa, no caso de esta o não fazer. O fiador compromete-se a pagar a dívida de outrem – o deve­dor principal.

O seu compromisso é acessório.

No caso de garantia autónoma, o garante não se obriga a satisfazer uma dívida alheia. Ele assegura ao beneficiário determinado resultado, o recebimento de certa quantia em dinheiro, e terá de proporcionar-lhe esse resultado, desde que o beneficiário diga que não o obteve da outra parte, sem que o garante possa entrar a apreciar o bem ou mal fundado desta alegação.

O objecto da fiança confunde-se com o objecto da dívida afiançada, no sentido de que o fiador tem de pagar o que o afiançado deixou de satisfazer.

O objecto da garantia autónoma é distinto do objecto da obrigação decorrente do contrato-base.

Daqui resulta que o garante autónomo ou independente, ao contrá­rio do fiador, não é admitido a opor ao beneficiário as excepções de que se pode prevalecer o garantido. (...) - págs.284-285 (sublinhámos).


Como resulta claro e ao invés do que sucede na fiança, onde a obrigação do fiador é acessória da do afiançado – art. 627, nº2, do Código Civil – e, por isso, não pode ser mais onerosa que a deste – art. 631º – implicando a invalidade da obrigação garantida, a invalidade da fiança – art. 632º; nº1; e a extinção daquela, a desta – art. 651º; na garantia autónoma o garante não pode opor ao garantido (beneficiário) os meios de defesa ou excepções decorrentes das suas relações com o devedor, salvo casos excepcionais.

 Na fiança, o fiador pode opor ao credor, não só os meios de defesa que lhe são próprios, com também os que competem ao afiançado – art. 637º do Código Civil.

Francisco Cortez, “A Garantia Bancária Autónoma-Alguns problemas”, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 52, vol. II, Julho 1992 (pág.530), define o contrato autónomo de garantia como “um contrato pelo qual uma das partes, o garante, assegura à outra parte, o beneficiário, a produção de um certo resultado através da promessa que lhe entregará, sem levantar qualquer objecção, uma determinada soma pecuniária logo que o beneficiário prove a não produção desse resultado ou, noutra modalidade, o interpele para efectuar tal entrega”.

O pagamento à 1ª solicitação (on first demand), se assumido pelo garante, implica a sua obrigação de pagar ao beneficiário a indemnização objecto da garantia, não podendo serem-lhe opostas quaisquer excepções reportadas à relação principal, a menos que haja evidentes indícios de fraude, má fé, ou abuso do direito.

           

            No “Manual de Direito Bancário” do Professor Menezes Cordeiro, 4ª edição – 2010 – págs. 763/764, o regime da garantia autónoma é assim caracterizado:

            “A garantia autónoma é, no essencial, um contrato celebrado entre o interessado — o mandante — e o garante, a favor de um terceiro — o garantido ou beneficiário. Por vezes, ela é configurada como um contrato celebrado entre o garante e o beneficiário; porém, é do mandante que o garante recebe a comissão.

A interpretação do texto da garantia é essencial para determinar o seu alcance. No entanto, toda a garantia autónoma comporta alguns traços essenciais comuns que surgem, de modo pacífico, na doutrina e na jurisprudência.

Na garantia autónoma, o garante obriga-se a pagar ao beneficiário uma determinada importância.

Tal pagamento operará à primeira solicitação (auf ersies Anfordern, on first demand), isto é: o garante pagará ao beneficiário determinada importância, assim que este lha peça.

Melhor seria dizer: garantia a mera solicitação, uma vez que não há segunda.

Normalmente, porém, a garantia exige que o garante, antes de efectuar qualquer pagamento, proceda à breve análise de determinados documentos: facturas, ordens de fornecimento, boletins de transporte ou de embarque […]. Tal exame não se confunde porém, de modo algum, com um juízo de cumprimento ou de incumprimento da relação principal.

As novas normas uniformes da Câmara de Comércio Internacional […] determinam que o garante examine todos os documentos especificados no texto da garantia com um cuidado razoável […].

As partes podem, porém, acordar se a garantia é automática, isto é: verdadeiramente a mera solicitação ou automática ou se, pelo contrário, o garante deve fazer verificação e qual a sua extensão (não automática).

[…] Exigida a garantia – os textos das garantias invariavelmente requerem que o seja por escrito, o garante só poderá opor ao beneficiário as excepções literais que constem do próprio texto da garantia: nunca as derivadas da relação principal.

 Tão-pouco se pode reagir a ela com pretensões de enriquecimento. Naturalmente: cabe ao próprio beneficiário demonstrar que a garantia invocada se reporta a determinada dívida.

O regime da garantia autónoma e, sobretudo, o facto de ela não poder ser detida com recurso a excepções derivadas da relação básica obrigam a repensar a sua função”. (destaque nosso)

            Por via da autonomia, o garante “à primeira solicitação” deve pagar, não podendo, salvo casos excepcionais, reportar-se ao contrato-base para recusar o pagamento.

            Menezes Leitão, in “Garantias das Obrigações”, pág. 153, acerca desta modalidade da garantia autónoma “à primeira solicitação”, ensina. – “ Em qualquer caso, verificados os pressupostos da garantia, o garante terá que satisfazer imediatamente a correspondente obrigação, sendo extremamente limitadas as excepções que pode invocar, que praticamente se reconduzem à extinção da garantia por cumprimento, resolução ou caducidade, e ainda à existência de fraude manifesta e abuso de direito por parte do credor”.

            Dada a característica da autonomia, o garante, sendo a garantia bancária autónoma à primeira solicitação, não pode socorrer-se de meios de defesa senão os decorrentes do próprio contrato de garantia.

             Miguel Pestana de Vasconcelos, in “Direito das Garantias”, pág. 132-133, sobre o “levantamento da autonomia”, escreve:

“Por isso entendemos que aqueles casos em que se admite que o garante pode, e deve, recusar o pagamento devem ser restritos. Tem que se tratar de casos de abuso do direito por parte do beneficiário ou de fraude por banda deste.

Esse aspecto é relativamente pacífico na doutrina. Mas mais do que isso: na linha de Almeida Costa e Pinto Monteiro, entendemos que é necessário que os casos de abuso ou de fraude sejam verdadeiramente “inequívocos”.

 Não é excessivo sublinhar este ponto: para que o banco/garante deixe de pagar é necessário que seja colocada à sua disposição prova “líquida e inequívoca” da “má fé patente”, da “fraude evidente” ao ponto de “entrar pelos olhos dentro”.

 Caso contrário, estar-se-ia a atentar contra a essência da própria garantia. Havendo causa de discussão sobre os factos que o ordenante avança como demonstrando o abuso do direito, o garante deve pagar.

A questão deverá ser discutida depois entre as partes do contrato base”.

A garantia bancária pode ser automática ou não automática.

 Sendo automática, em regra, à primeira solicitação (mas podendo não revestir esta modalidade), o garante deve pagar, não podendo discutir ou fundamentar a recusa reportando-se ao contrato-base, como, no caso, entrar a discutir se houve ou não incumprimento do contrato-base.

Na garantia à primeira solicitação, o garante bancário está obrigado a pagar, face à autonomia, à potestividade e à automaticidade do contrato, mas esta obrigação não é incompatível com a exigência de prova do incumprimento do ordenante.

A fronteira entre a garantia automática ou não automática não passa pela  consideração de que naquela, o beneficiário pede ao garante e este sem mais deve pagar, por contraponto à garantia não automática em que o garante pode,  reportando-se ao contrato de garantia, questionar se o pressuposto da sua responsabilidade se verifica, mormente, no caso em que se acertou que o pedido de pagamento contemplado na garantia ficava dependente de prova, não de factos relacionados com o contrato-base (em relação ao qual o garante é alheio), mas em relação ao contrato de garantia.

Por regra, seja a garantia on first demand ou não, o banco pretenderá uma prova do não cumprimento do contrato-base, porque essa prova é que despoleta a sua responsabilidade. Feita essa prova, o banco garante, não pode recusar o pagamento, a menos que tenha sérios indícios de conduta dolosa, fraudulenta, que evidencia ser abusiva a pretensão do beneficiário.

Na fiança, em função da sua característica da acessoriedade – art. 627º, nº2, do Código Civil – não existe o efeito automático de responsabilização do fiador ante o incumprimento lato sensu do afiançado, porque o fiador, só renunciando ao benefício da excussão prévia – art. 638º e 640º a) do Código Civil – e assumindo a qualidade de obrigado principal, ou principal pagador, deixa de poder opor ao credor os meios de defesa deste.

Na primeira instância, concluiu-se que a garantia em causa era uma fiança bancária e, consequentemente, considerou-se que o documento não constituía título executivo – art. 46º c) do Código de Processo Civil na redacção aplicável – julgando-se procedente a oposição com a inerente extinção da execução.

Mais se afirmou e decidiu que, mesmo que assim não se considerasse, a execução não poderia prosseguir porque o exequente não conseguiu demonstrar o incumprimento da conclusão e entrega do imóvel por parte do ordenante, sendo que tal incumprimento resultou antes da actuação do exequente beneficiário da garantia.

 A concluir – fls. 365 – afirmou-se – “E mesmo que estivesse em causa uma garantia autónoma simples, ainda assim o Banco teria agido correctamente pois que e citando a tal propósito o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 16-06-2011, na garantia autónoma simples “o beneficiário só pode exigir o cumprimento da obrigação do garante desde que prove o incumprimento da obrigação do devedor’. Ora, o Exequente quando interpelou o Banco para honrar a garantia não logrou fazer prova do incumprimento da obrigação garantida.”

Já o Acórdão recorrido, fls. 725 a 728, considerou que se trata de uma “garantia autónoma simples” e não de uma fiança bancária. Para tanto, com apelo ao art. 236º, nº1, do Código Civil, interpretou a declaração negocial em ordem a ajuizar sobre a natureza da garantia querida pelas partes, entendida como a entenderia um declaratário normal colocado na posição do real declaratário, concluindo que as partes quiseram celebrar um contrato de “garantia bancária autónoma simples”.

Depois, considerou-se que o documento constituía título executivo.

A fls. 731, pode ler-se: “O requerimento executivo foi instruído com o documento que (titula a garantia, emitido pelo banco executado com as assinaturas dos seus procuradores. O exequente juntou, ainda, a declaração emitida e que lhe foi entregue pelo dador da ordem ou “’ordenadora” CC …, Lda., na qual assume o incumprimento e ainda, a carta de interpelação dirigida ao Banco-garante.

Tais documentos constituem título executivo, nos termos do art. 46° c) do Código de Processo Civil, conjugado com o art. 804°/l Código de Processo Civil, pois representam documentos particulares, assinados pelo devedor, que importam a constituição de uma obrigação cujo montante é determinado ou determinável por simples cálculo aritmético, uma vez que o beneficiário comprovou com a declaração do dador da ordem a situação de incumprimento que constitui o facto constitutivo do seu direito.”

Percorramos o caminho metodológico seguido pelo Acórdão, no que respeita à indagação do sentido da declaração negocial, para, como dissemos, qualificar juridicamente a garantia prestada pelo Banco.


No que concerne à interpretação da declaração negocial, rege o art. 236º do Código Civil que dispõe:

“1. A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.
           2. Sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida”.


Deve pois, enjeitar-se o entendimento que se apegue, somente, à estrita literalidade do texto – “quantum verba sonant” – menorizando a realmente querida pretensão das partes e os fins económicos que com o contrato visavam.

Todavia, porque a pesquisa do sentido verdadeiramente querido pelas partes nem sempre é fácil, importa que a ponderação e equilíbrio dos interesses em causa sejam sopesados.


Na interpretação dos contratos, prevalecerá, em regra, "a vontade real do declarante", sempre que for conhecida do declaratário. Faltando esse conhecimento, a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante (...)”. – Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 14.1.1997, in CJSTJ, 1997, I, 47. (in multis)

No antigo direito, Coelho da Rocha, in “Instituições”, §110 (1, 63-64) apontava os seguintes critérios para interpretação da vontade negocial:

“1º. Deve atender-se à mente ou verdadeira intenção do agente, a qual deve deduzir-se da linguagem, causa, circunstâncias e relações dos interessados.

 2º- Deve procurar-se o sentido mais acomodado ao objecto de que se trata.

 3º Quando a expressão seja incerta, deve atender-se de maneira que o acto não fique sem efeito.

 4º Entende-se sempre que as partes se quiseram conformar com a disposição das leis.

 5º A manifestação de vontade de renunciar ou ceder os seus direitos deve ser clara e positiva”.

Os Professores Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. I, pág. 233, em nota ao art. 236º do Código Civil, ensinam:

“ ...A regra estabelecida no nº l, para o problema básico da interpretação das declarações de vontade, é esta: o sentido decisivo da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um declaratário normal, ou seja, media­namente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante. Exceptuam-se apenas os casos de não poder ser imputado ao declarante, razoavelmente, aquele sentido (nº 1), ou o de o declaratário conhecer a vontade real do declarante (nº 2).

(...) O objectivo da solução aceite na lei é o de proteger o declaratário, conferindo à declaração o sentido que seria razoável presumir em face do comportamento do declarante, e não o sentido que este lhe quis efectiva­mente atribuir.

Consagra-se assim uma doutrina objectivista da interpretação, em que o objectivismo é, no entanto, temperado por uma salutar restrição de inspiração subjectivista.

(...) A normalidade do declaratário, que a lei toma como padrão, exprime-se não só na capacidade para entender o texto ou conteúdo da declaração, mas também na diligência para recolher todos os elementos que, coadjuvando a declaração, auxiliem a descoberta da vontade real do declarante.”

O declaratário normal deve ser uma pessoa com – “Razoabilidade, sagacidade, conhecimento e diligência medianos, considerando as circunstâncias que ela teria conhecido e o modo como teria raciocinado a partir delas, mas fixando-a na posição do real destinatário, isto é, acrescentando as circunstâncias que este conheceu concretamente e o modo como aquele concreto declaratário poderia a partir delas ter depreendido um sentido declarativo” – Paulo Mota Pinto, in “Declaração Tácita”, 1995, 208.

O Professor Castro Mendes, in “Teoria Geral do Direito Civil”, II volume, edição de 1995, pág. 366, discorda da posição dos Professores Pires de Lima e Antunes Varela, quando afirmam que o Código Civil consagra uma doutrina objectivista da interpretação, sustentando que o sentido a que o preceito alude “é o sentido pretendido”. Somente vale aquilo que, como sentido pretendido, for dedutível pelo homem normal e médio “ colocado na posição do real declaratário” – pág. 367.

Aí refere que a expressão “colocado na posição do real declaratário” quer sobretudo dizer, dispondo dos elementos de interpretação de que o declarante dispôs”.

No Código Civil de 1867, o art. 84º fulminava com nulidade o contrato sempre que “...dos seus termos, natureza e circunstâncias, do uso, costume ou lei, se não possa depreender, qual fosse a intenção ou vontade dos contraentes sobre o objecto principal do mesmo contrato”.

O Professor Castro Mendes lamentava que tal norma não tivesse passado para o Código Civil vigente, concluindo por isso, que o actual Código Civil “não quis enumerar os elementos de interpretação do negócio jurídico”, acrescentando –  “são, portanto, todos aqueles que o declaratário dispuser.  É a letra do negócio e os elementos extraliterais”. – obra citada, pág. 368.

De que elementos se podem o intérprete e o julgador socorrer para interpretar a declaração negocial?

Mota Pinto, in “Teoria Geral do Direito Civil”, 4ª edição, por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, pág. 446 e segs. ensina:

“…O Código não se pronuncia sobre o problema de saber quais as circunstâncias atendíveis para a interpretação. De acordo com o critério propugnado, quanto ao problema do tipo do sentido negocial decisivo para a interpretação, também aqui se deverá operar com a hipótese de um declaratário normal: serão atendíveis todos os coeficientes ou elementos que um declaratário medianamente instruído, diligente e sagaz, na posição do declaratário efectivo, teria tomado em conta.

A título exemplificativo, Manuel de Andrade referia “os termos do negócio”; os interesses que nele estão em jogo (e a consideração de qual seja o seu mais razoável tratamento); a finalidade prosseguida pelo declarante; as negociações prévias; as precedentes relações negociais entre as partes; os hábitos do declarante (de linguagem ou outros); os usos da prática, em matéria terminológica, ou de outra natureza que possa interessar, devendo prevalecer sobre os usos gerais ou especiais (próprios de certos meios ou profissões), etc.”.

Ao lado destas circunstâncias, referidas a título de exemplo, podem assinalar-se outras, designadamente “os modos de conduta por que, posteriormente, se prestou observância ao negócio concluído”.

Quando a interpretação leve a um resultado duvidoso, o problema deve ser resolvido nos termos do artigo 237°, que coincide substancialmente com o regime do Código anterior:  nos negócios gratuitos prevalece o sentido menos gravoso para o disponente e, nos negócios onerosos, o que conduzir ao maior equilíbrio das prestações.

Este o único critério consagrado no Código, para a hipótese de, no termo da actividade interpretativa, se nos deparar um resultado equívoco ou ambíguo.

Se, porém, a dúvida a que se chegar no termo do labor interpretativo for insanável, parece que a declaração é ineficaz, por aplicação, ao menos analógica, do artigo 224º, nº3 [Segundo H. HÖRSTER (A parte geral do Código Civil português…, cit., pág. 512), “se não for possível atribuir sentido algum, a declaração é pura e simplesmente ineficaz”. cfr. Castro Mendes, Teoria geral…, cit., reimpressão, 1995, pág. 369, a nulidade]” (nota de rodapé do texto citado).

Desde logo, ponderando o elemento literal do documento em causa, ressalta que o Banco declarou que “oferece uma garantia bancária” no valor de € 200 000,00, relativa ao bom e pontual cumprimento da obrigação de conclusão e entrega do imóvel ao Beneficiário por parte da Ordenadora, no âmbito do contrato promessa de permuta de bem presente por bem futuro, celebrado em 22 de Janeiro de 2008, pelo que se obriga como principal pagador, a fazer as entregas de quaisquer importâncias que se tornem necessárias até àquele limite, se CC – …. Lda. – o não fizer em devido tempo.”.

Exercendo o co-recorrente a actividade profissional bancária não pode, como se leigo fosse, prevalecer-se de qualquer equivocidade das suas declarações, sabendo o contexto em que, como no caso, emite uma garantia solicitada pelo ordenante. Isto para dizer que, se não vale como ultima ratio interpretativa a literalidade do texto, não é contudo razoável considerar que um Banco, quando presta uma garantia bancária, possa afirmar que outorgou uma fiança, escudando-se no facto de o texto da garantia dizer que “se obriga como principal pagador”, para sustentar que o que prestou foi uma fiança bancária sendo que no texto utiliza as palavras “beneficiário” e “parte ordenadora” que, segundo os usos bancários, são utilizadas quando está em causa a garantia autónoma, figura diversa da fiança bancária.

 Não é defensável que se possa considerar que o Banco recorrente actuou como fiador, sendo afiançado o co-recorrente CC.

O Banco prestou uma garantia bancária autónoma, garantindo o pagamento de uma quantia limite ao beneficiário dela, o exequente. Não estando em causa tratar-se de uma garantia autónoma à primeira solicitação, “on first demand”, no que os pleiteantes estão de acordo, e, mesmo valendo nos negócios formais, sendo obrigatória ou voluntária a forma escrita adoptada, a regra “falsa demonstratio non nocet” não seria de convocar este princípio face à clareza do texto nesse aspecto, o que não nos demite de indagar se se trata de uma garantia autónoma forte ou de uma garantia autónoma simples.

No domínio da liberdade contratual, as partes, querendo celebrar um negócio típico ou inominado, podem acomodar no seu clausulado quaisquer conteúdos, desde que não violem normas cogentes.

No caso da garantia em apreço, importa ponderar aspectos que relevam: desde logo é estabelecido um valor limite que não será pago tão logo exista violação do contrato-base celebrado entre o ordenante e o beneficiário; a prestação do garante fica dependente do bom e pontual cumprimento da obrigação de conclusão e entrega do imóvel ao Beneficiário por parte da Ordenadora, no âmbito do contrato promessa de permuta: o banco pagaria, em caso de incumprimento do ordenante, as quantias que se tornassem necessárias até ao valor limite de € 200 000,00, se o ordenante “o não fizer em devido tempo”.

A garantia é autónoma, mas a sua autonomia não é forte, não sendo à primeira solicitação em função incumprimento, ao invés, é controlável pelo Banco do ponto em que, aludindo a que é garantido o “bom e pontual cumprimento da obrigação de entrega do imóvel ao beneficiário”, se evidencia uma exigência de prova de incumprimento a cargo do beneficiário, o que é reforçado pela alusão ao pagamento das importâncias “que se tornem necessárias até àquele limite”.

São características das garantias bancárias autónomas, obviamente a autonomia e a automaticidade (esta particularmente na modalidade à primeira solicitação).

A autonomia e a automaticidade não podem ser entendidas como total dispensa de prova por parte do beneficiário,  do incumprimento do ordenante, ou seja, não pode aquele interpelar o garante para pagar, afirmando, sem mais, “o meu devedor/ordenante não cumpriu, não realizou a sua prestação nos termos convencionados”, para que, sem mais, o garante pague. De harmonia com o contrato de garantia, o beneficiário tem o ónus de provar que não houve cumprimento pontual do contrato que celebrou com o ordenante.

A afirmação do beneficiário de que ocorreu incumprimento não basta para que de imediato possa exigir do Banco a garantia, importa que demonstre os pressupostos de responsabilidade do garante, se tal requisito foi acordado no contrato, como no caso foi.

Como ensina o Professor Menezes Cordeiro – “As partes podem, porém, acordar se a garantia é automática, isto é: verdadeiramente a mera solicitação ou automática ou se, pelo contrário, o garante deve fazer verificação e qual a sua extensão (não automática).

[…] Exigida a garantia – os textos das garantias invariavelmente requerem que o seja por escrito, o garante só poderá opor ao beneficiário as excepções literais que constem do próprio texto da garantia: nunca as derivadas da relação principal.”

Sendo a garantia autónoma simples tendo sido acordado que o banco pagaria em caso de não cumprimento pontual das obrigações do devedor/ordenante estamos perante um negócio condicional, não sendo a garantia imediata, potestativamente exigível, ante a mera interpelação pelo beneficiário. Se assim fosse este tipo de garantia menos forte teria o mesmo tratamento que a garantia autónoma à primeira solicitação, essa sim, incondicional, absoluta e potestativa.

Francisco Cortez no Estudo citado, págs. 535/536 afirma a propósito da característica da automaticidade:

  “A segunda característica, já não essencial mas apenas eventual, da garantia bancária autónoma é a sua automaticidade. Todas as “garantias bancárias autónomas” são autónomas, mas apenas aquelas que incluem a cláusula “de pagamento à primeira solicitação do beneficiário” são automáticas. As que não incluem esta cláusula são garantias bancárias autónomas simples.

A automaticidade é pois a característica da garantia bancária autónoma que lhe é atribuída pela inclusão no contrato de garantia da cláusula “a primeira solicitação” (on first demand”, “upon first demand”, “nauf erstes Anfordem”, “à primière demande”; “prima richusta”) pela qual o garante fica obrigado a entregar imediatamente a quantia pecuniária fixada ao primeiro pedido do beneficiário, dispensando-se este de provar, como tem que fazer se esta cláusula não constar do contrato, o incumprimento da obrigação do devedor ou qualquer outro evento que seja o pressuposto da constituição do seu crédito contra o banco.

Em rigor, a automaticidade só introduz alterações na estrutura tradicional da garantia bancária autónoma ao nível da exigibilidade do cumprimento da obrigação do garante de entregar a quantia pecuniária acordada ao beneficiário.

 No contrato autónomo de garantia simples, o beneficiário só o pode exigir desde que prove o facto que é pressuposto da constituição dessa obrigação (o incumprimento do devedor, o não cumprimento pontual, o cumprimento defeituoso, etc.[2].

 Pelo contrário, no contrato de garantia “à primeira solicitação”, a obrigação do garante em entregar a quantia acordada é imediatamente exigível com a simples interpelação pelo beneficiário nesse sentido, feita nos termos acordados e sem que banco possa pedir qualquer justificação ao beneficiário”. (destaque e sublinhado nosso)

O Professor Pedro Romano Martinez, em Garantias Bancárias, em Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles”, vol. II, 2, pág. 280 – ensina:

            “A recusa de cumprimento será, contudo, lícita sempre que o garante possa opor ao credor beneficiário, que reclama o pagamento da garantia, excepções ao cumprimento. O garante poderá opor ao beneficiário as excepções que resultem directamente do contrato de garantia.

Tais como a sua invalidade (nomeadamente, por indeterminabilidade do objecto), a caducidade (verbi gratia, interpelação feita após o prazo de vigência) ou divergências relativamente ao clausulado (por exemplo, a reclamação feita por entidade diversa da beneficiária ou por montante distinto do devido, designadamente, por não ter sido tomado em conta algum pagamento parcial já realizado).”

Citando do Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 4.2.2010, Proc. 5943/07.8YYPRT-A.P1.S1, in www.dgsi.pt, defende Fátima Gomes em “Direito e Justiça”, Revista da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa, volume VIII, Tomo 2, 1994, página 134:

 “As garantias simples são todas aquelas em que o beneficiário ao recorrer à sua execução tem de justificar ou fundamentar a sua pretensão à luz dos pressupostos de funcionamento da garantia estabelecidos no respectivo contrato, normalmente relacionados com o incumprimento ou cumprimento defeituoso de determinadas obrigações a que o devedor estava vinculado…”.

De acordo com o princípio da boa fé em estrito cumprimento do contrato de garantia, a satisfação da garantia não teria de ser imediata, previamente caberia ao beneficiário provar que o ordenante não tinha cumprido o contrato.

Vejamos se o fez.

Em 1.3.2011, o exequente recebeu do ordenante CC – devedor no contrato celebrado com o credor beneficiário – uma declaração onde este afirmava “que não poderá cumprir com o prazo de entrega do imóvel objecto do contrato promessa de permuta de bem presente por futuro, celebrado em 22 de Janeiro de 2008, com AA”.

O beneficiário, tomando esta declaração como prova do incumprimento pelo ordenante, entende que, em articulação com o contrato de garantia e com o contrato promessa de permuta, tinha jus a exigir de imediato o pagamento da garantia pelo Banco, dispondo através desses três documentos de título executivo. Em 2.3.2011, interpelou o Banco para que efectuasse o pagamento do montante integral da garantia - € 200 000,00.

Em 15.3.2011, CC escreveu ao Banco a carta de fls. 51 (dada por reproduzida na matéria de facto provada) onde se lê:

“Acusamos a recepção da V/ carta, datada de 04 de Março de 2011, a qual mereceu a n/maior atenção. Em resposta à mesma, somos a informar V/Exas. que após conferenciarmos como Sr. AA, beneficiário da garantia bancária, ambas as partes chegaram a acordo que passará pela renegociação do prazo da garantia dado e/ou se não for exequível tal solução, prestar uma nova garantia pelo mesmo valor mas com o prazo máximo de 3 meses.

Nestes termos, rogamos a V/Exas. para não procedam ao pagamento da quantia solicitada pelo beneficiário AA. Por último, solicitamos que informem se é necessário o Sr. AA dirigir-se aos V/ serviços para confirmar o supra referido”.

Como consta dos factos provados em 10.11.12.13.14.15.16.17, o exequente concordou com a CC em pedir a prorrogação do prazo da garantia por mais três, meses comprometendo-se a cancelar a garantia bancária inicial ao que o Banco anuiu em 31.3.2011, procedendo à emissão de nova garantia nos termos descritos em 11., desde que “o Beneficiário devolvesse ao Banco o original da garantia bancária n°… e entregasse um documento em que aquele expressamente declarasse que desistia do seu accionamento, o que comunicou ao Beneficiário e ao Ordenador” – facto provado 13.

Desde 31.3.2011, o Banco não mais foi contactado pelo exequente para proceder à emissão da nova garantia, apesar de durante os meses de Abril, Maio e Junho, o Banco o ter tentado contactar.

CC informou o Banco que durante aqueles meses “estava a avançar com a obra sob o acompanhamento do Exequente, que a construção estava a ser feita “à medida” do Exequente e que teriam chegado a acordo no sentido da desnecessidade de emissão de nova garantia bancária, daí nunca mais terem contactado o Banco – facto provado 17.

            No dia 20.6.2011, o Exequente escreveu ao Banco a carta referida em 19. dos factos provados, insistindo pelo pagamento da garantia. Perante este pedido, o Banco contactou a ordenante que, em 6.7.2011, afirmou que havia atraso na construção e consequente entrega da moradia ao Beneficiário, mas que esse atraso era de imputar ao exequente dado que exigia alterações/aditamentos ao caderno de encargos assim como alterações estruturais como: criação de uma lavandaria externa; execução de obras para aplicação de um novo portão no alçado lateral direito: construção de uma piscina dentro da atribuída ou correspondente à moradia: realização de diversos trabalhos para colocação da tubagem necessária para a aplicação da domótica: criação de estruturas para aplicação do sistema de alarme: construção de uma nova dispensa no interior da moradia; demora na escolha do material a aplicar na escolha do material. Todas e cada uma das alterações mencionadas em 24) foram solicitadas à CC em data anterior ao accionamento da garantia bancária ocorrido em 2 de Março de 2011 por muito que, para as concretizar, os trabalhos se tenham também concretizado nos meses de Março, Abril, Maio e Junho.. O atraso no início da obra se ficou a dever à morosidade na obtenção da licença de construção por parte da Câmara Municipal da Trofa, apesar da CC Lda. ter tomado as diligências necessárias e convenientes para o efeito.. A própria licença de utilização da fracção prometida vender e objecto do contrato de permuta, por se inserir num empreendimento em regime de propriedade horizontal, só seria emitida pela Câmara Municipal da Trofa quando todas as fracções e as partes comuns estivessem concluídas. Como forma de sustentar a alegada diferença entre a descrição da obra no caderno de encargos inicial e adjacente ao contrato de permuta e o que há data de Julho de 2011 estava edificado, a CC Lda. enviou ao Banco a planta que atesta o que havia sido projectado com fotografias que comprovam o que foi alterado, cfr. teores de fls. 59 a 72 que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais”.

            Estes factos e os mais que constam provados nos itens 36.a 46. 48 a 54.  foram determinantes do atraso na conclusão e entrega da moradia – facto provado 54.

            Escamotear esta realidade que convoca as regras da boa fé na execução do contrato de garantia, do ponto em que o Beneficiário tinha a seu cargo o ónus de provar que o ordenante não cumprira pontualmente o contrato para poder accionar a garantia e que revela que os atrasos na execução da obra se deveram a actuação do Beneficiário não pode ter-se como provado o incumprimento da ordenante com base no que ela afirmou na carta de 1.3.2011. Com efeito, logo depois dessa carta em que a ordenante e construtora da moradia afirmava não poder cumprir o prazo de entrega, sem indicar quais os motivos, o Beneficiário acordou em pedir a prorrogação da garantia bancária, tendo as obras prosseguido, sinal inequívoco revelador do seu interesse na execução do contrato-base, pelo que seria abusivo do direito – art. 334º do Código Civil – considerar que o Beneficiário ante este comportamento contraditório pudesse, sem ter cooperado para a substituição da garantia que tinha acordado que fosse prorrogada, executar a garantia inicial que, entretanto, havia caducado.

            Nesta perspectiva, acompanha-se a decisão do Acórdão quanto à qualificação da garantia como garantia bancária simples, mas já não, quando pondera e decide que a declaração do ordenante contida na carta de 1.3.2011, contém a prova suficiente e necessária de que o ordenante não cumpriu pontualmente o contrato e assim poderia accionar a garantia.

            Como antes referimos, o ónus da prova do incumprimento do contra-base competia ao beneficiário para poder actuar a garantia bancária, mas esse pedido e a invocação do incumprimento, uma vez que não se tratava de garantia autónoma à primeira solicitação, não era incompatível com a averiguação pelo garante da real situação de incumprimento, tanto mais que logo após a carta referida, o Beneficiário acordou com a CC pedir a prorrogação da garantia, tendo ela continuado a construção da moradia.

            Na oposição à execução, o garante tinha o ónus da prova de factos que evidenciassem que não se verificava o pressuposto de que dependia a execução da garantia, ou seja, que o Beneficiário estava a actuar por via da execução, não se tendo provado que o ordenante, co-executado, não tinha cumprido pontualmente o contrato. Para fazer essa prova não bastam afirmações conclusivas, importa que factualmente se demonstre que existiu incumprimento imputável ao ordenante; ora, com a prova feita pelo opoente, resulta claro que o atraso na execução da moradia se deveu ao exequente.

            Para o Banco, em sede de oposição à execução, provar que não se verificava o requisito condicionante da exigibilidade da entrega do valor da garantia, teria que alegar e provar factos no sentido de que a pretensão do exequente não era exigível por não ter ocorrido incumprimento do ordenante. Reconhece-se ser ténue, no caso em apreço, a fronteira entre a discussão da pretensa violação do contrato de garantia e a discussão do contrato-base, sendo que, em regra, tal discussão está vedada ao garante.

            Todavia, na garantia autónoma simples, sendo ela condicionada e não absoluta compete ao beneficiário a prova do incumprimento por parte do ordenante/devedor e tendo o beneficiário executado o ordenante, pedindo o pagamento da garantia, compete ao executado a prova da inexistência de factos que evidenciem o preenchimento do requisito de que depende o cumprimento do contrato de garantia. Essa prova, visando a destruição da força probatória do título executivo, foi feita ao invés do que afirma o Acórdão recorrido.

            Ao exequente beneficiário competia a prova de que o ordenante não cumpriu pontualmente o contrato; ao executado opoente competia a prova de factos que demonstrassem  que esse requisito estava provado.


Os embargos de executado[3] não se destinam a contestar o requerimento executivo, sendo antes: “Acções declarativas estruturalmente autónomas, porém instrumental e funcionalmente ligadas às acções executivas – nelas correndo por apenso – pelas quais o executado pretende impedir a produção dos efeitos do título executivo” -  cfr. “Curso de Processo Executivo Comum”, de Remédio Marques, págs. 150-151, e, “inter alia”, Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 29.2.1996, in CJSTJ, 1996, I, 102.

            Sufragamos o entendimento perfilhado por este Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 4.2.2010, Proc. 5943/07.8YYPRT-A.P1.S1 – in www.dgsi.pt quando afirma (sumário):

 

“1. O regime de autonomia das garantias autónomas relativamente ao contrato-base emerge do que foi convencionado pelas partes.

2. Podendo dele resultar a integração na categoria de garantia autónoma simples ou na de garantia autónoma à primeira solicitação ou ainda um regime misto ou incaracterístico reportado a ambas.

3. Se as partes acordaram em que o banco se responsabilizava “pela entrega de quaisquer importâncias que se tornem necessárias até ao valor desta garantia, se aquela entidade sua afiançada, faltando ao cumprimento das suas obrigações, incorrer no seu total ou parcial pagamento”, estamos perante uma garantia autónoma simples.

4. Neste caso, tinha a exequente que fazer a prova complementar do título, relativamente aos factos que integram o não cumprimento ou o cumprimento defeituoso.

5. Não tendo, para tal, seguido a tramitação prevista no artigo 804.º do Código de Processo Civil e havendo oposição, pode nesta suprir o que faltou”.

Este Acórdão foi citado na decisão recorrida para amparar o entendimento de que o exequente tinha feito a prova complementar do título executivo exigida pelo então vigente art. 804º do Código de Processo Civil, prova essa que seria a carta do ordenante de 1.3.2011, mas, salvo o devido respeito, não se pode considerar que essa declaração, sem mais, pudesse constituir a prova complementar do título executivo.

Dito isto, importa concluir que o exequente não dispunha de título executivo tal como se exige na previsão dos arts. 46º c) e 804º do Código de Processo Civil na redacção aplicável.

Na execução a causa de pedir é, não o título executivo, mas o que está na base da respectiva emissão.

            “O título executivo é o meio legal de demonstração da existência do direito do exequente – ou que estabelece de forma elidível, a forma daquele direito – cujo lastro material ou corpóreo é um documento [...] que constitui, certifica ou prova uma obrigação exequível, que a lei permite que sirva de base à execução” – Remédio Marques, in “Curso de Processo Executivo Comum”, págs. 55/56.

Precisando o conceito de “título executivo”, permitimo-nos transcrever a definição que dele é dada pelos Professores Antunes Varela e Castro Mendes:

Assim:

“Título executivo - é a peça que pela sua força probatória abre directamente as portas da acção executiva. É no plano probatório, o salvo-conduto indispensá­vel para ingressar na área do processo executivo. Em síntese é um instrumento probatório especial da obrigação exe­quente e, consequentemente, distingue­-se da causa de pedir já que esta é, em resumo, um elemento essencial da identificação da pretensão processual”  - Antunes Varela, RLJ, 121.°-148.

“Título executivo - Materialmente é um meio legal de demonstração de existência do direito exequendo. Não é, pois, em rigor essencial e necessariamente um acto, nem um documento.

 Tem natureza mais genérica de algo que abrange uma e outra realidade - é um meio de prova, legal e sintética, do direito exequendo, ou melhor, meio de demonstração da sua existência.

 Formalmente, no nosso direito, traduz-se num documento.

 Por isso, título executivo pode definir-se como o documento que, por oferecer demonstração legalmente bastante da existência de um direito a uma prestação, pode, segundo a lei, servir de base à respectiva execução”-  Castro Mendes, “Direito Processual Civil”- 1980, I-333.

 Da junção do contrato promessa, da declaração emitida pelo ordenante  e do contrato de garantia não resultando desde logo uma  situação de incumprimento pontual das obrigações do ordenante (no entendimento que perfilhamos) não se pode afirmar que  tais documentos “importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético…”, como exige o citado art. 46º c).

Como se decidiu no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 28.9.2006 – Proc. 06A2412 – in www.dgisi.pt – “Não se tratando de garantia autónoma, automática ou à primeira solicitação, o documento em que se funda a execução não tem força executiva, não é documento enquadrável na al. c) do art. 46º do Código de Processo Civil  e, como tal, a execução não pode prosseguir - nem devia ter sido instaurada - por inexistência de título executivo - art. 813º, a) e 815º, n.º 1 do Código de Processo Civil (na versão de 1997), 814º, a) e 816º na redacção introduzida pelo Dec-lei n.º 38/2003, de 8 de Março”.

Ademais, no contrato de garantia previa-se que o seu montante máximo era de € 200 000,00, sendo que o Banco garante se obrigou perante o beneficiário “a fazer as entregas de quaisquer importâncias que se tornem necessárias até aquele limite, se CC – …, Lda. o não fizer em devido tempo”, garantindo “o bom e pontual cumprimento da obrigação de conclusão e entrega do imóvel ao Beneficiário por parte da Ordenadora, no âmbito do contrato de permuta de bem presente por bem futuro, celebrado em 22 de Janeiro de 2008”, donde resulta que, no mínimo, seria duvidoso que com os documentos que constituem o alegado título executivo, o exequente, desde logo, pudesse dispor de título idóneo para exigir do garante a totalidade do valor da garantia.

            Assim, uma vez que o exequente não fez a prova de que dependia o cumprimento pelo garante das obrigações assumidas no contrato que esteve na base da prestação da garantia bancária autónoma, há que concluir que não dispunha de título executivo contra o Banco garante ora oponente, pelo que a decisão recorrida não pode manter-se.

            Fica, destarte, prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas pelos recorrentes.

            Sumário – art. 663º,nº7, º do Código de Processo Civil

I. Com base no contrato de garantia bancária autónoma, o garante, em regra um Banco, obriga-se a pagar a um terceiro – beneficiário – certa quantia, verificado o incumprimento de um contrato-base, sendo mandante ou ordenante (preferimos “ordenante” a “ordenador”) o devedor nesse contrato, sem que o garante possa opor ao beneficiário (credor no contrato-base) quaisquer excepções reportadas ao contrato fundamental.

II. A autonomização em relação ao contrato-base é um dos traços distintivos da garantia bancária e uma das características que lhe conferem autonomia, que na fiança não existe por esta ser caracterizada pela acessoriedade. A característica da autonomia é mais patente quando a garantia deve ser prestada à primeira solicitação, “on first demand”.

               

                III. Dada a característica da autonomia, o garante, sendo a garantia bancária autónoma à primeira solicitação, não pode socorrer-se de meios de defesa senão os decorrentes do próprio contrato de garantia.

IV. A garantia bancária pode ser automática ou não automática. Sendo automática, em regra, à primeira solicitação (mas podendo não revestir esta modalidade), o garante deve pagar, não podendo discutir ou fundamentar a recusa reportando-se ao contrato-base, como, no caso, entrar a discutir se houve ou não incumprimento do contrato-base.

V. Na garantia à primeira solicitação, o garante bancário está obrigado a pagar, face à autonomia, à potestividade e à automaticidade do contrato, mas esta obrigação não é incompatível com a exigência de prova do incumprimento do ordenante.

VI. A fronteira entre a garantia automática ou não automática não passa pela  consideração de que naquela, o beneficiário pede ao garante e este sem mais deve pagar, por contraponto à garantia não automática em que o garante pode,  reportando-se ao contrato de garantia, questionar se o pressuposto da sua responsabilidade se verifica, mormente, no caso em que se acertou que o pedido de pagamento contemplado na garantia ficava dependente de prova, não de factos relacionados com o contrato-base (em relação ao qual o garante é alheio), mas em relação ao contrato de garantia.

VII. Na fiança, em função da sua característica da acessoriedade – art. 627º, nº2, do Código Civil – não existe o efeito automático de responsabilização do fiador ante o incumprimento lato sensu do afiançado, porque o fiador, só renunciando ao benefício da excussão prévia – art. 638º e 640º a) do Código Civil – e assumindo a qualidade de obrigado principal, ou principal pagador, deixa de poder opor ao credor os meios de defesa deste.

VIII. Exercendo o co-recorrente a actividade profissional bancária não pode, como se leigo fosse, prevalecer-se de qualquer equivocidade das suas declarações, sabendo o contexto em que, como no caso, emite uma garantia solicitada pelo ordenante.

Não valendo como ultima ratio interpretativa a literalidade do texto, não é contudo razoável considerar que um Banco, quando presta uma garantia bancária, possa afirmar que prestou uma fiança, escudando-se no facto de o texto da garantia dizer que “se obriga como principal pagador” para sustentar que o que prestou foi uma fiança bancária sendo que no texto utiliza as palavras “beneficiário” e “parte ordenadora” que, segundo os usos bancários, são utilizadas quando se está perante garantia autónoma, figura diversa da fiança bancária.

                IX. Na garantia autónoma simples, sendo ela condicionada e não absoluta, compete ao beneficiário a prova do incumprimento por parte do ordenante/devedor. Tendo o beneficiário executado o garante, pedindo o pagamento da garantia, compete ao executado a prova da inexistência de factos que evidenciem o preenchimento do requisito de que depende o cumprimento do contrato de garantia.

X. Da junção do contrato promessa, da declaração emitida pelo ordenante e do contrato de garantia não resultando, desde logo, uma situação de incumprimento pontual das obrigações do ordenante, não se pode afirmar que tais documentos “importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético…”, como exige o citado art. 46º c) e, por isso, não dispõe o exequente/beneficiário de título executivo.

            Decisão:

            Concede-se a revista, revogando-se o Acórdão recorrido e, assim repristinando-se a sentença apelada, determina-se a extinção da execução por via da procedência da oposição à execução.

            Custas pelo recorrido, neste Tribunal e nas Instâncias.

                                                       

Supremo Tribunal de Justiça, 25 de Novembro de 2014

Fonseca Ramos (Relator)

Fernandes do Vale

Ana Paula Boularot

     

___________________
[1] Relator – Fonseca Ramos.
Ex.mos Adjuntos:
Conselheiro Fernandes do Vale.
Conselheira Ana Paula Boularot.

[2] Em nota de rodapé (57) – “Alguns exemplos fornecidos por Ferrer Correia, op, cit, p. 14: “o não cumprimento das obrigações contratuais do fornecedor, do empreiteiro, do vendedor; o não pagamento do preço pelo comprador, a não restituição das somas adiantadas pelo armador ao construtor do navio”.
[3] Ou a “Oposição à execução” – na terminologia do art. 813º do Código de Processo Civil, na redacção aplicável.