Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
427/12.5TBFAF-F.G1.S1
Nº Convencional: 6ª. SECÇÃO
Relator: JOÃO CAMILO
Descritores: INSOLVÊNCIA
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
CONTRATO-PROMESSA
DIREITO DE RETENÇÃO
PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR
Data do Acordão: 02/14/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADAS AMBAS AS REVISTAS
Área Temática:
DIREITO FALIMENTAR - DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA / EFEITOS SOBRE OS CRÉDITOS E SOBRE OS NEGÓCIOS EM CURSO / RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS.
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS / PROVAS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / GARANTIAS ESPECIAIS DAS OBRIGAÇÕES / DIREITO DE RETENÇÃO.
DIREITO DO CONSUMO - DIREITOS DO CONSUMIDOR.
Doutrina:
- Calvão da Silva, Venda de Bens de Consumo, 4.ª ed., 2010, Almedina, 55.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 342.º, N.º 1, 755.º, AL. F).
LEI N.º 24/96, DE 31-07: - ARTIGO 2.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-ACÓRDÃODE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA N.º 4/ 2014, DE 20-03-2014 (D.R. Nº 95, I SÉRIE-A, DE 19-05-2014).
Sumário :
I. Nos termos do acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 4/2014, o credor de uma empresa insolvente com crédito derivado de um contrato promessa celebrado com a insolvente e não cumprido, na graduação dos créditos, só pode beneficiar do direito de retenção previsto no art. 755º, al, f) do Cód. Civil, se demonstrar ser consumidor.
II. Não reveste tal conceito aquele que celebra como promitente comprador um contrato promessa de aquisição de loja que destina a nela instalar uma loja comercial que efetivamente instala, constituindo, para o efeito, uma sociedade comercial.

III. E também não reveste essa qualidade o credor que celebra contrato promessa, como promitente comprador de três frações prediais, sendo duas lojas comercias e a restante um aparcamento na cave de apoio, lojas essas que o referido credor destina, uma, a nela instalar um estabelecimento comercial que efetivamente veio a instalar, por sua conta, e a outra dá de arrendamento a uma instituição bancária, recebendo as respetivas rendas.

Decisão Texto Integral:

Revista nº. 427/12.5TBFAF-F.G1.S1

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Nos presentes autos de reclamação de créditos, que correm por apenso ao processo de insolvência da sociedade AA, Lda., que se apresentou à insolvência em 24/02/2012, a qual foi declarada por sentença proferida em 7/03/2012, o Sr. Administrador da Insolvência (doravante AI) apresentou, nos termos do artº. 129º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas ( CIRE ), a lista de créditos reconhecidos e não reconhecidos inserta a fls. 3 a 20.

A referida lista apresentada pelo AI foi objeto de impugnações de alguns credores, nomeadamente, dos seguintes:

1. BB e marido CC, alegando, em síntese, que:

- A insolvente e a sociedade DD, Lda. celebraram entre si, em 17/05/2004, um contrato-promessa de compra e venda, através do qual a primeira prometeu vender à segunda e esta prometeu comprar, pelo preço de € 135 000,00, um prédio urbano correspondente a uma loja comercial;

- Por contrato de cessão da posição contratual celebrado em 17/05/2004, os impugnantes assumiram no dito contrato-promessa a posição da promitente compradora, passando, assim, a ter o direito de aquisição fundado no contrato-promessa inicialmente celebrado;

- O preço acordado, juntamente com o IMT no valor de € 8 775,00, foi integralmente pago pelos impugnantes, a quem o imóvel foi entregue pela insolvente, possuindo-o desde então, sendo que nele foram feitas obras cujo custo, suportado pela sociedade que o ocupa, ascendeu a € 97 200,97 e tendo ainda direito de retenção sobre o mesmo.

Impugnam, ainda, o facto do AI ter reconhecido o seu crédito como crédito comum, estribado no facto do contrato-promessa celebrado não dispor de eficácia real e de não haver ação judicial a reconhecer-lhes o direito de retenção e pugnam pelo cumprimento do contrato-promessa livre de quaisquer ónus ou encargos, ou se assim não se entender, pelo reconhecimento do crédito garantido de € 240 200,97, acrescido de juros compensatórios sobre a quantia de € 8 775,00 calculados desde 17/05/2004.

2. EE e esposa FF que vieram impugnar o facto do AI não ter cumprido os contratos-promessa de compra e venda de três frações autónomas que celebraram com a insolvente, tendo aqueles já pago a quantia de € 394 720,00 e havido tradição das frações autónomas, sendo os contratos dotados de eficácia real, bem como o não reconhecimento do crédito no valor de € 598 905,00, correspondente ao dobro do sinal prestado, acrescido de € 31 086,00 referente ao IMT que pagaram, de despesas e juros de mora até integral cumprimento, sendo este crédito garantido pelo direito de retenção de que gozam sobre as frações autónomas.

Na sequência das impugnações deduzidas, foram apresentadas as respostas e após várias retificações da lista de credores pelo AI foi proferido despacho saneador julgando verificada a generalidade dos créditos reclamados e relegando para a sentença final a verificação dos créditos controvertidos e a subsequente graduação, julgando, ainda, as impugnações deduzidas.

Após audiência de julgamento, foi proferida sentença de verificação e graduação de créditos.

Inconformados vieram diversos credores apelar, entre os quais os referidos credores EE e esposa e BB e marido.

As apelações destes credores foram julgados improcedentes.

Mais uma vez inconformados estes apelantes, vieram interpor as presentes revistas excecionais que a formação prevista no nº 3 do art. 672º do Cód. de Proc. Civil admitiu.

Corridos os vistos legais, urge apreciar e decidir.

Como é sabido – arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Cód. de Proc. Civil – o âmbito dos recursos é delimitado pelo teor das conclusões dos recorrentes.

Mas, antes de mais, há que especificar a matéria de facto que a Relação deu por apurada e que no que interessa aos recursos aqui em apreço, é a seguinte:

I.- A sociedade insolvente, como primeira outorgante e representada pelos seus sócios gerentes, e a sociedade DD, Lda., como segunda outorgante e representada pela sua sócia gerente, fizeram entre si o acordo escrito de fls. 536 frente e verso, cujo teor se dá aqui por reproduzido, no qual, com data de 17 de maio de 2004, e sob a epígrafe “Contrato Promessa” declararam, além do mais, o seguinte:

(…) 1.- A primeira outorgante promete vender ao segundo outorgante, que promete comprar àquela, livre de quaisquer ónus ou encargos, o seguinte prédio urbano:

Uma loja comercial n.º 4, no r/c, no lote n.º 3 entrada C e um aparcamento, com o n.º 53 na cave, com portão de fole, faz parte de um prédio urbano, situado no gaveto da Rua ... e ..., denominado por Urbanização ..., na cidade de ..., que vai ser submetido ao regime de propriedade horizontal (…).

2.- O preço total de compra e venda é de 135.000€00 (…) e como pagamento, a primeira outorgante já recebeu do segundo a quantia de € 135.000€00 (…) de que dá quitação.

(…) 5.- A escritura será celebrada quando tudo estiver legal para o efeito.

6.- As partes atribuem ao presente contrato força de execução específica, nos termos do disposto no art.º 830.º, n.º 1 do Código Civil.

(…) 8.- Apesar da obrigatoriedade do reconhecimento das assinaturas na presença do Notário e da exibição da licença de construção, as partes prescindem dessa formalidade, pelo que nenhuma delas pode invocar a nulidade do presente contrato em juízo ou fora dele. ”

II.- A sociedade DD, Lda., como primeira outorgante, a reclamante BB, como segunda outorgante e a sociedade AA, Lda., como terceira outorgante, subscreveram o acordo escrito de fls. 537, cujo teor se dá aqui por reproduzido, no qual, com data de 17 de maio de 2004 e sob a epígrafe “Cessão de Posição Contratual do Contrato” celebrado em 2004/05/17, declararam, além do mais, o seguinte:

(…) É reciproca e livremente aceite e acordado o presente contrato de cessão da posição contratual que se rege pelas cláusulas seguintes:

1. Pelo presente contrato e com efeitos a contar da data da sua assinatura, a cedente cede à cessionária, que para todos os efeitos declara aceitar, a posição contratual de adquirente do imóvel (…) que constitui o objecto de venda no contrato celebrado em 2004/05/17.

2. A cedente garante aos cessionários a existência do contrato bem como a sua total validade, eficácia e conformidade legal, tanto de um ponto de vista formal como substancial, declarando os cessionários que têm perfeito conhecimento dos termos e condições do mesmo contrato, que nesta data é entregue pela cedente aos cessionários.

3. Os cessionários assumem todos os direitos e obrigações inerentes à sua posição contratual.

4. Considerando a assunção da posição contratual por parte dos cessionários, designadamente de aquisição do imóvel que já se encontra integralmente pago, a terceira outorgante aceita e autoriza a presente cessão e obriga-se a celebrar com os cessionários a competente escritura de compra e venda, entrando aqueles na posse do imóvel”.

III.- Os reclamantes BB e marido pagaram a quantia pecuniária de € 8.775,00, a título de IMT devido pela realização do negócio a que se alude em II (documento de fls. 539 verso).

IV.- O preço estipulado no acordo a que se alude em I foi pago pela sociedade DD, Lda. à devedora AA, Lda., mediante a entrega de um terreno da titularidade daquela; na sequência do negócio referido em II, os reclamantes BB e CC pagaram à sociedade DD, Lda. o valor correspondente ao preço estipulado no acordo.

V.- Os reclamantes BB e marido receberam o imóvel da então vendedora, ora insolvente AA, Lda., em maio de 2004, realizando, então, obras na fração, na qual pretendiam instalar uma atividade comercial e de serviços, como veio a suceder.

VI.- A sociedade insolvente, como primeira outorgante e representada pelos seus sócios gerentes, e o impugnante EE, como segundo outorgante, fizeram entre si o acordo escrito de fls. 867 e 868, cujo teor se dá aqui por reproduzido, no qual, com data de 16 de abril de 2003, e sob a epígrafe “Contrato Promessa” declararam, além do mais, o seguinte:

(…) 1.- A primeira outorgante promete vender ao segundo, que promete comprar àquela, livres de quaisquer ónus ou encargos, o seguinte prédio urbano:

- Uma Loja Comercial com o n.º 6, no lote n.º 3, e uma garagem n.º 85, na cave, faz parte de um prédio urbano, situado no gaveto da Rua Dr. ... e ..., denominado Urbanização ..., na cidade de ... (…).

(…) 2.- O preço total de compra e venda é de € 324.220$00 (…) e como sinal e princípio de pagamento a primeira outorgante já recebeu do segundo a quantia de € 75.000,00 (…).

3 - € 25.000€00 (…) durante o mês de julho de 2003.

4 – 75.000€00 (…) durante o mês de Julho de 2003.

5 – A restante parte do preço será paga durante o ano de 2004.

6.- A escritura será celebrada quando tudo estiver legal para o efeito.

7 – As partes atribuem ao presente contrato força de execução específica, nos termos do disposto no art.º 830.º, n.º 1 do Código Civil.

(…)

9 - Apesar da obrigatoriedade do reconhecimento das assinaturas na presença do Notário e da exibição da licença de construção, as partes prescindem dessa formalidade, pelo que nenhuma delas pode invocar a nulidade do presente contrato em juízo ou fora dele.

VII.- Por escritura outorgada perante notário a 8 de novembro de 2011, a sociedade insolvente, como primeira outorgante e por intermédio dos seus sócios gerentes, e o impugnante EE, fizeram entre si o acordo de fls. 834 a 838, cujo teor se dá aqui por reproduzido, nele declarando, sob a epígrafe “Contrato Promessa de Compra e Venda (aditamento)”, e além do mais, o seguinte:

(…) Que a sociedade (…) e o segundo outorgante celebraram entre si, em dezasseis de abril de dois mil e três, um contrato promessa de compra e venda, em que a representada dos primeiros outorgantes prometia vender ao segundo outorgante uma loja comercial com o número seis no lote número três, da qual fazia parte uma garagem com o número oitenta e cinco na cave (…).

Que essa garagem corresponde à actual FRACÇÃO “F” – Comércio, Serviços e restauração e bebidas – loja – rés-do-chão direito, topo sul, junto à entrada “C” (…)

(…) Segundo

Que já houve tradição do imóvel objecto deste contrato, tendo o promitente comprador, aqui segundo outorgante, entrado na posse da identificada fracção autónoma “F” em dezasseis de abril de dois mil e cinco.

Terceiro

Que a sociedade (…) já recebeu do segundo outorgante a totalidade do preço acordado pela venda da indicada fracção autónoma “F”, conferindo-lhe pelo presente quitação”.

Quarto

Que atribuem ao mencionado contrato promessa de compra e venda eficácia real nos termos do artigo 413.º do Código Civil.)”.

VIII.- A sociedade insolvente, como primeira outorgante e representada pelos seus sócios gerentes, e o impugnante EE, como segundo outorgante, fizeram entre si o acordo escrito de fls. 778 e 779, cujo teor se dá aqui por reproduzido, no qual, com data de 16 de abril de 2003, e sob a epígrafe “Contrato Promessa” declararam, além do mais, o seguinte:

(…) 1.- A primeira outorgante promete vender ao segundo, que promete comprar àquela, o seguinte:

- Uma garagem n.º 85, na cave, faz parte de um prédio urbano, situado no gaveto da Rua Dr. ... e ..., denominado por Urbanização ..., na cidade de ... (…).

2.- O preço total de compra e venda é de € 8.000,00 (…) e como sinal e pagamento integral a primeira outorgante já recebeu do segundo a quantia de € 8.000,00 (…), da qual dá quitação.

3.- A escritura será celebrada quando tudo estiver legal para o efeito.

4.- As partes atribuem ao presente contrato força de execução específica, nos termos do disposto no art.º 830.º, n.º 1 do Código Civil.

(…)

6.- Apesar da obrigatoriedade do reconhecimento das assinaturas na presença do Notário e da exibição da licença de construção, as partes prescindem dessa formalidade, pelo que nenhuma delas pode invocar a nulidade do presente contrato em juízo ou fora dele. ”

IX.- Por escritura outorgada perante notário a 10 de janeiro de 2012, a sociedade insolvente, como primeira outorgante e por intermédio dos seus sócios gerentes, e o impugnante EE, fizeram entre si o acordo de fls. 787 a 791, cujo teor se dá aqui por reproduzido, nele declarando, sob a epígrafe “Contrato Promessa de Compra e Venda (aditamento)”, e além do mais, o seguinte:

(…) Que a sociedade (…) e o segundo outorgante celebraram entre si, em dezasseis de abril de dois mil e três, um contrato promessa de compra e venda, em que a representada dos primeiros outorgantes prometia vender ao segundo outorgante uma garagem com o número oitenta e cinco na cave (…).

Que essa garagem corresponde à actual FRACÇÃO “AL” – aparcamento na cave (…), com o número oitenta e cinco (…)

Segundo

Que já houve tradição do imóvel objecto deste contrato, tendo o promitente comprador, aqui segundo outorgante, entrado na posse da identificada fracção autónoma “AL” em dezasseis de abril de dois mil e sete.

Terceiro

Que a sociedade (…) já recebeu do segundo outorgante a totalidade do preço acordado pela venda da indicada fracção autónoma “AL”, conferindo-lhe pelo presente quitação”.

Quarto

Que atribuem ao mencionado contrato promessa de compra e venda eficácia real nos termos do artigo 413.º do Código Civil. ”.

X.- A sociedade insolvente, como primeira outorgante e representada pelos seus sócios gerentes, e o impugnante EE, como segundo outorgante, fizeram entre si o acordo escrito de fls. 793 e 794, cujo teor se dá aqui por reproduzido, no qual, com data de 29 de julho de 2005, e sob a epígrafe “Contrato Promessa” declararam, além do mais, o seguinte:

(…) 1.- A primeira outorgante promete vender ao segundo, que promete comprar àquela, o seguinte:

- FRACÇÂO “F” LOJA COMERCIAL, com o n.º 58, sita na Urbanização ..., lote n.º 2, na cidade de ... (…).

2.- O preço total de compra e venda é de € 62.500,00 (…) e como sinal de pagamento a primeira outorgante já recebeu do segundo a quantia de € 62.500,00 (…).

3.- A escritura será celebrada quando tudo estiver legal para o efeito.

4.- As partes atribuem ao presente contrato força de execução específica, nos termos do disposto no art.º 830.º, n.º 1 do Código Civil.

(…)

6.- Apesar da obrigatoriedade do reconhecimento das assinaturas na presença do Notário e da exibição da licença de construção, as partes prescindem dessa formalidade, pelo que nenhuma delas pode invocar a nulidade do presente contrato em juízo ou fora dele.”

XI.- Por escritura outorgada perante notário a 8 de novembro de 2011, a sociedade insolvente, como primeira outorgante e por intermédio dos seus sócios gerentes, e o impugnante EE fizeram entre si o acordo de fls. 834 a 838, cujo teor se dá aqui por reproduzido, nele declarando, sob a epígrafe “Contrato Promessa de Compra e Venda (aditamento)”, e além do mais, o seguinte:

(…) Que a sociedade (…) e o segundo outorgante celebraram entre si, em dezasseis de abril de dois mil e três, um contrato promessa de compra e venda, em que a representada dos primeiros outorgantes prometia vender ao segundo outorgante uma loja comercial com o número seis no lote número três, da qual fazia parte uma garagem com o número oitenta e cinco na cave, loja essa que integrava um prédio urbano (…) situado no gaveto da Rua Dr. ... e ..., na freguesia e concelho de ....

Que essa loja corresponde à actual FRACÇÃO “F” – Comércio, Serviços e restauração e bebidas – loja – no rés do chão direito, topo sul, junto À entrada “C (…).

Segundo

Que já houve tradição do imóvel objecto deste contrato, tendo o promitente comprador, aqui segundo outorgante, entrado na posse da identificada fracção autónoma “F” em dezasseis de abril de dois mil e cinco.

Terceiro

Que a sociedade (…) já recebeu do segundo outorgante a totalidade do preço acordado pela venda da indicada fracção autónoma “F”, conferindo-lhe pelo presente quitação”.

Quarto

Que atribuem ao mencionado contrato promessa de compra e venda eficácia real nos termos do artigo 413.º do Código Civil. ”

XII.- O credor EE despendeu, a título de IMT tendo como facto tributário a celebração dos acordos referidos em  VI a XI e a tradição dos imóveis neles contemplados, a quantia de € 31.086,00.

XIII.- Os imóveis mencionados nos acordos referidos em VI a XI foram entregues aos mesmos credores, passando estes a ocupá-los em 16 de abril de 2005, em 16 de abril de 2007 e em 29 de julho de 2009, sendo que na loja referida em X e em XI instalaram por sua conta um estabelecimento de pronto a vestir e na referida em VI e em VII permitindo o seu arrendamento, recebendo as rendas correspondentes, à instituição bancária BANCO GG, atualmente BANCO HH.

XIV.- Os credores EE e mulher pagaram à sociedade insolvente, no âmbito dos acordos referidos em I a VII, a quantia global de € 394.220,00 (€ 324.220 + 8.000,00 + 62.500,00).

XV.- A 12 de Janeiro de 2006, foi constituída a sociedade comercial II, Lda. NIPC 507579666, tendo como sócio gerente CC.

XVI.- Após a constituição da sociedade comercial acabada de referir, foram emitidas em nome daquela as faturas de fornecimento de materiais juntas a fls. 541 a 558 dos autos.

 

Vejamos agora os recursos interpostos.

I. Revista dos recorrentes BB e marido.

Estes recorrentes nas suas extensíssimas e repetitivas alegações formularam conclusões também exageradamente extensas e repetitivas, pelo que não serão aqui transcritas.

Daquelas se deduz que aqueles recorrentes para conhecer neste recurso levantam apenas a seguinte questão:

O crédito reclamado pelos aqui recorrentes é garantido pelo direito de retenção sobre o imóvel objeto do contrato promessa de compra e venda que celebraram com a insolvente e que fundamenta o crédito reclamado e, por isso, o mesmo crédito deve ser graduado com preferência ao crédito hipotecário da BANCO JJ ?

Apenas contra-alegou a credora BANCO JJ defendendo a manutenção do decidido.

Vejamos.

O acórdão recorrido não reconheceu aos recorrentes o direito de retenção sobre o imóvel objeto do contrato promessa que aqueles celebraram com a insolvente e do qual resulta o crédito reclamado, por haver entendido que aqueles credores reclamantes ao celebrarem o referido contrato promessa não revestiam a qualidade de consumidor que a doutrina derivada do acórdão de uniformização de jurisprudência nº 4/ 2014 de  20-03-2014 ( DR, nº 95, I série-A, de 19-05-2014 ) exige para que o promitente comprador possa valer-se, em reclamação de créditos em processo de insolvência, nos termos do art. 755º, al. f) do Cód. Civil.

Ora as instâncias entenderam que numa reclamação de créditos em processo de insolvência, o promitente comprador que queira valer-se da garantia do direito de retenção, nos termos do art. 755º, al. f) referido, tem de revestir a qualidade de consumidor no contrato promessa incumprido em causa.

Os aqui recorrentes aceitaram tal entendimento, mas apenas discordam do segmento da decisão em que se decidiu que aqueles recorrentes no caso em apreço não tinham essa qualidade de consumidores no negócio de que deriva o crédito reclamado.

Desta forma, apenas teremos aqui que apreciar se os recorrentes detêm ou não a qualidade de consumidores no negócio em causa.

Antes de mais, há que precisar que sendo a qualidade de consumidor um elemento constitutivo do direito de retenção reclamado pelos recorrentes, tal como decidiram as instâncias, sem impugnação dos recorrentes, a estes pertence o ónus de prova de que beneficiam dessa qualidade, tal como exige a regra geral do art. 342º, nº 1 do Cód. Civil.

Passando para a apreciação do conceito de consumidor, temos de dizer antes de mais que a lei que regula a defesa do consumidor, que é a Lei nº 24/96 de 31/07, no seu ar. 2º, nº1 define o consumidor, como a pessoa singular a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados exclusivamente a uso não profissional, por pessoa ( singular ou coletiva ) que exerça com caráter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios.  

É assim a finalidade do ato em causa que determina, essencialmente, a qualificação do consumidor como sujeito do regime de benefício que aquele diploma instituiu – e ainda os que lhe seguiram na senda da mesma proteção do consumidor, como os decretos-leis nºs 67/2003 de 8/04 e 84/2008 de 21/05, operando a transposição de Diretivas da União Europeia.

Na doutrina encontramos o Professor Calvão da Silva que no seu livro “Venda de Bens de Consumo”, 4ª ed., 2010, Almedina, pág. 55 e segs. define o consumidor, como a pessoa que adquire um bem ou um serviço para uso privado  –  uso pessoal, familiar ou doméstico – de modo a satisfazer necessidade pessoais e familiares, mas não já aquele que obtém ou utiliza bens ou serviços para satisfação das necessidades da sua profissão ou empresa.

Dos factos provados resulta que os aqui recorrentes, ao celebrarem o negócio de aquisição de uma posição contratual de promitente comprador, num contrato promessa em que a promitente vendedora era a ora insolvente, tinham a intenção de instalar no imóvel  - constituído por loja comercial e aparcamento – uma atividade comercial e de serviços, como veio a concretizar-se, tendo para o efeito formado uma sociedade comercial.

Daqui resulta, em nosso entender, que a finalidade da aquisição ao imóvel não foi o de uso pessoal ou familiar acima referido, mas uma finalidade empresarial ou comercial, que se não integra no interesse do legislador subjacente à proteção consagrada aos consumidores pelos diplomas legais referidos.

É, assim, um conceito estrito de consumidor, o adotado pelo legislador neste caso, em nossa opinião.

E devemos contrariar aqui a alegação dos recorrentes no sentido de que este entendimento seguido nas decisões das instâncias proferidas  nos autos  – e acolhido por nós -, contraria a doutrina do referido acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 4/2014.

Com efeito, o conceito de consumidor não foi explorado no citado acórdão, tendo este apenas na nota 10 aposta no final do texto referido laconicamente” Não sofre dúvida que o promitente-comprador é, in casu, um consumidor no sentido de ser um utilizador final com o significado comum do termo, que utiliza os andares para seu uso próprio e não com o escopo de revenda”.

Mas nada se diz sobre se o destino dos andares fosse o de prosseguir pelo credor reclamante uma atividade profissional, se estaria, ainda assim, incluído no referido conceito de consumidor.

Por isso, as decisões das instâncias em nada contrariam o acórdão uniformizador referido.

Não se provando que os aqui recorrentes revistam a qualidade de consumidor no negócio de que deriva o crédito em causa, não podem beneficiar do direito de retenção previsto na al. f) do art. 755º do Cód. Civil, como bem disseram as instâncias.

Soçobra, desta forma, este fundamento do recurso e com ele toda a revista.

II. Revista dos credores EE e esposa.

Estes também apresentaram alegações muito extensas e pouco concisas em que formulam conclusões igualmente extensas exageradamente, pelo que não serão aqui transcritas.

Da análise daquelas se deduz que os aqui recorrentes, para conhecer neste recurso, levantam apenas a seguinte questão:

O crédito reclamado pelos recorrentes goza do direito de retenção  por aqueles terem a qualidade de consumidores na celebração dos contratos promessa que celebraram com a  insolvente e  nos quais fundamentam os créditos reclamados, pelo que devem ser graduados com preferência ao credor hipotecário BANCO JJ  ?    

Contra-alegou aqui também a recorrida BANCO JJ defendendo a manutenção do decidido.

A questão jurídica aqui em apreço é a mesma da revista dos recorrentes BB e marido.

Com efeito, as instâncias decidiram, sem impugnação dos recorrentes, que para ser reconhecido aos mesmos o direito de retenção, haveria de reconhecer-se que aqueles ao celebrar os contratos de onde emerge o direito de crédito, tinham a qualidade de consumidores.

Desta forma daremos aqui como reproduzido o que acima referimos sobre o referido conceito de consumidor.

Para fazer a aplicação deste conceito, há que relembrar a matéria de facto apurada e acima transcrita.

Os aqui recorrentes celebram contratos promessa, como promitentes compradores, com a ora insolvente, como promitente vendedora, e referentes a três frações prediais, sendo duas lojas comerciais e um aparcamento na cave, imóveis esses que os recorrentes destinaram: uma loja a estabelecimento de pronto a vestir que ali instalaram por sua conta e outra loja deram de arrendamento a uma instituição bancária do que recebem as respetivas rendas.

Ora daqui resulta que os recorrentes não destinaram os imóveis em causa a um uso pessoal ou familiar, mas a uma finalidade empresarial ou comercial – numa – e uma finalidade de lucro na exploração da atividade de locador que recebe rendas, mesmo que não fosse essa a sua atividade profissional preponderante ou exclusiva – o que aliás a eles cabia provar, no termos do art. 342º, nº1 do Cód. Civil, como já referimos.

Assim, a situação provada não preenche o interesse do legislador na proteção dos consumidores consubstanciado nas normas de proteção acima referidas.

Também damos aqui por reproduzido o que dissemos na decisão da outra  revista sobre a não violação da doutrina do acórdão de uniformização e jurisprudência nº 4/2014 mencionado, com a solução adotada pelas instâncias e aqui consagrada.

Improcede, deste modo, o fundamento do recurso.

Pelo exposto, negam-se as revistas aqui interpostas.

Custas pelos respetivos recorrentes.

*

Nos termos do art. 663º, nº 7 do Cód. de Proc. Civil, sumaria-se este acórdão da seguinte forma:

Insolvência. Reclamação de Créditos. Contrato-Promessa. Direito de Retenção. Proteção do Consumidor.

I. Nos termos do acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 4/2014, o credor de uma empresa insolvente com crédito derivado de um contrato promessa celebrado com a insolvente e não cumprido, na graduação dos créditos, só pode beneficiar do direito de retenção previsto no art. 755º, al, f) do Cód. Civil, se demonstrar ser consumidor.

II. Não reveste tal conceito aquele que celebra como promitente comprador um contrato promessa de aquisição de loja que destina a nela instalar uma loja comercial que efetivamente instala, constituindo, para o efeito, uma sociedade comercial.

III. E também não reveste essa qualidade o credor que celebra contrato promessa, como promitente comprador de três frações prediais, sendo duas lojas comercias e a restante um aparcamento na cave de apoio, lojas essas que o referido credor destina, uma, a nela instalar um estabelecimento comercial que efetivamente veio a instalar, por sua conta, e a outra dá de arrendamento a uma instituição bancária, recebendo as respetivas rendas.  

2017-02-14

João Camilo ( Relator )

Fonseca Ramos

Fernandes do Vale