Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
273/07.8TBENT.E1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: MARIA CLARA SOTTOMAYOR
Descritores: SERVIDÃO DE PASSAGEM
EXTINÇÃO DE SERVIDÃO
DESNECESSIDADE
Data do Acordão: 05/05/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS / PROVAS - DIREITOS REAIS / SERVIDÕES PREDIAIS.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA ( NULIDADES ).
Doutrina:
- Oliveira Ascensão, Direito Civil, Reais, 5.ª edição, revista e actualizada, Coimbra Editora, Coimbra, 1993, pp. 259-260.
- Pires de Lima/Antunes Varela, “Código Civil” Anotado, Anotação 8. ao art. 1569.º, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, p. 677.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 342.º, N.º1, 1543.º, 1544.º, 1547.º, N.ºS 1 E 2, 1550.º, 1569.º, N.ºS 2 E 3.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 615.º, N.º1, ALS. B) E C).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 01-03-2007, PROCESSO N.º 07A091;
-DE 16-03-2011, PROCESSO N.º 263/1999.P1.S1;
-DE 01-03-2012, PROCESSO N.º 263/1999.P1.S2;
-DE 16-01-2014, PROCESSO N.º 695/09.0TBBRG.G2.S1;
TODOS EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :

I - A desnecessidade da servidão deve ser valorada com base na ponderação da superveniência de factos, que, por si e objectivamente, tenham determinado uma mudança juridicamente relevante no prédio dominante, de forma a concluir-se que a servidão deixou de ter qualquer utilidade, por existirem alternativas de comodidade semelhante, sem se chegar ao ponto de exigir um juízo de indispensabilidade da servidão para permitir a sua manutenção.

II - O ónus da prova da desnecessidade incumbe à parte que requer a extinção.

III - A existência de um caminho público alternativo, mas mais longo, para a deslocação à sede do concelho, só por si, e sem a referência a outras características do novo percurso, não permite aferir, com segurança, da perda da utilidade proporcionada pela servidão.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I – Relatório


Os Autores, AA e esposa, BB, com residência na ..., em ... (vide o despacho de fls. 110 quanto à intervenção espontânea da esposa), vieram interpor acção declarativa de condenação, com processo ordinário, no Tribunal Judicial da Comarca do Entroncamento, contra a Ré, CC, residente na ... de Cima, n.º ..., em ..., pedindo que:
a) Seja declarado que são donos e legítimos possuidores de um prédio urbano composto de casa de rés do chão e 1.º andar com a área de 32m2 e quintal com a área de 1572, 29m2, a confrontar de norte com DD e outros, sul com linha férrea, nascente com a ré e poente com EE, inscrito na matriz sob o artigo ....º e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º … da freguesia de ..., por o terem comprado através da escritura referida no art. 1.º desta petição inicial e também por o terem adquirido por usucapião;
b) Seja declarada a extinção, por desnecessidade, da servidão referida no art. 3.º da petição, ordenando-se o seu cancelamento no registo predial, se estiver inscrita à data da decisão.

A Ré contestou, excepcionando a ilegitimidade do autor porque desacompanhado da sua mulher, e impugnando os factos alegados na petição inicial.
A Ré deduziu também pedido reconvencional, peticionando que o autor seja condenado a “devolver o leito da servidão à situação inicial, colocando-a com seis metros de largura em todo o seu comprimento, tal como consta do título constitutivo para o que a deverá desimpedir de tudo quanto ali colocou e diminui a sua largura”.

O autor replicou, pugnando pela improcedência da excepção e impugnando o essencial dos factos alegados na reconvenção.

A ré apresentou articulado de tréplica.

Por BB foi suscitado incidente de intervenção espontânea como associada do autor, que foi admitido.

Foi proferido despacho saneador, em que se decidiu julgar sanada a excepção de ilegitimidade activa e admitir a reconvenção, seleccionou-se a matéria de facto assente e base instrutória.
O despacho saneador foi objecto de reclamação, oportunamente decidida.

Procedeu-se à realização da audiência de julgamento e foi decidida a matéria de facto controvertida conforme consta da respectiva acta, sem reclamação.

Foi proferida sentença, em 27 de Setembro de 2012 (fls. 239 a 257), que decidiu julgar a acção parcialmente procedente e o pedido reconvencional procedente, por provado, e, em consequência, decretou o seguinte:
«a) Declaro que os autores são donos e legítimos possuidores do prédio urbano sito na ..., freguesia e concelho de ..., constituído por casa de rés do chão e 1.º andar com 32 m2 e quintal com 1540, 29 m2, inscrito na respectiva matriz sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º …,
b) Absolvo a ré do segundo pedido formulado pelos autores.
c) Condeno os autores a absterem-se de por qualquer meio impedirem ou perturbarem o exercício pela ré do direito de servidão que incide sobre o prédio urbano sito na ..., freguesia e concelho de ..., inscrito na matriz sob o artigo ....º e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º …, colocando-a com seis metros de largura e setenta metros de comprimento, no sentido poente nascente e desimpedindo-a de tudo o que ali colocaram».
 
                                
Inconformados, os autores interpuseram recurso de apelação, tendo o Tribunal da Relação decidido conceder provimento ao recurso e revogar a sentença recorrida, julgando, em consequência, a acção totalmente procedente, por provada, e ainda extinta a servidão de passagem que onera o prédio dos Autores, absolvendo-os do pedido reconvencional formulado pela Ré.

 

Inconformada recorre a Ré para este Supremo Tribunal, formulando, na sua alegação de recurso, as seguintes conclusões:

            1 – O acórdão recorrido não fundamenta de facto nem de direito a decisão proferida, limitando-se a considerar que os aumentos das distâncias de 550 metros para 1550 metros e de 75 metros para 93 metros são irrelevantes;

                2 – Tais omissões determinam a nulidade do acórdão nos termos do art. 615.º, n.º1, alínea b) e 666.º, n.º 1 ambos do CPC.

                3 – As escrituras públicas são documentos autênticos nos termos do art. 363.º, n.º2 e 369.º, n.º 1 ambos do CC e fazem prova plena dos factos dela constantes nos termos do art. 371.º do CC, pelo que existe obscuridade da comparação entre as alíneas A) e B) e as alíneas G), H) e I) todas dos factos assentes, o que configura uma situação de ininteligibilidade e integra a nulidade referida no art. 615.º, n.º 1, alínea c) aplicável por força do art. 666.º, n.º 1 ambos do CPC.

4 – O acórdão recorrido fez errada aplicação/interpretação do art. 1569.º, n.ºs 2 e 3 do CC.

Entende a recorrente que o correcto entendimento do referido n.º 2 será o que admite a extinção da servidão, se o requerente da extinção provar que o novo caminho tem condições de assegurar ao prédio dominante as mesmas utilidades prestadas pela servidão, tendo que ser descritas as características existentes para que se possa formular um juízo sobre a desnecessidade e proporcionalidade como prescreve o art. 342.º, n.º 1 do CC.

5 – Mostram-se violados os artigos 615.º, n.º 1 , alínea b), 666.º, n.º1 ambos do CPC, 342.º, n.º 1, 363.º, n.º 2, 369.º, n.º 1, 371.º todos do CC.

Temos em que se requer seja declarada a nulidade da decisão recorrida.

Ou, quando assim não se entenda, seja a mesma revogada,

Sempre com as legais consequências».

Os autores apresentaram contra-alegações.

Sabido que o objecto dos recursos se delimita pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as questões a decidir são as seguintes:

I – Nulidade do acórdão recorrido por falta de fundamentação (art. 615.º, n.º 1, al. b) do CPC) ou por obscuridade que torne a decisão ininteligível (art. 615.º, n.º 1, al. c) do CPC);

II - Extinção da servidão de passagem por desnecessidade (art. 1569.º, n.º 2 do CC).

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II – Fundamentação de facto

Foram dados por provados, pelas instâncias, os seguintes factos:

1) O prédio urbano sito em ..., freguesia e concelho de ..., inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...º, e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número …, tem aquisição inscrita a favor dos aqui Autores (alínea A) da Especificação).

            2) O prédio urbano sito em ..., freguesia e concelho de ..., inscrito na respectiva matriz sob o artigo …º, e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº …, tem a aquisição inscrita a favor da Ré, que é casada com FF sob o regime de separação de bens (alínea B) da Especificação).

            3) O prédio urbano referido supra em 2) foi desanexado do prédio supra referido em 1) – (alínea C) da Especificação).

            4) O prédio referido supra em 1) confina a nascente com o prédio referido supra em 2) – (alínea D) da Especificação).

            5) O prédio referido supra em 1) é composto de casa de r/c e 1.º andar e de quintal (alínea E) da Especificação).

            6) O prédio referido supra em 2) é composto de casa de r/c e 1.º andar e de quintal (alínea F) da Especificação).

            7) No dia 04 de Março de 1975, no Cartório Notarial de ..., foi lavrado um escrito intitulado de “Compra e Venda”, em que GG declarou, na qualidade de procurador de HH, II e JJ, casado no regime da comunhão geral de bens com KK, que vendia aos Autores, que o declararam comprar, pelo preço de 101.000$00 (cento e um mil escudos), o prédio urbano composto de casas de r/c, 1.º andar e de quintal, sito na ..., da freguesia e concelho de ..., inscrito na respectiva matriz sob o artigo …º e que fazia parte do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial da Golegã sob o n.º …(alínea G) da Especificação).

            8) No dia 04 de Março de 1975, no Cartório Notarial de ..., foi lavrado um escrito intitulado de “Compra e Venda”, em que GG declarou, na qualidade de procurador de HH, II e JJ, casado no regime da comunhão geral de bens com KK, que vendia à Ré, que o declarou comprar, pelo preço de esc. 100.000$00 (cem mil escudos) o prédio rústico sito na Travessa …, inscrito na respectiva matriz sob o artigo …º, e que fazia parte do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial da Golegã sob o n.º … (alínea H) da Especificação).

            9) No dia 04 de Março de 1975, no Cartório Notarial de ..., foi lavrado um escrito intitulado de “Constituição de Servidão”, em que os AA. declararam que “pelo preço de duzentos escudos, que já receberam, constituem uma servidão de passagem de pé e carro com seis metros de largura e setenta metros de comprimento, no sentido poente-nascente, imposta no prédio urbano, sito na ..., freguesia e concelho de ... (…), a favor do prédio rústico, sito na Travessa ..., freguesia e concelho de ... (…)”, os quais fazem parte do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial da Golegã sob o n.º ..., o que a Ré declarou aceitar, tudo conforme fls. 22 a 23 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzida (alínea I) da Especificação).

            10) Hoje existe no prédio supra referido em 1) uma faixa de terreno, com setenta metros de comprimento e cerca de seis metros de largura, no sentido Poente-Nascente, com início na via pública e termo no prédio referido supra em 2), que permite o acesso a este a pé e de carro (alínea J) da Especificação).

            11) Hoje o prédio referido supra em 2) tem um portão com cerca de 2,90 (dois metros e noventa centímetros) de largura, que confronta com a via pública (alínea K) da Especificação).

            12) Esta via pública é alcatroada (alínea L) da Especificação).

            13) Nela existe um passeio cortado de forma a possibilitar a entrada e saída de viaturas (alínea M) da Especificação).

            14) A casa do prédio supra referido em 1) tem a área de 32 (trinta e dois) m.2 (resposta ao quesito 1º).

            15) O quintal do prédio supra referido em 1) tem a área de 1.540,29 m.2 (resposta ao quesito 2º).

            16) A linha de estrema entre o prédio supra referido em 1) e o prédio supra referido em 2) está definida com marcos e muro (resposta ao quesito 3º).

            17) Os AA. limpam, cultivam, semeiam e colhem frutos de toda a área do prédio supra referido em 1) – (resposta ao quesito 4º).

            18) Há mais de 30 (trinta) anos (resposta ao quesito 5º).

            19) De forma contínua (resposta ao quesito 6º).

            20) À vista de toda a gente (resposta ao quesito 7º).

            21) Sem oposição de qualquer pessoa (resposta ao quesito 8º).

            22) Na convicção de serem seus donos (resposta ao quesito 9º).

            23) Na data referida em 9) o prédio referido em 2) não confinava com via pública (resposta ao quesito 10º).

            24) E não tinha qualquer ligação à via pública (resposta ao quesito 11º).

            25) A Ré pagou esc. 200$00 (duzentos escudos) aos Autores pelo acordo supra referido em 9) – (resposta ao quesito 12º).

            26) Do portão referido em 11) até à casa do prédio referido em 2) distam cerca de 93 (noventa e três) metros (resposta ao quesito 13º) – Facto alterado pelo Tribunal da Relação.

            27) Do portão referido em 11) e até ... distam cerca de 1.550 (mil, quinhentos e cinquenta) metros (resposta ao quesito 14º).

            28) Do prédio referido em 2) até ..., e através da faixa de terreno referido em 10) é necessário percorrer cerca de 550 (quinhentos e cinquenta) metros (resposta ao quesito 15º).

            29) E atravessar uma passagem de nível (resposta ao quesito 16º).

            30) A faixa de terreno supra referida em 10) diminui a área útil do prédio supra referido em 1) em 190,53 m.2 (resposta ao quesito 17º).

            31) Hoje, a Ré e terceiros caminham através da faixa de terreno referida em 10) para chegar à casa do prédio referido em 2) – (resposta ao quesito 18º).

            32) Na faixa de terreno referida em 10) o Autor plantou árvores (resposta ao quesito 19º).

            33) Depositou pedras (resposta ao quesito 20º).

            34) E deixou um automóvel (resposta ao quesito 21º).

            35) Foi colocado um contador de água na faixa de terreno supra referida em 10) – (resposta ao quesito 22º).

            36) Como consequência, a faixa de terreno referida em 10) tem zonas com menos de 6 (seis) metros de largura (resposta ao quesito 23º).

           

            III – Fundamentação de direito

            I – Nulidade do acórdão recorrido

             Alega a Recorrente que o acórdão recorrido padece de nulidade por falta de fundamentação de facto e de direito, e por obscuridade ou ininteligibilidade, nos termos, respectivamente das alíneas b) e c) do n.º 1 do art. 615.º do CPC.

            1.1 Entende a Recorrente que o acórdão recorrido não menciona factos que permitam concluir pela «desnecessidade» da servidão e que é ao requerente da extinção da servidão que compete a prova dos elementos indispensáveis ao juízo da desnecessidade e da proporcionalidade nos termos do art. 342.º, n.º 1 do CC.

            Contudo, como a recorrente reconhece, o acórdão recorrido fundamentou a sua decisão de declarar a extinção da servidão por desnecessidade, no facto superveniente ao acordo celebrado em 1975 de o prédio dominante ter deixado de estar na situação de prédio encravado por ter sido aberto um caminho público que permite o acesso a ... e no facto de a maior distância a percorrer no novo caminho não ser um elemento relevante para aferir da necessidade ou desnecessidade da servidão.

            O acórdão recorrido fundamentou a decisão neste facto e num juízo de proporcionalidade, entendendo que a circunstância de a ré ter de percorrer uma distância maior no novo caminho não justifica a necessidade da servidão e que a distância não é um factor previsto na lei para aferir da necessidade ou desnecessidade da servidão.

            Pode não se concordar com esta conclusão do acórdão recorrido, mas é em sede do mérito do recurso que a questão deverá ser apreciada, não em sede de nulidade do acórdão recorrido.

           

Em consequência, as questões colocadas a propósito do pedido de nulidade entram já no mérito do recurso e não consubstanciam qualquer falta de fundamentação de facto e de direito do acórdão recorrido, que elencou os factos e as razões de direito em que baseou a decisão.

            Sendo assim, improcedem as conclusões n.º 1, n.º 2 e n.º 5 da alegação de recurso da recorrente.

            1.2. Prossegue a recorrente, alegando que a análise dos documentos autênticos juntos aos autos, os quais constituem prova vinculada, nos termos do art. 371.º, n.º 1 do CC, permite concluir que o prédio dos autores e o prédio da ré foram desanexados e faziam parte do mesmo prédio descrito na Conservatória do Registo Predial da Golegã sob o número ..., e que da matéria de facto consta um erro quando se afirma que o prédio pertencente à Ré foi desanexado do prédio dos autores, enquanto nas alíneas G,H e I da matéria de facto assente se afirma que os prédios faziam todos parte da descrição n.º ... da Conservatória do Registo Predial da Golegã. 

            Em conformidade, entende a recorrida que a servidão discutida nos autos é uma servidão por destinação do pai de família, que resultou da separação jurídica de dois prédios do mesmo proprietário ou de duas fracções do mesmo prédio.

            Relativamente ao alegado erro da alínea C da especificação, onde consta que o prédio da ré foi desanexado do prédio dos autores, quando resulta dos documentos autênticos junto aos autos que os dois prédios, serviente e dominante, foram desanexados do mesmo prédio, não se trata de um erro, pois ambos os factos são compatíveis e não entram em contradição como alega a ré.

O que a ré pretende é retirar dos factos 7 e 8, correspondentes às alíneas G e H, que afinal a servidão discutida nos autos é uma servidão por destinação do pai de família. Contudo, esta questão não pode ser tida em conta na decisão, como esclareceu o acórdão recorrido, pois os factos constitutivos desta modalidade de servidão não foram alegados, pela ré, nem na contestação nem na reconvenção, onde se pediu apenas a manutenção da servidão por não estarem preenchidos os requisitos da desnecessidade, mas se aceitou que o facto constitutivo da servidão tinha sido um contrato.

Sendo assim, a invocação destes factos e um novo pedido assente nos requisitos de uma outra espécie de servidão constituem uma questão nova, que este Supremo Tribunal não pode conhecer.

           

 Concluímos, portanto, que não se verifica qualquer obscuridade ou ambiguidade que torne o acórdão recorrido ininteligível, nos termos exigidos pelo art. 615.º, n.º 1, al. c) do CPC.

           

Pelo que improcedem as conclusões n.º 3 e n.º 5 da alegação de recurso da recorrente.

           

            II – Extinção da servidão por desnecessidade

           

1. No caso concreto, está em causa uma servidão de passagem, constituída por contrato em Março de 1975, correspondente a uma situação de facto em que o prédio dominante, que veio a beneficiar da servidão, se encontrava encravado, sem nenhum acesso à via pública. Ou seja, o prédio dominante, caso o dono do prédio serviente não aceitasse celebrar o contrato que deu origem à servidão, estava na situação de prédio encravado, susceptível de criar, por força da lei, na esfera jurídica do dono do prédio dominante, um direito potestativo constitutivo cujo exercício, pelo dono do prédio encravado, se processa de forma independente da vontade do dono do prédio serviente, dando origem, por sentença judicial, a um direito real de servidão de passagem (art. 1550.º).

            O facto de, no caso concreto, a servidão ter sido constituída por contrato, não afasta a sua natureza legal, uma vez que o prédio dominante se encontrava na situação de facto de prédio encravado. Com efeito, a doutrina tem admitido que estão abrangidas pelo n.º 3 do art. 1569.º, não só as servidões legais constituídas por via judicial, mas também aquelas que foram concertadas entre as partes, pois também nestas, há uma constituição coerciva do encargo[1].

No mesmo sentido, afirma Oliveira Ascensão[2] que «servidão coactiva não é a que foi coactivamente imposta, mas a que o poderia ter sido. Isto resulta logo da expressão do art. 1547.º, n.º 2: “As servidões legais, na falta de constituição voluntária …”. Se as partes, por contrato, por exemplo, regularem a sua situação, o legislador não deixa de considerar existente uma servidão legal.

Este princípio tem a sua comprovação no art. 1569.º, n.º 3, que dispõe a extinção por desnecessidade das servidões legais, “qualquer que tenha sido o título da sua constituição”. Com isto se quer dizer que, verificando-se os pressupostos que permitem impor uma servidão legal, a servidão que se constituir se deve sempre considerar legal, mesmo que não tenha sido coactivamente actuada». 

A servidão coactiva é verdadeira servidão e distingue-se das outras por ter como pressuposto de facto uma situação de vizinhança predial que permitiria a imposição de uma servidão.

A servidão é um encargo, que recai sobre um prédio e aproveita exclusivamente a outro prédio, devendo os prédios pertencer a donos diferentes (art. 1543.º).

A servidão é, assim, uma limitação ao direito de propriedade do prédio onerado, ou um direito real limitado, que incide sobre quaisquer utilidades, ainda que futuras ou eventuais, susceptíveis de ser gozadas por intermédio do prédio dominante, mesmo que não aumentem o seu valor (art. 1544.º).

 

A existência de ónus ou direitos reais menores sobre imóveis impede o proprietário de gozar as faculdades inerentes à propriedade plena, constituindo uma limitação ou compressão do conteúdo do direito de propriedade, que a lei deseja que cesse logo que desaparecem os factos que fundamentaram a constituição do direito, cuja fonte pode ser a lei, o contrato, a usucapião ou a destinação do pai de família (art. 1547.º, n.º 1). As servidões legais, na falta de constituição voluntária, podem ser constituídas por sentença judicial ou por decisão administrativa, conforme os casos (art. 1547, n.º 2).

            O objectivo da lei é o de reunir numa mesma pessoa as faculdades que, contidas no direito de propriedade plena, se encontravam repartidas entre diversos titulares, pois a situação de divisão comporta, com frequência, um aumento dos conflitos.

            Contudo, a lei também admite uma função social da propriedade nas relações de vizinhança, pelo que há que proceder a uma ponderação de valores no juízo de desnecessidade, que só opera quando o dono do prédio serviente demonstre a perda de qualquer utilidade, não bastando a diminuição das utilidades proporcionadas pela servidão.

As servidões constituídas por usucapião e as servidões legais extinguem-se por desnecessidade (art. 1569.º, n.ºs 2 e 3).

A desnecessidade não opera automaticamente a extinção da servidão, tornando-se necessária uma decisão judicial, que, no caso sub judice, foi intentada pelos proprietários do prédio referido em 1), prédio serviente, contra a proprietária do prédio referido em 2), o prédio dominante.

           

2. Invocaram os autores-recorridos, agora recorridos, que à data da constituição da servidão o prédio da ré estava completamente encravado, sem qualquer acesso à via pública, mas que entretanto, a situação de facto alterou-se e o prédio dominante tem acesso à via pública, por força da abertura de um arruamento alcatroado, e dispõe de um portão com 2,90 metros de largura dotado de uma rampa para entrada e saída de viaturas.

            Por sua vez a ré-recorrente invoca que o novo caminho implica que tenha de andar a pé mais um kilómetro para se deslocar à sede do concelho (...) e mais outro para regressar, enquanto no caminho através do prédio serviente tem apenas de percorrer uma distância de 550 m para chegar a ..., pelo que defende que continua a servidão a manter utilidade.

            O tribunal de 1.ª instância decidiu que o facto de a distância a percorrer no novo caminho ser superior ao que a ré tem de percorrer no caminho correspondente à servidão justifica a manutenção da servidão por esta continuar a ter utilidade, não estando assim preenchido o conceito de desnecessidade objectiva.

O acórdão recorrido entende, em sentido diverso, que a sentença de 1.ª instância atribuiu à distância da casa da ré em relação à sede do concelho um peso que este argumento não tem, nem a lei lhe atribui, expressa ou tacitamente, considerando a acção procedente e declarando a extinção da servidão por desnecessidade.

            3. A questão que demanda apreciação e decisão da parte deste Supremo Tribunal   é a de saber se afinal se impõe declarar extinta a servidão em apreço, por desnecessidade da respectiva utilização, uma vez que o prédio que dela tem vindo a beneficiar adquiriu entretanto adquirido acesso à via pública, ou se a servidão ainda preserva a sua utilidade e razão de ser por permitir um acesso mais curto em distância à sede do concelho.  

A desnecessidade é uma causa autónoma de extinção de direitos reais, limitada às servidões constituídas por usucapião e às servidões legais, qualquer que tenha sido o título da sua constituição.

De acordo com a jurisprudência deste Supremo Tribunal têm sido adoptados, para definir o que se entende por desnecessidade, os seguintes critérios:

No acórdão de 16-03-2011, proferido no processo n.º 263/1999.P1.S1, definiu-se da seguinte forma o conceito de desnecessidade:

«1. A desnecessidade de uma servidão de passagem tem de ser aferida em função do prédio dominante, e não do respectivo proprietário.

2. Em princípio, a desnecessidade será superveniente em relação à constituição da servidão, decorrendo de alterações ocorridas no prédio dominante.

3. Só deve ser declarada extinta por desnecessidade uma servidão que deixou de ter qualquer utilidade para o prédio dominante; fazer equivaler a desnecessidade à indispensabilidade não é consistente com a possibilidade de extinção por desnecessidade de servidões que não sejam servidões legais.

4. Incumbe ao proprietário do prédio serviente que pretende a declaração judicial da extinção da servidão o ónus da prova da desnecessidade.

5. Salvaguardadas hipóteses de abuso de direito ou semelhantes, bastará ao proprietário do prédio serviente provar que a servidão deixou de proporcionar utilidade ao prédio dominante para conseguir obter a sua extinção».

                O acórdão de 01-03-2007, proferido no processo n.º 07A091, salientou também a natureza objectiva do conceito:

«4) A desnecessidade da servidão a que se refere o nº2 do artigo 1569º do Código Civil é apreciada em termos objectivos, ou seja, no cotejo da acessibilidade regular – não excessivamente incómoda ou onerosa – do prédio dominante e o encargo do prédio serviente, buscando-se que, na medida do possível e do razoável, o direito de propriedade possa ser exercido na plenitude da sua função socio-económica.

5) Se o proprietário do prédio dominante adquire um prédio contíguo com acesso directo à via pública a servidão só se extingue por desnecessidade se os prédios representarem uma unidade de utilização e fruição.

6) Assim não é se o novo prédio estiver onerado por um direito de superfície, já que o superficiário é condómino do solo sendo que a extinção da servidão significaria a transferência do encargo para outro prédio com oneração deste domínio “ex novo”».

                No acórdão de 01-03-2012, proferido no processo n.º 263/1999.P1.S2, o Supremo Tribunal remeteu o conceito de desnecessidade, para um juízo de proporcionalidade, cujo ónus da prova compete ao proprietário do prédio serviente, a quem compete alegar e provar os elementos de facto que permitam ao tribunal fazer este juízo:

«I - A extinção da servidão de passagem por desnecessidade a que alude o art. 1569.º, n.º 2 do CC deve ser objectiva e actual.

II - Compete ao requerente da extinção da servidão a prova dos elementos indispensáveis ao juízo da desnecessidade e da proporcionalidade nos termos do art. 342.º, n.º 1, do CC.

III - E para esse efeito não basta demonstrar que o prédio dominante pode utilizar o caminho de público que entretanto foi aberto, sendo necessário demonstrar que esse caminho proporciona igual ou semelhantes condições de utilidade e comodidade de acesso ao prédio dominante, para se aferir da desnecessidade da servidão.

IV - E no caso em apreço, o caminho da servidão continua a ser o percurso que propicia condições de trânsito mais regulares e cómodas, porque o percurso pelo caminho público tem como agravantes o aumento da inclinação e a diminuição dos raios de curvatura, que dificultam o trânsito de pessoas animais e veículos, principalmente quando estes transitam carregados e o piso se apresente molhado, em consequência de chuva ou gelo e nos meses de Inverno ocorre por vezes, a formação de geada e de gelo no local onde se situa o referido caminho público».

            No mesmo sentido, afirma-se no acórdão de 16-01-2014, proferido no processo n.º 695/09.0TBBRG.G2.S1:

«5. A desnecessidade susceptível de permitir a extinção judicial de uma servidão de passagem há-de ser aferida em função do prédio dominante e não do respectivo proprietário.

6. A jurisprudência dominante vai no sentido de que só deve ser declarada extinta por desnecessidade uma servidão que deixou de ter qualquer utilidade para o prédio dominante.

7. O ónus da prova da desnecessidade incumbe à parte que requer a extinção.

8. Salvaguardadas evidentemente hipóteses de abuso de direito ou semelhantes, bastará ao proprietário do prédio serviente provar que a servidão deixou de proporcionar utilidade ao prédio dominante para que consiga obter a sua extinção; mas tem de estar demonstrada a desnecessidade».

               

                O conceito da desnecessidade é um conceito necessariamente casuístico e que depende da apreciação da matéria de facto.

A desnecessidade da servidão deve ser valorada com base na ponderação da superveniência de factos, que, por si e objectivamente, tenham determinado uma mudança juridicamente relevante no prédio dominante, por forma a concluir-se que a servidão deixou de ter qualquer utilidade, por existirem alternativas de comodidade semelhante, sem se chegar ao ponto de exigir um juízo de indispensabilidade da servidão para permitir a sua manutenção.

               

 Em conformidade, a jurisprudência tem entendido que a lei não exige a indispensabilidade da servidão, para justificar a sua manutenção, bastando que proporcione ao prédio dominante uma utilidade relevante.

Os tribunais têm também exigido ao dono do prédio serviente, que pretende a extinção da servidão, que demonstre que esta já não proporciona ao prédio dominante qualquer utilidade.

O ónus da prova compete assim ao autor, nos termos do art. 342.º, n.º 1 do CC, contra ele correndo o risco da insuficiência da prova para a decisão da questão de direito.

Ora, a existência de um caminho público alternativo, mas mais longo, para a deslocação à sede do concelho, só por si, e sem a referência a outras características do novo percurso, não permite aferir, com segurança, da perda da utilidade proporcionada pela servidão.

Como o ónus da prova da desnecessidade cabe aos autores, e estes, mesmo instados pelo tribunal de 1.ª instância a concretizar a petição inicial, não alegaram factos concretos relevantes para o efeito, e apenas invocaram ser a inclinação dos terrenos semelhante e a distância do leito da servidão à sede do concelho superior àquela que resulta do caminho público. Ora, nada se provou relativamente à inclinação e quanto às distâncias provou-se o contrário do que foi alegado.

Como os autores não lograram provar a existência de elementos de facto relativos às características do percurso alternativo, que permitisse concluir pela perda de utilidade da servidão, devem repercutir-se na sua esfera jurídica as consequências da insuficiência da prova.

Pelo que, sendo assim, decidimos que deve manter-se a servidão de passagem, por não provado o conceito de desnecessidade.

 

Procede, portanto, a conclusão n.º 4 da alegação de recurso da recorrente.

IV – Decisão

Pelo exposto, decide-se, na 1.ª Secção deste Supremo Tribunal, conceder a revista e repor a sentença de 1.ª instância.

Custas pelos recorridos.


Lisboa, 5 de Maio de 2015


Maria Clara Sottomayor (Relatora)


Sebastião Póvoas


Moreira Alves

 

______________
[1] Cf. Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, Anotação 8. ao art. 1569.º, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, p. 677.
[2] Cf. Oliveira Ascensão, Direito Civil, Reais, 5.ª edição, revista e actualizada, Coimbra Editora, Coimbra, 1993, pp. 259-260.