Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08P2873
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: ARMÉNIO SOTTOMAYOR
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
CRIME CONTINUADO
CONCURSO DE INFRACÇÕES
CÚMULO JURÍDICO
PENA ÚNICA
MEDIDA DA PENA
Nº do Documento: SJ200902260028735
Data do Acordão: 02/26/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário :
I - Pela prática de dois crimes de abuso sexual de criança agravados, p. e p. pelo disposto nos arts. 172.º, n.ºs 1 e 2, e 177.º, n.º 1, al. a), do CP, cometidos na forma continuada, com duas menores entre os 7 anos e os 9 anos, foi o arguido condenado, na 1.ª instância, nas penas parcelares de 9 anos e 8 anos de prisão, penas cujo processo de determinação não apresenta reparos, e que não se mostram desproporcionadas à gravidade dos factos, às exigências de prevenção ou à culpa do arguido, não podendo, assim, ser consideradas injustas e ilegais, antes merecendo ser confirmadas.
II - Para a determinação da pena única, que fixou em 13 anos, o tribunal colectivo utilizou um método que não corresponde às regras da experiência que o Supremo vem adoptando, havendo que corrigir aquela pena a bem da uniformidade da jurisprudência.
III - Atendendo à globalidade dos factos praticados e à personalidade do arguido, compreendendo naqueles a circunstância de cada uma das menores ofendidas ter sido constrangida a assistir aos actos libidinosos praticados com a outra, circunstância que eleva a culpa do agente, que “tinha perfeito conhecimento da perturbação que as suas actuações provocavam na formação e estruturação da personalidade das menores, prejudicando-as no seu normal desenvolvimento físico e psíquico”, mostra-se adequado fixar a pena única em 12 anos de prisão.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. Na 3ª Vara Criminal de Lisboa, foi julgado, no âmbito do proc. 37/06.6PGLSB, AA, acusado pelo Ministério Público da prática de dois crimes de abuso sexual de criança agravados, p. e p. pelo disposto nos arts. 172° n°s 1 e 2, 177° n° 1 al. a) do Código Penal, cometidos na forma continuada, tendo sido condenado pelo crime cometido na pessoa de BB, na pena de 9 anos de prisão e na pessoa de CC, na pena de 8 anos de prisão e, feito o cúmulo, na pena única de 13 anos de prisão. Foi ainda condenado, nos termos do art. 82º do Código Penal, a pagar à menor BB a quantia de € 10.000,00 e à menor CC a quantia de € 15.000,00.
Inconformado o arguido recorre ao Supremo Tribunal de Justiça, tendo extraído da sua motivação as seguintes conclusões:
1.ª – O ora Recorrente vem condenado numa pena de 9 (nove) anos de prisão e numa pena de 8 (oito) anos de prisão, pela prática de 2 (dois) crimes de abuso sexual de criança, agravados, na forma continuada, p. e p. pelos artigos 172.°/1 e 2, 177.0/1-a) e 30.° do Código Penal; Efectuando o cúmulo de tais penas parcelares aplicadas, vem, nos termos do art. 77.° e 79.°, do Código Penal, condenado na pena única de 13 (treze) anos de prisão.
2.ª - A determinação da medida da pena, dentro dos limites da lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, não podendo a pena, em caso algum, ultrapassar a medida da culpa - cfr. artigos 71.°, n.º 1 e 40.°, n.º 2, ambos do Código Penal.
3.ª - Na determinação concreta da pena, o Tribunal tem de atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depõem a favor do agente - vd. artigo 71º , n.º 2, do Código Penal.
4.ª - Há crime continuado quando, através de várias acções criminosas, se repete o preenchimento do mesmo tipo legal ou de tipos que protegem o mesmo bem jurídico, usando-se de um procedimento que se reveste de uma certa uniformidade e aproveita um condicionalismo exterior que propicia a repetição, fazendo assim diminuir consideravelmente a culpa do agente.
5.ª - Pese embora o facto de o ora Recorrente dever ser considerado imputável, a verdade é que este tipo de comportamento, que tem tanto de repugnante, como de anormal, traduz uma diminuição da consciência da ilicitude, revelada, nomeadamente, em expressões como "brincadeiras", por referência a actos sexuais com crianças.
6.ª - A culpa constitui um limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas. O limite máximo de pena adequado à culpa não pode ser ultrapassado - Cfr. Ac. S.T.J., de 4 de Outubro de 2001, in Colectânea de Jurisprudência, Ano IX, Tomo III, pg. 178.
7.ª - Devem ser devidamente tomadas em consideração as circunstâncias atenuantes enumeradas supra - em II - e que aqui se dão por integralmente reproduzidas.
8.ª - O Tribunal a quo não levou em devida conta o facto de o aqui Recorrente não ter antecedentes criminais - Cfr. CRC de fls. 422 -, nem a sua confissão, na essência, dos factos de que vinha acusado.
9.a - Com as exigências de prevenção geral, procura-se satisfazer a necessidade comunitária de punição; Com a prevenção especial, pretende-se satisfazer as exigências da socialização do agente, com o objectivo da sua integração na comunidade.
10.a - Importa acautelar que a pena concreta, resultante do cúmulo jurídico dos crimes, pelos quais deve ser condenado, não seja excessiva, cerceando os objectivos da reinserção social.
11.ª - A função intimidatória da pena deve estar subordinada à sua outra função socialmente integradora. Donde, a pena preventiva (geral) nunca poderá ser pura intimidação, mas antes a intimidação limitada ao necessário para restabelecer a confiança geral na ordem jurídica.
12.a - Assim, a moldura penal aplicável ao caso concreto deve definir-se entre o mínimo imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias e o máximo que a culpa do agente consente. Entre tais limites encontra-se o espaço possível de resposta às necessidades da sua reintegração social.
13.ª - A pena única de 13 (treze) anos de prisão a que o Tribunal a quo condenou o ora Recorrente é manifestamente elevada, tendo em conta as exigências de prevenção (geral e especial) e a culpa do Recorrente, não se justificando a sua condenação em tal pena.
14.ª - Entende o ora Recorrente dever ser condenado na pena de 5 anos de prisão, pelo crime cometido relativamente à Ofendida BB, e na pena de 6 anos prisão, pelo crime cometido relativamente à Ofendida CC.
15.ª - E assim, o cúmulo iurídico deve, de acordo com o disposto no artigo 77.°, do Código Penal, situar-se entre um limite mínimo de 6 (seis) anos de prisão (pena parcelar mais elevada) e um máximo de 11 (onze) anos de prisão (soma das penas de prisão parcelares ).
16.ª - Seguindo o mesmo raciocínio, e pelas razões acima apontadas, deve ser condenado na pena única de 8 (oito) anos de prisão, porquanto, tendo em conta as exigências de prevenção (geral e especial) e a culpa do Recorrente não se justifica uma pena tão elevada quanto aquela em que vem o mesmo condenado.

O Ministério Público no tribunal recorrido respondeu, manifestando-se no sentido da improcedência do recurso, tendo resumido a sua argumentação nas conclusões seguintes:
1 - A moldura penal abstracta correspondente aos crimes pelos quais o arguido foi condenado têm como limite mínimo 4 anos de prisão e limite máximo 13 anos e 4 meses de prisão.
2 - As penas parcelares aplicadas ao arguido situam-se, assim, sensivelmente a meio da moldura penal referida.
3 - O arguido, na prática reiterada dos factos dados como provados, agiu sempre com dolo directo e intenso não lhe tendo sido em exame pericial detectado qualquer estado de intoxicação por álcool ou drogas, que pudesse justificar uma diminuição do juízo crítico na altura do cometimento dos crimes.
4 - Para além da confissão ter sido apenas parcial o arguido continua a não dar qualquer explicação racional para os factos apelidando-os de " brincadeiras ", sendo manifesto que continua a não interiorizar a gravidade das suas condutas.
5 - A ilicitude foi acentuada por força da gravidade da lesão dos bens jurídicos em causa, da repetição das condutas, do modo como foram planeadas e concretizadas e das marcas que deixaram nas menores.
6 - Acresce que a culpa foi bastante intensa, pois o arguido aproveitou-se da ascendência sobre as menores derivado de a elas estar ligado por laços familiares de ascendência.
7 - Apesar de terem existido circunstâncias exteriores que, a partir de determinada altura, facilitaram as condutas do arguido, também é certo que da discussão da causa não resultou provado qualquer facto que permita concluir para uma redução substancial da culpa.
8 - Na verdade era o arguido que, embora aproveitando-se dessas circunstâncias exteriores, criava as condições que lhe possibilitavam concretizar os seus propósitos, nomeadamente inventando passeios com as menores a locais onde mais facilmente os pudesse concretizar ou optando por ficar sozinho com as menores em casa com os mesmos objectivos.
9 - Assim, por entendermos, que a pena aplicada não merece qualquer reparo, deve o douto acórdão recorrido ser confirmado nos seus precisos termos, dessa forma, se fazendo JUSTIÇA

Neste Supremo Tribunal, o Ministério Público, no visto inicial, emitiu judicioso parecer no sentido que o recurso poderá eventualmente ter provimento, mas apenas quanto à medida da pena única, que se deverá situar entre 12 e 13 anos de prisão.
Uma vez que o recorrente não requereu a realização de audiência, os autos foram a vistos e vêm agora à conferência para decisão.

2. Os factos que o tribunal colectivo considerou provados são os seguintes:
1 O arguido vivia maritalmente com DD desde 20 de Agosto de 2003.
2 O casal residia na Rua .............. Lisboa, e com eles vivia também a menor, CC, nascida a 21 de Junho de 1996, apenas filha da denunciante, fruto de uma anterior relação.
3 Desde o seu nascimento que a menor CC, reside com a mãe, e quando a mãe iniciou esta relação com o arguido, a menor passou a viver integrada no novo agregado familiar da progenitora.
4 O arguido é ainda, avô paterno da menor BB, nascida em 17 de Maio de 1996, a qual reside com os seus progenitores, EE e FF, no ......, lote ...., ....., no Forte da Casa.
5 Desde o ano de 2003 até Janeiro de 2006, o arguido, por diversas vezes, saía de casa com as menores, para passear, ir ao jardim, ou viajar até castelo branco, para visitar a família daquele.
6 Também, quer na casa onde residia com a menor CC, filha da sua companheira, quer na casa de seu filho onde reside a menor BB, o arguido ficava também por diversas vezes sozinho com as menores.
7 Nas situações mencionadas em 4. e 5. havia beijos na boca, manipulava dos órgãos genitais das menores, por parte do arguido, masturbação do arguido, por parte das menores, sexo oral praticado pelo arguido e pelas menores, penetração vaginal e EE da menor CC, sendo estes actos, por vezes, acompanhados de visualização de filmes pornográficos.
8 Tais práticas, terminavam quase sempre com a ejaculação do arguido, provocada pelas crianças, com as práticas a que eram submetidas, ou após as mesmas, através de masturbação do próprio.
9 Tais factos eram perpetrados a ambas as menores, alternadamente, e na presença de ambas.
10 Ainda antes de Agosto de 2003, o arguido, em datas não apuradas, por um número indeterminado de vezes, aproveitando os momentos em que se encontrava sozinho com a sua neta, BB, dizia-lhe: "tens uma xaninha muito gira" ou "estou com tesão", depois, lambia-lhe o ouvido, tocava nos órgãos genitais daquela e no seu pénis, masturbando-se.
11 No mês de Agosto de 2003, uns dias após o arguido ir viver com DD, aquele levou as menores CC e BB a passear num parque, existente perto da casa da menor BB.
12 Ali chegado, e após estacionar o veiculo, o arguido despiu as menores, e começou a lamber as vaginas das menores CC e BB, começando primeiro pela CC.
13 Após, com o pénis erecto, friccionou aquele pela vagina das menores, começando primeiro pela CC e depois passando a BB, vindo, posteriormente, a ejacular em cima da vagina da CC.
14 Cometidos tais factos, o arguido disse às menores para não contarem nada a ninguém, porque se o fizessem, iriam para um colégio interno e nunca mais veriam os pais e a família, sendo que as menores, mantiveram o silêncio.
15 Tais factos repetiram-se ainda, frequentemente, durante os anos de 2003 a Janeiro de 2006, no interior do veículo, sempre que aquele saía com as menores para passear.
16 Assim, durante esse período, o arguido, por número indeterminado de vezes, em datas não apuradas, aproveitando-se da sua proximidade com as menores, e a pretexto de as levar ao parque e ao jardim, conduziu-as, umas vezes ao jardim de Belém, outras a um parque junto a casa da sua neta BB, outras junto a escola da CC, e ainda à zona da expo, por baixo do tabuleiro da Ponte Vasco da Gama, e chegado aqueles locais, estacionava o carro longe do alcance de transeuntes, num sítio recatado.
17 De seguida, reclinava o banco do condutor para trás, despia as cuecas das menores, e enquanto uma ficava no banco do pendura, de costas para a janela, de pernas abertas, a outra ficava no banco de trás também de pernas abertas.
18 Aproveitando essa posição, o arguido lambia e introduzia a língua na vagina das menores CC e BB, começando ora pela BB, outras pela CC.
19 Após, mandava que aquelas lhe beijassem o pénis, que depois lhes introduzia na boca e friccionava, e obrigava-as a chupar até ejacular.
20 Outras vezes, obrigava-as a masturbarem-no colocando-lhes as mãos no seu pénis impondo que aquelas o friccionassem para cima e para baixo, outras vezes ainda, masturbava-se ele.
21 Após, friccionava o pénis pela vagina das menores, alternadamente, sendo que, relativamente à CC, por algumas vezes, introduziu o pénis na vagina daquela, vindo posteriormente a ejacular.
22 Os factos descritos, ocorreram também, em todas as viagens que as menores fizeram com o arguido, quando o acompanharam a Castelo Branco, casa da família daquele, o que ocorreu, em datas não apuradas, uma vez no ano de 2003, duas vezes nos anos de 2004 e duas vezes no ano de 2005.
23 No decurso dessas viagens, o arguido estacionava o veiculo, e de seguida, reclinava o banco do condutor para trás, despia as cuecas das menores, e enquanto uma ficava no banco do pendura, de pernas abertas, a outra ficava no banco de trás também de pernas abertas.
24 Aproveitando essa posição, o arguido lambia e introduzia a língua na vagina das menores CC e BB, começando ora pela BB, outras pela CC .
25 Após, mandava que aquelas lhe beijassem o pénis, que depois lhes introduzia na Boca e friccionava, e obrigava a chupar até ejacular.
26 Outras vezes, obrigava-as a masturbarem-no colocando-lhes as mãos no seu pénis impondo que aquelas o friccionassem para cima e para baixo, outras vezes ainda, masturbava-se ele.
27 Após, friccionava o pénis pela vagina das menores, alternadamente, sendo que, relativamente a CC , por algumas vezes, introduziu o pénis na vagina daquela, vindo posteriormente a ejacular, tendo uma das vezes a menor sangrado no interior do veiculo. 28 Outras vezes ainda, na auto-estrada e com o carro em andamento, o arguido tirava o pénis para fora das calças, agarrava na cabeça da menor que estivesse ao seu lado, umas vezes a CC, outras a BB, obrigava-as a chuparem-lhe o pénis, até ejacular, limpando o pénis a papel higiénico que levava, num saco de plástico.
29 Ainda desde Agosto de 2003 a Janeiro de 2006, o arguido que residia com a menor CC, e estava frequentemente com a sua neta BB, aproveitando sempre que as menores se encontravam sozinhas, quer na casa da menor CC , quer na casa da BB, aquele umas vezes no sofá, outras no chão da sala, outras vezes no quarto, e ainda na casa de banho, por diversas vezes, despia-as, outras vezes, mandava-as despir, despindo ele as calças de seguida.
30 Depois o arguido lambia com força, e mexia com os dedos em movimentos circulares, nas suas vaginas, alternando entre a CC e a BB.
31 Beijava as menores na boca, e mandava que aquelas lhe beijassem o pénis, que introduzia na boca das menores, friccionava, e as obrigava a chupar, por vezes até ejacular.
32 Outras vezes ainda, obrigava-as a masturbarem-no colocando-lhes as mãos no seu pénis impondo que aquelas o friccionassem para cima e para baixo, outras vezes ainda, masturbava-se ele.
33 Após, friccionava o pénis pela vagina das menores, alternadamente, sendo que, relativamente a CC, por algumas vezes, introduziu o pénis na vagina daquela, vindo posteriormente a ejacular.
34 Também acontecia por vezes que, o arguido, umas vezes na sala, outras no quarto, colocava a televisão nos canais pornográficos, "playboy" e "vénus", ou colocava filmes no vídeo obrigando-as a assistir a filmes pornográficos.
35 Enquanto tais filmes decorriam, o arguido após as despir e tirar as calças, tocava-lhes no corpo, nos seios, beijava-as na boca, apalpava-lhes as vaginas, chegando mesmo a enfiar-lhes o dedo, obrigava-as a chuparem-lhe o pénis, o que aquelas faziam, até aquele ejacular.
36 Tais actos, eram praticados na presença de ambas, a uma e outra menor alternadamente, começando ora pela CC , ora pela BB .
37 Outras vezes, o arguido, antecedendo tais factos, ordenava as menores que subissem a uma mesa, dançassem, tirassem a roupa, e calçassem sapatos de salto alto.
38 Num domingo de Outubro de 2005, em dia não concretamente apurado, em que as menores se encontravam em casa daquele, sozinhos, o arguido, que se encontrava todo despido, na casa de banho, chamou a CC, despindo-a.
39 Após, com o pénis erecto, introduziu aquele na vagina da menor e após, no ânus daquela, tendo a menor gritado com dor, pelo que o arguido, retirando o pénis lhe disse: "eu meti metade da minha pila dentro de ti".
40 Chamou de seguida a BB, e disse-lhe, "vamos fazer uma experiência", tendo a menor, ao aperceber-se das intenções daquele, fugido.
41 Sempre que cometidos os factos supra descritos, o arguido dizia às menores para não contarem nada a ninguém, porque se o fizessem, iriam para uma casa de correcção ou colégio interno, e nunca mais veriam os pais e a família, sendo que as menores, com medo da concretização desse facto, mantiveram o silêncio.
42 Porque a menor CC , apresentasse dores de barriga, e mostrasse receio e medo de ir ao hospital, no decorrer de uma conversa, com a sua mãe, e face à insistência desta, a menor denunciou toda a situação de que ela e a BB vinham sendo vítimas por parte do arguido.
43 A partir da prática dos primeiros actos descritos, e ocorridos em dia não apurado, do ano de 2003, o arguido convenceu-se que as menores CC e BB não contariam a ninguém, o que se passava, o que o motivou a repetir esses actos.
44 Esta circunstância, aliada às relações familiares e de convívio existentes entre ele e as menores, eram facilitadoras da conduta do arguido.
45 O arguido actuou de modo voluntário, livre e conscientemente, bem sabendo que tais condutas são proibidas.
46 Tinha perfeito conhecimento da idade das menores CC e BB, que sabia, relativamente às mesmas ser inferior a catorze anos, e aproveitou-se da sua inexperiência e ingenuidade, para as sujeitar as condutas descritas.
47 Ao actuar das formas acima descritas, o arguido agiu segundo estímulo e com o propósito de alcançar prazer e satisfação dos seus desejos sexuais, querendo ter contactos de natureza sexual com as menores, com perfeito conhecimento da idade das crianças.
48 Valeu-se ainda, dos laços familiares e afectivos que o uniam às vítimas e do facto dele com elas conviver com regularidade, para as sujeitar a tais práticas, que sabia contrárias aos seus interesses e prejudiciais ao seus normais desenvolvimentos, bem sabendo que, em razão das suas idades, aquelas não tinham ainda a capacidade e o discernimento necessários para uma livre e esclarecida decisão no que concerne a um relacionamento sexual.
49 O arguido tinha perfeito conhecimento da perturbação que as suas actuações provocavam na formação e estruturação da personalidade das menores, prejudicando-as no seu normal desenvolvimento físico e psicológico.
50 Sabia o arguido que as citadas condutas eram proibidas e punidas por lei, e tendo capacidade de determinação, ainda assim não se inibiu de as realizar, agindo livre, deliberada e conscientemente.
51 Em todas essas ocasiões, o arguido agiu com perfeita noção do que fazia, com liberdade de determinação e sabendo que as suas acções eram penalmente puníveis.
52 Obviamente conhecedor da idade da sua neta e da sua enteada, o arguido quis obrigá-las, e efectivamente obrigou, a suportar os descritos actos sexuais que sabia serem fortemente lesivos da sua autodeterminação sexual, tal como sabia que elas não tinham capacidade para entender o significado dos actos que estava a fazê-las suportar.
53 O arguido nasceu quando a sua mãe tinha 20 anos de idade, teve apenas uma irmã, 2 anos mais nova.
54 O arguido, sua mãe e irmã, moraram em Angola, dos seus 2 anos até aos 27 anos.
55 O arguido fez o ensino básico sem dificuldades de aprendizagem.
56 O arguido ingressou no serviço militar obrigatório que cumpriu em Angola, dos 20 aos 23 anos de idade, negando ter sido confrontado com situações possivelmente desencadeadoras de "stress traumática" durante a guerra, onde foi instrutor de condução.
57 O arguido não sofreu qualquer agressividade ou violência por parte dos pais ou entre estes e não teve conhecimento de que houvesse, por parte da irmã, qualquer queixa desse tipo.
58 O arguido iniciou relações sexuais aos 13 anos com uma rapariga do seu meio, não se recordando nem da pessoa nem dos pormenores relativos a esse acontecimento.
59 O arguido casou aos 24 anos, tendo tido dois filhos desse casamento e durante o casamento teve várias relações extra-conjugais, tendo-se divorciado com 30 anos.
60 O arguido voltou a casar, teve um filho que faleceu aos dois anos com meningite e divorciou-se ao fim de 11 anos de relação.
61 O arguido considera que a sua vida sexual foi satisfatória e nega sintomas de patologia sexual, nomeadamente de impotência ou de ejaculação precoce.
62 O primeiro emprego do arguido foi aos 17 anos como escriturário.
63 O segundo emprego do arguido foi como contabilista aos 23 anos, após o cumprimento do serviço militar.
64 O arguido, posteriormente, teve a cargo a exploração de um café, durante 1 ano.
65 A seguir foi servente de pedreiro durante cerca de 1 ano.
66 Após, o arguido foi trabalhar para Sines como empregado fabril durante 15 anos.
67 Voltou a exercer a actividade como servente de pedreiro durante cerca de 6 meses.
68 Posteriormente o arguido foi "faz tudo" numa oficina e depois empregado de balcão, ladrilhador, pedreiro sendo este o seu emprego à data da sua detenção.
69 O arguido não faz qualquer medicação psicotrópica.
70 Na avaliação breve do estado mental, através do mms, não foram encontradas alterações ao nível da orientação, atenção e cálculo, retenção e evocação, Linguagem e habilidade construtiva, sendo que o resultado final (30 pontos) não aponta para defeito cognitivo.
71 A análise do funcionamento cognitivo através da escala de inteligência para adultos de Wechsler (wais iii), permitiu identificar os seguintes factores: "quocientes intelectuais: o QI de realização (117) corresponde ao nível normal brilhante, o QI verbal (120) o e o QI total (121) correspondem ao nível superior, apontando para uma homogeneidade do funcionamento, sem diferenças significativas no empenho de tarefas verbais e não verbais.
Análise dos índices:
Compreensão verbal: bom domínio verbal com capacidade de compreensão, nomeação e fluidez verbal evidencia uma adequada organização e categorização dos conceitos. Contudo, numa análise intra-individual, o subteste de semelhanças demonstrou ser o seu ponto débil.
Apresenta igualmente uma inteligência social de nível elevado com compreensão, avaliação e utilização das experiências passadas e conhecimento das normas convencionais de comportamento.
Numa análise intra-individual, o subteste de compreensão demonstrou ser o seu ponto forte. Demonstra ainda conhecimentos culturais básicos e cerais da actualidade.
Memória de trabalho: memória operativa, capacidade de atenção concentrada e controlo mental acima dos parâmetros médios normativos.
Organização perceptiva: desempenho acima da média no processamento de estímulos de complexidade crescente que apelam ao raciocínio lógico e abstracto, com ausência de alterações na discriminação perceptiva, organização e estruturação espacial. Boa capacidade em distinguir o essencial do acessório. Velocidade de processamento: velocidade de processamento mental e motor dentro dos valores médios normativos."
72 O funcionamento intelectual do arguido, evidenciado pelo relatório de avaliação psicológica, caracteriza-se por um desempenho de nível superior, não tendo sido encontradas alterações do funcionamento cognitivo-operativo.
73 Na área afectiva-emocional do arguido não foi apresentada sintomatologia clinicamente valorizável evidenciando um comportamento globalmente adequado.
74 De acordo e, no decurso do exame pericial a que foi submetido não foram identificadas ao arguido quaisquer alterações do foro cognitivo, nomeadamente do tipo demenciais que justifiquem dificuldades na recordação dos acontecimentos ou na noção critica de bem e de mal, recordando-se o arguido de todos os cometidos e acerca deles refere: "para já, não tive prazer nenhum"; "depois, e condenável socialmente"; "se pudesse voltar atrás, avisava o meu filho e a minha companheira do que estava a acontecer". Quando isso aconteceu mudei a minha maneira de ser (...) dava-me a impressão de que estava qualquer coisa mal (...) aquilo não era a minha maneira de ser".
75 De acordo com a história pregressa colhida durante a entrevista, a avaliação psicopatológica e os testes auxiliares de diagnóstico, não foi encontrada qualquer patologia psiquiátrica, nomeadamente, psicose ou demência, nem foi detectado qualquer estado de intoxicação por álcool ou drogas que justificasse uma diminuição do juízo crítico, na altura do cometimento dos factos constantes da acusação.
76 O arguido estava na posse de todas as suas faculdades mentais necessárias ao juízo critico.
77 O arguido, da apreciação crítica que faz actualmente dos actos descritos na acusação não dá qualquer explicação racional apelidando de "brincadeiras" os actos do foro sexual que praticou com as menores.
78 O arguido não tem antecedentes criminais e declarou não ter processos pendentes.
79 O arguido tem de habilitações literárias o curso geral de comércio (9º ano de Escolaridade + 2 anos)

Nenhum facto foi impugnado, nem da análise da matéria de facto resulta a existência de qualquer dos vícios a que se refere o art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal, pelo que se tem a matéria de facto como estabilizada.

3. O arguido foi acusado da prática de dois crimes de abuso sexual de crianças na forma continuada e, como tal, foi condenado. Todavia, o tribunal colectivo considerou que “de acordo com a lei vigente à data da prática dos factos, para, relativamente a cada uma das menores, poder considerar verificado o crime continuado, necessária se tornaria a referência, nos factos provados, a que o arguido actuou, de todas as vezes que o fez, pressionado por circunstâncias exteriores. E os factos vertidos nos n°s 43 e 44 do elenco dos factos provados parecem convergir nesse sentido, na medida em que se demonstrou que, a partir da prática dos primeiros actos descritos, e ocorridos em dia não apurado, do ano de 2003, o arguido convenceu-se que as menores CC e BB não contariam a ninguém, o que se passava, o que o motivou a repetir esses actos e que esta circunstância, aliada ás relações familiares e de convívio existentes entre ele e as menores, eram facilitadoras da sua conduta. No entanto e, quanto à redução substancial da sua culpa, nenhuma referência neste sentido consta sequer da acusação ou muito menos resultou da discussão da causa, porquanto, tal situação não se verificou; bem pelo contrário, resulta de tais factos que, para além de se ter mantido a situação exterior que envolveu o arguido das pelo menos seis vezes que se conseguiram concretizar no tempo, em que este actuou de forma criminosa, era o próprio quem criava as condições que lhe possibilitavam concretizar os seus propósitos, nomeadamente, inventando viagens e passeios a vários parques, procurando locais inóspitos quando não podia estar a sós com as menores em casa de ambas, onde, designadamente, criava situações de visionamento de filmes pornográficos, após o que ou durante praticava os factos relatados na matéria de facto dada como provada. De cada vez que agia, o arguido AA renovava os seus propósitos libidinosos.
Por outro lado, não se extrai, sem mais, da matéria de facto dada como provada que a reiteração criminosa tenha sido mais fruto de um facilitado circunstancialismo exterior (exógeno) do que de razões endógenas relacionadas com a personalidade do arguido.
Na verdade, só há crime continuado quando, através de várias acções criminosas, se repete o preenchimento do mesmo tipo legal ou de tipos que protegem o mesmo bem jurídico, usando-se de um procedimento que se reveste de uma certa uniformidade e aproveita um condicionalismo exterior que propicia a repetição, fazendo assim diminuir consideravelmente a culpa do agente. É o que consta do n.° 2 do art. 30.° do Código Penal.
Com efeito, sucede, por vezes, que certas actividades que preenchem o mesmo tipo legal de crime - ou mesmo diversos tipos legais, mas que fundamentalmente protegem o mesmo bem jurídico -, e às quais presidiu uma pluralidade de resoluções (que portanto atiraria a situação para o campo da pluralidade de infracções), devem ser aglutinadas numa só infracção, na medida em que revelam uma considerável diminuição da culpa do agente.
Ora, o fundamento desta diminuição da culpa encontra-se na disposição exterior das coisas para o facto, isto é, no circunstancialismo exógeno que precipita e facilita as sucessivas condutas do agente.
O pressuposto da continuação criminosa será assim a existência de uma relação que, de fora, e de modo considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, «tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito»
No entanto e, anteriormente à entrada em vigor da recente alteração legislativa, impunha-se ainda atender a duas decorrências dos requisitos que se enunciaram. Tratando-se de bens jurídicos pessoais, não se podia falar, como o exige o n.° 2 do art. 30.° citado, no mesmo bem jurídico, o que afasta então a continuação criminosa, salvo se for o mesmo ofendido e para que se possa falar de diminuição de culpa na formação das decisões criminosas posteriores é necessário que as mesmas não tenham sido tomadas todas na mesma ocasião.
Da matéria de facto que se transcreveu para a fundamentação, na rubrica dos factos provados acaba por se ter logrado demonstrar uma situação exterior ao agente que o impeliria à repetição das condutas criminosas.
Muito embora, no entendimento deste tribunal fosse mais correcto considerar os vários actos criminosos apurados como constituindo igual número de crimes, hoje, por força da alteração introduzida pela lei n.° 59/07, de 4/9, à figura do crime continuado não aplicável ao caso em que estejam causa bens eminentemente pessoais, salvo em se tratando de uma única vítima, suposto que concorram, como concorrem, os seus indispensáveis pressupostos, sempre seria de lhe aplicar a lei mais favorável por força do n° 4 do art° 2° do Código Penal, pelo que se mantém o enquadramento jurídico-criminal dos factos por ele praticado - e já evidenciado na acusação -, mostrando-se preenchidos como se encontram os respectivos pressupostos objectivos e subjectivos.
Considerando o preceituado no actual n° 3, do art. 30°, do Código Penal, trata-se e, relativamente a cada uma das menores, das mesmas ofendidas, de crimes que protegem o mesmo bem jurídico, várias acções típicas distintas, mas executadas de forma homogénea e que resultam de uma mesma situação exterior. No crime continuado, está ínsita a realidade do sucumbir no repetir, são pressupostos: a) a realização plúrima do mesmo tipo de crime, ou de vários tipos que protejam fundamentalmente o mesmo bem jurídico; b) homogeneidade na forma de execução; c) lesão do mesmo bem jurídico; d) unidade do dolo (unidade do injusto pessoal da acção), isto é, as diversas resoluções devem conservar-se dentro de uma linha psicológica continuada; e) persistência de uma situação exterior que facilite a execução e que diminua consideravelmente a culpa do agente.
O art. 30, n° 2, do Código Penal vai buscar o seu fundamento à diminuição da culpa do agente, em virtude da facilidade criada por determinadas circunstâncias para a prática de novos factos da mesma natureza - "in casu" a facilidade ocorrida no abuso sexual perpetrado em primeiro lugar, a circunstância de não ter sido descoberto tal abuso, e ainda o facto de tal abuso ter ficado impune, são circunstâncias exteriores que, a nosso ver, levam à recaída do recorrente e ao cometimento dos factos, nas situações seguintes à primeira ocorrência.
No entanto e, independentemente das recentes alterações legislativas que vieram possibilitar a aplicação da figura do crime continuado no que concerne a este tipo de crimes - praticados contra bens eminentemente pessoais - desde que se trate da mesma vítima, sendo uma das suas consequências uma diminuição de culpa â medida que se reitera a conduta, não se vê que tal diminuição exista no caso do abuso sexual de criança por actos que se sucedem no tempo, em que, pelo contrário, a gravidade da culpa parece aumentar à medida que os actos se repetem o que, obviamente, será ponderado em sede de medida da pena.
Também por que tal actividade constituiu um perigo concreto e efectivo para o desenvolvimento livre, físico ou psíquico, no caso concreto, das duas menores ou seja, conclui-se que o arguido cometeu os crimes pelos quais vinha acusado, na forma continuada.”

Diferentemente do que parece ser entendimento do tribunal colectivo, a alteração introduzida pela Reforma do Código Penal de 2007, acrescentando um nº 3 ao art. 30º, em nada alterou o posição jurisprudencial sobre esta matéria, conforme, aliás, se reconhece na própria Exposição de Motivos do projecto de reforma: “O crime continuado é objecto de uma restrição que supera dificuldades interpretativas. Assim, determina-se que o seu regime se não aplica a crimes praticados contra bens eminentemente pessoais, se estiverem em causa diferentes vítimas, de acordo, aliás, com o entendimento da jurisprudência”.

Tendo o colectivo considerado que não existiu uma situação exterior ao agente que tenha propiciado a repetição dos crimes, pois “era o próprio quem criava as condições que lhe possibilitavam concretizar os seus propósitos, nomeadamente, inventando viagens e passeios a vários parques, procurando locais inóspitos quando não podia estar a sós como as menores em casa de ambas, onde, designadamente, criava situações de visionamento de filmes pornográficos, após o que ou durante praticava os factos relatados na matéria de facto dada como provada” e ponderado que “não se vê que tal diminuição [da culpa] exista no caso do abuso sexual de criança por actos que se sucedem no tempo, em que, pelo contrário, a gravidade da culpa parece aumentar à medida que os actos se repetem” não deveria ter concluído pela existência de crimes continuados. Com efeito, a introdução do nº 3 ao art. 30º do Código Penal de modo algum significa que, tratando-se de bens jurídicos pessoais e sendo a mesma vítima, para a conformação do crime continuado se tenha prescindido da verificação de todos e de cada um dos elementos constantes do nº 2 do mesmo artigo, nomeadamente de que a actividade do agente tenha ocorrido “no quadro duma solicitação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente”. Teria, pois, sido mais correcto que o colectivo tivesse feito uso do mecanismo do art. 358º do Código de Processo Penal, por via da alteração da qualificação jurídica dos factos.
Todavia, não podendo este Supremo Tribunal extrair qualquer consequência dessa alteração, por respeito ao princípio da proibição da reformatio in pejus, fica a presente nota.

4. Considera o recorrente que, na fixação da medida da pena, não foram consideradas pelo tribunal colectivo determinadas circunstâncias atenuantes, indicando como tal uma diminuição da consciência da ilicitude “revelada, nomeadamente, em expressões como “brincadeiras”, por referência a actos sexuais com crianças” e bem assim a falta de antecedentes criminais e a confissão, na essência, dos factos de que vinha acusado.
A avaliação do estado mental do arguido, a que os pontos 70 a 77 da matéria de facto provada se referem, não permite, de modo algum, considerar que existe uma diminuição da consciência da ilicitude da sua actuação, afirmando-se mesmo que “o arguido estava na posse de todas as suas faculdades mentais” (facto 76) e que “o arguido, da apreciação crítica que faz actualmente dos actos descritos na acusação não dá qualquer explicação racional, apelidando de “brincadeiras” os actos do foro sexual que praticou com as menores” (facto nº 77).
Pretende o recorrente que o uso da referida expressão “brincadeiras” é revelador da diminuição da consciência da ilicitude.
Segundo se colhe na Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, vol. 5, s.v. “brincadeira”, tal termo tem, na acepção popular, quando usado no plural, o sentido de “relações sexuais”. E, com o sentido de “carícias, relações sexuais” aparece, como termo da linguagem familiar, no Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, que documenta tal significado na seguinte citação de David Mourão-Ferreira, Gaivotas em Terra, pág. 33: “a costureira lá de casa – a menina Olímpia de saudosa memória – tinha descoberto uns dois anos antes, as ‘ingénuas’ brincadeiras a que Maria Antónia e eu nos entregávamos. … Mas obrigou-me, nessa altura, a comprar o seu silêncio, por uma repulsiva intimidade” Também o Dicionário Houaisse da Língua Portuguesa acolhe o significado de “relações sexuais; cópula” como proveniente da linguagem informal.
Tendo o recorrente como habilitações literárias o Curso Geral de Comércio corresponde, pois, ao seu nível de linguagem, o uso da palavra “brincadeiras” para se referir aos actos de relacionamento sexual que praticou com as menores, não querendo com isso significar, como pretende, uma desvalorização de tais actos reveladora de uma menor consciência da ilicitude. Aliás, a circunstância de referir que a sua actividade “é condenável socialmente” e que “se pudesse voltar atrás, avisava o meu filho e a minha companheira do que estava a acontecer” (facto nº 74) demonstram que, ao contrário do que alega, tem uma normal consciência da ilicitude dos actos que praticou.

7. Reconduzindo-se à temática do fim das penas, a determinação da pena concreta obedece a parâmetros rigorosos, que têm como elementos nucleares de referência a prevenção e a culpa.
Segundo o art. 40º do Código Penal, a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, não podendo, porém, em caso algum, a pena ultrapassar a medida da culpa. A pena assume, assim, como finalidade última, para a qual todas as outras convergem, a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, ou seja, finalidades de prevenção. Neste conceito compreende-se, desde logo, a prevenção geral, não já no sentido negativo, de intimidação do delinquente, que pressupunha a aplicação de penas severas, mas antes entendida como o reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma que protege os bens jurídicos (prevenção positiva ou de integração). Nele sendo também abrangida a prevenção especial de socialização do delinquente, ou seja de reintegração do agente na sociedade.
A necessidade de tutela de bens jurídicos adquire um significado prospectivo traduzido na tutela das expectativas da comunidade na manutenção, senão mesmo reforço, da vigência da norma infringida. Conforme refere a Prof. Anabela Miranda Rodrigues, “onde o meio de prevenção (a ameaça penal) falhou, exige-se a aplicação da pena para que aquela ameaça não seja vazia e a medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos face à norma concretamente violada deve determinar a medida da pena” (A Determinação da Medida da Pena Privativa de Liberdade, pág. 547). Constitui, assim, um acto de valoração em concreto que o julgador deve levar a efeito tendo em vista as circunstâncias do caso. Como adverte o Prof. Figueiredo Dias (Direito Penal Português – Parte II – As consequências jurídicas do crime, pág. 241) trata-se de “determinar as exigências que ressaltam do caso sub iudice, no complexo da sua forma concreta de execução, da sua específica motivação, das consequências que dele resultaram, da situação da vítima, da conduta do agente antes e depois do facto, etc.”. Encontrar-se-á uma medida óptima de tutela dos bens jurídicos e da expectativas comunitárias consentida pela culpa, a qual admite a existência gradativa de pontos inferiores, em que aquela tutela é ainda efectiva, até se atingir o limiar mínimo abaixo do qual a fixação da pena perde, face à comunidade, a sua função tutelar. Entre aquele ponto óptimo e este limiar mínimo há-de ser fixada a pena concreta, com recurso às razões de prevenção especial de socialização, sempre na mira de evitar a quebra da inserção social do agente, na busca da sua reintegração na sociedade, e sem esquecer que, por mais fortes que sejam as razões da prevenção, nunca por nunca pode ser ultrapassada a medida da culpa, em, homenagem ao princípio da dignidade da pessoa humana, pois o condenado jamais pode servir de instrumento às exigências de prevenção.
Olhando a medida concreta da pena sob o prisma da prevenção, seremos levados a considerar que são fortes as exigências de prevenção geral no que respeita aos crimes de natureza sexual praticados com menores, como, aliás, se afirmou na decisão recorrida: “As exigências de prevenção geral, traduzindo-se na satisfação das expectativas comunitárias de manutenção, respeito e reforço da norma jurídica violada com o comportamento do arguido, lesivo dos bens jurídicos protegidos, são bastante elevadas neste tipo de crime, que tem ganho contornos e avanços preocupantes no seio da nossa sociedade, à semelhança do que acontece noutras do mesmo.”

Para a determinação da pena, o legislador, no nº 2 do artigo 71º do Código Penal, começa por estabelecer uma cláusula genérica, segundo a qual o tribunal atenderá a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente, passando a enumerar, seguidamente, embora de forma não exaustiva, algumas dessas circunstâncias: o grau de ilicitude do facto; a intensidade da culpa; os sentimentos manifestados no cometimento do crime; as condições pessoais do agente; a conduta anterior e posterior ao facto; a falta de preparação para manter uma conduta lícita.
A decisão recorrida considerou quanto a estes aspectos o seguinte:
- “o grau de ilicitude do facto, ou seja, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação de deveres impostos ao agente (os esquemas arquitectados para a prática dos crimes, a manipulação das menores, uma sua neta, outra sua enteada; as consequências para as menores; neste particular, cumpre anotar que as qualidades de neta e enteada das ofendidas já foram atendidas para efeitos da agravação pela disposição legal do art. 177°, n° 1, a), do c. Penal).”
- a intensidade do dolo (o dolo foi sempre directo e intenso);
- os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram (a referida manipulação das menores, a renovação dos esquemas para essa manipulação);
- as condições pessoais do agente e a sua situação económica (acima descritas);
- a conduta anterior ao facto e posterior a este;
- a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena (como o conjunto da actividade demonstra).
Tendo acrescentado:
“o arguido, na audiência de discussão e julgamento, não revelou, de forma inequívoca, que interiorizou a grande censurabilidade do seu comportamento, pelo que a sua postura, de alguma forma remetendo as sua actuações para: «certas "brincadeiras" que não deveria ter permitido que acontecessem porque mudaram a vida de muita gente (sic)", revela um certa indiferença em relação aos crimes cometidos;”
- “o arguido é portador de qualidades desvaliosas que refrangem ao nível da sua personalidade mais do que uma solicitação provinda do exterior a si, diminuindo-lhe a culpa, na medida em que os actos sexuais por si praticados, pelo seu teor, variedade e repetição, colhem explicação numa tendência endógena da sua personalidade;”
- “o arguido não tem antecedentes criminais, o que nem sequer é bastante para lhe creditar bom comportamento anterior, significante, apenas, de que até ã data dos factos os seus comportamentos que se foram repetindo ao longo de, pelo menos 3 anos, não sofreram, porque não denunciados, qualquer censura do poder judicial”.

Este Supremo Tribunal tem afirmado, em consonância com posição propugnada pelo Prof. Figueiredo Dias, que, “no recurso de revista, pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a sua desproporção da quantificação efectuada” (Direito Penal Português, II - As Consequências Jurídicas do Crime, págs. 197).
Na verdade, os recursos sendo “remédios jurídicos, não podem ser utilizados com o único objectivo de uma “melhor justiça”. (...) A pretensa injustiça imputada a um vício de julgamento só releva quando resulta de violação do direito material”, conforme acentuou Cunha Rodrigues («Recursos», in Jornadas de Direito Processual Penal, págs. 387).
Ora, o processo de determinação das penas parcelares aplicadas ao recorrente, fundada e cautelosamente indicado pelo tribunal colectivo, não apresenta razões para reparos, nem qualquer das penas se mostra desproporcionada à gravidade dos factos, às exigências de prevenção ou à culpa do arguido. Em consequência não podem ser consideradas injustas e ilegais, antes merecendo ser confirmadas.

Quanto à pena única, o tribunal colectivo fixou-a em 13 anos de prisão, numa moldura penal abstracta cujo mínimo corresponde à mais grave das penas aplicadas, ou seja a 9 anos de prisão, e cujo máximo, equivalente à soma das penas parcelares, atinge 17 anos. Para tanto, aquele tribunal optou por aditar à pena mais grave, metade da outra pena.
O Supremo Tribunal de Justiça, para determinação da pena única, tem adoptado um critério que passa pela soma da pena parcelar mais grave, a qual corresponde ao mínimo da moldura do cúmulo, com um terço das restantes penas, sendo a partir deste valor, considerando as especificidades do caso concreto e atendendo à regra ínsita no art. 77º nº 1 do Código Penal, que há-de ser encontrada a pena conjunta.
Ora, tendo o tribunal colectivo utilizado um método diferente, que não corresponde às regras da experiência que o Supremo vem adoptando, forçoso se torna corrigir aquela pena, a bem duma uniformidade da jurisprudência. Deste modo,
atendendo à globalidade dos factos praticados e à personalidade do arguido, compreendendo naqueles a circunstância de cada uma das menores ofendidas ter sido constrangida a assistir aos actos libidinosos praticados com a outra, circunstância que eleva a culpa do agente, que, conforme consta do facto nº 49, “tinha perfeito conhecimento da perturbação que as suas actuações provocavam na formação e estruturação da personalidade das menores, prejudicando-as no seu normal desenvolvimento físico e psíquico”, fixa-se a pena única em 12 anos de prisão.

Termos em que acordam no Supremo Tribunal de Justiça em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido AA, alterando a pena única conjunta para 12 (doze) anos de prisão, no mais confirmando a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça de 6 UC.

Lisboa, 26 de Fevereiro de 2009



Arménio Sottomayor (Relator)
Souto Moura