Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
162/19.3T8VRS.E1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: CATARINA SERRA
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
EQUIDADE
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 09/23/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
Em relação aos danos não patrimoniais, o princípio é o de que a indemnização deve calcular-se de acordo com a equidade (art. 496.º, n.º 4, do CC).
Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


I. RELATÓRIO


1. AA propôs a presente ação declarativa com processo comum, emergente de acidente de viação, contra Ageas Portugal – Companhia de Seguros, S.A., pedindo que esta fosse condenada a pagar-lhe € 41 944,53, acrescida de juros de mora à taxa legal contados desde 16 de Julho de 2018 até efetivo e integral pagamento. Alegou, para tanto, que foi vítima de um acidente de viação causado por um condutor de um veículo segurado na ré.


2. A ré contestou defendendo a improcedência da acção.


3. O processo seguiu os seus termos e, depois da audiência de julgamento, em 7.10.2020, foi proferida sentença cuja parte decisória é a seguinte:

Por todo o exposto, julga-se a ação parcialmente procedente, porque parcialmente provada, e, em consequência:

A) Decido condenar a ré/seguradora no pagamento ao autor da quantia total de € 15 944,53 (quinze mil, novecentos e quarenta e quatro euros e cinquenta e três cêntimos), discriminada da seguinte forma:

i. A quantia de € 144,53 (cento e quarenta e quatro euros e cinquenta e três cêntimos), a título de danos patrimoniais, sobre a qual se vencerão juros, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento;

ii. A quantia de € 15 000,00 (quinze mil euros), a título de compensação pelos danos não patrimoniais sofridos pelo autor, a título de danos corporais;

iii. A quantia de € 800,00 (oitocentos euros), a título de danos não patrimoniais, pela perda do direito ao gozo das suas férias;

iv. Sobre as quantias referidas em ii. e iii. vencer-se-ão juros, à taxa legal, desde a data da sentença até integral pagamento;

B) Absolver a ré do demais peticionado”.


4. Desta sentença recorreu a ré, impugnando a matéria de facto bem como a solução de direito.


5. O autor contra-alegou e recorreu subordinadamente, defendendo a condenação da ré no pagamento de uma indemnização por danos morais no valor de €40.000,00.


6. Em 15.04.2021, o Tribunal da Relação de Évora proferiu um Acórdão em cujo dispositivo pode ler-se:

Pelo exposto:

I - julga-se parcialmente procedente o recurso da R. em função do que se revoga a condenação no valor de €15.000,00 pelos danos morais e antes se condena a R. no pagamento da indemnização, a este título, de €10.00,00.

II - julga-se improcedente o recurso do A..

III - No mais mantém-se a sentença recorrida”.


7. Não concordando com este Acórdão, vem o autor interpor recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça.

A terminar as suas alegações, formula o autor as seguintes conclusões:

1º- O presente recurso prende-se com o montante indemnizatório atribuido ao A., a titulo de danos não patrimoniais ,considerando o A. que o montante a si atribuido não teve em conta as lesões que o mesmo sofreu em consequência do acidente, considerando      o A. ter sido produzida prova que suportasse um montante superior ao atribuido pelo Tribunal da Relação de Évora .

2º- No caso dos autos, o Autor ira sofrer para sempre de um dano permanente: encurtamento de três centimetros do ombro esquerdo e artrose na articulação do ombro e desenvolvimento de pseudoartrose, dano esse que a R. parece querer desconsiderar aliado às dores sofridas por aquele em consequência do embate cuja a culpa exclusiva foi do segurado na R.

3º- A indemnização, no segmento destinado ao ressarcimento dos danos não patrimoniais, visa, por um lado, a reparação indirecta destes – facultando-se aos lesados meios económicos suficientes para os compensar – e, por outro, sancionar o lesante.

4º- A indemnização por danos não patrimoniais, não podendo embora anular o mal causado, destina-se a proporcionar uma compensação moral pelo prejuízo sofrido.

5º Embora a lei não defina quais são os danos não patrimoniais merecedores de tutela jurídica, tem sido entendido unanimemente pela doutrina e jurisprudência que integram tal ideia as dores e padecimentos físicos e morais, angústia e ansiedade produzidas pela situação de alguém que sofreu um acidente e as lesões decorrentes, os danos resultantes de desvalorização, deformidades, além do sofrimento actual e sofrido durante o tempo de incapacidade, a angústia acerca da incerteza e futuro da situação e a existência e grau de incapacidade sofridos.

6º- A indemnização pelos danos não patrimoniais, insuscetíveis de avaliação pecuniária, visa oferecer ao lesado uma compensação que lhe faculte algumas satisfações decorrentes da utilização de uma soma pecuniária, em cuja fixação se devem ponderar os arts. 483.º, 494.º, 486.º,n.º s 1 e 3,562.º e 566.º,n.º s 1 e 2,todos do CC, sendo o critério da sua determinação a equidade – art. 496.º, n.º 4, do CC –, devendo ser proporcionada à gravidade do dano, tomando INDEMNIZAÇÃO POR DANOS CORPORAIS EMERGENTES DE ACIDENTES DE VIAÇÃO Sumários de Acórdãos (2015 - Outubro de 2019) Gabinete dos Juízes Assessores Assessoria Cível 7 em conta as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida.

7º- Tal compensação deverá ser significativa e não meramente simbólica, acentuando o STJ, cada vez mais, a ideia de que está ultrapassada a época das indemnizações simbólicas ou miserabilistas,

8º- No quantum indemnizatório relativo a danos não patrimoniais assume especial relevo o facto do A. em nada ter contribuído para a produção do acidente e o facto do Autor ir sofrer para sempre de um dano permanente : encurtamento de três centímetros do ombro esquerdo e artrose na articulação do ombro e desenvolvimento de pseudoartrose, dano esse que a R. parece querer desconsiderar aliado às dores sofridas por aquele em consequência do embate cuja a culpa exclusiva foi do segurado na R.

9º- O princípio da igualdade que deve ser observado como princípio farol  nas decisões judiciais não é impeditivo de um gradual aumento dos montantes indemnizatórios em matéria de acidentes de viação mormente em casos graves de sinistralidade rodoviária em que no chamado outono da vida do A. , é severamente afectada , , no preciso momento em que cumpria todas as regras estradais e foi embatido pelo segurado na R., nada podendo para evitar o sinistro que tão negativas consequências projectou na sua vida ,numa fase em que o que mais pretendia era descanso e sossego , usufruir das coisas boas da vida , depois de muito ter trabalhado ao longo da sua vida , tudo isso aliado ao facto de se encontrar num pais estrangeiro do qual não domina a lingua , o que faz aumentar o seu sentimento de angustia e perturbação .

10º- Na definição clássica de Antunes Varela o dano é a perda in natura que o lesado sofreu em consequência de certo facto, nos interesses (materiais, espirituais ou morais) que o direito violado ou a norma infringida visam tutelar.

11º- O dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão 12º-Esta indemnização é fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível, tendo como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal e a que teria nessa data se não existissem danos-- artigo 566.º, n.º 1 do C.Civil.

13º- No caso cocreto, o A. sofre encurtamento de três centimetros do ombro esquerdo e artrose na articulação do ombro e desenvolvimento de pseudoartrose, pelo que na atribuição da indemnização pela perda da capacidade aquisitiva não é o sofrimento ou a deformação corporal em si mesma (que terão de ser consideradas no âmbito dos danos não patrimoniais), mas antes a impossibilidade que o lesado fica a padecer de utilizar o seu corpo de forma plena, enquanto força de trabalho produtora de rendimento e de bem- estar para si e para os demais.

14º- A Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, de forma praticamente unânime, tem seguido o entendimento de que a valorização deste tipo de dano (patrimonial ou não patrimonial) deve ser autonomizada o dano biológico é indemnizável per si, independentemente de se verificarem, ou não, as consequências em termos de diminuição de proventos por parte do lesado.

15º- Sobre esta questão pronunciou-se expressamente o Acórdão do STJ de 19/02/2015 explicando essa autonomização nos seguintes termos : “…embora com contactos evidentes com os danos de natureza não patrimonial, o dano biológico não se pode reduzir a estes, na medida em que nos danos não patrimoniais apenas estão em causa prejuízos insusceptíveis de avaliação pecuniária e no dano biológico estão em causa prejuízos de natureza patrimonial, provenientes das consequências negativas ao nível da actividade geral do lesado.”

16º- O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04/06/2015 , é esclarecedor e sintetiza, no respectivo sumário, a referida orientação jurisprudencial: Os danos patrimoniais futuros decorrentes de uma lesão física não se reconduzem à redução da capacidade de trabalho já que, antes de mais, se traduzem numa lesão do direito fundamental do lesado à saúde e integridade física, pelo que não pode ser arbitrada uma indemnização que apenas tenha em conta aquela redução e a perda do rendimento que dela resulte, ou a necessidade de um acréscimo de esforço para a evitar.

17º- Finalmente, entende-se que a indemnização a fixar deverá ser justa e equitativa, ou seja, não se apresentar como um montante meramente simbólico ou miserabilista, mas antes representar a quantia adequada a viabilizar uma compensação ao lesado pelos padecimentos que sofreu em consequência do sinistro (cfr. acórdão do STJ de 7/06/2011, proc. nº. 160/2002, acessível em www.dgsi.pt).

18º- No âmbito da factualidade apurada supra referida, basta atentarmos na natureza e gravidade das lesões sofridas pelo A., as dores e o sofrimento sentido, são ferimentos, dores e incómodos que, pela sua natureza, extensão e duração, merecem a tutela do direito.

19º- Merecem também especial relevância e ponderação o encurtamento de 3cm do ombro esquerdo e artrose na articulação do ombro e desenvolvimento de pseudoartrose e as consequências que o mesmo terá no futuro por padecer de um encurtamento de 3cm do ombro esquerdo e artrose na articulação do ombro e desenvolvimento de pseudoartrose

20º Sem questionar a extrema gravidade das lesões e do sofrimento do A. e não ponderando todos os elementos apurados, o Tribunal da Relação entendeu que a indemnização pelo dano não patrimonial, “in casu”, deveria ser de €10 000,00 , não tendo o douta acórdão , valorado devidamente as lesões sofridas pelo Autor nem o dano futuro que o mesmo ira padecer pelo encurtamento de 3cm do ombro esquerdo e artrose na articulação do ombro e desenvolvimento de pseudoartrose

21º Por tudo o que se deixou exposto, consideramos justa e adequada ao caso concreto a atribuição ao A. de uma compensação global no valor de € 40 000,00 pelos danos não patrimoniais por ele sofridos, em vez de € 10 000,00 fixados na sentença recorrida.

22º- A condenação da R. no pagamento de uma indedmnização no valor de €10 000,00, a título de compensação pelos danos não patromoniais sofridos pelo autor, a título de danos corporais , afigura-se miserabilista , desadequada face aos danos que resultaram provados na audiência de julgamento .

23º - Nessa conformidade deverá o presente recurso ser considerado procedente, por o Acordão da Relação de Évora , ter violado o douto entendimento dos artigos 484 n.º 1 , 487 , 496 , 561, 562 ,564, 566, 570,633 e seguintes do Código Civil e artigo 607do Código do Processo Civil”.


8. A ré apresentou, por seu turno, contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso e pela confirmação da decisão recorrida.


9. Em 24.06.2021, o Exmo. Desembargador Relator proferiu despacho com o seguinte teor:

O acórdão alterou a sentença.

Assim, por ter legitimidade, estar em tempo e a decisão ser recorrível, admito o recurso que é de revista.

Notifique.

Depois subam os autos ao Colendo Supremo Tribunal de Justiça”.


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Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), a única questão a decidir é a de saber se o Tribunal recorrido decidiu bem ao reduzir o montante da indemnização por danos não patrimoniais para € 10.000,00.


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II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

São os seguintes os factos que vêm provados no Acórdão recorrido, depois da apreciação da decisão sobre a matéria de facto:

1. A responsabilidade civil emergente da circulação do veículo de matrícula ...-...-PA mostra-se transferida para a ré seguradora através da apólice n.º ….2348.

2. No dia 26 de abril de 2017 o autor encontrava-se em Portugal na companhia da sua esposa BB, no gozo das suas férias anuais.

3. Nesse mesmo dia, pelas 14:40 h, o autor e a sua esposa, circulavam de bicicleta, pela EN ..., no sentido .../….

4. No local por onde circulavam a EN ... é constituída por duas faixas para cada sentido de transito, com traço descontínuo entre elas.

5. Após terminar a EN ..., o autor acedeu à rotunda, passando a circular nela pela faixa da direita, no espaço assinalado na via como sendo destinado à circulação de bicicletas.

6. O que fez com intenção de aceder à EN ..., em direção a Altura que correspondia à 3.ª saída da rotunda.

7. Enquanto a sua esposa circulava alguns metros mais atrás.

8. Na rotunda, apresentava-se o sinal B1, o que obrigava a ceder a passagem a todos os veículos que ali circulassem.

9. Entretanto, pela faixa da esquerda da EN ..., no mesmo sentido de trânsito, CC conduzia o veículo ligeiro de passageiros, com a chapa de matrícula ...-...-PA.

10. O qual lhe pertence.

11. Ao entrar na rotunda, o CC passou a circular pela faixa interior da mesma.

12. O que fez com intenção de aceder à 2.ª saída da rotunda, seguindo em direção a …., pela EN ....

13. O que fez a uma velocidade certamente superior à legalmente permitida para aquele local.

14. E sem atender aos outros utentes da via, nomeadamente o autor que já aí circulava e havia percorrido mais de metade da rotunda.

15. Ao aperceber-se da presença do veículo do autor, o condutor do veículo segurado na ré efetuou manobra de travagem, deixando rastos no asfalto com 13,60 m, com início na parte interior da rotunda e terminando junto ao início da 2.ª saída da rotunda.

16. Não conseguindo evitar a colisão, ao Km 150,8, com o espelho lateral direito do seu veículo na parte frontal esquerda do veículo conduzido pelo autor.

17. Quando o autor se encontrava a 3,7 m do início da berma do seu lado direito e a 4,3 m sinal J1, direção da via de saída (.../...), perto do início da 2.ª saída da rotunda, na faixa de rodagem mais à direita da mesma rotunda.

18. Nessa sequência, o autor perdeu o controle da sua bicicleta, e foi projetado pelo ar, indo cair, desamparado, no asfalto, com incidência do ombro e anca esquerdos.

19. Em virtude do impacto da colisão o espelho lateral do veículo seguro na ré se soltou.

20. O condutor da viatura segurada praticou todos os atos descritos supra de modo livre e conscientemente, bem sabendo da sua ilicitude, o que não o impediu de praticar esses factos.

21. O autor teve de ser transportado de ambulância para o hospital, primeiro o de ..., sendo posteriormente transferido dali para o Hospital ... (acordo).

22. Neste hospital foi-lhe diagnosticada uma fratura (fechada) da clavícula esquerda.

23. O tratamento no Hospital ... prolongou-se do dia 26.04.2017 até à noite do mesmo dia 26.04.2017.

24. Na sequência do sinistro, o autor viu as suas férias em Portugal serem interrompidas.

25. Regressando logo que foi possível à Alemanha com a sua companheira, a BB.

26. Onde a partir de 15.05.2017 prosseguiu o tratamento dos ferimentos sofridos, na Orthopaedicum ... (Clínica da Ortopedia) em ..., Alemanha, onde lhe foram diagnosticados:

- fratura da clavícula esquerda;

- fratura da 7. costela esquerda, com contusão do tórax; - contusão da coluna vertebral; e,

- hematoma no flanco esquerdo.

27. O tratamento posterior esteve a cargo do médico Dr. DD.

28. Segundo o seu atestado médico datado de 07.08.2017 o Dr. DD tratou o Autor nas seguintes datas: 15.05.2017, 06.06.2017, 21.07.2017, de 24.07. – 07.08.2017 diariamente, a 08.08.2017 e a 16.11.2017.

29. Na sequência do sinistro, por causa das lesões sofridas e pelo período de 2 (dois) meses, o autor ficou limitado no exercício das suas tarefas diárias e de exercer as suas atividades desportivas, como andar de bicicleta, nadar ou jogar futebol;

30. Com restrições de movimento do ombro.

31. E dificuldades em levantar ou carregar pesos e dores.

32. Em consequência das suas lesões, decorrentes do sinistro em causa, o autor ficará a padecer de um encurtamento de 3 cm do ombro esquerdo e artrose na articulação do ombro e desenvolvimento de pseudoartrose.

33. Em virtude dessas sequelas o autor ficará a padecer de dificuldade em levantar pesos.

34. E, ocasionalmente, dores e sensibilidade na zona da lesão.

35. Como consequência da lesão, o autor teve de suportar os seguintes custos emergentes do sinistro em causa:

a) custo do relatório do Dr. DD de 23.06.2017, no valor de € 47,22 (quarenta e sete euros e vinte e dois cêntimos);

b) custo do relatório do Dr. DD de 09.02.2018, no valor de € 30,00 (trinta euros);

c) custo da participação de acidente da GNR, no valor de € 67,31 (sessenta e sete euros e trinta e um cêntimo).

36. Através de firma de advogados, o autor enviou missiva à ré, datada de 27 de junho de 2018, peticionando uma indemnização no valor total de € 9 944,53 (nove mil, novecentos e quarenta e quatro euros e cinquenta e três cêntimos), fixando um prazo para o efeito até 15 de julho de 2018.

37. Em resposta, a ré declinou assumir qualquer responsabilidade do seu segurado pelo sinistro.


O DIREITO

Como se viu atrás, o presente recurso suscita apenas uma questão: a do quantum indemnizatório por danos não patrimoniais.

Como também se viu atrás, o Tribunal de 1.ª instância ficou esta indemnização em € 15.000,00.

Apreciando o recurso de apelação da ré seguradora, e depois de analisar e reproduzir vários casos decididos na jurisprudência, o Tribunal recorrido reduziu o valor desta indemnização para € 10.000,00.

A fundamentação em que o Tribunal recorrido baseou a sua fundamentação foi, no essencial, a seguinte:

Não podemos deixar de concordar com a R..

Em todos os casos citados, os danos são bem maiores que os sofridos pelo A. no acidente que aqui se discute. Estamos a falar de perda de consciência, cefaleia frontal, dor no joelho esquerdo e estiramento cervical; sujeição a internamentos hospitalares com exames médicos, dificuldades de flexão e extensão da coluna e rigidez do ombro esquerdo com abdução a 90º, cerca de um mês impedido de fazer a sua vida diária e profissional; internamentos sucessivos, etc., etc..

Em nenhum destes casos foi fixada uma indemnização de montante superior a €10.000,00.

Tudo isto é bem diferente do que se passa no nosso caso. Escreve a R. a este propósito:

«O Autor tem actualmente sessenta e sete anos de idade (e, portanto, à data do acidente, tinha sessenta e quatro anos).

«O Autor é reformado e já o era à data do acidente.

«O acidente não implicou qualquer período de internamento do Autor, pois o Autor teve alta médica no próprio dia do acidente.

«As lesões do Autor não implicaram também que este ficasse totalmente dependente da ajuda de terceiros (cf. alínea d) dos factos não provados).

«O Autor sempre conseguiu tomar duche e fazer sozinho a sua higiene diária, sem necessidade de ajuda de terceiros.

«O Autor apenas precisou de ajuda para se vestir e despir nos primeiros dez dias.

«O Autor não precisou de fazer qualquer medicação especial.

«O Autor não foi submetido a qualquer intervenção cirúrgica.

«O Autor, conforme referiu em sede de declarações de parte, cerca de duas semanas após o acidente, conseguiu conduzir a sua caravana, durante sete dias, na viagem de regresso à Alemanha (não obstante alegar dores fortíssimas).

«O único dano permanente que resultou do acidente para o Autor foi o encurtamento de três centímetros do ombro esquerdo e artrose na articulação do ombro e desenvolvimento de pseudoartrose.

«A única consequência adveniente dos referidos danos permanentes é a dificuldade do Autor em levantar pesos e, ocasionalmente, dores e sensibilidade na zona da lesão».

Resumindo, o A. sofreu um dia no hospital, no serviço de urgência; pelo período de 2 meses, autor ficou limitado no exercício das suas tarefas diárias e de exercer as suas atividades desportivas, como andar de bicicleta, nadar ou jogar futebol, com restrições de movimento do ombro e dificuldades em levantar ou carregar pesos e dores. Em consequência das suas lesões, decorrentes do sinistro em causa, o autor ficará a padecer de um encurtamento de 3 cm do ombro esquerdo e artrose na articulação do ombro e desenvolvimento de pseudoartrose. Por causa disto o autor ficará a padecer de dificuldade em levantar pesos. E, ocasionalmente, dores e sensibilidade na zona da lesão.

Ponderados os diversos casos (incluindo o nosso), e uma vez que foram eles que fundamentaram a decisão recorrida, temos de perguntar: como se pode fixar uma indemnização de €15.000,00 por danos morais ao A.? É notório que as suas lesões e os seus padecimentos são francamente inferiores aos sofridos pelas vítimas dos acidentes descritos naqueles acórdãos.

Podemos afirmar, para que não haja lugar a dúvidas, que não há qualquer semelhança, ao nível dos danos, entre o nosso caso e os outros.

Por isso, também não temos dúvidas em afirmar que a indemnização deve ser fixada em montante inferior (o que vale dizer que o A. não tem nenhuma razão no seu recurso subordinado).


*


A R. invoca o art.º 8.º, n.º 3, Cód. Civil, (nos termos do qual, o «julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito») para afirmar que é «por demais evidente que, em obediência ao disposto no artigo 8.º, n.º 3 do CC, ao caso vertente deveria ter sido arbitrada uma indemnização substancialmente inferior à que foi arbitrada pelo Tribunal da Relação de Évora no acórdão acima citado».

Não é bem assim.

Admitimos sem esforço (o que resulta já do que antecede) que, perante o conjunto de casos que o tribunal recorrido teve presente para a decisão, o valor da indemnização não é coerente com os ditos casos. Seguindo-se a valoração tomada sobre cada um deles, nunca o resultado seria o que foi. Mas isto só quer dizer que o valor achado está errado no âmbito dos casos apontados e tomando estes como referências vinculativas. Mas nada impede que os €15.000,00 sejam a indemnização justa, a devida. Com efeito, levar o argumento da R. até às últimas consequências (com o objectivo «de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito») implica um esvaziar da independência do juiz, de cada juiz. As orientações jurisprudenciais sobre determinadas matérias não impedem que outros tribunais (ou até o mesmo tribunal) tomem decisão diferente em casos análogos (cfr. Oliveira Ascensão, O Direito Introdução e Teoria Geral, 10.ª ed, Almedina, Coimbra, 1997, pp. 311-313) nem impede que um juiz, nem que seja só um, também tome uma decisão discordante da orientação jurisprudencial dominante, sob pena de a sua independência decisória ser gravemente coartada (veja-se o exemplo descrito por Castro Mendes em «Nótula sobre o artigo 208.º da Constituição Independência dos juízes», in Estudos Sobre a Constituição, vol. III, Liv. Petrony, Lisboa, 1979, p. 658).

E se isto é assim para questões de ordem geral, por maioria de razão será para decisões concretíssimas como são as que aqui tratamos. O facto de ter sido arbitrada uma indemnização de 100 num caso não proíbe que seja arbitrada uma indemnização de 150 num caso de menor gravidade. Os valores arbitrados não são vinculantes e não impedem que um tribunal fixe um valor superior àqueles. Não há tabelas nesta matéria.

Ponto é que haja um mínimo de compatibilidade entre os critérios e valores habituais na jurisprudência e os novos casos que vão surgindo. Daí que entendamos que, perante o dano objectivamente apresentado pelo A., o valor indemnizatório fixado na sentença recorrida nos pareça superior ao devido.

Optamos por o reduzir mas não em termos proporcionais (os tais critérios «quase matemáticos») em relação aos fixados noutras situações. Acrescentamos apenas que não podemos deixar de ter em conta que o acidente se deu num país estrangeiro, onde o A. estava a passar férias, o que causa sempre uma sensação de insegurança — o que, por si só, também é um dano.

Assim, parece-nos justo o valor de €10.000,00”.

O autor / recorrente vem alegar, em síntese, que a indemnização fixada é meramente simbólica e até miserabilista (cfr., sobretudo, conclusões 7.ª, 17.ª e 22.ª).

Que dizer?

Antes de mais, esclarece-se que, ao contrário do que parece resultar das alegações do recorrente, não está – nunca esteve – em questão a compensabilidade dos danos não patrimoniais sofridos pelo autor / recorrente.

Por um lado, é sabido que a única condição da compensabilidade dos danos não patrimoniais é a sua gravidade (cfr. artigo 496.º, n.º 1, do CC).  Por outro lado, é sabido que os danos não patrimoniais têm sempre um carácter algo indeterminado e são de difícil quantificação. Está em causa, não propriamente, o seu ressarcimento, visto que, por sua natureza, são insusceptíveis de avaliação económica, mas um “esforço de compensação”. Quer dizer: a função da indemnização nestes casos traduz-se em facultar ao lesado uma compensação pelo sofrimento, angústia ou incómodos relevantes que suportou em consequência do facto produtor dos danos.

Os factos constantes da decisão sobre a matéria de facto, tal como definida pelo Tribunal a quo, e convocados em sede de fundamentação do Acórdão recorrido são, de facto, ilustrativos quanto aos danos não patrimoniais sofridos pelo autor / recorrente – quer dizer: sobre a existência de danos não patrimoniais graves mas também, bem-entendido, sobre a sua (de)limitação.

Quanto à quantificação destes danos, pela razão apontada antes (o carácter indeterminado destes danos), deve salientar-se que é sempre votada ao fracasso a tentativa de apurar o quantum compensatório com base em factores aparentemente objectivos, devendo reconhecer-se ao julgador margem para valorar segundo critérios subjectivos (na perspectiva do lesado), isto é, “à luz de factores atinentes à especial sensibilidade do lesado como a doença, a idade, a maior vulnerabilidade ou fragilidade emocionais[1].

Como se afirmou em anteriores Acórdãos deste Supremo Tribunal, a equidade é, assim, neste âmbito, o mais imediato recurso do julgador[2], ainda que não descurando as circunstâncias que a lei manda considerar (cfr. artigo 496.º, n.º 4, do CC)[3]. Não pode, de facto, perder-se de vista que a equidade só pode funcionar dentro dos limites da factualidade provada – a equidade é a justiça do caso concreto[4].

Mas existem outros apoios, a que em boa hora o Tribunal a quo recorreu para melhor se orientar. Repare-se que no Acórdão recorrido são convocadas e referidas diversas decisões jurisprudenciais, que foram analisadas e ponderadas pelo Tribunal a quo para a fixação da indemnização.

Este é, sem dúvida, o percurso a adoptar – um percurso que se apoia no estudo comparativo, em que simultaneamente se concitam e se confrontam os casos análogos da jurisprudência e se encontra neles orientação. Só este percurso assegura a realização do princípio da igualdade, que dever ser uma preocupação partilhada por todos os tribunais, servindo o propósito plasmado no artigo 8.º, n.º 3, do CC, da uniformidade na interpretação e na aplicação do Direito.

É, em síntese, incontestável que o Tribunal recorrido não procedeu em nenhum momento discricionária ou acriteriosamente. Observou as regras de Direito aplicáveis e, tornando-se necessário o recurso à equidade, alicerçou a sua decisão em critérios razoáveis, tendo ainda em consideração elementos de referência coligidos na jurisprudência.

Confirme-se esta conclusão lendo um dos excertos mais relevantes do Acórdão recorrido:

Resumindo, o A. sofreu um dia no hospital, no serviço de urgência; pelo período de 2 meses, autor ficou limitado no exercício das suas tarefas diárias e de exercer as suas atividades desportivas, como andar de bicicleta, nadar ou jogar futebol, com restrições de movimento do ombro e dificuldades em levantar ou carregar pesos e dores. Em consequência das suas lesões, decorrentes do sinistro em causa, o autor ficará a padecer de um encurtamento de 3 cm do ombro esquerdo e artrose na articulação do ombro e desenvolvimento de pseudoartrose. Por causa disto o autor ficará a padecer de dificuldade em levantar pesos. E, ocasionalmente, dores e sensibilidade na zona da lesão.

Ponderados os diversos casos (incluindo o nosso), e uma vez que foram eles que fundamentaram a decisão recorrida, temos de perguntar: como se pode fixar uma indemnização de €15.000,00 por danos morais ao A.? É notório que as suas lesões e os seus padecimentos são francamente inferiores aos sofridos pelas vítimas dos acidentes descritos naqueles acórdãos.

Podemos afirmar, para que não haja lugar a dúvidas, que não há qualquer semelhança, ao nível dos danos, entre o nosso caso e os outros.

Por isso, também não temos dúvidas em afirmar que a indemnização deve ser fixada em montante inferior (o que vale dizer que o A. não tem nenhuma razão no seu recurso subordinado)”.

O Tribunal recorrido dá, em suma, particular importância aos factos provados 23 e 29 a 34. Sendo certo que os factos 32 a 34 (relacionados com o encurtamento do ombro, a dificuldade de levantamento de pesos e as dores pontuais de que o lesado padecerá no futuro) indiquem a existência de danos futuros, logo, de danos a ponderar para o valor da indemnização, o valor que foi encontrado com apoio nas circunstâncias relevantes do caso e aplicando os critérios devidos (o disposto na lei e as orientações da jurisprudência) não é – não pode dizer-se que seja – desadequado ou injusto.

Verificado isto, conclui-se que não existem razões para alterar o valor da indemnização.


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III. DECISÃO


Pelo exposto, nega-se provimento à revista e confirma-se o Acórdão recorrido.


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Custas pelo recorrente.

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Catarina Serra (relatora)

Rijo Ferreira

Cura Mariano

Nos termos do artigo 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13.03, aditado pelo DL n.º 20/2020, de 1.05, declaro que o presente Acórdão tem o voto de conformidade dos restantes Exmos. Senhores Juízes Conselheiros que compõem este Colectivo.

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[1] Cfr. Maria Manuel Veloso, “Danos não patrimoniais”, in: Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da reforma de 1977, volume III – Direito das Obrigações, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p. 506.
[2] Sobre o que é a equidade “não há resposta fácil nem unívoca”, mas parece poder dizer-se que a decisão segundo a equidade (…) pode conferir peso a quaisquer argumentos sem se preocupar com a sua autoridade e relevância face às aludidas fontes (do sistema). É campo ilimitado do 'material', do 'razoável', do 'justo', do 'natural'”. Cfr. Manuel A. Carneiro da Frada, “A equidade ou a 'justiça com coração' – A propósito da decisão arbitral segundo a equidade”, in: Forjar o Direito, Coimbra, Almedina, 2015, p. 656 e pp. 675-676 (interpolação nossa).
[3] Cfr., entre outros, o Acórdão de 23.04.2020, Proc. 5/17.2T8VFR.P1.S1 (relatado pela presente Relatora).
[4] Segundo A. Castanheira Neves (Curso de Introdução ao Estudo do Direito, Coimbra, Faculdade de Direito de Coimbra, 1971-1972, p. 244), “[a] 'equidade sempre pretendeu traduzir um juízo normativo de referência individual-concreta – que atenda às 'circunstâncias do caso' (…), é, sim, instrumento da concreta realização do direito