Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1/09.3YGLSB.S2
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: OLIVEIRA MENDES
Descritores: DIFAMAÇÃO
DENÚNCIA CALUNIOSA
QUEIXA
DIREITO A HONRA
CAUSAS DE EXCLUSÃO DA ILICITUDE
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
ANALOGIA
DOLO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 04/21/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: ÚNICA INSTÂNCIA
Decisão: IMPROCEDÊNCIA/NÃO DECRETAMENTO
Doutrina: - Giuseppe Bettiol, Instituições de Direito e Processo Penal (tradução de Costa Andrade, 1974), 137/141.
Legislação Nacional: -CÓDIGO DE PROCESSO PENAL : - ARTIGO 367.º N.ºS 1 E 2.
- CÓDIGO PENAL : - ARTIGOS ARTIGO 31º, N.ºS 1 E 2, ALÍNEA B), E 365.º, N.º1.
- CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA : - ARTIGO 20º.

Jurisprudência Nacional: - ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, DE 08.11.18 E 08.12.18, PROFERIDOS NOS PROCESSOS N.ºS 08B3227 E 08A2680.
Sumário :

I - Toda a participação ou queixa criminal contém, em regra, objectivamente, uma ofensa à honra, por comunicar a prática de factos configuradores de um comportamento criminoso. A denúncia de um crime, quando identificado o seu autor ou o suspeito de o ter cometido, objectivamente, atinge a honra do denunciado. Apesar disso, é evidente que ninguém pode ser impedido de participar um facto delituoso.
II - Ao direito à honra do denunciado contrapõe-se o direito à denúncia como via necessária de acesso à justiça e aos tribunais para defesa dos interesses legalmente protegidos do denunciante, direito constitucionalmente consagrado – art. 20.º da CRP. Num Estado de direito é impensável, pois, impedir quem quer que seja de participar um facto delituoso, com a justificação de que em consequência da participação ir-se-á lesar a honra do participado.
III -A lei substantiva penal prevê expressamente, aliás, situações em que a lesão de um determinado bem ou interesse penalmente tutelado é considerada, em concreto, lícita. São os casos previstos pelas normas que regulam as causas de justificação. Quando alguém tem de agir numa das situações tipicizadas nessas causas de justificação não comete crime, por não ser considerada ilícita a lesão do bem ou interesse em causa, dado que o legislador, apreciando a situação de conflito, indicou um interesse como prevalente, cuja tutela quer ver salvaguardada. Só assim se pode encontrar uma solução para as hipóteses de conflito e simultaneamente dar realização a uma exigência de justiça. Há uma ideia, a ideia de proporção entre os interesses em conflito, que paira e domina sobre as normas que disciplinam as causas de justificação. O legislador entende que os interesses em conflito devem ser ponderados entre si, já que a desproporção ou as soluções por ela ditadas repugnam à própria essência do direito, que é proportio hominis ad hominem e, portanto, justiça nas relações intersubjectivas.
IV -Daí que as causas de justificação expressamente previstas possam e devam estender-se, por aplicação analógica ou apelando para um princípio geral de direito. É que as normas penais não estão sob a alçada do princípio da proibição da aplicação por analogia legis ou por analogia juris, na medida em que não são normas restritivas da liberdade como as normas incriminatórias, nem são normas excepcionais. Elas gravitam em torno da ideia de que, em caso de conflito de interesses, um deles deve sempre prevalecer, pois seria absurdo consentir no sacrifício de ambos.
V -Trata-se evidentemente do princípio da ponderação de interesses, o qual se acha sempre subjacente a todas as situações de conflito, constituindo o fundamento último da justificação do facto.
VI -Ora, como o STJ vem decidindo, o direito de denúncia prevalece sobre o direito à honra, visto que como garantia de estabilidade, da segurança e da paz social no Estado de direito deve assegurar-se ao cidadão a possibilidade quase irrestrita de denunciar factos que entende criminosos. “Quase irrestrita” por a limitação maior consistir em a denúncia não ser feita dolosamente (com a consciência da sua falsidade) e do teor dos seus termos, os quais devem limitar-se à narração dos factos, sem emissão de quaisquer juízos de valor ou lançamento de epítetos sobre o denunciado.
VII - No caso dos autos inexiste prova indiciária de que o arguido agiu com consciência da falsidade das imputações constantes da participação que apresentou contra a assistente e das declarações que prestou no âmbito do respectivo inquérito criminal. Por outro lado, o texto da participação e o conteúdo das declarações prestadas não contêm asserções nem juízos de valor desnecessários ou desproporcionados.
VIII - Nesta conformidade, impõe-se concluir que, quer a denúncia apresentada quer as declarações prestadas pelo arguido, conquanto objectivamente lesivas da honra e consideração da assistente, se devem ter por justificadas nos termos do art. 31.º, n.ºs 1 e 2, al. b), do CP.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
Em processo de instrução que correu termos neste Supremo Tribunal de Justiça, no qual figura como arguido AA, juiz desembargador, e como assistente BB, advogada, após a realização de debate foi proferida decisão de não pronúncia.
Interpôs recurso a assistente, o qual foi rejeitado, através de decisão sumária, por manifesta improcedência.
Desta decisão reclama a assistente para a conferência, pugnando pela pronúncia do arguido como autor material, em concurso real, de um crime de denúncia caluniosa e de um crime de difamação agravada.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

É do seguinte teor a decisão sumária reclamada:
«A recorrente BB entende haverem sido carreados para o processo elementos probatórios que indiciam suficientemente ter o arguido AA cometido um crime de denúncia caluniosa e um crime de difamação agravada, previstos e puníveis, o primeiro pelo artigo 365º, n.º 1, o segundo pelos artigos 180º, n.º 1, 183º e 184º, do Código Penal.
Na base do comportamento do arguido considerado delituoso pela assistente, encontra-se participação criminal apresentada pelo arguido contra a assistente em 29 de Abril de 2008 e declarações prestadas pelo arguido no âmbito do consequente inquérito em 24 de Setembro de 2008.
Sucede, porém, como se referiu na decisão impugnada, que o crime de denúncia caluniosa tem por elemento constitutivo a consciência por parte do agente da falsidade da imputação - É (1)».. No entanto, a verdade é que é inquestionável não se mostrar indiciariamente provado que o arguido ao queixar-se criminalmente contra a assistente e ao prestar declarações no inquérito resultante da queixa se haja comportado com consciência da falsidade das imputações ali feitas à assistente.
No que concerne ao crime de difamação agravada é patente que, conquanto algumas das expressões utilizadas pelo arguido na participação que apresentou contra a assistente e nas declarações prestadas no âmbito do subsequente inquérito sejam ofensivas da honra e consideração da assistente, a verdade é que foram produzidas no exercício de um direito, posto que no âmbito de uma participação criminal e declarações prestadas no respectivo inquérito, não se podendo considerar desnecessárias ou desproporcionadas, razão pela qual se devem ter por justificadas nos termos do artigo 31º, n.ºs 1 e 2, alínea b), do Código Penal -(2)»..
Termos em que se rejeita o recurso».

Em extenso articulado, sob a alegação de que no decurso do inquérito realizado resultaram indícios suficientes de que o arguido AA ao apresentar contra si queixa criminal, lançou sobre a sua pessoa, publicamente e perante autoridade, a suspeita da prática de crimes, para o que lhe imputou factos cuja falsidade e falta de fundamento plenamente conhecia, com intenção de que fosse instaurado, como foi, procedimento criminal, a assistente BB entende que aquele praticou o crime de denúncia caluniosa, previsto e punível pelo artigo 365º, n.º 1, do Código Penal.
Mais entende que o arguido AA, de acordo com os elementos probatórios recolhidos no inquérito, ao difundir publicamente, perante autoridade, expressões e acusações ofensivas, dirigidas directamente à sua pessoa, cuja falsidade e falta de fundamento plenamente conhecia, com o propósito conseguido, de denegrir a sua imagem enquanto cidadã e advogada, ofendendo-a seriamente na sua honra e na sua consideração, também praticou um crime de difamação agravada, previsto e punível pelos artigos 180º, n.º 1, 183º e 184º, do Código Penal, razão pela qual se devem ter por justificadas nos termos do artigo 31º, n.ºs 1 e 2, alínea b), do Código Penal».
- (3)
.
Como se consignou na decisão instrutória, a assistente imputa ao arguido a autoria de um crime de denúncia caluniosa, com o fundamento de que este na queixa-crime que contra si apresentou e nas declarações que no respectivo inquérito prestou, com consciência da sua falsidade, produziu as seguintes afirmações:
«… sem qualquer pudor, deturpou a realidade dos factos, chegando mesmo a fazer uma transcrição infiel do conteúdo dos registos magnéticos, com clara intenção de que contra o participante fosse instaurado procedimento disciplinar;
… cujos termos (aludindo a queixas apresentadas pela assistente ao Presidente da República e junto do TEDH) são fruto de representações falsas da realidade, ardilosamente construídas e veiculadas pela denunciada;
Mas que foi essa a sua intenção disso não há dúvida. Daí que tenha recorrido despudoradamente a falsidades, apelidando-me com base nelas de prepotente, preconceituoso, ditatorial e xenófobo. Tais afirmações constituem uma calúnia, que a denunciada não teve pejo em difundir perante outras instâncias, até supranacionais, como é o caso do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.
… faltou deliberadamente à verdade;
… citada truncagem, porque a mesma estriba (…) acusação gratuita é certo (…) propagandeada, visando ardilosamente a condenação do Estado Português e necessariamente a calúnia sobre o depoente;
expressão falsamente imputada ao depoente;
A denunciada porém tem continuado a difamar o depoente. A partir do dia 25 de Julho de 2008, tendo ela conhecimento já da decisão do Tribunal Europeu, promoveu contactos com imprensa, como a Agência Lusa e outros jornais diários de grande expansão, como o Público e o Diário de Notícias, jornais de que se juntam cópias, nos quais, em vez de informar a verdadeira razão da condenação do Estado Português, vem mais uma vez difamar o tribunal de primeira instância, dizendo que não houve tradução, não houve defesa e não houve equidade e imparcialidade da primeira instância. De igual forma, contactou as televisões SIC, SIC Notícias e RTP que, nos noticiários do dia 25, mostraram imagens do julgamento, no qual o depoente teve o cuidado de expressamente solicitar aos operadores de câmara que não filmassem a cara dos arguidos, mas imagens em que aparece em segundo plano, mas claramente, a cara dos elementos que integraram o colectivo. Ora, uma série de jornais do dia 26, cujas cópias se juntam, divulgaram a falsa versão da condenação do Estado Português e do depoente que, com intermitências, vive há 24 anos na cidade de Braga, foi reconhecido e perguntado sobre o que tinha sucedido, por pessoas das suas relações, bem como por profissionais do foro.
A denunciada não podia deixar de figurar no seu espírito que estas consequências seriam inevitáveis;
… a denunciada fala sempre sobre o depoente, caluniando-o, em registo sozinha e sem contraditório;
… aquele meio de prova serve para acusar o depoente sem contraditório (que a denunciada preza por palavras e não por actos)».
Sucede, porém, como foi considerado, quer na decisão instrutória quer na decisão sumária ora reclamada, não se mostrar indiciariamente provado, que o arguido AA, ao participar criminalmente aqueles factos, se tenha comportado com consciência da falsidade das imputações feitas, elemento constitutivo do crime de denúncia caluniosa.
Com efeito, como se exarou na decisão instrutória:
«Na queixa-crime o Dr. AA afirmou que a ora assistente “deturpou a realidade dos factos, chegado mesmo a fazer uma transcrição infiel do conteúdo dos registos magnéticos, com clara intenção de que contra o participante fosse instaurado procedimento disciplinar” e que os termos em que ela configurou queixas visando a sua actuação como presidente do tribunal colectivo que procedeu ao julgamento do processo-crime n.º 1 106/02.7PBBGR da Vara Mista de Braga, no qual eram arguidos dois cidadãos de nacionalidade ucraniana, um dos quais constituinte da Dr.ª BB “são fruto de representações falsas da realidade, ardilosamente construídas e veiculadas pela denunciada” tendo recorrido a “falsidades”, com intenção de lhe atribuir “motivação xenófoba” e apelidando-o mesmo de “prepotente, preconceituoso, ditatorial e xenófobo”.
A deturpação da realidade, concretizada em registo infiel do conteúdo das gravações, estaria, para o ora arguido, como melhor resulta das posteriores declarações que prestou no inquérito, desde logo, no facto de a assistente, tanto em queixa ao Presidente da República como em queixa apresentada junto do TEDH, ter afirmado que, o arguido, afirmara: “estes ucranianos apanham para aí uns 20 anos pelo menos”, acrescentando que essa frase resultava dos registos magnéticos.
O senhor desembargador, ora arguido, nega ter feito a afirmação que lhe é atribuída. Aceita ter feito outra, em resposta a uma observação de outro elemento do colectivo, do seguinte teor: “para mim também são 20 anos”. A diferença entre uma e outra é grande, porque é no pretenso uso da expressão “estes ucranianos” que a assistente vê uma manifestação de xenofobia. E está longe de se poder considerar indiciado sequer que a frase proferida foi a transcrita pela assistente nas referidas queixas. E muito menos que ela conste dos registos magnéticos, pois tanto o senhor juiz conselheiro que dirigiu o inquérito no âmbito do CSM como a decisão do TEDH afirmam que, depois de ouvidos os registos magnéticos, não se pode concluir que o Dr. AA proferiu a primeira frase. Está, assim, de pé a possibilidade de essa frase não haver sido proferida e, consequentemente, de o ora arguido estar convencido de que a não proferiu. E se assim é, não existe o mínimo fundamento para sustentar a conclusão de que ele, quando afirmou que a assistente deturpou a realidade, chegando a fazer uma transcrição infiel dos registos magnéticos, tinha consciência de que afirmava uma falsidade.
E, aceitando-se que o aqui arguido apenas proferiu a frase que ele próprio admitiu, torna-se evidente não se poder concluir, em sede de indícios, que ele tinha consciência de que era falsa a imputação por ele feita à assistente de que, ao colocar na frase a expressão “este ucranianos”, quis-lhe atribuir uma motivação xenófoba.
Aliás, era até legítima a convicção do arguido de que a motivação do assistente era essa, não só por este dado, mas também porque ela, na queixa ao Presidente da República, a propósito de uma determinada expressão constante do acórdão final de 1ª instância, relatado pelo ora arguido, a ter apelidado de conclusão xenófoba.
Quanto à intenção da assistente de que fosse exercido procedimento disciplinar contra o arguido, ela está patente na seguinte afirmação feita em queixa por ela apresentada ao Presidente da República: “parece-nos tornar-se agora inevitável (…) a apresentação de queixa junto do Conselho Superior da Magistratura contra o senhor juiz do tribunal colectivo de Braga que presidiu ao julgamento».
As falsidades a que o ora arguido se refere na sua queixa estão nas afirmações feitas em queixas ao Presidente da República e junto do TEDH de que ele assumiu no julgamento uma atitude prepotente, preconceituosa, arrepiante e ditatorial e proferiu a expressão “estes ucranianos apanham para aí uns 20 anos pelo menos”.
Já vimos não se poder concluir pela existência de indícios de que o ora arguido tinha consciência de estar a fazer uma imputação falsa à assistente no que se refere à referida frase.
E ele tinha razões para pensar que a assistente naquelas queixas lhe atribuiu “uma atitude prepotente, preconceituosa, arrepiante e ditatorial”.
Na verdade, nas queixas apresentadas ao Presidente da República, a assistente adjectiva de “prepotente” a forma como o processo se desenvolveu (fls.42), fala de um “caso gravíssimo de violação ditatorial” dos direitos humanos (fls.43), de um julgamento arrepiante (fls.39). Na mesma linha, na queixa junto do TEDH, a assistente, referindo-se à audiência de julgamento, presidida pelo aqui arguido, fala de “demonstração arrepiante de prepotência, parcialidade e indiferença para com os direitos e garantias de defesa”, em “linchamento” (fls.58), apelida o julgamento de “palco de ilegalidades e afrontas à dignidade” dos arguidos, “numa sala repleta de gente que, sem distinção dos senhores juízes, já os tinha condenado” (fls.62 v.º), diz que havia “predisposição para condenar” e que os arguidos eram “culpados e condenados antes do julgamento começar” (fls.63 e 67) e refere “invectivas do senhor juiz contra os arguidos, numa atitude inadmissível ditadura judicial” (fls.68 v.º).
E o arguido, na qualidade de juiz que presidira ao tribunal colectivo que realizou o julgamento no identificado processo da Vara Mista de Braga, era expressamente visado nessas queixas, como logo se vê do facto de a requerente, na queixa ao Presidente da República, ter afirmado a inevitabilidade da apresentação de queixa ao CSM “contra o senhor juiz do tribunal colectivo de Braga que presidiu ao julgamento” (fls.44) e transcrito, na queixa junto do TEDH, expressões que teriam sido proferidas pelo ora arguido, enquanto presidia ao colectivo, pretendendo com elas demonstrar que eram fundadas as críticas que expressava.
E era seu direito pensar que as suas atitudes não podiam ser classificadas dessa forma e que, consequentemente, a aqui assistente faltava, conscientemente, à verdade quando assim procedia.
Logo, não se pode concluir, a nível indiciário, que o arguido, ao afirmar na sua queixa-crime que a ora assistente lhe imputou falsa e conscientemente aquelas atitudes, tinha a consciência de que estava a fazer uma falsa imputação à requerente.
As declarações prestadas, em 24/09/2008, pelo ora arguido no inquérito criminal instaurado não podem ser vistas de modo diferente, pois no essencial são reafirmação da queixa-crime.
O que nelas há de novo é a referência à atitude da assistente perante órgãos de comunicação social.
A assistente diz ser falso que tenha dado entrevistas, designadamente a “televisões”.
O que o arguido disse foi que a assistente promoveu contactos com órgãos de comunicação social, nomeadamente canais de televisão, continuando a difamá-lo, bem como ao tribunal de 1ª instância, nos contactos que teve com os jornais. E juntou ao processo cópias de escritos publicados em vários jornais, onde se comentava a decisão do TEDH sobre a queixa apresentada pela assistente. E em alguns deles transcrevem-se, entre aspas, declarações atribuídas à assistente, como é o caso do artigo publicado no Correio do Minho de 26/07/2008, onde é atribuída à assistente, entre outras, a afirmação seguinte: “se se tivesse dado hipóteses de defesa ao rapaz, talvez a decisão do tribunal colectivo fosse outra”, acrescentando o jornalista que essa afirmação aludia “aludia à intervenção dos juízes de Braga” (fls.262). Também em artigo publicado no Diário do Minho do mesmo dia se atribuem à assistente várias afirmações sobre a matéria, entre as quais as seguintes: “Como não se pôde defender, não se sabe se era culpado ou inocente”; “não teve direito de defesa” (fls.268). E neste último jornal, em escrito de 15/08/2008, transcrevem-se várias das observações que o juiz que presidiu ao tribunal colectivo no mencionado processo da Vara Mista de Braga teria feito dirigindo-se ao constituinte da assistente e por ela especificadas e criticadas na queixa apresentada junto do TEDH.
Independentemente de saber se foi a assistente ou não que contactou este jornais, o que é irrelevante nesta sede, visto não haver lugar a procedimento criminal ou de outra natureza por esse facto em si mesmo, não é ilógico que o ora arguido se tenha convencido de que a assistente fez as referidas afirmações a jornalistas daqueles periódicos. E nada permite concluir que o ora arguido não estivesse convencido, bem ou mal, de que essas afirmações eram difamatórias. Vale tudo por dizer que não há quaisquer indícios de que o denunciado, ao fazer as ditas declarações, tinha consciência de que fazia uma imputação falsa à assistente.
Não é correcto dizer-se, como faz a assistente, que em nenhum dos escritos sobre a matéria, designadamente nos recolhidos pelo arguido, se faz alusão à sua pessoa. Fala-se no colectivo que julgou o constituinte da assistente e mesmo no presidente desse colectivo (fls.270), que era, como já sabemos o Dr. AA.
Nas declarações prestadas no inquérito, o aqui arguido atribuiu à assistente a prática de crime de violação de segredo de justiça, com referência ao art. 367º, n.º 2, do CPP, com intenção de que se exercesse contra ela o respectivo procedimento.
Na perspectiva do aqui arguido, haveria violação do segredo de justiça, pela via da violação do segredo de deliberação, porque a assistente divulgou uma frase que, em parte, fora por ele proferida, mas já no âmbito da deliberação a que se referem os arts. 365º e seguintes do código citado. Importa pouco saber qual a interpretação que deve ser feita da norma do n.º 1 daquele art. 367º, designadamente se o crime de violação do segredo de deliberação só pode ser cometido por aqueles que participam no acto. Mesmo que essa seja a única interpretação possível, o arguido, ao imputar a prática desse crime à assistente por divulgar algo que, no entender dele, se passou durante a deliberação, pode tê-lo feito no convencimento de que o crime pode ser praticado por quem, embora não participando no acto, toma conhecimento do que ali se passou. Até porque fez a imputação durante uma inquirição, num momento em que possivelmente nem teria ao seu dispor o texto legal. De qualquer modo, tratando-se de um elemento típico, o ora arguido nunca poderia ter a pretensão de que fosse exercido procedimento por um facto que quem tinha de decidir logo veria que não preenchia o crime que se tinha em vista. Quer isto dizer que, em sede de indícios, não se pode concluir que o ora arguido, ao imputar este crime à assistente, agiu com consciência da falsidade da imputação.
Conclui-se, pois, pela inexistência de indícios suficientes de que o juiz desembargador, Dr. AA, aqui arguido, praticou o crime de denúncia caluniosa».
Relativamente ao crime de difamação agravada começar-se-á por assinalar que toda a participação ou queixa criminal contém, em regra, objectivamente, uma ofensa à honra, por comunicar a prática de factos configuradores de um comportamento criminoso. A denúncia de um crime, quando identificado o seu autor ou o suspeito de o ter cometido, obviamente que, objectivamente, atinge a honra do denunciado.
Apesar disso, é evidente que ninguém pode ser impedido de participar um facto delituoso - (4)..
Ao direito à honra do denunciado contrapõe-se o direito à denúncia como via necessária de acesso à justiça e aos tribunais para defesa dos interesses legalmente protegidos do denunciante, direito constitucionalmente consagrado – artigo 20º, da Constituição da República.
Num Estado de direito é impensável, pois, impedir quem quer que seja de participar um facto delituoso, com a justificação de que em consequência da participação ir-se-á lesar a honra do participado.
A lei substantiva penal prevê expressamente, aliás, situações em que a lesão de um determinado bem ou interesse penalmente tutelado é considerada, em concreto, lítica. São os casos previstos pelas normas que regulam as causas de justificação. A saber: o exercício de um direito, o cumprimento de um dever, a execução, pelo subordinado hierárquico, duma ordem legítima ou ilegítima do seu superior, a legítima defesa, o uso legítimo de arma, o estado de necessidade, o consentimento do ofendido - (5).
Significa isto que, quando alguém tem de agir numa das situações tipicizadas, não comete crime, por não ser considerada ilícita a lesão do bem ou interesse em causa dado que o legislador, apreciando a situação de conflito, indicou um interesse como prevalente, cuja tutela quer ver salvaguardada. Só assim se pode encontrar uma solução para as hipóteses de conflito e simultaneamente dar realização a uma exigência de justiça. Há uma ideia, a ideia de proporção entre os interesses em conflito, que paira e domina soberanamente as normas que disciplinam as causas de justificação. O legislador entende que os interesses em conflito devem ser ponderados entre si, já que a desproporção ou as soluções por ela ditadas repugnam à própria essência do direito, que é proportio hominis ad hominem e, portanto, justiça nas relações inter-subjectivas.
Daqui que as causas de justificação expressamente previstas possam e devam estender-se, por aplicação analógica ou apelando para um princípio geral de direito. É que estas normas penais não estão sob a alçada do princípio da proibição da aplicação por analogia legis ou por analogia juris, na medida em que não são normas restritivas da liberdade como as normas incriminatórias nem são normas excepcionais. Elas gravitam em torno da ideia de que, em caso de conflito de interesses, um deles deve sempre prevalecer, pois seria absurdo consentir no sacrifício de ambos - (6)
Trata-se evidentemente do princípio da ponderação de interesses, o qual subjacente se acha sempre a todas as situações de conflito, constituindo o fundamento último da justificação do facto.
Ora, como este Supremo Tribunal vem decidindo
- (7)., o direito de denúncia prevalece sobre o direito à honra, visto que como garantia de estabilidade, da segurança e da paz social no Estado de direito deve assegurar-se ao cidadão a possibilidade quase irrestrita de denunciar factos que entende criminosos
- (8). “Quase irrestrita”, como se refere numa daquelas decisões, por a limitação maior consistir em a denúncia não ser feita dolosamente (com consciência da sua falsidade) e do teor dos seus termos, os quais devem limitar-se à narração dos factos, sem emissão de quaisquer juízos de valor ou lançamento de epítetos sobre o denunciado. Como se refere na outra das mencionadas decisões, se emitidos juízos de valor ou epítetos integrantes de uma ofensa à honra, então a denúncia pode, mas só por essa razão, ser ilícita cedendo o respectivo direito perante a honra (desnecessária e gratuitamente lesada) do denunciado.
No caso dos autos já vimos inexistir prova indiciária de que o arguido AA agiu com consciência da falsidade das imputações constantes da participação que apresentou contra a assistente BB e das declarações que prestou no âmbito do respectivo inquérito criminal.
Por outro lado, como se consignou na decisão sumária reclamada, certo é que o texto da participação e o conteúdo das declarações prestadas não contêm asserções nem juízos de valor desnecessários ou desproporcionados.
Nesta conformidade impõe-se concluir que, quer a denúncia apresentada quer as declarações prestadas pelo arguido AA, conquanto objectivamente lesivas da honra e consideração da assistente, se devem ter por justificadas nos termos do artigo 31º, n.ºs 1 e 2, alínea b), do Código Penal.

Termos em que se acorda indeferir a reclamação apresentada, confirmando-se a decisão sumária de rejeição do recurso.
Custas pela reclamante, fixando em 15 UCs. a taxa de justiça.

Liboa, 21 de Abril de 2010

Oliveira Mendes (Relator)
Maia Costa

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(1) - É do seguinte teor o n.º 1 do artigo 365º do Código Penal:
«Quem, por qualquer meio, perante autoridade ou publicamente, com a consciência da falsidade da imputação, denunciar ou lançar sobre determinada pessoa suspeita da prática de crime, com intenção de que contra ela se instaure procedimento, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa».
(2) - É do seguinte teor o artigo 31º, n.ºs 1 e 2, alínea b), do Código Penal:
«1. O facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade.
2. Nomeadamente, não é ilícito o facto praticado:

b) No exercício de um direito».
, razão pela qual se devem ter por justificadas nos termos do artigo 31º, n.ºs 1 e 2, alínea b), do Código Penal».
(3) Esclarece-se o Exmo. Mandatário da assistente, signatário do articulado apresentado, que ao contrário do que no mesmo vem repetidamente exarado, a decisão sumária objecto de reclamação, no que concerne ao crime de denúncia caluniosa, não se fundamentou através da afirmação de que é inquestionável que o arguido não tinha consciência de que o praticava.
Como claramente decorre do texto daquela decisão já atrás transcrita (fls.597v./598 dos autos), o que ali se escreveu foi o seguinte:
«... é inquestionável não se mostrar indiciariamente provado que o arguido ao queixar-se criminalmente contra a assistente e ao prestar declarações no inquérito resultante da queixa se haja comportado com consciência da falsidade das imputações ali feitas à assistente».
Trata-se de asserções bem diferentes, de sentido jurídico completamente distinto.
Por outro lado, ao contrário do também consignado naquele articulado, na decisão sumária reclamada não se consignou que o arguido tinha o direito de assim ofender a assistente.
O que se escreveu foi o seguinte:
«No que concerne ao crime de difamação agravada é patente que, conquanto algumas expressões utilizadas pelo arguido na participação que apresentou contra a assistente e nas declarações prestadas no âmbito do subsequente inquérito sejam ofensivas da honra e consideração da assistente, a verdade é que foram produzidas no exercício de um direito, posto que no âmbito de uma participação criminal e declarações prestadas no respectivo inquérito, não se podendo considerar desnecessárias ou desproporcionadas
(4) Em certas situações a lei impõe até o dever de participar o crime.
(5) - É do seguinte teor o artigo 31º, do Código Penal:
«1. O facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica na sua totalidade.
2. Nomeadamente, não é ilícito o facto praticado:
a) Em legítima defesa;
b) No exercício de um direito;
c) No cumprimento de um dever imposto por lei ou por ordem legítima da autoridade; ou
d) Com o consentimento do titular do interesse jurídico lesado».
(6) - Vide Giuseppe Bettiol, Instituições de Direito e Processo Penal (tradução de Costa Andrade, 1974), 137/141.
(7) - Entre outros, os acórdãos de 08.11.18 e 08.12.18, proferidos nos Processos n.ºs 08B3227 e 08A2680.
(8) - Pelas razões atrás invocadas, ou seja, por analogia legis ou analogia juris, também prevalecerá sobre o direito à honra o direito/dever de o denunciante prestar declarações no âmbito do respectivo inquérito criminal, esclarecendo a denúncia feita e comunicando os factos que julgar convenientes à investigação.