Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 3.ª SECÇÃO | ||
Relator: | LOPES DA MOTA | ||
Descritores: | CONCURSO DE INFRAÇÕES EXTORSÃO CONSTITUCIONALIDADE CRIME CONTINUADO CÚMULO JURÍDICO PENA ÚNICA MEDIDA CONCRETA DA PENA | ||
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Data do Acordão: | 06/21/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROVIDO EM PARTE | ||
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Sumário : | I – Discordando do decidido quanto à qualificação jurídica dos factos como crimes de extorsão, da previsão do artigo 223.º do Código Penal, quanto à não consideração da figura do crime continuado, quanto às penas parcelares e quanto à pena única, recorre o arguido do acórdão do tribunal coletivo que, em cúmulo, lhe aplicou a pena única de 8 anos de prisão, pela prática de quatro crimes de extorsão, dois deles na forma de tentativa. II – Resulta dos factos provados, para além do mais, que os descritos comportamentos de “desordem social e de caráter ameaçador” foram levados a efeito pelos arguidos “com o intuito expresso de dissuadir eventuais futuros compradores da aquisição de frações [de imóveis] naquele local”, que essas condutas “destinavam-se a levar os promitentes-vendedores a fazer cessar o contrato-promessa de compra e venda e, deste modo, a devolver o sinal em dobro, perante a iminência de, em face de tais comportamentos, não venderem qualquer fração e do elevado prejuízo económico daí decorrente”, e que, em consequência disso, “constrangidos pela iminência do prejuízo patrimonial que resultaria de não lograrem vender qualquer outra fração nos respetivos empreendimentos, bem como por receio quanto à integridade física dos trabalhadores e residentes, os promitentes-vendedores aceitaram celebrar acordos de revogação dos correspondentes contratos-promessa de compra e venda, que previam a devolução do sinal em dobro”. III – A matéria de facto preenche, na sua totalidade, os elementos do tipo objetivo e subjetivo do crime de extorsão da previsão do artigo 223.º, n.º 1, do Código Penal, nomeadamente a intenção de conseguir um enriquecimento ilegítimo, por meio de violência ou ameaça de mal importante, constrangendo as proprietárias a disposições patrimoniais de que resultaram os prejuízos identificados. IV – A suscitada questão de inconstitucionalidade do artigo 223.º do Código Penal (“quando interpretado no sentido de que os comportamentos dados como assentes, que são atuações normais e típicas da etnia cigana, constituem uma ameaça, por violação do artigo 13.º da Constituição”) não diz respeito à interpretação e aplicação da norma do artigo 223.º do Código Penal em conformidade com um sentido normativo presente ou extraído de um elemento caraterizador do tipo de crime previsto neste preceito, configurado em violação do artigo 13.º da Constituição, que estabelece o princípio da igualdade dos cidadãos, proibindo a discriminação, nomeadamente por razões étnicas ou de condição social. V – O crime de extorsão, integrado na categoria dos “crimes contra o património em geral”, é um crime pluriofensivo, que tutela diversos bem jurídicos – o património e a liberdade –, visando diretamente a proteção da liberdade de disposição patrimonial, a liberdade de decisão e de ação, cuja lesão é conatural à extorsão; neste sentido, enquanto forma de tutela da liberdade de decisão pessoal, o crime de extorsão protege um bem jurídico iminentemente pessoal, não podendo integrar a figura do crime continuado (artigo 30.º, n.º 2, do CP). VI – Para além disso, não se demonstra que os factos tenham sido praticados “no quadro de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa”, para que possam constituir um só crime continuado; a diminuição sensível da culpa, exigida pelo artigo 30.º, n.º 2, só poderá ter lugar quando a ocasião favorável à prática do crime se repete, sem que o agente tenha contribuído para essa repetição, já não quando o agente a provoca, nomeadamente escolhendo o tempo, o local, a vítima e o modo de execução do crime, como sucede neste caso. VII – As penas parcelares e a pena única mostram-se determinadas em função da adequada ponderação dos fatores relevantes e critérios enumerados nos artigos 40.º, 71.º e 77.º do Código Penal. VIII - Porém, tendo em conta o longo período de tempo já decorrido desde as datas da prática dos factos, a idade e o comportamento do arguido posteriormente a essas datas, concorrendo no sentido da atenuação das exigências de prevenção, justifica-se uma intervenção corretiva na pena única, que se fixa em 6 anos e 6 meses de prisão. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:
I. Relatório
1. AA, arguido, com a identificação que consta dos autos, interpõe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão de 14 de dezembro de 2017, proferido pelo tribunal coletivo do Juízo Central Criminal ..., da Comarca de Lisboa, notificado a 01/06/22, que o condenou, conjuntamente com o arguido BB, pela prática, em concurso efetivo e coautoria: - De 2 (dois) crimes de extorsão p. e p. pelo artigo 223.º, n.ºs 1 e 3, al. a), com referência aos artigos 204.º, n.º 2, al. a), e 202.º, al. b), do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão por um deles (situação I.) e na pena de 4 (quatro) anos e 9 (nove) meses de prisão pelo outro (situação III.), e de 2 (dois) crimes de tentativa de extorsão p. e p. pelos artigos 22.º, 23.º, 73.º, n.º 1, ais. a) e b), e 223.º, n.ºs 1 e 3, al. a), com referência aos artigos 204.º, n.º 2, al. a), e 202.º, al. b), do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão por um deles (situação II.) e na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão pelo outro (situação IV., por convolação do crime consumado por que foi pronunciado); e - Em cúmulo jurídico destas penas, nos termos do artigo 77.º do Código Penal, na pena única de 8 (oito) anos de prisão. 2. Discordando da incriminação, mas admitindo que os factos devem integrar a figura de crime de extorsão continuado, e da medida das penas, apresenta motivação que termina com as seguintes conclusões (transcrição): “1ª- O recorrente entende que os factos provados não preenchem os elementos do tipo de crime aqui em causa (extorsão 223.º do CP) 2ª – Aliás a decisão recorrida, logo no início, a título de enquadramento (art.º 5.º), dá como assente que o comportamento do recorrente e de terceiros não se pautou “… pela correção e urbanidade, num contexto de propriedade horizontal.” 3ª – Todavia a falta de cortesia e urbanidade, seja em contexto de propriedade horizontal, seja de vida em sociedade em geral, logicamente, não constitui crime. 4ª – Aliás a conduta levada a cabo pelo arguido insere-se naquilo que é habitual nos indivíduos oriundos de estratos sócio-culturais desfavorecidos. 5ª – Isto para além de o direito penal ser um direito de “ultima ratio”, ou de intervenção mínima, no sentido de que a criminalização de uma conduta só se legitima se constituir meio necessário para a proteção de determinado bem jurídico. 6ª - A atuação descrita nos factos provados, analisada objetivamente não se integra no conceito “de violência ou de ameaça”, elemento essencial para a verificação do tipo p.p. art.º 223.º do CP. 7ª - Por outro lado inexiste, objetivamente, uma relação de causalidade adequada entre tais comportamentos e a resolução, com, nalguns casos a entrega em dobro do sinal. 8ª – Em face do supra exposto, os comportamentos descritos nos factos provados não preenchem os elementos do crime de extorsão, motivo pelo qual seria temerário manter-se a respetiva condenação, pelo que deverá o arguido ser absolvido da respectiva prática. 9ª - A interpretação do disposto no artigo 223.º do CP, ao considerar que os comportamentos dados como assentes, são actuações normais e típicos (“comportar-se de forma estereotipada” como consta na decisão recorrida) da ..., constituindo assim uma ameaça, de molde a preencher o elemento do tipo de crime extorsão, é inconstitucional, por violação do art.º 13º da C.R.P. Subsidiariamente, embora sem conceder, os recorrentes pugnam pelo seguinte: 10ª – Dos factos provados resulta que nos encontramos perante a: - realização plúrima do mesmo tipo de crime (extorsão); - homogeneidade da forma de execução; - lesão do mesmo bem jurídico; - unidade de dolo. As diversas resoluções devem conservar-se dentro de uma "linha psicológica continuada"; 11ª – Resta saber se essa execução foi levada a cabo no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente. 12ª – E a resposta deverá ser afirmativa pois, em concreto, o facto de o arguido ter logrado obter lucro na primeira revogação do contrato promessa celebrado com a “U...”, induziu-o à possibilidade de repetição do procedimento nas restantes situações. 13ª - Assim, deve a condenação na parte em que imputa ao recorrente a prática de 2 crimes de extorsão, consumados e um 2 tentados, ser convolada para a prática de um crime de extorsão, na forma continuada (nº 2 do art.º 30 do CP). 14ª - Em detrimento da condenação na pena de 8 anos de prisão, no caso do arguido AA deverá ser condenado, pela prática em co-autoria, na forma continuada do crime de extorsão, na pena de 4 anos de prisão. 15ª - Ainda que se entenda ter sido correta a qualificação jurídica constante da decisão recorrida, considera o recorrente elevadas as penas concretas aplicadas: 16ª - Atendendo a que a favor dos mesmos militam as seguintes atenuantes: a) É primário; b) À data dos factos o contava já 50 anos; c) Entre a data da prática dos primeiros factos e o julgamento, decorreram quase 15 (!) anos; d) Está integrado na sociedade e dispõe de uma imagem social favorável. 17ª - Acresce que o recorrente, actualmente com 64 anos, padece de múltiplas patologias/cormobidades, e, devido ao estado de saúde crítico, é absolutamente incapaz de per si, sem o auxílio de uma terceira pessoa, levar a cabo as tarefas básicas do dia-a-dia, além de tomar uma parafernália de medicação. 18ª Tudo ponderado, entendemos que até por uma questão humanitária que é da mais elementar justiça, que o quantum tanto da pena única, como das penas parcelares sofrer uma redução substancial. 19ª – Tudo ponderado deveria o Tribunal ter concluído, inequivocamente, pelas vantagens na aplicação de tal regime, o que se traduzirá, num abaixamento substancial, tanto da pena única como das penas parcelares. 20ª - Cumulativamente, entendem o recorrente que, deveria ter beneficiado da atenuação especial da pena prevista na al. d) do nº 2 do artº 72 do CP. 21ª - Os factos foram praticados, respetivamente a 11/1/2007, Agosto de 2007, Outubro de 2007 e Junho de 2009, logo tendo o Acórdão sido proferido a 14/12/2017, decorreram entre a data dos factos praticados em 2007, 10 anos e em 2009, 8 anos e meio e entre a data dos primeiros factos e o presente data decorreram 15 anos. 22ª - Ora o decurso de tão longo período de tempo, sempre com o arguido em liberdade, e sem terem prevaricado, aponta inequivocamente no sentido de que arrepiou caminho. 23ª - O decurso do tempo sobre a prática do crime aliado ao bom comportamento do arguido, posteriormente à prática dos factos, pode constituir circunstância que diminui a ilicitude do facto e a culpa do mesmo. 24ª - Aliás decorre, da mencionada da al. d) do n.º 2 do art. 72.º do CP, que a sua conduta posterior do agente, se boa, deve ser valorada mais intensa e positivamente em função do maior ou menor tempo que decorreu sobre a prática do crime. 25ª - Motivo pelo qual o arguido deveria ter beneficiado desta atenuação especial da pena. 26ª - Tendo como pano de fundo o supra exposto deverão as penas concretas ser objecto de redução tal como consta na motivação. 27ª – Tanto mais que além da primaridade do recorrente , este prevaricou durante um curto período de tempo. 28ª - Ao aplicar ao recorrente uma pena única de prisão de 8 anos, o tribunal recorrido violou os princípios da proporcionalidade e da proibição do excesso, que devem nortear a operação de fixação da pena conjunta, ultrapassou o limite da culpa, para além de o enfoque dever ser colocado na vertente preventiva. 29ª - Tudo ponderado ao recorrente, deverá, em cúmulo jurídico, ser aplicada a pena única de 4 anos e 6 meses. 30ª - No caso dos recorrentes o Tribunal “a quo”, porque a pena única ultrapassava o limite previsto no artº 50 do CP, não ponderou sequer a possibilidade de suspensão de execução da mesma. Todavia, após o abaixamento pelo qual pugnamos supra tal possibilidade terá que ser ponderada. 31ª - A correta apreciação crítica de todas as atenuantes que militam a favor do arguido, ainda que, hipoteticamente se considere não verificadas, as atenuações especais pena, sempre tanto as penas parcelares, como a pena conjunta deverão ser objeto de acentuada compressão, nunca devendo a pena única ultrapassar o 5 anos de prisão. 32ª – Não faz sentido uma década e meia após a prática dos factos, sem que o arguido quer antes, quer após os factos tenha prevaricado, atirá-lo para o interior de uma prisão. 33ª - Aos arguidos primários, mais do que “atirá-los para dentro” de um estabelecimento prisional, deve ser-lhes dada uma oportunidade, sobretudo, quando, usufruem, de total inserção sócio-familiar e são, portanto, elementos úteis para a sociedade. 34ª - O próprio Exmo. Sr. Procurador, nas suas Doutas alegações pugnou pela aplicação de penas suspensas na respetiva execução. 35ª - “In casu”, o recorrente para além de ser primário reúnem todas as condições endógenas e exógenas para uma perfeita reinserção social, e, por tal facto é lícito formular um juízo de prognose favorável, com base no qual lhes deveria ter sido aplicada uma pena suspensa na respetiva execução. 36ª - Suspensão essa que, até por imperativo legal (nº 3 do artº 53º do CP) deverá ser subordinada a regime de prova e outras injunções consideradas adequadas,. 37ª – O Tribunal “a quo”, violou, pelo menos, as disposições ínsitas nos arts, 40.º, 41.º, 50.º n.ºs 1, alínea a) do n.º 1 do art.º 51.º, 70.º, 71.º, 72.º n.º 2 al. d), 7.7º nº. 1, 223.º todos do CP; e ainda art.º 13.º, e 18.º n.º 2 da C.R.P.» 3. O Ministério Público, pela Senhora Procuradora da República no tribunal recorrido, apresentou resposta, no sentido da improcedência do recurso, dizendo: «(…) 1) Da verificação dos elementos típicos do crime de extorsão (…) O Acordão recorrido entendeu que a conduta do arguido ora recorrente corresponde efectivamente ao comportamento criminalizado nesta norma, designadamente por ter usado de violência e de ameaça com mal importante, idóneas a provocar o efeito de constrangimento previsto na norma. Com efeito, o arguido, ora recorrente, agindo em conjugação de esforços com o arguido BB, usando ameaças de agressão física e violência e adoptando comportamentos de desordem social perante as sociedades construtoras ofendidas, respectivos funcionários e potenciais compradores dos empreendimentos daquelas, constrangeu as ofendidas, com medo de que fosse lesada a integridade física das pessoas que nelas trabalhavam ou das que ali viviam e do prejuízo que resultaria de não conseguirem vender qualquer outra fracção, a entregar-lhe as quantias referidas nos factos provados, causando-lhes prejuízo de igual valor. O arguido, ora recorrente, actuou com a intenção de conseguir para si um enriquecimento ilegítimo, à custa do correspondente prejuízo das ofendidas, tendo beneficiado de pagamentos a que não tinha direito e que resultaram de um esquema abusivo, adoptado para a obtenção de tais quantias, através de ameaça e de perturbação do funcionamento do negócio das ofendidas. Analisando o tipo de crime, verifica-se que o crime de extorsão é um crime híbrido com um significado pluriofensivo (cfr. Acordão de 21-9-2011 do Tribunal da Relação do Porto, in www.trp.pt), porquanto afecta simultaneamente vários bens jurídicos, como seja o património e a liberdade. (…) Ou seja, a extorsão é, em primeiro lugar, um crime contra o bem jurídico património. Acresce, porém, a tutela do bem jurídico liberdade de decisão e de acção, cuja lesão é conatural à extorsão. A respectiva acção típica corresponde a uma conduta de constrangimento de outra pessoa, através de violência ou de ameaça com um mal importante, que tem como seu objecto um acto de disposição patrimonial. A ameaça terá que representar um dano ou um prejuízo relevante, pelo que tanto pode corresponder a um facto ilícito típico como a um acto lícito. O essencial é que tanto a violência como a ameaça grave, enquanto requisitos típicos imprescindíveis, sejam idóneas e adequadas a constranger o visado a fazer a pretendida disposição patrimonial. Assim, o comportamento típico abrangerá desde as acções de simples constrangimento até às acções que eliminam em absoluto a possibilidade de resistência, incluindo aquelas que afectam psicológica e mentalmente a capacidade de decidir, mas sempre todas elas dirigidas à adopção de um certo comportamento, pretendido pelo agente e contrário à vontade do visado. Tudo ponderado, e vistos os factos e os princípios orientadores supra referidos, entende-se por seguro concluir que o arguido, ora recorrente, praticou, em coautoria, todos os actos de execução dos crimes de extorsão que lhe são imputados, a que se juntou o resultado típico, pelo que mostra-se acertada a decisão de o punir nos termos como bem decidiu o Acordão recorrido. Não há razão para duvidar de que a ameaça utilizada constitua um «mal importante», e adequado a preencher a previsão típica (porque adequado a alcançar o resultado visado pelo agente, em violação da liberdade de disposição patrimonial dos ofendidos). Veja-se neste sentido o Acórdão do STJ de 6-5-1998, in CJ/STJ, VI, T.2,197 : «I - Cabe no conceito de extorsão toda a ameaça de um mal suficiente para vergar a vontade de um homem médio. II - Basta que a concretização da ameaça seja apta, segundo as regras da experiência comum, para se conseguir o objectivo que se deseja com ela. Não é necessário que a ameaça seja de um mal ilícito, bastando que seja importante do ponto de vista da generalidade das pessoas. III - O facto de o mal cominado não ser propriamente ilegal não retira coloração à expressão ameaça com mal importante, a que se refere o art. 223º do C.P. VI - O crime de extorsão consuma-se com a entrega do valor patrimonial pretendido pelo agente, o que constitui prejuízo para o ofendido.» Face ao acervo fáctico apurado não podem subsistir dúvidas que com a conduta do arguido se mostram preenchidos os elementos objectivos e subjectivo do tipo de crime de extorsão. Independentemente do fundamento efectivo das ameaças, e independentemente dos resultados hipotéticos de ameaças de agressão física e de violência, só a perspectiva de enfrentar os incómodos de tais condutas representam para o comum dos cidadãos, e ademais para as sociedades ofendidas, respectivos funcionários e potenciais compradores dos empreendimentos daquelas, face ao prejuízo de não conseguirem vender qualquer outra fracção, males importantes e adequados a provocar sério constrangimento e alarme, determinantes das entregas das quantias descritas nos factos provados. Falecem, assim, a argumentação e a pretensão formulada pelo arguido recorrente. 2) Do crime continuado (art. 30.º n.º 2 do C. Penal) (…) Da matéria de facto considerada assente resulta que o arguido recorrente foi adaptando o seu «modus operandi» às especificidades de cada situação e de cada ofendida. A reiteração de condutas, a que correspondem várias resoluções criminosas, não encontra justificação em qualquer circunstância ou solicitação externa capaz de diminuir a culpa do arguido recorrente. E qualquer circunstância externa que neste âmbito se considere, tem inequivocamente origem na conduta, livre e voluntária do arguido recorrente, que assim a criou. Não se verificam os pressupostos de aplicação da figura da continuação criminosa, pois como referido, não se mostra fixado qualquer facto do qual resulte a existência de um condicionalismo exterior ao arguido, que tenha facilitado a sua repetida actuação, diminuindo ou mitigando, pois, a sua culpa. A conduta do arguido recorrente integra efectivamente a prática, em coautoria, e em concurso efectivo, dos crimes pelos quais foi condenado, ou seja, dois crimes de extorsão, p. e p. pelo art. 223.º n.º 1 e 3 al. a), com referência aos art. 204.º n.º 2 al. a) e 202.º, al. b) do C. Penal e de dois crimes de tentativa de extorsão, p. e p. pelos art. 22.º, 23.º, 73.º n.º 1 al. a) e b) e 223.º n.º 1 e 3 al. a),com referência aos art. 204.º n.º 2 al. a) e 202.º al. b) do C. Penal. (…) Fazendo a necessária subsunção jurídica dos factos provados aos requisitos exigidos para que de crime continuado se trate, verificamos o seguinte: Quanto ao primeiro dos pressupostos, entende-se que o mesmo se mostrará verificado, na medida em que existem distintas resoluções criminosas na conduta do arguido, lesivas dos mesmos bens jurídicos. Quanto à execução essencialmente homogénea, embora com algumas variantes de ofendido para ofendido, entende-se que este pressuposto se mostra igualmente verificado, pois tais variantes não são mais do que meras adaptações da conduta do arguido a cada um dos casos concretos. Quanto ao requisito de os factos terem sido praticados no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que lhe diminua consideravelmente a culpa, entendemos que não se verifica. (…) No caso concreto, a forma de agir do arguido não se traduziu em qualquer situação exterior que facilitasse a execução do crime. O arguido não só contribuiu, como em cada uma das situações poderia ter tido uma actuação diferente. Ora, se o agente concorre para a existência daquele quadro ou condicionalismo exterior está a criar condiçõesde que não pode aproveitar-se para que possa dizer-se verificada a figura legal da continuação criminosa. Pelo exposto, e nesta perspectiva, não se verificando no caso concreto este requisito do crime continuado, nos termos previstos no art. 30º nº2 do C.Penal, falece, também, nesta parte, a argumentação e pretensão formulada. 3) Da determinação da medida concreta da pena em que o arguido foi condenado e da eventual suspensão da sua execução. (…) Quanto à determinação da medida concreta da pena, a ter-se como correcta a subsunção jurídica efectuada, importa salientar que as penas se mostram justas e adequadas, e em nada excessivas, face à moldura penal cominada aos crimes em que o arguido foi condenado. (…) Segundo critérios adequados de ponderação não existem circunstâncias de valor especial ou extraordinário que justifiquem a atenuação especial da medida da pena a aplicar ao arguido, pois que nenhum elemento de relevo se apurou no sentido de que alguma circunstância no respectivo comportamento diminua por forma acentuada a ilicitude dos factos, a sua culpa ou as necessidades punitivas. (…) Em suma, tudo ponderado, no caso o Tribunal, bem aplicando os referidos normativos legais, obedecendo aos princípios que enformam a aplicação das normas, perante os factos provados e a sua subsunção jurídico-penal e tendo presente a moldura penal abstracta dos crimes, aplicou ao arguido, penas que se mostram justas, proporcionais e adequadas, e em nada excessivas, atentos os circunstancialismos apontados no douto Acordão. Em face do supra exposto, e em conformidade com o douto Acordão recorrido, face à pena única aplicada pelo Tribunal não se coloca a questão da eventual suspensão da sua execução, nos termos previstos no art. 50.º do C. Penal, porquanto a mesma excede os cinco anos de prisão. Caso o recurso do arguido obtenha provimento na redução da pena única aplicada, e que permita, em abstrato, a suspensão da sua execução, cumpre-nos tecer as seguintes considerações: (…) No caso sub judice, mesmo ocorrendo uma redução da pena única aplicada ao arguido em medida que não exceda os cinco anos de prisão, a ausência de assunção da factualidade, a personalidade demonstrada na sua prática, para além da gravidade e censurabilidade da conduta não interiorizada pelo mesmo; factos estes que condicionam acentuadamente o seu processo de reinserção social e que não permitem formular um juízo de prognose favorável no sentido de que a simples censura pública e a ameaça de uma pena de prisão sejam suficientes para satisfazer as necessidades de prevenção geral e especial deste tipo de criminalidade, atendendo à realização dos fins das penas. (…) No caso em apreço, face aos factos provados, que aqui se dão por integralmente reproduzidos, nada legitima que o Tribunal faça um juízo de prognose social favorável ao arguido, não tendo razões para prever que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, não podendo nunca a punição ser de tal modo suavizada, como pretende o arguido, que venha a adquirir carácter meramente simbólico, nem podendo o arguido pretender pura e simplesmente apagar da sua vida o crime e a efectiva punição, pois tal situação seria a porta aberta a que voltasse a cometer crimes. Atendendo à intensidade do dolo com que o arguido actuou, dolo directo, e ao elevado grau da ilicitude manifestado, desde logo, pela forma como é executado o facto, à gravidade deste, aos valores sociais protegidos pela norma, a repercussão e consequências da conduta, entendemos não haver lugar à suspensão da execução da pena de prisão no caso dos presentes autos, por não se verificarem os pressupostos de que a lei penal faz depender a sua aplicação, designadamente por mostrar-se impossível efectuar, com os elementos constantes dos autos, um juízo de prognose favorável nos termos e para os efeitos do art. 50º do C.Penal. Os critérios de prevenção geral resultariam esvaziados com a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido, deixando a sociedade de crer na efectiva punição deste tipo de crimes, esvaziando quer o efeito socializador, quer o efeito dissuasor das penas. Os critérios de prevenção especial emitiriam um perigoso sinal ao arguido, permitindo-lhe, ao invés de arrepiar caminho, optar pela prática de crimes. Pelo que falecem, também, nesta parte, a argumentação e a pretensão formulada.» 4. Remetido o processo ao Tribunal da Relação de Lisboa, o Senhor Juiz Desembargador relator proferiu despacho pronunciando-se pela incompetência do tribunal e a mandar subir os autos ao Supremo Tribunal de Justiça, por se limitar a matéria de direito, tendo em conta o disposto nos artigos 432.º, n.º, al. c), e n.º 2, e 434.º do CPP. 5. Recebidos, foram os autos com vista ao Ministério Público, para os efeitos do disposto no artigo 416.º do CPP, tendo o Senhor Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal emitido parecer, também no sentido da improcedência do recurso, nos seguintes termos (transcrição): «(…) 4. O arguido centra a sua discordância, como ficou dito, no facto de o Colectivo ter considerado preenchidos os elementos típicos do crime de extorsão e nem sequer ter optado pela condenação por um único crime. Como bem demonstrou a nossa Colega, a opção do Colectivo foi, justamente, a mais correcta. Não apenas se verificam os requisitos do mencionado crime como, na verdade, a hipotética prática de um único ilícito – na forma continuada –, não é, de todo, sustentável, uma vez que os respectivos pressupostos estão completamente ausentes da actuação do agente. De facto, não se verificou qualquer condicionalismo exterior ao arguido que tivesse facilitado as suas acções, por forma a reduzir a sua responsabilidade. Com efeito, foi ele quem procurou as oportunidades de cometer os diversos ilícitos, reiterando os comportamentos criminosos sem que nada diminuísse a sua culpa. Em suma, inexistem os requisitos previstos pelos n.ºs 2 e 3 do art.º 30.º do Código Penal. Sustentar o contrário seria premiar – de forma absolutamente injustificada e indefensável – quem actua, reiteradamente, como se a prática de crimes fosse uma carreira profissional… E, relativamente ao quantum da pena única, também nos parece não se justificar qualquer redução, muito menos em termos de permitir a suspensão da respectiva execução. (…) Como não podia deixar de ser, a Instância lembrou as circunstâncias, de particular gravidade, em que decorreram os crimes e a sua reiteração, bem como a ausência de qualquer acto que traduzisse uma interiorização do desvalor das condutas delituosas por parte do arguido. Não estão, em suma, preenchidos os requisitos previstos pelo n.º 1 do art.º 50.º do Código Penal. Em tais circunstâncias, crê-se absolutamente razoável a forma como foi calculada a pena, somando-se, ao limite mínimo, menos de um quarto da diferença entre este e o limite máximo. Parece-nos, pois, que o aresto fez uma adequada interpretação dos critérios contidos nas disposições conjugadas dos art.ºs 40.º, n.º 1 e 71.º, n.º 1 e 2, als. a) a c), e) e f) do Código Penal. Atendeu-se, cremos, à vantagem da reintegração tão rápida quanto possível do arguido em sociedade; sem se esquecer, porém, que a pena deve visar também, de forma equilibrada, a protecção dos bens jurídicos e a prevenção especial e geral, neste caso particularmente relevantes, tanto mais que estão em causa ilícitos que causam justificado alarme junto da população. Com efeito, as fortíssimas exigências de prevenção e a gravidade dos comportamentos do arguido tinham, obviamente, em conformidade e de acordo com os critérios acima referidos, de ser traduzidos em pena correspondente à medida da sua culpa; o que o tribunal recorrido conseguiu com uma pena inteiramente justa e que respeita as finalidades visadas pela punição. 5. Assim, concluindo, dir-se-á que o douto acórdão recorrido qualificou e sancionou de forma adequada e criteriosa a matéria fáctica fixada, pelo que nos parece que o recurso não deverá merecer provimento.» 6. Notificado para responder, nos termos do artigo 417.º, n.º 2, do CPP, o arguido reafirmou a motivação, insistindo em que: «Pese embora importa reiterar o facto de o arguido ser primário e entre a data da prática dos primeiros factos e a actualidade, já decorreram quinze anos, sempre com o arguido em liberdade e sem prevaricar! Acresce que, o arguido tem actualmente 64 anos e padece de várias patologias/comorbidades, tais como ... da próstata; ... com redução acentuada na função renal; Hipertensão; Claustrofobia e Depressão com sintomas psicóticos (delírios e alucinações). Apela assim à prudência e ao sentido de humanidade de Vªs. Exas. no sentido de não “atirar” este arguido para o sistema prisional, até porque o mesmo se encontra em OPHVE desde 08-07-22.» 7. Colhidos os vistos e não tendo sido requerida audiência, o recurso foi à conferência – artigos 411.º, n.º 5, e 419.º, n.º 3, alínea c), do CPP.
II. Fundamentação O acórdão recorrido – factos provados 8. O acórdão recorrido encontra-se fundamentado nos seguintes termos: 8.1. Factos provados O tribunal coletivo deu como provados os seguintes factos (transcrição): «1.º Entre data não apurada de Janeiro de 2007 e Agosto de 2009 os arguidos AA e BB, filho daquele, delinearam um plano que lhes permitiria, com o apoio de vários membros do seu núcleo familiar e outros indivíduos com eles relacionados, como CC e DD, a obtenção de proventos a que não tinham direito. 2.° Com efeito, e num primeiro momento, BB e CC ou DD, abordavam sociedades de construção civil, manifestando interesse em adquirir fracções em apartamentos, antes de aquelas iniciarem as vendas das mesmas, apresentando-se bem vestidos, conduzindo um automóvel de gama alta, com o intuito de criar a aparência de um bom nível económico, social e educacional. 3.° CC e DD, que intervinham no processo negocial com vista à celebração do contrato-promessa, para lhe dar uma aparência de seriedade, indicavam pretender adquirir o imóvel para BB, pautando o seu comportamento pela urbanidade exigida neste tipo de contextos. 4.° Os arguidos BB e AA não tinham qualquer intenção de celebrar posteriormente o contrato de compra e venda respeitante às fracções, nem pretendiam passar a residir nas mesmas, o que era do conhecimento de CC e DD. 5.° Assim, após terem criado uma aparência de seriedade negocial e credibilidade, o arguido BB e DD, nas correspondentes situações infra descritas, celebraram os respectivos contratos-promessa de compra e venda, entregando a título de sinal as correspondentes quantias, avultadas, quase sempre propostas pelos próprios; as sociedades de construção civil que se vão referir aceitavam celebrar os contratos-promessa de compra e venda, convencidas de que o comportamento do promitente-comprador se iria pautar pela correcção e urbanidade, num contexto de propriedade horizontal. 6.° Em momento posterior, os arguidos BB e AA, e na quarta situação infra descrita também com intervenção de DD, faziam deslocar para os referidos empreendimentos vários indivíduos de ... que, previamente por si instruídos, levavam a cabo diversos comportamentos de desordem social e de carácter ameaçador, no recinto do empreendimento, com o intuito expresso de dissuadir eventuais futuros compradores da aquisição de fracções naquele local; 7.° Estas condutas destinavam-se a levar os promitentes-vendedores a fazer cessar o contrato-promessa de compra e venda e, deste modo, a devolver o sinal em dobro, perante a iminência de, em face de tais comportamentos, não venderem qualquer fracção e do elevado prejuízo económico daí decorrente. 8.° Constrangidos pela iminência do prejuízo patrimonial que resultaria de não lograrem vender qualquer outra fracção nos respectivos empreendimentos, bem como por receio quanto à integridade física dos trabalhadores e residentes, os promitentes-vendedores aceitaram celebrar acordos de revogação dos correspondentes contratos-promessa de compra e venda, que previam a devolução do sinal em dobro. I. "U... S.A." 9.° Entre Setembro de 2006 e Junho de 2007, a sociedade "U..., S.A." (doravante "U..."), desenvolveu um empreendimento imobiliário designado por "Parque ...", na Avenida ..., em ..., para cuja comercialização contratou a sociedade "P..., Lda.". 10.° Em data não apurada, mas anterior a 11/01/2007, CC e o arguido BB deslocaram-se ao stand de vendas do empreendimento e mostraram-se interessados em visitar os apartamentos, tendo acabado por escolher um apartamento de tipologia T2. 11.° Nas reuniões que tiveram com os representantes legais da "U...", CC e o arguido BB apresentaram-se sempre bem vestidos, deslocando-se num veículo automóvel de marca AUDI. 12.° CC apresentou-se como representante do pai de BB, empresário têxtil, o qual pretendia adquirir um imóvel para o filho, comportando-se sempre com urbanidade. 13.° No dia 11/01/2007, o arguido BB, na companhia de CC, fez a reserva de um apartamento, através da entrega do cheque número ...46, da conta número ...71 do Banco 1..., titulada por BB, e por este assinado, no valor de €1.000. 14.° Porque se convenceram, em face da imagem de sustentabilidade financeira, seriedade e respeitabilidade que CC e o arguido BB fizeram passar, de que estes pretendiam efectivamente adquirir a fracção em causa e que esta se destinava à habitação por BB, os representantes legais da "U..." aceitaram celebrar contrato-promessa de compra e venda. 15.° Em 17/01/2007 foi celebrado entre a "U..." e BB contrato-promessa de compra e venda da futura fracção autónoma CF, correspondente ao 2.º andar direito do Bloco G, com entrada pela Rua ..., pelo valor de € 375.000, de que deveriam ser pagos € 56.250 a título de sinal, tendo nessa data sido entregue um cheque nesse valor. 16.° Cerca de 15 dias depois, os arguidos BB e AA deslocaram-se ao empreendimento, acompanhados de, pelo menos, 10 indivíduos de ..., cuja identidade não foi possível apurar, onde passaram a permanecer quase todos os dias do mês de Fevereiro, afirmando que pretendiam ver o apartamento que BB havia adquirido. 17.° Faziam as refeições no local, fazendo uso de todo o espaço, deixando-o completamente sujo. 18.° Quando se apercebiam da entrada de potenciais clientes, faziam comentários como "vamos ser vizinhos" e "vamos usar os jardins com toda a nossa família", o que fazia com que aqueles se afastassem. 19.° Em algumas ocasiões, foram autorizadas as visitas a BB e AA, que dizia frequentemente "isto está mal feito", exigindo alterações, alegando que pretendia viver no imóvel com toda a família. 20.° Nessas ocasiões, BB e AA, dirigindo-se aos funcionários que se encontravam no stand de vendas, por várias vezes proferiram as expressões "vocês só estão seguros aí dentro", "sabemos onde vocês moram" e "sabemos quais são os vossos carros", razão por que em 12/02/2007 foi solicitada a intervenção da PSP .... 21.° Em virtude de terem receio pela sua integridade física, foram instaladas câmaras de segurança na entrada e no interior do stand de vendas, bem como contratado um segurança com um cão. 22.° Na sequência dos factos referidos, em data muito próxima de 02/03/2007, foi agendada uma reunião, a que compareceram AA e BB, em que aquele declarou que teve sorte em ter um filho louro e no decurso da qual se exaltou. 23.° Perante as situações criadas no recinto, constrangidos pela iminência do grave prejuízo patrimonial que resultaria de não estarem a vender qualquer outra fracção no empreendimento, bem como por receio pela integridade física das pessoas que aí trabalhavam, tendo em conta as ameaças proferidas, os representantes legais da "U..." aceitaram celebrar acordo de revogação do contrato--promessa de compra e venda, que previa a devolução do sinal em dobro. 24.° Em 02/03/2007 foi celebrado, entre BB e os representantes legais da "U...", acordo de revogação do contrato-promessa, mediante a entrega de € 112.500, a título de devolução do sinal e de uma compensação de igual valor. 25.° Nessa data foi emitido e entregue o cheque número ...90, da conta número ...59 do Banco 2..., titulada pela "U...", à ordem de BB, no valor de € 112.500. 26.° Tal cheque foi depositado em 02/03/2007 na conta número ...0 do Banco 1..., titulada por BB. II. "L..., S.A." 27.° Em data não apurada, mas no início de Agosto de 2007, CC, o arguido BB e uma pessoa do sexo feminino, cuja identidade não foi possível apurar, deslocaram-se ao stand de vendas do empreendimento "H... - Condomínio Privado", sito junto ao empreendimento imobiliário com o mesmo nome, sito no ..., ..., ..., que à data a sociedade "L..., S.A." (doravante "L..."), se encontrava a desenvolver. 28.° Nas reuniões que tiveram com os representantes legais da "L...", CC e o arguido BB apresentaram-se sempre bem vestidos, deslocando-se num veículo automóvel de marca AUDI, pautando-se o seu comportamento pela urbanidade. 29.° CC e o arguido BB demonstraram interesse em adquirir para este um apartamento naquele empreendimento, tendo acabado por acordar que seria realizada a compra de uma fracção correspondente ao 3.° esquerdo do lote 3, Bloco A, arrecadação e 2 lugares de estacionamento, pelo valor de € 421.000. 30.° Porque se convenceram, em face da imagem de sustentabilidade financeira, seriedade e respeitabilidade que CC e o arguido BB fizeram passar, de que estes pretendiam efectivamente adquirir a fracção em causa e que esta se destinava à habitação por BB, os representantes legais da "L..." aceitaram celebrar contrato-promessa de compra e venda. 31.° No dia 20/08/2007 foi assinado o contrato-promessa de compra e venda, relativo à fracção supra referida, em que figurava como promitente-comprador BB. 32.° Nesse acto, CC preencheu, e BB assinou, o cheque número ...13, da conta número ...71 do Banco 1..., titulada por EE, no valor de € 84.200, valor pago a título de sinal. 33.° Em 31/08/2007, BB e AA dirigiram-se ao stand de vendas, acompanhados por um conjunto de cerca de 10 indivíduos de ..., cuja identificação não foi possível apurar, e expressaram a vontade de visitar um apartamento. 34.° Os comerciais que se encontravam no local referiram que tal não seria possível sem marcação prévia por razões de segurança, ao que AA reagiu, protestando, contrariado, dando a entender que usaria de agressão. 35.° Foi possível convencer BB e AA a apenas estes visitarem o andar modelo, o que fizeram. 36.° Alguns dias depois, AA e BB voltaram ao local, acompanhados dos mesmos indivíduos, para visitarem o apartamento que haviam adquirido. 37.° Perante a recusa dos responsáveis, por razões de segurança, AA, após se ter exaltado, disse que ia falar "com quem manda". 38.° Dias depois, AA, BB e mais pessoas de ..., cuja identidade não foi possível apurar, deslocaram-se aos escritórios do Grupo ..., sitos no Edifício ..., ..., ..., e pediram para falar com alguém responsável pela comercialização do referido empreendimento, que os recebeu; 39.° A reunião teve lugar com todos os elementos do grupo, tendo AA afirmado que já se haviam deslocado ao empreendimento por duas ocasiões e que se a visita não fosse autorizada "partia a cabeça a alguém", mais referindo que queria introduzir alterações ao apartamento, de forma a permitir a criação de uma divisória na sala, porque iam para lá morar ele próprio, a mulher, os filhos, irmãos e sobrinhos, e que no Natal iam fazer uma grande festa na sala do condomínio. 40.° Noutra ocasião a PSP apercebeu-se de mais um desacato com o referido grupo de indivíduos de ... e identificou AA. 41.° AA afirmou não querer realizar nenhuma visita e que a atitude em causa era de intimidação e racismo para com os indivíduos de .... 42.° Alguns dias depois, novamente o grupo, composto por um número não apurado de indivíduos, mas integrado por BB e AA, dirigiu-se aos escritórios da ..., gritando que queriam falar com alguém que mandasse, afirmando em tom elevado que "partiam esta merda toda" e que "isto ia ser levado para o mal", conduta que repetiram no dia seguinte, mas foi-lhes indicado que não havia mais ninguém para os receber. 43.° Nessa ocasião foi solicitada a intervenção da PSP que convenceu os arguidos a ausentarem-se das instalações com a promessa de que seria marcada uma nova reunião. 44.° Nos dias 20/09/2007 e 24/09/2007, foi solicitada a presença da PSP no edifício..., sito na Rua do ..., em ..., e no posto de venda da ... na Estrada ..., em virtude de terem sido causados distúrbios por parte de indivíduos de .... 45.° Perante as situações criadas no recinto do empreendimento e nos escritórios da ..., constrangidos pela iminência do prejuízo patrimonial que resultaria de não estarem a vender qualquer outra fracção, bem como por receio pela integridade física das pessoas que aí trabalhavam, tendo em conta as ameaças proferidas, os representantes legais da "L..." aceitaram celebrar acordo de revogação do contrato-promessa de compra e venda, que previa a devolução do sinal em singelo. 46.° Em 27/09/2007 a "L..." celebrou com BB acordo de revogação de contrato-promessa de compra e venda de bem imóvel, em que a primeira se comprometeu a entregar ao segundo € 84.200. 47.° Para cumprimento do acordo, foi emitido no dia 26/09/2007, o cheque número ...94, da conta número ...36 do Banco 3..., no valor de € 84.200, à ordem de BB. 48.° Tal cheque foi depositado no dia 27/09/2007, na conta número ...0 do Banco 1..., titulada por BB. III. "B... - Investimentos Imobiliários, S.A." 49.° Em data não apurada, mas anterior a Outubro de 2007, CC e o arguido BB abordaram FF, administrador da sociedade "B..., S.A." (doravante "B..."), que à data se encontrava a desenvolver um empreendimento imobiliário na Rua José ..., lote 10, ..., em .... 50.° CC, que se identificou como Técnico Oficial de Contas, apresentou BB como seu filho e referiu que estava interessado na compra de um apartamento que ficaria sob a titularidade deste último. 51.° Nas reuniões que tiveram com os representantes legais da "B...", CC e o arguido BB apresentaram--se sempre bem vestidos, deslocando-se num veículo automóvel de marca AUDI, comportando-se com urbanidade. 52.° Em 22/10/2007 realizaram uma reunião para ultimar os detalhes do acordo, tendo ficado combinado que pagariam a título de sinal a quantia de € 64.000. 53.° Porque se convenceram, em face da imagem de sustentabilidade financeira, seriedade e respeitabilidade que CC e o arguido BB fizeram passar, de que estes pretendiam efectivamente adquirir a fracção em causa e que esta se destinava à habitação por BB, os representantes legais da "B..." aceitaram celebrar contrato-promessa de compra e venda. 54.° No dia 30/10/2007 foi celebrado, no stand de vendas do empreendimento, contrato-promessa de compra e venda entre a "B..." e BB, pelo valor de € 320.000, tendo CC preenchido o cheque número ...13, da conta número ...71 do Banco 1..., titulada por BB, no valor de € 64.000, que este último assinou. 55.° No dia 8/11/2007 surgiram no empreendimento 2 casais de ..., acompanhados de 2 menores, sendo um deles constituído por AA e EE, pais de BB, e as restantes pessoas cuja identificação não se logrou apurar. 56.° AA insistiu com o guarda da obra, GG, para entrar na mesma, para visitar a fracção, referindo que, se não lhes permitissem fazê-lo, da próxima vez viriam mais 50 pessoas e se fosse preciso acampavam à porta do prédio. 57.° Mantiveram-se na entrada do local até às 17.30h, momento em que se retiraram do mesmo. 58.° Ainda nesse dia, AA, ou alguém a seu mando, efectuou várias chamadas para a vendedora HH, proferindo a expressão "havemos de te apanhar". 59.° No dia 11/11/2007, pelas 15.30h, o mesmo grupo voltou ao local com o intuito de falar com o responsável do empreendimento, tendo--se introduzido no prédio através do portão das garagens, sendo que, após terem sido convidados a sair, referiram, em tom ameaçador, que se não lhe telefonassem no dia seguinte, iam colocar 30 pessoas à porta do escritório. 60.° Nessa ocasião, interpelaram uma pessoa que fazia menção de entrar no prédio, dizendo que iam ser vizinhos e que ficariam encostados à porta até às 18 horas. 61.° Ao mesmo tempo, dirigiam-se aos potenciais compradores, que aí se encontravam, dizendo para não comprarem naquele local, que iriam ser burlados. 62.° Nessa mesma noite, AA contactou FF, representante da "B...", propondo reforçar o sinal com mais € 64.000 para que BB se pudesse mudar de imediato para o local, o que FF recusou. 63.° No dia 16/11/2007, foi agendada uma reunião entre o advogado da "B...", o Dr. II, BB e AA, tendo este último, aquando da marcação da reunião, declarado que iriam viver 20 pessoas para a fracção. 64.° O referido advogado conduziu a reunião no sentido de anular o negócio, o que AA recusou, dizendo que, se não deixassem a família mudar-se até ao dia 15/12/2007, se mudariam com as mobílias respectivas para a porta do edifício, ao mesmo tempo dizendo que iria fazer queixa aos tribunais e ao "..." por racismo. 65.° Nessa ocasião e por força do tom elevado da voz com que AA se dirigiu aos presentes, o director do ... pediu para saírem, pois já tinha queixas de todos os utilizadores do mesmo. 66.° No dia 18/11/2007, pelas 15.30h, AA e um casal não identificado, fizeram menção de entrar novamente no prédio, não lhes tendo sido permitida a entrada pelo guarda da obra, o que levou AA a declarar em tom elevado e agressivo, dirigindo-se aos potenciais compradores que se aproximavam do local, "o engenheiro está a burlá-los e não quer devolver o nosso dinheiro", "a vendedora fugiu e não apareceu mais", o que fazia com que estes se afastassem do local. 67.° Nessa ocasião, AA disse ainda "não vamos a tribunal, porque vamos resolver tudo aqui no prédio". 68.° Nesse contexto foi suscitada a intervenção da PSP no local, a qual AA apelidou de errada, sendo que, quando se retiraram, referiram que iriam para a sede da sociedade exigir explicações acompanhados de 50 pessoas. 69.° No dia 22/11/2007, pelas 11.30h, compareceram na sede da "B..." BB e AA, acompanhados de um grupo de 10 pessoas de ..., tendo entrado no edifício e ocupado o átrio do mesmo, falando em tom elevado. 70.° Porque o funcionário de segurança impediu a sua entrada no escritório, os arguidos BB e AA proferiram, durante cerca de 45 minutos, frases como "se não nos recebem havemos de vir cá com mais 50 e então vocês vão ver como é", "também havemos de ir todos para o prédio e não saímos de lá", "se for preciso temos pistolas para resolver isto" e "se calhar temos de matar alguém". 71.° Os arguidos e o restante grupo ausentaram-se repentinamente do local cerca de 5 minutos antes de agentes da PSP terem aí comparecido. 72.° Nesse mesmo dia, AA, BB e o restante grupo dirigiram-se ao local da obra, onde por várias vezes proferiram a frase "se não nos deixam entrar, vamos partir tudo". 73.° Estes arguidos diziam aos potenciais clientes, que faziam menção de entrar no prédio, para não comprarem fracções, porque seriam burlados, o que os levava a afastarem-se do local. 74.° No dia 25/11/2007, BB e AA, acompanhados de um menor, tentaram introduzir-se no prédio, tendo sido impedidos pelo guarda de serviço. 75.° Durante todo o período em que se mantiveram no local, os arguidos BB e AA diziam que foram burlados, que venderam um apartamento de 50 mil contos para ir viver no prédio em causa, e afirmaram que iriam trazer móveis e tendas para acampar à frente do mesmo. 76.° Quando se dirigiam potenciais clientes ao prédio, diziam-lhes para não comprarem fracções, porque iriam ser burlados. 77.° No dia 07/12/2007 o arguido AA, EE e outro casal, cuja identificação não se logrou apurar, tentaram entrar no prédio quando uma funcionária o fazia. 78.° Para o efeito, AA desferiu 2 empurrões em GG, guarda da obra e, em conjunto com outros 2 indivíduos, impediu a entrada do pintor, dizendo "vai lamber o cu a ele para te abrir o portão". 79.° No dia 08/12/2007, pelas 11 horas, os arguidos AA e BB, acompanhados de um casal cuja identidade não se logrou apurar, mantiveram-se junto ao prédio em causa. 80.° Pelas 14.30h desse dia, AA e BB tentaram impedir a entrada de um morador na garagem, colocando-se à frente da viatura, apelidaram-no de aldrabão e afirmaram que estava "marcado", tendo-se mantido no local até às 16.30h. 81.° No dia 09/12/2007, pelas 14 horas, BB e AA, acompanhados por um casal cuja identidade não se apurou, compareceram junto do prédio em causa, tendo os arguidos declarado que tinham 10 irmãos e 10 cunhados. 82.° Disseram ainda nessa ocasião que a partir de 15/12/2007 iriam entrar no prédio de qualquer maneira, que não tinham medo da polícia. 83.° Na mesma ocasião, voltaram a dirigir-se aos potenciais compradores que se aproximavam, afirmando que iriam ser vizinhos e que o responsável pela empresa não deixava as pessoas ver as casas depois de receber o sinal. 84.° No mesmo acto, diziam aos potenciais clientes para não comprarem apartamentos, pois iriam ser burlados, o que fazia com que estes se afastassem do local. 85.° No dia 15/12/2007, pelas 15.30h, AA, acompanhado de um menor, compareceu no local, tendo-se introduzido nas garagens atrás de uma pessoa que entrou nas mesmas. 86.° AA dirigiu-se ao guarda, em tom elevado, dizendo que ia subir com uma pessoa, não identificada, que acabava de entrar, o que a levou a sair do edifício, por temer pela sua integridade física. 87.° Disse ainda nessa ocasião que, se não deixassem ocupar o apartamento prometido vender, iriam montar a tenda em frente do prédio, acrescentando "depois vão ver como é". 88.° AA dirigiu-se na mesma ocasião aos potenciais compradores que faziam menção de entrar no prédio, dizendo-lhes para não comprarem ali porque seriam burlados, o que levava as pessoas a afastarem-se. 89.° Perante as situações criadas no recinto, constrangidos pela iminência do prejuízo patrimonial que resultaria de não estarem a vender qualquer outra fracção no empreendimento, bem como por receio pela integridade física das pessoas que aí trabalhavam, tendo em conta as ameaças proferidas, os representantes legais da "B..." aceitaram celebrar acordo de revogação do contrato--promessa de compra e venda, que previa a devolução do sinal em singelo, acrescida de uma compensação. 90.° Em 29/02/2008 foi celebrado, entre BB e a "B...", um acordo de revogação de contrato-promessa de compra e venda, em que esta aceitou devolver o valor pago a título de sinal, € 64.000, e pagar € 32.000 a título de compensação pela cessação do contrato. 91.° Para o efeito, foram emitidos, no dia 29/08/2008, à ordem de BB, o cheque número ...71, da conta número ...03, no valor de € 84.000, e o cheque número ...43, da conta número ...92, no valor de € 12.000, titulada por II. 92.° Tais cheques foram apresentados a pagamento em 03/03/2008, na conta número ...0 do Banco 1..., titulada por BB. IV. "Q..., S.A." 93.° A sociedade "Q..., S.A." (doravante "Quinta ..."), desenvolveu, no ano de 2009, um empreendimento designado "...", sito na Av. ..., ..., .... 94.° Em data não apurada, mas anterior a 27 de Junho de 2009, DD deslocou-se ao stand de vendas do empreendimento, acompanhado de BB, e declarou desejar comprar um apartamento para oferecer à filha, que ia casar com o jovem que o acompanhava. 95.° Nas reuniões que tiveram com os representantes legais da "Quinta ...", DD e o arguido BB apresentaram-se sempre bem vestidos, comportando-se sempre com urbanidade. 96.° Após visita ao empreendimento, acabaram por escolher um apartamento, situado no Edifício A, Bloco C, piso 2, no valor de € 190.000, tendo chegado de imediato a acordo. 97.° Porque se convenceram, em face da imagem de sustentabilidade financeira, seriedade e respeitabilidade que DD e o arguido BB fizeram passar, de que estes pretendiam efectivamente adquirir a fracção em causa e que esta se destinava à habitação por BB, os representantes legais da "Quinta ..." aceitaram celebrar contrato-promessa de compra e venda. 98.° No dia 04/07/2009 foi celebrado o contrato-promessa de compra e venda, entre DD e "Q..., Lda.", relativamente à fracção em causa. 99.° Nessa data, DD emitiu e entregou o cheque número ...35, da conta número ...00 da Banco 4..., por si titulada, no valor de € 47.500, a título de sinal. 100.° No dia 08/07/2009, DD, acompanhado de AA e, aproximadamente, 30 pessoas de ..., compareceram no empreendimento. 101.° DD disse que prendia mostrar o apartamento à sua família, sendo que a partir desse momento AA, que se identificou como "JJ", assumiu a liderança do grupo, tendo perguntado quando podiam mudar-se para lá. 102.° AA declarou nessa ocasião que pretendia visitar o apartamento. 103.° No mesmo acto, as crianças corriam por todo o lado e atiravam pedras, as mulheres cantavam e dançavam com grande alarido e alguns indivíduos do grupo, não identificados, afirmaram que não valia a pena pôr relva, porque iam plantar batatas, prender o burro às árvores e colocar um fogareiro à frente do prédio para fazer as suas festas, tendo alguém que integrava tal grupo declarado que queria plantar couves no jardim e montar uma barraquinha para vender roupa. 104.° Posteriormente, em data não apurada, DD e o arguido AA, acompanhados por cerca de 10 indivíduos de ..., não identificados, compareceram no empreendimento, sempre afirmando que pretendiam ir viver de imediato para o apartamento. 105.° Ao mesmo tempo, informaram que, enquanto não os deixassem fazê-lo, iam manter-se à porta da urbanização para evitar a venda dos imóveis às restantes pessoas, para tanto estacionando as carrinhas e carros em que se faziam transportar à entrada. 106.° Na mesma ocasião, as crianças que faziam parte do grupo entravam no stand de vendas a gritar e sujavam tudo. 107.° O arguido AA, DD e mais 10 indivíduos, não identificados, voltaram ao local, em data não apurada, mas anterior a 05/08/2009, mantendo-se aí de forma ordeira, situação que se modificava de cada vez que surgia um potencial cliente, momento em que as mulheres começavam a cantar e a interpelar pessoas, dizendo "não me diga que vem morar para o pé dos ciganos", o que fazia com que estas se afastassem. 108.° Decorrido algum tempo, DD modificou o seu discurso e exigências, afirmando que os representantes legais da "Quinta ..." se recusavam a proceder à escritura de compra e venda por serem de ..., facto negado por aqueles. 109.° Em face desta postura, DD passou a insistir que lhes entregassem dinheiro para sair dali, caso contrário, continuariam a fazer pressão, com o objectivo de não permitir que a empresa vendesse outros apartamentos. 110.° Foram realizadas várias reuniões, que tiveram lugar em data não concretamente determinada, mas sempre anterior a 05/08/2009, onde estiveram presentes DD, BB, que se identificava como "KK", e AA, que se identificava como "JJ", sendo que este último exigia alterações ao apartamento e a entrega da chave, afirmando que os promotores eram "racistas" e que "vocês não querem é vender aos ciganos". 111.° Numa dessas reuniões, AA acabou por declarar "se não querem vender, também não queremos a casa!" e "queremos o sinal em dobro". 112.° Perante as situações criadas no recinto, constrangidos pela iminência do grave prejuízo patrimonial que resultaria de não estarem a vender qualquer outra fracção no empreendimento, bem como por receio pela integridade física das pessoas que aí trabalhavam, tendo em conta as ameaças proferidas, os representantes legais da "Quinta ..." aceitaram celebrar acordo de revogação do contrato--promessa de compra e venda, que previa a devolução do sinal em singelo, acrescida de uma compensação. 113.° No dia 05/08/2009, "Quinta ..." e DD assinaram um acordo de cessação de contrato-promessa, em que acordaram revogar o contrato-promessa de compra e venda anteriormente celebrado, mediante a entrega de € 60.000, correspondentes a € 47.500 de sinal e € 12.500 a título de compensação. 114.° No dia 10/08/2009 foi emitido e entregue o cheque número ...08, da conta número ...30 da Banco 4..., titulada por Quinta ..., Lda., à ordem de DD, no valor € 60.000. 115.° Tal cheque foi apresentado a pagamento em 10/08/2009, na conta número ...00 da Banco 4..., titulada por DD. 116.° Os arguidos BB e AA e o CC actuaram da forma supra descrita, simulando pretender adquirir os referidos apartamentos à "U...", à "L..." e à "B...", para celebrar os contratos-promessa relativos à aquisição dos mesmos, com vista à posterior obtenção do sinal em dobro. 117.° Os arguidos BB e AA e o DD actuaram da forma supra descrita, simulando pretender adquirir o referido apartamento à "Quinta ...", para celebrar o contrato--promessa relativo à aquisição do mesmo, com vista à posterior obtenção do sinal em dobro. 118.° Os arguidos BB e AA e o CC e o DD nunca pretenderam adquirir tais apartamentos para que neles BB residisse. 119.° Para o efeito, os mesmos apresentaram-se perante as empresas vendedoras como indivíduos com uma boa situação sócio-económica, dessa forma induzindo os legais representantes das mesmas em erro, levando-os a crer que efectivamente pretendiam adquirir os imóveis em causa para neles o arguido BB residir e que iriam pautar o seu comportamento por normas de urbanidade aceitáveis no contexto da vivência em propriedade horizontal. 120.° Após celebrarem cada um dos contratos-promessa de compra e venda, e na execução do plano previamente delineado, os arguidos BB e AA, e também o DD quanto à "Quinta ...", na companhia de outras pessoas de ..., adoptavam comportamentos de desordem social e ameaçadores, perante os funcionários dos empreendimentos e hipotéticos compradores, com o intuito de demover estes de adquirir fracções nesse local, o que relativamente à "U...", à "L..." e à "B..." era do conhecimento de CC. 121.° Os arguidos BB e AA e o DD - este, quanto à "Quinta ..." - levaram a cabo esta conduta, agindo em comunhão de esforços entre si, com o intuito de constranger as sociedades construtoras a aceitar celebrar acordos de revogação dos respectivos contratos-promessa de compra e venda, com devolução do sinal em dobro, por força da iminência do grave prejuízo patrimonial que resultaria de não lograrem vender qualquer outra fracção nos seus empreendimentos, bem como por receio pela integridade física das pessoas que aí trabalhavam ou viviam, tendo em conta as ameaças proferidas. 122.° CC quis prestar, como prestou, a sua colaboração para a realização dos três primeiros contratos-promessa, sabendo do intuito dos arguidos BB e AA de constranger as sociedades construtoras a aceitar celebrar acordos de revogação dos respectivos contratos-promessa de compra e venda, com devolução do sinal em dobro, por força da iminência do grave prejuízo patrimonial que resultaria de não lograrem vender qualquer outra fracção nos seus empreendimentos, bem como por receio pela integridade física das pessoas que aí trabalhavam ou viviam, tendo em conta as ameaças proferidas. 123.° Os arguidos BB e AA e o CC e o DD sabiam que, por força da sua conduta, ficaria lesado o património das referidas sociedades. 124.° Agiram de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era punida por lei. 125.° Nada consta dos CRC dos arguidos BB e AA. 126.° O arguido BB nasceu em .../.../1988, no seio de um agregado constituído pelos pais e três irmãos, tratando-se de uma família de .... 127.° O arguido AA, pai do arguido BB, era ... e tinha uma loja e a mãe do arguido BB era doméstica. 128.° Abandonando o sistema de ensino no 2.º ciclo de escolaridade, o arguido BB passou a ajudar o progenitor na loja que o mesmo explorava em ..., comercializando vestuário e outros produtos. 129.° Com vinte e um anos de idade, o arguido BB adquiriu, em 11.03.2009, um apartamento em .... 130.° Entretanto, tal arguido, assim como os seus pais, foram residir para o ..., até Abril de 2016. 131.° Ao voltar a Portugal, o arguido BB foi detido em 03.05.2016, por cumprimento dos mandados de detenção emitidos em virtude da declaração da sua contumácia no âmbito destes autos. 132.° Neste país, não regressou à habitação que adquirira, que não tinha mobília/recheio, e que se encontrava em situação de "crédito malparado" relativamente à entidade bancária que financiou a respectiva aquisição com cento e vinte e cinco mil euros. 133.° O arguido BB reside com a companheira e dois filhos menores de idade em casa da avó da companheira, coabitando com a mesma. 134.° A companheira do arguido BB não exerce actividade profissional, já tendo sido beneficiária do rendimento social de inserção, e a avó da mesma é pensionista/reformada. 135.° O arguido AA nasceu em .../.../1957, em .... 136.° No Proc. n.° 1495/07...., da ... Vara Criminal de ..., em audiência de julgamento, no dia 23.04.2013, foi determinada a separação de processos relativamente aos arguidos BB e AA, que não se encontravam notificados e cujo paradeiro se desconhecia, tendo por isso sido extraída a certidão que deu origem aos presentes autos, onde os arguidos foram declarados contumazes em 14.10.2013, situação em que o arguido BB permaneceu até 03.05.2016, data em que foi detido por cumprimento dos mandados de detenção emitidos em virtude da declaração da sua contumácia; o arguido AA permaneceu em situação de contumácia até 25.10.2016, data em que se apresentou em juízo e prestou termo de identidade e residência. 137.° Os arguidos BB e AA, regularmente notificados, faltaram à audiência de julgamento realizada nos presentes autos e não justificaram as suas faltas, e não foi possível fazê-los comparecer, apesar de ter sido ordenada a sua detenção para esse efeito, por não terem sido localizados; não foi possível elaborar o relatório social do arguido AA, por o mesmo ter faltado à entrevista para a qual, com vista a tal elaboração, foi convocado. 138.° Os arguidos BB e AA não manifestaram arrependimento ou juízo crítico da sua conduta.» Âmbito e objeto do recurso 9. O recurso tem, pois, por objeto um acórdão proferido pelo tribunal coletivo que aplicou uma pena de prisão superior a 5 anos. Limita-se ao reexame de matéria de direito (artigo 434.º do CPP), não vindo invocado qualquer dos vícios ou nulidades referidos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º do CPP, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 432.º, na redação introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro, que passou a admitir recurso da 1.ª instância para o Supremo Tribunal de Justiça com estes fundamentos. O âmbito do recurso, que circunscreve os poderes de cognição deste tribunal, delimita-se pelas conclusões da motivação (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso, se for caso disso, em vista da boa decisão do recurso, de vícios da decisão recorrida a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995), de nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito) e de nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro). Estando em causa uma situação de concurso de crimes (artigos 30.º, n.º 1, e 77.º do Código Penal), pode este tribunal conhecer de todas as questões de direito relativas à pena conjunta aplicada aos crimes em concurso e às penas aplicadas a cada um deles, englobadas naquela pena única, inferiores àquela medida, se impugnadas (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 5/2017, DR I, de 23.6.2017), como sucede no caso presente. 10. Mostram-se satisfeitos os requisitos impostos pelos artigos 374.º e 375.º do CPP, nomeadamente quanto à fundamentação em matéria de facto e em matéria de direito, bem como quanto à escolha e determinação da medida das penas, não se revelando qualquer dos vícios de decisão a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP, os quais, na previsão deste preceito, devem resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência, e não ocorrem nulidades não sanadas que devam ser conhecidas. 11. Em síntese, tendo em conta as conclusões da motivação do recurso, este Tribunal é chamado a apreciar e decidir: (a) Se os factos provados preenchem os elementos do tipo de crime de extorsão, da previsão do artigo 223.º do Código Penal – conclusões 1 a 8 – e se “a interpretação do disposto no artigo 223.º do CP, ao considerar que os comportamentos dados como assentes, são atuações normais e típicos (“comportar-se de forma estereotipada” como consta na decisão recorrida) da ..., constituindo assim uma ameaça, de molde a preencher o elemento do tipo de crime extorsão, é inconstitucional, por violação do art.º 13º da C.R.P.” – conclusão 9; e, subsidiariamente, (b) Se os factos provados integram a figura do crime continuado (n.º 2 do artigo 30.º do Código Penal) e se, sendo o caso, a pena deverá ser reduzida para 4 anos de prisão – conclusões 10 a 14; (c) Se as penas parcelares e a pena única aplicadas são excessivas e, sendo-o, devem ser reduzidas e aplicado o regime de atenuação especial da pena (artigo 72.º, n.º 2, al. d), do Código Penal), sendo a pena única fixada em 4 anos e 6 meses de prisão,. suspensa na sua execução – conclusões 15 a 36. Quanto à questão da incriminação – crimes de extorsão [supra, 11 a)] 12. Perante a matéria de facto provada, o acórdão recorrido fundamentou a decisão em matéria de direito, quanto à qualificação jurídica dos factos, nos seguintes termos: «1. Enquadramento jurídico-penal Os arguidos estão pronunciados pela prática, como autores materiais, de três crimes de extorsão previstos e punidos pelo art. 223.º, n.ºs 1 e 3, al. a), com referência aos arts. 204.º, n.º 2, al. a) e 202.º, al. b), do Código Penal, e um crime de tentativa de extorsão previsto e punido pelas mesmas disposições legais e ainda de acordo com o disposto no art. 22.º do Código Penal. Pratica um crime de extorsão previsto no art. 223.º, n.º 1, do Código Penal, quem, com intenção de conseguir para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, constranger outra pessoa, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, a uma disposição patrimonial que acarrete, para ela ou para outrem, prejuízo. Dos factos provados resulta que os arguidos, agindo em conjugação de esforços, usando ameaças de agressão física e violência e adoptando os descritos comportamentos de desordem social perante as sociedades construtoras ofendidas, respectivos funcionários e potenciais compradores dos empreendimentos daquelas, constrangeram as ofendidas, com medo de que fosse lesada a integridade física das pessoas que nelas trabalhavam ou das que ali viviam e do prejuízo que resultaria de não conseguirem vender qualquer outra fracção, a entregar-lhes as quantias descritas nos factos provados, causando-lhes prejuízo de igual valor. Estabelece o art. 223.º, n.º 3, al. a), do Código Penal, que a prática de um crime de extorsão é punida com pena de prisão entre 3 e 15 anos quando o prejuízo patrimonial for de valor consideravelmente elevado (por referência ao disposto no art. 204.º, n.º 2, al. a), do Código Penal). Constitui valor consideravelmente elevado aquele que exceder 200 unidades de conta avaliadas no momento da prática do facto (art. 202.º, al. b) do Código Penal). Valor consideravelmente elevado é, assim, neste caso, aquele que excede € 19.200 ou € 20.400, tendo em conta o momento em que os factos foram praticados em cada uma das quatro situações (art. 3.º da Lei n.º 65/98, de 2/9, DL n.º 212/89, de 30/6, e DL n.º 34/2008, de 26/2). Atendendo ao montante do prejuízo referido nos factos provados relativamente a cada uma das situações, pretendido ou efectivamente conseguido, verifica-se que cada um dos montantes pagos ou pretendido pelos arguidos é de valor consideravelmente elevado, pelo que se encontra preenchida a circunstância agravante mencionada. Apenas nas situações II. e IV. (respeitantes à "L..." e à "Quinta ...), respectivamente, não foi pago pela ofendida qualquer valor aos arguidos (apenas foi restituído o valor do sinal), num caso, e o valor do pagamento feito pela ofendida (€ 12.500) não atingiu o legalmente previsto para a agravação estabelecida pelo art. 223.º, n.ºs 1 e 3, al. a), com referência aos arts. 204.º, n.º 2, al. a) e 202.º, al. b), do Código Penal, no outro, pelo que apesar da prática concertada pelos arguidos de actos tendentes à obtenção do resultado típico - visavam obter os correspondentes sinais, nos valores de € 84.200 e de € 47.500, respectivamente, em dobro -, este não se verificou totalmente. Nestas situações os arguidos praticaram dois crimes de tentativa de extorsão com referência às mesmas disposições legais e ao disposto nos arts. 22.° e 23.° do Código Penal. Por outro lado, tendo os arguidos agido, não só com conhecimento dos factos referidos e com a intenção de os realizar, mas também com a intenção de conseguir para si enriquecimento ilegítimo, à custa do correspondente prejuízo das ofendidas, mostra-se preenchido o tipo subjectivo desta incriminação (o enriquecimento pretendido era ilegítimo, na medida em que não correspondia ao exercício de qualquer direito, mas a pagamentos que resultavam de um esquema abusivo, adoptado para a obtenção de tais quantias, de ameaça e de perturbação do funcionamento do negócio das ofendidas), sendo a actuação dos arguidos em co-autoria, por terem actuado de forma concertada (art. 26.° do Código Penal). Por isso, praticaram os arguidos dois crimes de extorsão p. e p. pelo art. 223.º, n.ºs 1 e 3, al. a), com referência aos arts. 204.º, n.º 2, al. a), e 202.º, al. b), do Código Penal, e dois crimes de tentativa de extorsão p. e p. pelos arts. 22.º, 23.º, 73.º, n.º 1, als. a) e b), e 223.º, n.ºs 1 e 3, al. a), com referência aos arts. 204.º, n.º 2, al. a), e 202.º, al. b), do Código Penal.» 13. Relembrando as conclusões da motivação, diz o recorrente, em discordância, que a atuação descrita nos factos provados, «analisada objetivamente não se integra no conceito “de violência ou de ameaça”, elemento essencial para a verificação do tipo p.p. art.º 223.º do CP» e que «inexiste, objetivamente, uma relação de causalidade adequada entre tais comportamentos e a resolução, com, nalguns casos a entrega em dobro do sinal». Depois de convocar o acórdão deste tribunal de 03-07-2002, Proc. n.º 1748/02 – 3.ª secção (Armando Leandro), tece o recorrente um conjunto de considerações de ordem geral sobre o crime de extorsão que, no essencial, refletem a jurisprudência e a construção e estrutura do tipo de crime, unanimemente reconhecidas e que seguidamente se enunciam (seguindo-se, em particular, Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, Vol. I, 2022, pp. 443ss, José Damião da Cunha, O Crime de Extorsão, Católica Editora, Porto, 2019, e Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Católica Editora, 3.ª ed., 2015, p. 864-866, que se seguem, bem como os acórdãos deste Tribunal de 10-10-1996, CJ/STJ, IV, Tomo 3, p. 156, e de 06-05-1998, CJ/STJ, VI, Tomo 2, p. 197). 14. Dispõe o artigo 223.º (extorsão) do Código Penal, na redação atual, resultante da Lei n.º 65/98, de 02/09: “1 - Quem, com intenção de conseguir para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, constranger outra pessoa, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, a uma disposição patrimonial que acarrete, para ela ou para outrem, prejuízo é punido com pena de prisão até 5 anos. 2 - Se a ameaça consistir na revelação, por meio da comunicação social, de factos que possam lesar gravemente a reputação da vítima ou de outra pessoa, o agente é punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos. 3 - Se se verificarem os requisitos referidos: a) Nas alíneas a), f) ou g) do n.º 2 do artigo 204.º, ou na alínea a) do n.º 2 do artigo 210.º, o agente é punido com pena de prisão de 3 a 15 anos; b) No n.º 3 do artigo 210.º, o agente é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos. 4 - O agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias se obtiver, como garantia de dívida e abusando da situação de necessidade de outra pessoa, documento que possa dar causa a procedimento criminal.” São, pois, elementos do tipo objetivo de crime (n.º 1) o ato de exercer violência ou ameaça de mal importante, como meio de constranger outra pessoa a uma disposição patrimonial que cause prejuízo para ela ou para outrem, com a intenção de conseguir para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo. Tutelando diversos bem jurídicos – o património e a liberdade, incidindo diretamente na proteção da liberdade de disposição patrimonial –, o crime de extorsão é um crime de processo típico (ou de execução vinculada), no sentido de que os meios para a sua realização estão taxativamente referidos na lei – a ação de constrangimento de outra pessoa é levada a efeito “por meio de violência ou de ameaça com mal importante”, que tem por objeto um ato de disposição patrimonial, que tem como correspondente o prejuízo que o agente pretende provocar. A violência tanto pode ter uma expressão física, como psíquica, e tanto pode ser dirigida a pessoas, inclusivamente a terceiros, ou a coisas. Sujeito passivo da extorsão (extorquido) é o titular do interesse patrimonial prejudicado; porém, pode não ser assim, pois o agente pode exercer violência ou ameaça de mal importante sobre uma terceira pessoa como meio de constranger o sujeito passivo à disposição patrimonial. A ameaça terá de ser de um dano ou um prejuízo relevante (importante), que tanto pode corresponder a um facto ilícito típico como a um ato lícito. “A ameaça tem de ser de molde a criar no espírito da vítima um fundado receio de grave e iminente mal, sendo irrelevante que este mal seja justo ou injusto” – acórdão de 10.10.1996, cit. “I - Cabe no conceito de extorsão toda a ameaça de um mal suficiente para vergar a vontade de um homem médio. II - Basta que a concretização da ameaça seja apta, segundo as regrais da experiência comum, para se conseguir o objectivo que se deseja com ela. Não é necessário que a ameaça seja de um mal ilícito, bastando que seja importante do ponto de vista da generalidade das pessoas. III - O facto de o mal cominado não ser propriamente ilegal não retira coloração à expressão ameaça com mal importante, a que se refere o art. 223.º do CP – acórdão de 06-05-1998, cit.) As maiores afinidades são com o crime de coação, pois todos os elementos integrantes da factualidade típica deste crime fazem também parte do crime de extorsão, especializando-se este, em relação àquele, apenas pela exigência de a conduta coagida se traduzir num prejuízo para o sujeito passivo (que tanto pode ser a vítima como outra pessoa) e num enriquecimento ilegítimo para o agente ou para terceiro, não bastando a mera lesão da liberdade de disposição. Contudo, é fundamental que tanto a violência como a ameaça, enquanto requisitos típicos imprescindíveis, sejam idóneas e adequadas a constranger o visado a fazer a pretendida disposição patrimonial. Isto é, que, quer o meio de execução seja a violência quer seja a ameaça, é necessário que entre o constrangimento – contra quem recaia a violência ou a ameaça com mal importante sobre a pessoa que haja de realizar a disposição patrimonial ou sobre uma outra pessoa que pertença ao “círculo existencial” daquela – e o acto de disposição patrimonial haja uma relação de adequação, pois que, sendo um crime de resultado – consistente na disposição patrimonial –, há que considerar o disposto no artigo 10.º, n.º 1, do Código Penal, segundo o qual, na comissão por ação (como sucede no caso dos autos), quando um tipo legal de crime compreender um certo resultado, o facto abrange a ação adequada a produzi-lo. Assim, o comportamento típico abrangerá desde as ações de simples constrangimento até às ações que eliminam em absoluto a possibilidade de resistência, incluindo aquelas que afetam psicológica e mentalmente a capacidade de decidir, mas sempre todas elas dirigidas à adoção de um certo comportamento, pretendido pelo agente e contrário à vontade do visado. 15. A resposta a dar às questões suscitadas no recurso requer atenção particular aos conceitos de “violência” e “ameaça de mal importante”, enquanto meios de realização do tipo de crime, e à relação de “adequação” ou “causalidade adequada” entre os comportamentos do arguido e o resultado pretendido, que, no caso, era a entrega dos valores do sinal em dobro. Devendo, a este propósito, salientar-se que a violência consiste “numa modalidade particular e mais pressionante de ameaça – a agressão /ameaça atual (ou seja, em execução, já em curso ou iminente)”, ou seja, “a diferença de conteúdo entre o elemento típico violência e ameaça (com mal importante) apenas se reporta à atualidade ou à futuridade do mal/desvantagem”. O “mal” deve ser apresentado como uma “ocorrência dependente da vontade do agente e, por isso, para o qual tenha influência ou afirme ter uma influência, real ou suposta”. O “mal” há de traduzir-se “numa ocorrência prejudicial, num dano ou perigo de dano dependente da vontade do agente”. O mal ameaçado “tem de ser importante, ou seja, sério, no sentido de que tem de ser adequado a conseguir o efeito pretendido (adequação que deve ser averiguada de um ponto de vista ou critério objetivo-individual – assim também Taipa de Carvalho, loc. cit. p. 450); logo um instrumento-meio adequado a limitar o poder/liberdade de disposição patrimonial da vítima. Para esse efeito, haverá que proceder a uma apreciação que considere as circunstâncias objetivas do caso concreto e tenha em conta as especificidades da vítima. Assim, o prejuízo ameaçado ou a desvantagem temida têm de ser adequados a determinar um ‘ser humano razoável’ ao comportamento ‘coagido’”. Admitindo-se que as vítimas sejam terceiros, que não a pessoa do extorquido, a definição do universo das pessoas que pode ser objeto do constrangimento tem de efectuar-se também em função do critério de adequação, “de modo a que se possa dizer que o extorquido terá sido motivado à prática de um ato de disposição patrimonial em razão dos meios de constrangimento”. “O que está em causa é saber se a violência ou o mal ameaçado podem ser ‘sentidos’ pelo destinatário da ameaça como fator de constrangimento, mesmo que as vítimas do mal sejam terceiros, que não a pessoa do coagido/ameaçado”. Só haverá crime de extorsão, “porque só assim haverá crime de coação, se os meios de constrangimento tiverem efetivamente determinado a vítima á disposição patrimonial”, sendo pois “necessário que a decisão da vítima/extorquido tenha sido consequência, pelo menos em parte, da coação exercida”, o que significa que a decisão não foi aquela que a vitima teria tomado livremente; exatamente porque o efeito de constrangimento afetou a sua liberdade de autodeterminação, eliminando ou restringindo as suas opções/alternativas decisórias” (Damião da Cunha, loc. cit., pp. 29-31, 34-35). 16. De acordo com a matéria de facto provada, o meio utilizado pelos arguidos consistia em “constranger” as sociedades “U..., SA”, “L..., SA”, “B..., SA”, e “Q..., SA”, a resolver os contratos-promessa, com o objetivo de obterem um enriquecimento pela devolução dos valores do sinal em dobro, a que não tinham direito, através de diversos comportamentos, tais como: - Permanecendo nos empreendimentos, com diversos indivíduos de ... onde proferiam expressões como “se não nos deixam entrar, vamos partir tudo”; as crianças corriam no local e atiravam pedras, entravam no stand de vendas e sujavam tudo e as mulheres cantavam e dançavam com grande alarido (factos provados em 16.º, 33.º, 36.º, 55.º, 56.º, 59.º, 60.º, 72.º, 74.º, 100.º, 103.º e 106.º) - Forçando a sua entrada nos empreendimentos, tendo desferido inclusive dois empurrões ao funcionário da “B...”, GG (factos em 77.º, 78.º, 82.º, 85.º, 86.º e 87.º); - Fazendo as refeições no local, usando todo o espaço, deixando-o completamente sujo (facto 17.º); - Afugentando potenciais compradores, porquanto, quando se apercebiam da sua entrada, faziam comentários como “vamos ser vizinhos”, “vamos usar os jardins com toda a nossa família”, dirigiam-se-lhes e diziam para não comprarem naquele local que iriam ser burlados, ou referiam “não me diga que vem morar para ao pé dos ciganos” (factos 18.º, 60.º, 61.º, 66.º, 73.º, 75.º, 76.º, 83.º, 84.º, 88.º, 100.º e 105.º), tendo tentado impedir a entrada de um morador no empreendimento da “B...” proferindo a expressão que “estaria marcado” (facto em 80.º); - Ameaçando os funcionários e vendedores que se encontravam nos empreendimentos e não se sentiam seguros, tendo os arguidos BB e AA se dirigido, por diversas vezes, aos funcionários que estavam no stand de vendas expressões como ”vocês só estão seguros aí dentro”, “sabemos onde vocês moram”, “sabemos quais são os vossos carros”, e efetuando diversas chamadas para a vendedora HH proferindo a expressão “havemos de te apanhar” (factos 20.º e 58.º); - Deslocando-se, por diversas vezes, acompanhados de vários indivíduos de ..., aos escritórios das sociedades, tendo na sociedade “L...”, referido que “partiam esta merda toda” e “que isto ia ser levado para o mal”; quando reuniram com responsáveis pela comercialização de um dos empreendimentos o arguido AA mencionou que se não o autorizassem a visitar o apartamento “partia a cabeça a alguém”, tendo os arguidos causado diversos distúrbios (factos 39.º, 42.º e 44.º), tais como, deslocando-se à sede da “B...” acompanhados de vários indivíduos de ... e ocuparam o átrio, onde proferiam expressões ameaçadoras como “se não nos receberem havemos de vir cá com mais 50 e então vamos ver como é”, “se calhar temos de matar alguém” (facto 70.º); - Os comportamentos dos arguidos e das pessoas que estes aí fizeram deslocar-se levaram a que, por diversas vezes, fosse chamada a polícia aos locais (em 12/02/2007 foi solicitada a intervenção da PSP ... – facto 20.º e factos 40.º, 43.º, 44.º, 68.º e 71.º), tendo sido instaladas câmaras de segurança na entrada e exterior de um dos stands de vendas e contratado segurança com cão (facto em 21.º). 17. Resulta dos factos provados que os descritos comportamentos de “desordem social e de caráter ameaçador” foram levados a efeito “com o intuito expresso de dissuadir eventuais futuros compradores da aquisição de fracções naquele local”, que essas condutas “destinavam-se a levar os promitentes-vendedores a fazer cessar o contrato-promessa de compra e venda e, deste modo, a devolver o sinal em dobro, perante a iminência de, em face de tais comportamentos, não venderem qualquer fracção e do elevado prejuízo económico daí decorrente”, e que, em consequência disso, “constrangidos pela iminência do prejuízo patrimonial que resultaria de não lograrem vender qualquer outra fracção nos respectivos empreendimentos, bem como por receio quanto à integridade física dos trabalhadores e residentes, os promitentes-vendedores aceitaram celebrar acordos de revogação dos correspondentes contratos-promessa de compra e venda, que previam a devolução do sinal em dobro”. Resulta ainda dos factos provados que “Os arguidos (...) e AA e (...) levaram a cabo esta conduta, agindo em comunhão de esforços entre si, com o intuito de constranger as sociedades construtoras a aceitar celebrar acordos de revogação dos respectivos contratos-promessa de compra e venda, com devolução do sinal em dobro, por força da iminência do grave prejuízo patrimonial que resultaria de não lograrem vender qualquer outra fracção nos seus empreendimentos, bem como por receio pela integridade física das pessoas que aí trabalhavam ou viviam, tendo em conta as ameaças proferidas”, que o arguido AA tinha “o intuito de constranger as sociedades construtoras a aceitar celebrar acordos de revogação dos respectivos contratos-promessa de compra e venda, com devolução do sinal em dobro, por força da iminência do grave prejuízo patrimonial que resultaria de não lograrem vender qualquer outra fracção nos seus empreendimentos, bem como por receio pela integridade física das pessoas que aí trabalhavam ou viviam, tendo em conta as ameaças proferidas” e que “os arguidos (...) e AA (...) sabiam que, por força da sua conduta, ficaria lesado o património das referidas sociedades. 18. Face ao que anteriormente se consignou a propósito da estrutura do crime de extorsão (supra, 13 a 15), não pode deixar de se concluir que esta matéria de facto preenche, na sua totalidade, os elementos do tipo objetivo e subjetivo do crime de extorsão da previsão do artigo 223.º, n.º 1, do Código Penal. Pelo que não merece censura a conclusão obtida no acórdão recorrido de que “Dos factos provados resulta que os arguidos, agindo em conjugação de esforços, usando ameaças de agressão física e violência e adoptando os descritos comportamentos de desordem social perante as sociedades construtoras ofendidas, respectivos funcionários e potenciais compradores dos empreendimentos daquelas, constrangeram as ofendidas, com medo de que fosse lesada a integridade física das pessoas que nelas trabalhavam ou das que ali viviam e do prejuízo que resultaria de não conseguirem vender qualquer outra fracção, a entregar-lhes as quantias descritas nos factos provados, causando-lhes prejuízo de igual valor.” 19. Em síntese, mostra-se fundado concluir que, agindo com intenção de conseguir um enriquecimento ilegítimo – devolução dos valores do sinal em dobro, a que não tinham direito –, por meio de violência ou ameaça de mal importante – criando, pelos seus comportamentos, receio pela integridade física das pessoas que nos locais trabalhavam ou viviam e tornando iminentes receios de graves prejuízos patrimoniais que resultariam de não lograrem vender outras fracções dos empreendimentos imobiliários –, constrangeram as proprietárias dos empreendimentos a resolverem os contratos-promessa, daí resultando, para estas, os prejuízos identificados, que só não ocorreram efetivamente nas duas situações em que, não tendo sido pagos quaisquer valores, foram praticados atos de execução na forma de tentativa (artigo 22.º do Código Penal) . Vista de uma perspetiva normativa – a que se limita o recurso (artigo 434.º do CPP, supra, 9) –, em função do critério “objetivo-individual” de imputação do resultado ao agente, na consideração das circunstâncias objetivas dos factos concretos e das vítimas, nos termos do artigo 10.º, n.º 1, do Código Penal, não se encontra motivo que afaste a adequação, o nexo de causalidade, entre o comportamento do arguido, a gravidade da ameaça do mal (importante) e o resultado pretendido e conseguido, total ou parcialmente, pelo arguido, que os factos provados demonstram. Tudo ponderado, conclui-se que os arguidos praticaram todos os actos de execução de quatro crimes de extorsão, sendo dois deles na forma tentada, não havendo razão para duvidar de que as ameaças utilizadas constituíram um “mal importante”, idóneo e adequado a preencher a previsão típica, incluindo o resultado visado pelos agentes, em violação da liberdade de disposição patrimonial dos ofendidos. Assim, tendo em conta a matéria de facto provada, não procede o argumento do recorrente de que não se encontra preenchida a previsão típica do ilícito, alegando que a conduta levada a cabo por este se comportou no que é habitual em indivíduos oriundos de estratos socioculturais desfavorecidos e que a resolução dos contratos-promessa teve lugar por vontade “livre, espontânea e esclarecida”, não sendo o comportamento do arguido a causa/motivo para que os ofendidos se sentissem coagidos a resolver os negócios, revogando os contratos que haviam outorgado. 20. A este propósito, pugna o arguido pugna pela inconstitucionalidade do artigo 223.º do Código Penal quando interpretado no sentido de que os comportamentos dados como assentes, que são atuações normais e típicas da ... (“comportar-se de forma estereotipada”, como consta da decisão recorrida), constituem uma ameaça, por violação do artigo 13.º da Constituição (conclusão 9 da motivação de recurso). A invocação da inconstitucionalidade reconduz-se a uma alegação de violação desta disposição constitucional na operação da valoração dos factos e da sua subsunção à previsão normativa de um elemento do tipo objetivo do crime de extorsão, qual seja a de que esses comportamentos constituiriam uma ameaça de um mal importante para se conseguir o pretendido resultado de disposição patrimonial. Quanto a este elemento, afirma o arguido que, “[se] trata de uma questão cultural/educacional sem olvidar que o arguido é de ... com um modo de vida em sociedade muito peculiar. Não estamos perante o emprego de qualquer tipo de violência nem tão pouco perante a utilização de qualquer ameaça. Não se encontra preenchida a previsão típica do ilícito. A conduta levada a cabo pelo arguido insere-se naquilo que é habitual, nos indivíduos oriundos de estratos sócio-culturais desfavorecidos. (...) Assim e ao contrário do que parece resultar na decisão recorrida inexiste “um nexo de causalidade entre os comportamentos dos arguidos e a decisão de revogar os contratos promessa.” “As situações descritas estão fora do âmbito da esfera de protecção da norma (art.º 223º do CP), pois falha a imputação objectiva. O comportamento do recorrente não era causa/motivo, para que os ofendidos se sentissem, objectivamente, coagidos a resolver os negócios revogando os contratos promessa que haviam outorgado. “Tais comportamentos são próprios e naturais do respectivo modo de vida e cultura. Poder-se-á dizer que não correspondem ao comportamento “padrão” que se espera num condomínio, mas daí até criminalizar tais comportamentos, como fez a decisão recorrida, vai um passo demasiado longo. Tanto mais que o direito penal é um direito de “ultima ratio”, ou de intervenção mínima, no sentido de que a criminalização de uma conduta só se legitima se constituir meio necessário para a proteção de determinado bem jurídico. Se outros meios de controle social se revelarem suficientes para a tutela desse bem, a sua criminalização será inadequada e desnecessária - artigo 18.º, n.º 2 do Constituição da República Portuguesa – o princípio constitucional da intervenção mínima do Direito Penal – o qual foi violado. Ora as condutas humanas socialmente inadequadas são sancionadas de diversas formas, tal como multas pecuniárias, obrigações de fazer ou de não fazer, restrição de direitos, etc. Só as condutas humanas mais reprováveis devem ser criminalizadas. Há condutas que merecem reprimendas apenas de ordem financeira, sendo certo que em situações como a dos autos, outros ramos do Direito podem ser utilizados para sancionar condutas inadequadas. A interpretação do disposto no artigos 223º do CP, ao considerar que os comportamentos dados como assentes, são actuações normais e típicos (“comportar-se de forma estereotipada” como consta na decisão recorrida) da ..., constituindo assim uma ameaça, de molde a preencher o elemento do tipo de crime extorsão, é inconstitucional, por violação do art.º 13º da C.R.P.”. 21. O artigo 204.º da Constituição, ao dispor que “nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados”, estabelece o princípio de que todos os tribunais, seja qual for a sua categoria (artigo 209.º) exercem fiscalização concreta da constitucionalidade nos processos submetidos a julgamento. A questão da constitucionalidade, cujo objeto tem que ver com a conformidade ou desconformidade de uma norma ou da interpretação de uma norma de direito infraconstitucional com uma norma constitucional, “só pode e só deve” ser conhecida na medida em que haja um nexo incindível entre ela e a questão principal objeto do processo, entre ela e o feito submetido a julgamento (Jorge Miranda, O Regime de Fiscalização Concreta da Constitucionalidade em Portugal, www.icjp.pt/sites/default/files/media/1119-2440.pdf, p. 4). Como se viu, a questão suscitada não diz respeito à interpretação e aplicação da norma do artigo 223.º do Código Penal em conformidade com um sentido normativo presente ou extraído de um elemento caraterizador do tipo de crime previsto neste preceito, configurado em violação do artigo 13.º da Constituição, que estabelece o princípio da igualdade dos cidadãos, proibindo a discriminação, nomeadamente por razões étnicas ou de condição social. O acórdão recorrido não diz – nem podia dizer – que o comportamento do arguido e das demais pessoas que o acompanharam é crime ou constitui ameaça enquanto meio de execução do crime de extorsão pelo facto de constituir expressão própria do grupo social em que o arguido se integra, nem conclui que esta característica constitui um elemento normativo para definir o conteúdo da ameaça exigida pela norma incriminadora ou para determinar a idoneidade da ameaça. A forma como o arguido avalia a decisão da matéria de facto mais não é do que a expressão da sua discordância com a apreciação dos elementos de prova efetuada pelo tribunal de 1.ª instância e com o sentido da sua decisão, o que per se não consubstancia questão de constitucionalidade que cumpra conhecer, inexistindo, pois, fundamento que justifique um juízo de inconstitucionalidade da interpretação normativa que permitiu ao tribunal de 1.ª instância concluir pelo preenchimento do tipo legal de crime face à matéria de facto que resultou provada. O juízo de não concordância relacionado com o facto do acórdão recorrido ter concluído que os comportamentos dos arguidos preenchiam o tipo legal do crime de extorsão, por ter concluído que as provas assim o impunham, é matéria estranha ao juízo de constitucionalidade da interpretação das normas invocadas. Face ao que se conclui pela inexistência da alegada inconstitucionalidade do artigo 223.º do Código Penal. 22. Pelo exposto, improcede o recurso nesta parte. b) Quanto ao crime continuado [supra, 11(b)] 23. Subsidiariamente, defende o arguido que “dos factos provados resulta estar-se perante a realização plúrima do mesmo tipo de crime (extorsão); homogeneidade da forma de execução; lesão do mesmo bem jurídico; unidade de dolo,” que as condutas foram levadas a cabo ao longo do tempo “no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminui consideravelmente a culpa do agente”, pois que “o facto de o arguido ter logrado obter lucro na primeira revogação do contrato promessa celebrado com a ‘U...’, induziu-o à possibilidade de repetição do procedimento nas restantes situações”, devendo, assim, ser a condenação “convolada para a prática de um crime de extorsão, na forma continuada (nº 2 do art.º 30 do CP)” (conclusões 10.ª a 13.ª). O que remete para a questão de saber se, como decidiu o tribunal a quo, ocorre uma situação de concurso de crimes ou um só crime continuado (artigo 30.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal) 24. Nos termos do artigo 30.º, n.º 1, do Código Penal “o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efetivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente”. Por sua vez dispõem os n.ºs 2 e 3 deste mesmo dispositivo legal: “2 - Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente. 3 - O disposto no número anterior não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais”. 25. De acordo com o artigo 30.º, n.º 1, do Código Penal, que transpõe para a lei o pensamento de Eduardo Correia, refletido na jurisprudência, determinando-se o número de crimes pelo número de tipos de crime efetivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente, o critério determinante da unidade ou pluralidade de crimes, de que deve partir-se, é o tipo legal de crime violado e não o número de ações praticadas pelo agente. Na dimensão que agora interessa, se a atividade do agente preenche várias vezes o mesmo tipo legal de crime, necessariamente se nega o mesmo valor diversas vezes, existindo, por conseguinte, uma pluralidade de infrações. O «número de vezes» que o mesmo tipo de crime foi preenchido dever contar-se pelo número de juízos de censura, o que deve reconduzir-se a uma pluralidade de processos resolutivos, de resoluções ou de decisões criminosas ou à renovação do mesmo processo. Esta pluralidade seria excluída, em regra, pela continuidade temporal das várias condutas, «sempre que, de acordo com as circunstâncias do caso, devesse aceitar -se que “o agente executou toda a sua atividade sem ter que renovar o respetivo processo de motivação”». Porém, na observação de Figueiredo Dias, seguida na jurisprudência, embora a unidade ou pluralidade de processos de resolução constitua, em certos casos, um elemento importante para decidir da unidade ou pluralidade de crimes, a essência do facto punível que constitui o crime, reside no “substrato de vida dotado de um sentido negativo de valor jurídico-penal, no ilícito-típico,” pois que é a “unidade ou pluralidade de sentidos (autónomos) de ilicitude típica”, “existente no comportamento global do agente submetido à cognição do tribunal, que decide em definitivo da unidade ou pluralidade de factos puníveis e, nesta aceção, de crimes” (Direito Penal, 3.ª ed., GestLegal, 2019, pp. 1150, 1170) (assim, o acórdão de 15.03.2023, Proc. 1310/17.3T9VIS.C1.S1, em www.dgsi.pt). Haverá, pois, concurso de crimes, nos termos do artigo 30.º, n.º 1, do Código Penal, punível de acordo com o artigo 77.º, quando o comportamento do agente, independentemente do seu grau de identidade ou semelhança, preenche mais que uma vez o mesmo tipo legal de crime. Afirma-se, a este propósito, no acórdão de fixação de jurisprudência n.º 8/2019 (DR 1.ª série, 23.12.2019): “A consideração do bem jurídico e da pluralidade de juízos de censura, determinada pela pluralidade de resoluções, como referente da natureza efetiva da violação plural, tem sido indicada na jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça como essencial para determinar se, em casos de pluralidade de ações ou pluralidade de tipos realizados, existe, efetivamente, concurso (…), na linha do pensamento de Eduardo Correia plasmado no artigo 30.º, n.º 1, do Código Penal, com a consideração de elementos da posição doutrinária de Figueiredo Dias. (…) Outra jurisprudência inspira-se predominantemente, de forma direta, no pensamento de Figueiredo Dias, quando afirma que «é a unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica, existente no comportamento global do agente submetido à cognição do tribunal, que decide em definitivo da unidade ou pluralidade de factos puníveis e, nesta acepção, de crimes». (…) Para Eduardo Correia o «número de vezes» que o mesmo tipo de crime foi preenchido deveria contar-se pelo número de juízos de censura, o que deveria reconduzir-se a uma pluralidade de processos resolutivos, de resoluções ou de decisões criminosas ou à renovação do mesmo processo. Esta pluralidade seria excluída, em regra, pela continuidade temporal das várias condutas, «sempre que, de acordo com as circunstâncias do caso, devesse aceitar -se que “o agente executou toda a sua actividade sem ter que renovar o respectivo processo de motivação”» (§§ 22, 28). Nesta linha de pensamento, a descontinuidade temporal tem constituído um elemento referencial de diferenciação e de autonomização de “pedaços de vida” diversos, com “pluralidade de sentidos de ilicitude” que constituem ilícitos típicos distintos configurando situações de concurso efetivo de crimes, na aceção do artigo 30.º, n.º 1, do Código Penal (como se afirmou no acórdão de 08.06.2022, Proc. 430/21.4PBPDL.L1.S1, em www.dgsi.pt). 26. Porém, nos termos do n.º 2 do mesmo artigo 30.º, a concretização plúrima do mesmo tipo de crime, realizada por forma essencialmente homogénea e no quadro da mesma solicitação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente, integrará um só crime, continuado, exceto se o mesmo tipo de crime perpetrado várias vezes ou os vários tipos de crime praticados violarem bens eminentemente pessoais (n.º 3), situação em que advirá um concurso efetivo de crimes (n.º 1). Como já se viu (supra, 14), o crime de extorsão, integrado na categoria dos “crimes contra o património em geral”, é um crime pluriofensivo, que tutela diversos bem jurídicos – o património e a liberdade –, visando diretamente a proteção da liberdade de disposição patrimonial, a liberdade de decisão e de ação, cuja lesão é conatural à extorsão (Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, Vol. I, 2022, cit., p. 449). Neste sentido, enquanto forma de tutela da liberdade de decisão pessoal, o crime de extorsão protege um bem jurídico iminentemente pessoal, embora simultaneamente também proteja o património (Damião da Cunha, O Crime de Extorsão, cit., p. 20; assim, a jurisprudência citada). Assim, a realização plúrima do mesmo tipo de crime, ou de vários tipos de crime que essencialmente protejam o mesmo bem jurídico, executada de forma homogénea e no quadro da mesma solicitação exterior não integrará crime continuado se os crimes praticados violarem bens eminentemente pessoais (acórdão de 23.11.2022, Proc. 754/20.8JABRG.G1.S1, em www.dgsi.pt), como sucede no caso presente. Citando de novo Taipa de Carvalho (ob. cit., p. 457-458): “A extorsão de várias pessoas determina um concurso efetivo de crimes, havendo tantos crimes quantos os ofendidos. Tal fundamenta-se no facto de ser elemento essencial da extorsão a lesão de bens eminentemente pessoais, desde logo e sempre, a lesão da liberdade de ação. A mesma razão leva à exclusão da figura do crime continuado, afirmando-se tantos crimes quantas as vezes que o crime de extorsão tiver sido cometido mesmo que contra a mesma pessoa.”. 27. Acresce que o pressuposto do crime continuado se revela na existência de uma relação que, de fora, e de modo considerável, facilita a repetição da atividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, de acordo com o direito, ou seja, que o facto seja praticado no mesmo quadro de solicitação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente (cfr. Eduardo Correia, Direito Criminal, II, p. 209). Como se tem sublinhado, a diminuição sensível da culpa, exigida pelo artigo 30.º, n.º 2, só poderá ter lugar quando a ocasião favorável à prática do crime se repete, sem que o agente tenha contribuído para essa repetição, já não quando o agente a provoca, nomeadamente escolhendo o tempo, o local, a vítima e o modo de execução dos crimes (assim, acórdão de 08.06.2022, Proc. 430/21.4PBPDL.L1.S1, cit.), como sucede neste caso Com efeito, como resulta dos factos provados, os arguidos AA e BB “delinearam um plano que lhes permitiria, com o apoio de vários membros do seu núcleo familiar e outros indivíduos com eles relacionados, a obtenção de proventos a que não tinham direito”, e é na execução desse plano que cometeu os vários crimes, escolhendo o tempo, os locais, as vítimas e os modos de execução dos crimes, adaptando o modus operandi às especificidades de cada situação e a cada sociedade ofendida. Conforme resulta da matéria de facto provada, a reiteração de condutas, a que correspondem várias resoluções criminosas separadas no tempo, não encontra justificação em qualquer circunstância ou solicitação externa capaz de diminuir a culpa, nomeadamente no alegado facto “de o arguido ter logrado obter lucro na primeira revogação do contrato promessa celebrado com a ‘U...’” o ter “induziu[do] à possibilidade de repetição do procedimento nas restantes situações”. 28. Pelo que, não se verificando os pressupostos da figura do crime continuado, improcede também, nesta parte, o recurso interposto. Quanto às penas [supra, 11 (c)] 29. O acórdão recorrido concluiu que o arguido praticou dois crimes de extorsão p. e p. pelo artigo 223.º, n.ºs 1 e 3, al. a), com referência aos artigos 204.º, n.º 2, al. a), e 202.º, al. b), do Código Penal, e dois crimes de tentativa de extorsão p. e p. pelos artigos 22.º, 23.º, 73.º, n.º 1, alíneas a) e b), e 223.º, n.ºs 1 e 3, al. a), com referência aos artigos 204.º, n.º 2, al. a), e 202.º, al. b), do Código Penal. Em consequência do que lhe aplicou as penas de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão e de 4 (quatro) anos e 9 (nove) meses de prisão, pela prática dos crimes de extorsão na forma consumada, e de 3 (três) anos de prisão e de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, pela prática dos crimes de extorsão na forma tentada, e, realizando o cúmulo jurídico destas penas, condenou o arguido na pena única de 8 (oito) anos de prisão, fundamentado a decisão de determinação destas penas nos seguintes termos: “A prática de um crime de extorsão (agravada) previsto pelos arts. 223°, n.°s 1 e 3, al. a), com referência ao art. 204.°, n.° 2, al. a) e 202.°, al. b), do Código Penal, é punível com pena de prisão de 3 a 15 anos. A prática de um crime de tentativa do mesmo tipo de crime, em resultado da atenuação especial imposta pelo disposto nos arts. 23.° e 73.° do Código Penal, é punível com pena de 7 meses e 6 dias a 10 anos de prisão. Tendo o direito penal uma função exclusiva de preservação de bens jurídicos, as finalidades das penas serão sempre de carácter preventivo. Tal resulta igualmente do art. 40.°, n.° 1, do Código Penal, ao afirmar-se que a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. Assim, por referência àquele normativo, a determinação da medida da pena deve ser feita em função das exigências de prevenção geral e especial que a situação concreta oferece. Neste caso, relativamente a todas as situações, as exigências de prevenção geral revelam-se muito elevadas, atendendo aos montantes de prejuízo patrimonial envolvidos, consequência do enriquecimento ilegítimo pretendido ou efectivamente conseguido, à repetição da actividade criminosa e ao alarme social gerado, o que implica uma particular necessidade de afirmação da norma violada. As consequências dos crimes revelam-se de elevada intensidade (embora menos elevada nos dois casos em que o resultado típico almejado pelos arguidos não se verificou totalmente), pelo valor dos prejuízos causados e pela violência, ameaças e perturbação do funcionamento do negócio das ofendidas usadas. Relativamente às exigências de prevenção especial, constata-se que as mesmas se revelam médias-altas, porquanto, apesar de os arguidos que vão ser condenados não terem outros antecedentes criminais, não repararam sequer parcialmente qualquer prejuízo cuja concretização determinaram, não tendo também mostrado qualquer arrependimento ou juízo crítico da sua conduta, sendo considerável (nomeadamente, pela respectiva dimensão e duração) a intensidade dos actos que com astúcia (porque sempre escudados na questão da pretensa discriminação), de forma manipuladora e reiteradamente foram capazes de exercer, com absoluta indiferença pelo elevado sofrimento e prejuízo causados, para alcançar o seu propósito de enriquecimento ilegítimo à custa do correspondente prejuízo das ofendidas. Na determinação da medida da pena devem ser tidas em conta, de acordo com o disposto no art. 71.°, n.° 1, do Código Penal, a culpa do agente e as exigências de prevenção, não podendo, em caso algum, a pena ultrapassar a culpa do agente (art. 40.°, n.° 2, do Código Penal). No presente caso, nas quatro situações, verifica-se que a culpa dos agentes é elevada, pois o dolo é directo e a insistência na actividade criminosa é muito relevante, com recurso ao apoio de diversos colaboradores nessa actividade. Assim, ponderando todos os aspectos, consideram-se adequadas as penas de: - 5 anos e 6 meses de prisão quanto ao crime de extorsão agravada relativo à "U..."; - 3 anos de prisão quanto ao crime de tentativa de extorsão agravada relativo à "L..."; - 4 anos e 9 meses de prisão quanto ao crime de extorsão agravada relativo à "B..."; - 3 anos e 6 meses de prisão quanto ao crime de tentativa de extorsão agravada relativo à "Quinta ...". Uma vez que os arguidos praticaram todos os crimes considerados nestes autos antes da condenação por qualquer deles, deverão ser condenados numa pena única, face ao disposto no art. 77.° do Código Penal, que, tendo em conta os concretos factos praticados, o grau de violência, de ameaça e de perturbação do funcionamento do negócio das ofendidas, o valor do enriquecimento pretendido e o do efectivamente conseguido e a personalidade dos agentes manifestada na forma de execução dos factos, se situa em 8 anos de prisão quanto a ambos os arguidos.” 30. No que respeita à situação e às condições pessoais do arguido AA consta dos factos provados que este nasceu em .../.../1957, em ... (ponto 135 dos factos provados), que “nada consta do crc” (certificado do registo criminal) (ponto 125), que foi residir para o ... até 2016 (ponto 130), que “não foi possível elaborar o [seu] o relatório social, por o mesmo ter faltado à entrevista para a qual, com vista a tal elaboração, foi convocado” (ponto 137) e que não manifestou “arrependimento ou juízo crítico da sua conduta” (ponto 138). Resulta ainda dos factos provados que o arguido constituiu família, sendo pai de quatro filhos, era ..., tinha uma loja em ... em que comercializava vestuário e outros produtos e a mulher era doméstica (pontos 126 a 128). Os presentes autos tiveram origem em certidão extraída do processo n.º 1495/07...., da ... Vara Criminal de ..., nos quais foi determinada em audiência de julgamento, no dia 23.04.2013, a separação de processos relativamente aos arguidos BB e AA, tendo estes arguidos sido declarados contumazes em 14.10.2013, situação que, relativamente ao arguido AA, ora recorrente, se manteve até 25.10.2016, data em que se apresentou em juízo e prestou termo de identidade e residência (ponto 136 dos factos provados). O julgamento teve lugar em 2017, tendo o acórdão condenatório sido proferido em 14.12.2017. O arguido voltou a ausentar-se para o ... e só veio a ser notificado do acórdão condenatório em junho de 2022. 31. Dispõe o artigo 40.º do Código Penal, que se refere às finalidades das penas, que “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” e “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”, a qual se delimita pela conjugação dos fatores relevantes nos termos do artigo 71.º. Estabelece o n.º 1 do artigo 71.º que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, devendo o tribunal atender a todas as circunstâncias relacionadas com o facto praticado (facto ilícito típico) e com a personalidade do agente manifestada no facto, relevantes para avaliar da medida da pena da culpa e da medida da pena preventiva, que, não fazendo parte do tipo de crime (proibição da dupla valoração), deponham a favor do agente ou contra ele, nomeadamente, as indicadas no respetivo n.º 2. Para a medida da gravidade da culpa há que, de acordo com este preceito, considerar os fatores reveladores da censurabilidade manifestada no facto, nomeadamente, nos termos do n.º 2, os fatores capazes de fornecer a medida da gravidade do tipo de ilícito objetivo e subjetivo – fatores indicados na alínea a), primeira parte (grau de ilicitude do facto, modo de execução e gravidade das suas consequências), e na alínea b) (intensidade do dolo ou da negligência) – e os fatores a que se referem a alínea c) (sentimentos manifestados no cometimento do crime e fins ou motivos que o determinaram) e a alínea a), parte final (grau de violação dos deveres impostos ao agente), bem como os fatores atinentes ao agente, que têm que ver com a sua personalidade – fatores indicados na alínea d) (condições pessoais e situação económica do agente), na alínea e) (conduta anterior e posterior ao facto) e na alínea f) (falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto). Na consideração das exigências de prevenção, a levar a efeito no momento da aplicação da pena, destacam-se as circunstâncias relevantes em vista da satisfação de exigências de prevenção geral – traduzida na proteção do bem jurídico ofendido mediante a aplicação de uma pena proporcional à gravidade dos factos, reafirmando a manutenção da confiança comunitária na norma violada – e, sobretudo, de prevenção especial, as quais permitem fundamentar um juízo de prognose sobre o cometimento de novos crimes no futuro, e assim avaliar das necessidades de socialização. Incluem-se aqui as consequências não culposas do facto [alínea a), v.g. frequência de crimes de certo tipo, insegurança geral ou pavor causados por uma série de crimes particularmente graves], o comportamento anterior e posterior ao crime [alínea e), com destaque para os antecedentes criminais] e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto [alínea f)]. O comportamento do agente [circunstâncias das alíneas e) e f)] adquire particular relevo para determinação da medida concreta da pena em vista da satisfação das exigências de prevenção especial, em função das necessidades individuais e concretas de socialização do agente, devendo evitar-se a dessocialização. Como se tem sublinhado, é na determinação e na consideração destes fatores que deve avaliar-se a concreta gravidade da lesão do bem jurídico protegido pela norma incriminadora, materializada na ação levada a efeito pelo arguido pela forma descrita nos factos provados, de modo a verificar se a pena aplicada respeita os mencionados critérios de adequação e proporcionalidade que devem pautar a sua aplicação (cfr., entre outros, os acórdãos de 8.6.2022, Proc. 430/21.4PBPDL.L1.S1, de 26.06.2019, Proc. 174/17.1PXLSB.L1.S1, de 9.10.2019, Proc. 24/17.9JAPTM-E1.S1, e de 3.11.2021, Proc. 875/19.0PKLSB.L1.S1, cit.). 32. Nos termos do artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal, que estabelece as regras da punição do concurso de crimes (artigo 30.º, n.º 1), quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena, formada a partir da moldura do concurso, para cuja determinação, seguindo-se os critérios da culpa e da prevenção (artigo 71.º), são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente (n.º 1 do artigo 77.º, in fine), com respeito pelo princípio da proibição da dupla valoração. Aqui se incluem, designadamente, as condições económicas e sociais, reveladoras das necessidades de socialização, a sensibilidade à pena, a suscetibilidade de por ela ser influenciado e as qualidades da personalidade manifestadas no facto, nomeadamente a falta de preparação para manter uma conduta lícita (Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, 3.ª reimp., 2011, p. 248ss; por todos, o acórdão de 8.6.2022, Proc. 430/21.4PBPDL.L1.S, cit. e de 16.2.2022, Proc. 160/20.4GAMGL.S1). Citando e seguindo o afirmado em decisões anteriores: “Tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido a atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta». «A personalidade do agente – a personalidade manifestada no facto – é um factor da mais elevada importância para a medida da pena e que para ela releva, tanto pela via da culpa como pela via da prevenção» (Figueiredo Dias, loc. cit., p. 291). 33. Aos dois crimes de extorsão na forma consumada correspondem, em abstrato, duas penas de 3 a 15 anos de prisão – artigo 223.º, n.ºs 1 e 3 al. a), do Código Penal – e aos dois crimes de extorsão na forma de tentativa duas penas de 7 meses e 6 dias a 10 anos de prisão – penas aplicáveis aos crimes consumados especialmente atenuadas (artigos 23.º, n.º 2, e 73.º, n.º 1, al. a) e b), do Código Penal). Na consideração da gravidade dos fatores relevando por via da culpa, em particular das circunstâncias relativas ao grau de ilicitude e ao modo de execução dos crimes, às suas consequências (em particular os concretos valores dos prejuízos patrimoniais), à intensidade e persistência do dolo, e dos fatores relevantes por via da prevenção, nomeadamente o comportamento anterior e posterior aos crimes (antecedentes criminais, falta de arrependimento ou juízo crítico e omissão de qualquer ato destinado à reparação das consequências), o tribunal fixou penas que, refletindo as diferenças, se situam em escalões inferiores das molduras penais, não muito distantes dos mínimos legais. Embora não expressamente referidas na fundamentação da determinação da pena, as condições pessoais e socioeconómicas apuradas, revelando indicadores de integração social, não evidenciam particularidades com especial relevância para consideração adicional ao nível das exigências de prevenção. As condições de saúde que o recorrente agora invoca dizem respeito a factos novos que não podem ser considerados em sede de recurso, que visa apenas questões relativas à decisão recorrida no que respeita à determinação da pena e não à sua execução. Sendo que, quanto a esta, se imporão, se disso for caso, os necessários cuidados a que um recluso tem direito (cfr., designadamente, os artigos 7.º, n.º 1, al. a), e 32.º e segs. do Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade). Nesta conformidade, tudo ponderado, não se encontra fundamento que permita concluir que as penas aplicadas a cada um dos crimes em concurso, nos termos do artigo 71.º do Código Penal, se mostram determinadas em violação dos critérios de proporcionalidade que lhe devem presidir, de modo a justificar-se qualquer intervenção corretiva. 34. Também pelos mesmos motivos e na consideração da personalidade manifestada nos factos, nos termos do artigo 77.º do Código Penal, por via da ponderação dos fatores relevantes, nomeadamente das condições pessoais e socioeconómicas, do comportamento anterior e posterior aos crimes, cometidos em 2007-2009, não se identifica motivo que, tendo em conta a moldura abstrata do cúmulo, entre 5 anos e 6 meses (pena parcelar mais elevada) e 16 anos e 9 meses (soma das penas concretamente aplicadas) de prisão, autorize a conclusão de que a pena única de 8 anos de prisão foi fixada em violação de idênticos critérios de proporcionalidade. Porém, tendo em conta o longo período de tempo já decorrido desde as datas da prática dos factos, a idade e o comportamento do arguido posteriormente a essas datas, concorrendo no sentido da atenuação das exigências de prevenção, justifica-se uma intervenção corretiva na pena única, que se fixa em 6 anos e 6 meses de prisão. Pelo que, nestes termos, merece o recurso, nesta parte, provimento. Quanto a custas 35. Nos termos do disposto no artigo 513.º do CPP (responsabilidade do arguido por custas), só há lugar ao pagamento da taxa de justiça quando ocorra condenação em 1.ª instância e decaimento total em qualquer recurso. O que não é o caso.
III. Decisão 36. Pelo exposto, decide-se: a) Julgar improcedente o recurso quanto a todas as questões suscitadas, exceto na parte respeitante à determinação da pena única; b) Alterar o acórdão recorrido nesta parte, fixando-se a pena única em 6 anos e 6 meses de prisão; c) Mantendo-se, no mais, a decisão recorrida. Sem custas.
Supremo Tribunal de Justiça, 21 de junho de 2023.
José Luís Lopes da Mota (relator) Maria Teresa Féria de Almeida Sénio Manuel dos Reis Alves |