Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
436/07.6TBVRL.P1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ÁLVARO RODRIGUES
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
MORTE
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
NASCITURO
PERSONALIDADE JURÍDICA
CAPACIDADE JURÍDICA
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
DANOS PATRIMONIAIS
NEXO DE CAUSALIDADE
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
JUROS DE MORA
ACTUALIZAÇÃO MONETÁRIA
Apenso:
Data do Acordão: 04/03/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA EM PARTE A REVISTA DA AUTORA / NEGADA A REVISTA DA RÉ
Área Temática: DIREITO CIVIL / DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL /NASCITURO / PERSONALIDADE JURÍDICA / DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Doutrina: - Carlos Mota Pinto, «Teoria Geral do Direito Civil», 3.ª edição, 1999, pág. 201;
- Dias Marques, «Teoria Geral do Direito Civil», Vol. I, Coimbra Editora, 1958, págs. 57 e ss.;
- Diogo Leite de Campos, «Lições de Direitos de Personalidade», Coimbra, 1992, págs. 43 e ss.;
- Diogo Leite de Campos, «O início da Pessoa Humana e da Pessoa Jurídica», Revista da Ordem dos Advogados, ano 61, Dezembro 2001 (Edição Comemorativa), págs. 1257 e ss.;
- Heinrich Ewald Hörster, «A Parte Geral do Código Civil Português, Almediana, 1992, págs. 301 e ss.;
- Inocêncio Galvão Telles, «Introdução ao Estudo do Direito», vol. II., 10.ª Edição, 2001, págs. 165;
- Luiz Cunha Gonçalves, «Tratado de Direito Civil», Vol. I., 1929, págs. 181 e ss.;
- Maria del Carmen Gómez Rivero, «La imputacion de los resultados producidos a largo prazo», Tirant lo Blanch, Valencia, 1988, págs. 11 e 12;
- Pedro Pais de Vasconcelos, «Teoria Geral do Direito Civil», Almedina, 2012, 7.ª edição, pág 74 e ss.;
- Rabindranath Capelo de Sousa, «Direito Geral de Personalidade», Coimbra Editora, 1995, págs. 165 e ss.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL DE 1867 (SEABRA): ART. 6.º;
CÓDIGO CIVIL: ARTS. 66.º, N.º 2, 496,º, N.º 2; 566.º, N.º 3, 805.º E 806;
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: ART. 732.º-A, N.º 1;
NCPC: ART. 686.º, N.º 1;
PORTARIA N.º 377/2008, DE 26-06;
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA: ARTS. 13.º, 24.º E 25.º;
LEGISLAÇÃO COMUNITÁRIA:
- CONVENÇÃO EUROPEIA DOS DIREITOS DO HOMEM: ART. 2.º;
Legislação Estrangeira: - BÜRGERLICHES GESETZBUCH (BGB) §1
Jurisprudência Nacional: - AUJ N.º 4/2002, DE 09-05, DIÁRIO DA REPUBLICA, I SÉRIE-A, 27-06-2002;
- AC. DO STJ DE 20-11-03, PROC. N.º , RELATOR CONS. SANTOS BERNARDINO
(HTTP://WWW.DGSI.PT/JSTJ.NSF/954F0CE6AD9DD8B980256B5F003FA814/8B27C1C6B0AF267280256E0F0045867A?OPENDOCUMENT)
-AC. STJ DE 28-06-2007, PROC. N.º 2348/06, RELATOR CONS. PIRES DA ROSA
- AC. STJ DE 10-02-2008, IN COLECTÂNEA DE JURISPRUDÊNCIA/STJ, TOMO II, PÁG. 65;
- AC. STJ DE 08-05-2008, PROC. N.º 762/08, RELATOR CONS. SERRA BAPTISTA (HTTP://WWW.DGSI.PT/JSTJ.NSF/954F0CE6AD9DD8B980256B5F003FA814/4F6EFFCADA8202978025744A005078FE?OPENDOCUMENT)
- AC. DO STJ DE 23-10-2008, PROC. N.º 2318/08, RELATOR CONS. SERRA BAPTISTA
(HTTP://WWW.DGSI.PT/JSTJ.NSF/954F0CE6AD9DD8B980256B5F003FA814/218EF653EC14A0BC802574F200376410?OPENDOCUMENT)
- AC. STJ DE 17-02-2009, PROC. N.º 2124/08, RELATOR CONS. HELDER ROQUE
(HTTP://WWW.DGSI.PT/JSTJ.NSF/954F0CE6AD9DD8B980256B5F003FA814/3A877A2AEF1BD0CE8025756F00567079?OPENDOCUMENT)
- AC. RELAÇÃO DE COIMBRA DE 04-04-1995, IN COLECTÂNEA DE JURISPRUDÊNCIA, TOMO II, PÁG. 23 E SS.
Sumário :

I - Repugna ao mais elementar sentido de justiça – e viola o direito constitucional da igualdade – que dois irmãos, que sofrem a perda do mesmo progenitor, tenham tratamento jurídico diferenciado pela circunstância de um deles já ter nascido à data do falecimento do pai (tendo 16 meses de idade) e o outro ter nascido apenas 18 dias depois de tal acontecimento fatídico, reconhecendo-se a um e negando-se a outro, respectivamente, a compensação por danos não patrimoniais próprios decorrentes da morte do seu pai.
II - Seguindo o entendimento magistral do Prof. Pedro Pais de Vasconcelos, o art. 66.º, n.º 1, do CC, deve ser entendido como referindo-se à capacidade de gozo, e não propriamente à personalidade jurídica – como aliás sucedia com o art. 6.º do Código de Seabra e com o §1 do BGB -, uma vez que o reconhecimento da personalidade de seres humanos está fora do alcance e da competência da lei, seja ela ordinária ou constitucional.
III - O nascituro não é uma simples massa orgânica, uma parte do organismo da mãe, ou, na clássica expressão latina, uma portio viscerum matris, mas um ser humano, com dignidade de pessoa humana, independentemente de as ordens jurídicas de cada Estado lhe reconhecerem ou não personificação jurídica.
IV - Ainda na fase intra-uterina os efeitos da supressão da vida paterna fazem-se sentir no ser humano, sendo os danos não patrimoniais daí decorrentes – traduzidos na falta desta figura, quer durante o período de gestação, quer depois do nascimento, com o vazio que tal ausência provoca– merecedores de compensação.
V - No momento do nascimento, completo e com vida, as lesões sofridas pelo nascituro tornam-se lesões da própria criança, ou seja, de um ser com personalidade (Heinrich Ewald Hörster, in «A Parte Geral do Código Civil Português», Almedina, 1992).
VI - Não constitui óbice ao reconhecimento de tal direito o argumento da exigência da contemporaneidade da personalidade com a lesão uma vez que: (i) nos Estados de Direito contemporâneos é cada vez mais frequente a demanda cível e a responsabilização de agentes cujos actos se produzem a longo prazo (de que são exemplo transmissão de doenças cujos efeitos se manifestam anos depois, catástrofes cujos efeitos se revelam a posteriori e traumatismos causados por acidentes cuja evolução para neoplasias malignas acontece a considerável distância cronológica); (ii) a relação entre a causa e o efeito não implica necessariamente que os danos ocorram imediatamente, apenas se exigindo o «nexo umbilical» que determine que o efeito ocorreu devido ao evento causado por terceiro (cf. voto de vencido do Exmo. Sr. Conselheiro Mário Cruz no Acórdão do STJ de 17-02-2009, proc. n.º 08A2124).
VII - Considera-se justa e adequada a quantia pedida pela Autora (filha da vítima) de € 20 000,00, a título de danos não patrimoniais próprios decorrentes da perda do seu pai.
VIII - Na fixação do quantum indemnizatório por danos patrimoniais futuros, a utilização de critérios matemáticos contidos em diplomas legais não se mostra proibida – desde que se mostrem facilitadores do cálculo para a determinação da pensão justa –, mas não substitui a devida ponderação judicial com base na equidade.
IX - Os arts. 805.º e 566.º do CC, ao estatuírem sobre o cálculo da indemnização e efeitos da mora, não fazem qualquer destrinça entre danos patrimoniais e não patrimoniais, razão pela qual os juros serão devidos desde a sentença ou desde a citação apenas e tão somente com base na existência, ou não, na sentença de um raciocínio actualizador.
Decisão Texto Integral:

                                                                          

Acordam no SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

RELATÓRIO

        AA, por si e em representação dos seus filhos menores BB e CC, intentou a presente acção de condenação, emergente de acidente de viação, contra  Companhia de Seguros DD, SA., todos com os melhores sinais dos autos, peticionando indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais que para si advieram como consequência do falecimento do seu companheiro e pai dos seus filhos menores.

Peticiona assim as seguintes quantias:

a) € 400 000,00 à A. AA, a título de alimentos;

b) € 80 000,000 ao A. BB, sendo € 60 000,00 a título de alimentos e € 20 000,00 para ressarcimento de danos não patrimoniais sofridos pelo próprio com o decesso de seu pai;

c) € 82 000,00 à A. CC, sendo € 62 000,00 a título de alimentos e € 20.000,00 para ressarcimento de danos não patrimoniais sofridos pela própria com o decesso de seu pai;

d) € 60.000,00 aos AA. BB e CC, a título de ressarcimento pela perda do direito à vida de EE, seu pai.

Sustentava ainda que sobre tais quantias acrescessem juros de mora a partir da data do sinistro até efectivo e integral pagamento.

A fls. 263, a A. AA veio reduzir o pedido para a quantia de € 522 000,00, o que foi admitido por despacho de fls. 265.

        

Tendo os autos prosseguido para julgamento, com observância das legais formalidades, veio a ser proferida sentença que julgou os pedidos parcialmente procedentes e, em consequência, condenou a Ré a pagar as seguintes quantias:

I. Ao Autor BB:

1. € 20 000,00 (vinte mil euros), a título de ressarcimento por danos não patrimoniais próprios decorrentes da morte de seu pai, EE, acrescida de juros de mora, à taxa de 4%, a contar da data da presente sentença até efectivo e integral pagamento;

2. € 38 500,00 (trinta e oito mil e quinhentos euros), acrescida de juros de mora, à taxa de 4%, a contar da citação até efectivo e integral pagamento, a título de ressarcimento por danos patrimoniais – perda de alimentos - decorrentes da morte de seu pai, EE;

II. À Autora CC, € 40 000,00 (quarenta mil euros), acrescida de juros de mora, à taxa de 4%, a contar da citação até efectivo e integral pagamento, a título de ressarcimento por danos patrimoniais – perda de alimentos - decorrentes da morte de seu pai, EE;

III. Aos Autores BB e CC, na qualidade de herdeiros e na proporção dos respectivos quinhões, € 60 000,00 (sessenta mil euros), acrescida de juros de mora, à taxa de 4%, a contar da citação até efectivo e integral pagamento, a título de ressarcimento pelo dano não patrimonial sofrido por seu pai, EE, consistente na perda da vida;

IV. À Autora AA, a que se vier a fixar em incidente de liquidação posterior à presente sentença, resultante da dedução ao montante de € 215 000 (duzentos e quinze mil euros) das quantias pagas pela Ré a título de alimentos provisórios e em cumprimento da sentença proferida a fls. 37 do procedimento cautelar de arbitramento de indemnização provisória que constitui o apenso A ao presente processo, acrescida de juros de mora, à taxa de 4%, a contar da citação até efectivo e integral pagamento.

Inconformadas com esta decisão, dela vieram interpor recurso ambas as partes, sendo o principal, a Ré COMPANHIA DE SEGUROS DD, S.A,  e  o subordinado, a Autora AA, para o Tribunal da Relação do Porto, que, dando procedência parcial a ambos os recursos, proferiu a seguinte decisão:

«No seguimento do anteriormente exposto, e na procedência parcial dos recursos principais e subordinando interpostos acordam os juízes na secção cível deste tribunal da Relação em alterar a sentença recorrida nos seguintes termos:

 I - No que concerne ao valor a pagar aos autores a título de  indemnização por danos patrimoniais futuros, determinando a condenação da ré a pagar a esse título as seguintes quantias:

À autora DD - €48.000,00

Ao autor BB - € 46.000,00

No que concerne à autora AA, fixando-se a indemnização devida a esse título em €120.000,00, condena-se a Ré seguradora a pagar o que vier a liquidar-se em execução de sentença depois de ser deduzido aquela quantia o valor respeitante às quantias pagas pela ré a título de alimentos provisórios e em cumprimento da sentença proferida no procedimento cautelar de arbitramento de indemnização provisória que constitui o apenso A ao presente processo.

Sobre os valores assim fixados são devidos juros de mora nos termos fixados na sentença recorrida, ou seja, a partir da citação, improcedendo nessa parte o recurso interposto pela ré seguradora;

II – Alteram a sentença recorrida no que concerne à contagem dos juros de mora incidentes sobre os danos não patrimoniais do autor BB, determinando, na  procedência parcial do recurso interposto por este autor, que os juros de mora fixados na sentença recorrida  são devidos desde a citação, e não desde a sentença, como foi decidido;

III – Em tudo o mais confirmam a sentença recorrida, improcedendo os recursos principais e subordinando na parte em que sustentavam a sua alteração.

Novamente inconformadas as mesmas vieram interpor recursos de Revista para este Supremo Tribunal de Justiça, tendo os Recorrentes/Autores AA e Outros, requerido julgamento ampliado de Revista, com vista à uniformização de jurisprudência.

As partes remataram as respectivas minutas recursórias, com as seguintes:

         CONCLUSÕES

           

Dos Recorrentes /Autores, AA e Outros

I- Dano não patrimonial próprio da CC

1 - O nascituro tem um direito próprio a ser indemnizado pelo facto de não ter podido conhecer o pai, ou de ter ficado prematuramente privado da sua companhia ao longo da vida, já que isso representa uma grande privação, que se traduzirá numa constante mágoa, dor ou sofrimento.

2 - Quando a lei prevê casos específicos em que reconhece direitos aos nascituros, não está a afastar, por exclusão de partes, a possibilidade de aplicação aos nascituros dos direitos que na lei surgem como próprios dos filhos. Como se diz no Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 2000.03.20, não há razão para criar distinções onde a lei não distingue. «Ubi lex non distinguit, necque nos distinguire licet».

3 - Acresce que o art. 26.° da Constituição, reconhecendo a todos o direito à identidade pessoal, não estaria a ser cumprido, se se interpretasse o artigo 496° do CC de uma forma discriminativa e limitativa, atribuindo o direito de indemnização por danos não patrimoniais aos filhos que já tenham nascido e não reconhecendo esse mesmo direito a quem esteja apenas concebido (nem que seja com um dia ou meras horas de diferença) ainda que comungando da mesma fonte de identidade ou genética da personalidade progenitora.

4 - Violaria, por outro lado, também, o direito constitucional da igualdade em que seriam colocados os descendentes no mesmo grau, do mesmo progenitor, relativamente ao enunciado direito, sendo certo que tanto um como outro provêm das mesmas pessoas e que a identidade física do filho nascido é a mesma do filho nascituro enquanto encerrado no ventre materno, e que se desenvolve ininterruptamente desde a concepção. De trazer à colação os artºs. 24.°, 25º e 13º da Constituição.

5 - Dado que a CC veio a ser reconhecida como filha da vítima, cabe-lhe, portanto, o direito próprio de ser indemnizada pela dor que ao longo da vida vai ter de sentir pela privação do pai que não chegou sequer a conhecer, indemnização essa que deve ser no montante de 20.000,00 €.

6 - O valor a arbitrar deve ser considerado à data da propositura da acção, vencendo juros desde a citação.

7 - Se se entender que o valor da indemnização pedido deve ser considerado à data a que vier a ser fixada, deverá computar-se em valores entre os 25.000,00€ a 30.000,00€, já que, atualmente, a jurisprudência tem atribuído tais valores - a título de exemplo, acórdãos: RE de 21-06-2011, proc° 192/09.3GTSTB.E1 - 30.000,006; RL de 24-01-2012, proc° Í026/07.9TBVFX.L1-1 - 30.000,006; STJ de 03.11.2010, proc° 55/06.4PTFAR.E1.SI -25.000,00€; STJ de 31-01-2012, proc° 75/05.7TBILH.C1.S1 - 25.000,006, todos em www.dgsi.pt.

II - Dos danos patrimoniais

8 - A Portaria 377/2008, de 26 de Junho, com as alterações posteriores não pode ser utilizada no caso concreto, porque o acidente ocorreu em 02.10.2006, tendo a ação sido interposta em 22.02.2007, - Ac. STJ de 13.09.2012, proc° 1026/07.9TBVFX.LI.SI, in www.dgsi.pt. Vide, ainda, Ac. STJ de 10.05.2012, proc° 9319/03.8TCLRS.L1.S1-2ª secção, www.stj.pt.

9 - Acresce que o critério fundamental para a determinação judicial das indemnizações, é fixado pelo Código Civil. A Portaria nº 377/2008, de 26 de Maio, com ou sem as alterações introduzidas pela Portaria nº 679/2009, de 25 de Junho, destina-se, expressamente, a um âmbito de aplicação extra-judicial. Acs. STJ de 07.02.2013, proc° 3557/07.ITVLSB.Ll.Sl;de 31.09.2012, proc° 1145/07.1TVLSB.L1.S1; de 31.01.2012, proc° 875/05.7TBILH.C1.Sl; de 01.06.2011, proc° 198/00.8GBCLD.L1.S1; de 21.04.2010, proc° 54/07.9PTOER.L1.S1, todos em www.dgsi.pt, entre muitos outros.

10 - Além da jurisprudência praticamente unânime, Prof. Menezes Cordeiro (Tratado do Direito Civil,  Tomo III, Almedina, 2010, págs. 753 e 759), Mota Pinto (Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, Coimbra Editora, Dez 2008, notas 1639 a 1641, págs. 568/571)-

11 - Se se considerar que o salário da inditosa vítima deve ser dividido em 3 partes iguais, para calcular a indemnização a título de danos patrimoniais aos AA., como fez a Relação do Porto, e dado os factos provados a propósito do salário auferido e do que a vítima gastaria consigo própria - pontos 14, 22, 26, 27, 28, 29, 30 e 31 dos factos provados constantes da sentença - a indemnização por danos patrimoniais deve ser de:

- BB - 68.897,00 €;

- DD - 71.767,71€;

- A AA - 71.767,71€, nos primeiros 25 anos, até a DD completar 25 anos de idade.

12 - Quando os menores deixarem de necessitar dos alimentos, o que ocorrerá quando a DD perfizer 25 anos de idade, em Outubro de 2031, os 201,03 € de pelo menos um dos menores devem reverter para a A. durante, previsivelmente, 25 anos, correspondentes à diferença entre a idade que a AA terá quando a DD perfizer os 25 anos de idade (45 anos) e a esperança média de vida de 70 anos, chegando-se a: 143.535,42€ (402,06 x 14 = 5.628,84 € x os segundos 25 anos após a DD deixar de necessitar de alimentos = 140.721,00 € x 2% = 143.535,42€) mais 71.767,71€ (dos primeiros 25 anos) num total de 215.303,13€.

13 - Se se entender que a quantia de 603,08 € deve ser dividida da forma que foi decidida em 1a instância, as indemnizações deverão ser:

- BB - 125,00 € X 14 meses = 1.750,00 € X 24 anos = 42.000,00€ X 2% de taxa de juro = 42.840,00€, que por questões de equidade devem ser fixados em 44.500,00€.

- DD - 125,00 € X 14 meses = l ,750,00 € X 25 anos = 43.750,00 € X 2% de taxa de juro = 44.625,00 €, que por questões de equidade devem ser fixados em 46.300,00 €.

- AA - 350,00€ X 14 meses - 4.900,00 € X 50 anos = 245.000,00 € X 2% de taxa de juro = 249.900,00€, que por questões de equidade devem ser fixados em 250.000.00€.

14 - Ainda para a AA, há a considerar que, quando os menores deixarem de necessitar dos alimentos, o que ocorrerá quando a DD perfizer 25 anos de idade, em Outubro de 2031, os 125,00 € de pelo menos um dos menores deverão reverter para a A. AA durante, previsivelmente, 25 anos correspondentes à diferença entre a idade que a AA terá quando a DD perfizer os 25 anos de idade (45 anos) e a esperança média de vida de 70 anos, no montante de 46.300,00€, num total de 296.300,00€.

15 - A estas quantias não deve ser retirado qualquer montante correspondente à mais valia que adviria para o lesado de receber de uma só vez aquilo que iria recebendo ao longo do tempo, já que, devido à juventude da vítima, não se poder conjecturar que nunca viria a perceber o rendimento global derivado dessa indemnização - Ac. STJ de 29.03.2007, proc° 06B3261, in www.dgsi.pt.

16 - Se assim não se entender, a estas quantias deve ser retirado apenas 10% relativo ao recebimento antecipado, percentagem mais adequada, dada a actual rigidez das aplicações de capital em valores muito baixos e cujo aumento não se prevê para a próxima década ou décadas, o que nos levaria a:

- Ao BB - 62.007,30€ (se divido em partes iguais) ou 40.050€ (se dividido como foi feito em 1ª instância);

- À DD - 64.767,71€ (se divido em partes iguais) ou 41.670,00€ (se dividido como foi feito em 1a instância);

- À AA - 193.772,81€ (se divido em partes iguais) ou 266.670 € (se dividido como foi feito em 1a instância) - Acórdão do STJ de 27.05.2009, proc° 3413/03.2TBVCT.S1.

Da Recorrente/Ré, Companhia de Seguros DD, S.A:

1.   Ponderados os factos dados como provados e os critérios a que o Tribunal deve recorrer, designadamente as decisões jurisprudenciais em casos semelhantes, contrariamente ao que defende o Tribunal a quo, entende a Recorrente que o valor indemnizatório arbitrado pelo Tribunal a quo aos Autores pela perda do direito à vida é um pouco excessivo.

2.   Para tal, deverá ser tomada em consideração a orientação que vem sendo seguida pelos Tribunais Superiores, nomeadamente, a atribuição a este título do montante de €50.000,00.

3.   Quanto à indemnização arbitrada ao Autor BB pelos danos não patrimoniais próprios sofridos em consequência do falecimento do seu pai, atendendo aos contornos do caso concreto, e considerando as decisões em casos semelhantes, nomeadamente, considera a Recorrente que a quantia arbitrada deve ser reduzida.

4.   Efectivamente, fazendo nossos os ensinamentos do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10/11/2009, "uma vez que o falecido e as autoras (viúva e filha) formavam um agregado familiar feliz e harmonioso, entende-se adequado que os valores das respectivas indemnizações por danos não patrimoniais se fixem, respectivamente, em € 25.000,00 para a viúva e em 10.000,00 para a filha." (destaque nosso).

5.   Quanto a esta matéria, entende também a Recorrente que a quantia atribuída a título de danos patrimoniais futuros aos Recorridos pelo Tribunal a quo peca por excesso, conduzindo a um enriquecimento sem causa dos Recorridos.

6.   Acresce que, para efeitos de cálculo, o Tribunal ad quem deverá ter sempre em conta o montante que o infeliz EE gastaria com as suas despesas pessoais, sendo que tal não foi tido em consideração pelo Tribunal a quo.

7.   E partindo da fórmula do Acórdão da Relação de Coimbra de 4 de Abril de 1995 que tem sido aplicada pela jurisprudência nacional para efeitos de fixação dos danos patrimoniais futuros, e que tem por base de cálculo a quantia mensal líquida auferida pela lesada, o número de retribuições mensais auferidas anualmente, a idade da lesada, o número de anos que esta teria até à idade da reforma, a taxa de juros nominal e a taxa de crescimento anual da prestação, chega-se a um valor na ordem dos € 77.000, para a viúva e € 35.000 para os filhos, tendo em conta o que cada um receberia do lesado.

8.   Em segundo lugar, conforme bem decidiu o Tribunal a quo, a tal quantia deve ser retirado cerca de 1/3 pelo facto da entrega antecipada e integral do capital indemnizatório permitir aos Recorridos obter dele um rendimento superior ao seu valor, quer através de um investimento financeiro, industrial ou comercial, quer mediante a sua colocação em conta que vença juros.

9.   Estes factores, não sendo tomados em consideração ao estipular o montante indemnizatório, implicam uma mais-valia para os Recorridos, desvirtuando a razão da indemnização e transformando-a num lucro excessivo e sem causa, violando manifestamente os artºs. 564º e 566º do Código Civil.

10. O quantum indemnizatório atribuído a título de danos patrimoniais futuros deve ser, e foi, como resulta da decisão subjudice, calculado equitativamente, nos termos do nº 2 do art. 566º do Código Civil.

11. Isto porque, tratando-se de uma compensação destinada a compensar danos futuros, alcançada pela via da equidade no momento mais recente que pode ser considerado pelo Tribunal, a indemnização atribuída a título de danos patrimoniais estará, logicamente, actualizada.

12. Pelo que os juros moratórios sobre elas incidentes apenas são devidos a partir da data da decisão que os fixe.

13. No que respeita aos juros incidentes sobre o valor arbitrado aos filhos do infeliz EE, e perda do direito à vida, também estes não poderão ser contabilizados a partir da data da citação,

14. Já que se aquele montante deverá ser fixado pelo douto Tribunal atendendo a critérios de equidade, tendo para isso em consideração as circunstancias do caso concreto, bem como outros factores já aqui mencionados, critérios esses a aferir no decurso da acção judicial, não deverão pois aqueles juros ser contabilizados a partir de momento anterior à decisão que fixa o montante a arbitrar àquele título, já que incidem sobre montante que só ali foi possível determinar pelo Tribunal.

15. Assim, por violar, entre outros, o disposto nos artºs. 483º, 494º, 496º e 566º do Código Civil deve a decisão subjudice ser alterada por outra, que corrija os montantes indemnizatórios arbitrados, de forma justa.

Por cada uma destas partes foram também apresentadas contra-alegações relativamente ao recurso da parte contrária, defendendo a improcedência do mesmo.

         Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir, pois nada obsta ao conhecimento do objecto do presente recurso, sendo que este é delimitado pelas conclusões das alegações dos Recorrentes, nos termos, essencialmente, do artº 684º, nº 3 do CPC, como, de resto, constitui doutrina e jurisprudência firme deste Tribunal.

FUNDAMENTOS

Das instâncias, vem dada como provada a seguinte factualidade:

1. No dia 02.10.2006, pelas 02.00h, no IP4 km 89,837, Vila Real, ocorreu um embate entre dois veículos (A);

2. Nele foi interveniente o ligeiro de passageiros com a matrícula ...-JD, propriedade e conduzido por FF (B);

3. E o ligeiro de passageiros com a matrícula ...QHE... (C);

4. No veículo JD seguia, além do seu condutor, EE, transportado (D);

5. Em virtude do embate, o EE perdeu a vida (E);

6. À data do embate o EE tinha 25 anos de idade (F);

7. O BB, nascido a 19.05.2005, é filho do EE e da Autora (G);

8. O qual á data da morte do pai tinha 16 meses (H);

9. Nas circunstâncias referidas em 1, o veículo com a matrícula ...-JD, circulava no sentido Amarante / Vila Real (1º);

10. Nas mesmas circunstâncias, o veículo com a matrícula ...-JD invadiu a hemi-faixa de rodagem destinada ao sentido Vila Real / Amarante (1º);

11. Após o referido em 10, o veículo com a matrícula 35-66-JD embateu na viatura com a matrícula ...QHE... (2º);

12. O embate mencionado ocorreu na hemi-faixa de rodagem destinada ao sentido Vila Real / Amarante (2º);

13. Imediatamente antes do embate, a viatura com a matrícula ...QHE... circulava no sentido Vila Real / Amarante, na hemi-faixa de rodagem destinada a tal sentido (2º);

14. EE, à data do sinistro, auferia o salário líquido mensal de, pelo menos, € 753,08 (3º);

15. O EE vivia com a A. desde Fevereiro de 2001, em condições análogas às dos cônjuges, isto é, em comunhão de habitação, mesa e leito (4º);

16. CC nasceu no dia 20-10-2006 (5º / 6º / 12º);

17. CC é filha da A. (5º / 6º / 12º);

18. Por sentença proferida no processo n.º 121/10.1TBPNF, do 4º Juízo do Tribunal da Comarca de Penafiel, transitada em julgado no dia 10-09-2010, CC foi declarada filha de EE (5º / 6º);

19. A A. e o EE, tencionavam contrair matrimónio, um com o outro, após o nascimento da filha, tendo, inclusive, planos para a construção de uma casa própria para a família (7º);

20. A A. foi sempre e é, doméstica, não auferindo qualquer rendimento do trabalho ou outro (8º / 11º);

21. O EE, bem como a A., tudo faziam para proporcionar as melhores condições, quer afectivas, quer materiais, ao menor BB (9º);

22. EE pretendia que os seus filhos dispusessem de condições que lhes permitisse obter um grau de formação no ensino superior (10º);

23. EE despendia, por mês, pelo menos, com o sustento do seu filho, referido em G) da matéria assente, a quantia de € 200,00 (11º);

24. O EE desejava para a sua filha, nascitura, o mesmo que desejava para o seu filho BB, conforme se referiu em 22 (13º);

25. Era o EE que sustentava a família constituída pela A. e o filho BB (14º);

26. EE tinha como único vício fumar (15º);

27. No trabalho, não tinha qualquer despesa com os transportes, uma vez que era transportado pela entidade patronal (16º);

28. A alimentação era paga, também, pela entidade patronal (17º);

29. Sempre que estava em casa dedicava-se à família, não tendo o hábito de frequentar cafés, bares, ou ir ao cinema (18º);

30. Por norma, limitava-se a ir tomar um café à sexta-feira depois de jantar, acompanhado da mãe do seu filho e aproveitando para ler o jornal (19º);

31. Aos sábados e domingos costumavam ir visitar os pais (do EE) onde tomavam as refeições, indo depois ao café tomar um café (20º);

32. A A. nasceu no dia 11-01-1986 (24º);

33. O EE era um homem digno, honesto, sendo o enlevo da A. e do filho (25º);

34. O EE era generoso e franco, e esforçou-se sempre por tirar partido das suas capacidades de trabalho e por proporcionar aos seus familiares o prazer de o ter junto deles, sendo o amparo dos mesmos (26º);

35. Entre a A., o falecido e o seu filho existia uma extrema proximidade e envolvência afectiva, constituindo uma família unida por fortes laços de amor, amizade e ternura (27º);

36. A DD não chegou a conhecer o pai e irá padecer ao longo de toda a sua vida da ausência da figura paterna (28º);

37. Nenhum dos menores poderá beneficiar do acompanhamento, do amparo, da assistência, do carinho e do afecto do pai, tão importantes para o desenvolvimento equilibrado dos mesmos (29º);

38. Na adolescência e juventude continuarão a sentir a falta do pai (30º);

39. Em consequência da morte de EE, a A. ficou triste (31º);

40. O EE era cheio de energia e vontade de viver (32º);

41. Era pessoa saudável, trabalhador e jovial (33º);

42. Era respeitado, tendo um feitio sociável, expansivo, alegre, gozando de grande estima e carinho de quantos o rodeavam, que com ele adoravam conviver (34º);

43. Vivia com a A. e o seu filho, com quem tinha uma vida harmoniosa, dando-se muito bem e sendo muito amigos (35º);

44. Vivia passo a passo a gravidez da A. e esperava o nascimento da filha com grande ansiedade (36º);

45. A R. realizou, por intermédio de terceiros, averiguações sobre o modo como o sinistro dos autos ocorreu (39º).

Com relevo para a presente decisão, encontra-se, ainda demonstrado nos autos, atento o documento de fls. 36 e ss., junto pela R. e não impugnado pelos AA., que: a) À data do sinistro acima referido, a R. havia assumido o dever de indemnizar terceiros por danos decorrentes da circulação do veículo automóvel de matrícula ...-JD.

I ­– Recurso dos Autores, AA e Outros

Como ficou dito, os Recorrentes AA e Outros vieram requerer julgamento ampliado de Revista (com intervenção do Pleno das Secções Cíveis), elegendo o acórdão deste Supremo Tribunal proferido na Revista 2348/06, de que foi Relator, o Exmº Conselheiro Pires da Rosa, transitado em julgado, por, no entendimento destes Recorrentes, tal aresto estar em oposição com o acórdão da Relação proferido nos presentes autos e que ora constitui objecto do presente recurso de Revista.

Por douto despacho de S. Exª o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, precedido da costumada informação do Relator, tal pedido foi indeferido pelas razões que essencialmente constam da parte fulcral daquela douta decisão e que, para cabal elucidação, se passa, data venia, a aqui transcrever:

         «A comparação da argumentação nuclear entre a decisão sob recurso e o acórdão invocado pela recorrente, como fundamento do pedido para julgamento ampliado da revista, não permite encontrar uma clara perspectiva metodológica e mesmo conceptual das decisões no caminho argumentativo que uma e outra percorreram: na leitura possível, enquanto o acórdão recorrido parece centrar mais a fundamentação no contexto dos direitos do nascituro, como tal (considerando que o artigo 66º, nº 2 do CC, «comprimiu o feixe [dos] direitos [do nascituro], que não quis alargar indiscriminadamente a qualquer situação, e que não confundiu o conceito de nascituro com o conceito de filho»), o acórdão do STJ de 28-06-2007 (P° 2348/06), por seu lado, parte mais do fundamento da não discriminação para equiparar à posição jurídica de filho [ainda] nascituro «no momento em que ocorreu o evento morte do pai», que entretanto nasça com vida».

No caso, é certo, a decisão sub judice e os acórdãos do STJ de 28-6.2007 e de 8-05-2008 divergem em segmentos argumentativos substanciais na fundamentação, e consequentemente na solução; a decisão em recurso tem, no entanto, apoio no acórdão no STJ de 7-02-2009.

Os destinatários das decisões dos tribunais dificilmente compreendem que a mesma questão obtenha decisões contraditórias

A competência prevista no artigo 732º-A, nº l, do CPC (e agora no artigo 686º, nº l do NCPC), tem pressupostos vinculados a garantir a segurança, a certeza e a estabilidade da jurisprudência, prevenindo ou fazendo terminar casos de divergências jurisprudenciais consistentes no STJ, ou prevenindo riscos de mutações   jurisprudenciais   que   perturbem   inesperadamente o valor  da previsibilidade.

Os pressupostos enunciados na lei («necessidade» e «conveniência» para assegurar a uniformização da jurisprudência) que devem sustentar a decisão, são vinculados à realização das finalidades, e logo pelo sentido comum das noções, têm diferentes graus de intensidade.

A «necessidade» constitui um pressuposto de vinculação de maior intensidade, deixando, consequentemente, menos espaço para a ponderação prudencial; a «conveniência» supõe menor intensidade vinculativa, mais determinada por juízos de mais ampla apreciação, que permitem e aconselham maior latitude de ponderação.

A «necessidade» remete para a probabilidade de verificação de situações que   constituam imediatamente, se   efectivamente   ocorressem   uma   séria perturbação   da   estabilidade  jurisprudência!; o   caso   mais   saliente   será   a previsibilidade  (ou  a   probabilidade) de julgamento  em  sentido contrário  a jurisprudência uniformizada.

A «conveniência» deve ser verificada, por seu lado, pela análise e ponderação e variáveis de diversa natureza. Há conveniência, com efeito, em evitar ou superar situações de discrepância interpretativa; mas o procedimento previsto no artigo 7325-A CPC (e artigo 6869 do Novo CPC) não deve ser usado de modo que impeça o desenvolvimento jurisprudencial, nomeadamente quando as questões não sejam ainda suficientemente trabalhadas na doutrina e na jurisprudência.

         Não basta, por isso, a existência de interpretações divergentes sobre determinada questão; sendo indesejável a consumação de jurisprudência contraditória, ou a persistência de divergências, deve ser razoavelmente previsível que não haverá prevalência de uma das teses ou soluções em confronto.

Na verdade, as correntes jurisprudenciais só se formam com tempo de construção e afirmação, de afinamentos metodológicos, da ponderação de várias casuísticas e de massa crítica de casos que permitam uma mais ampla discussão para criar correntes de jurisprudência consolidadas.

A construção de jurisprudência necessita do seu tempo e de fazer caminho, recolhendo os efeitos positivos de uma mais ampla discussão.

4

As posições do STJ sobre a questão controvertida no recurso não permitem considerar ainda a existência de correntes jurisprudenciais consolidadas ou trabalhadas, que conflituem em coincidência temporal, e que revelem oposição com consistência para permitir formar um juízo sobre a inviabilidade de estabilização de um determinado entendimento.

O Senhor Relator salienta que na sua perspectiva, «a solução do problema que nos ocupa no presente recurso decorre da problemática do nexo de causalidade entre a morte do pai da menor e os danos não patrimoniais que esta sofreu e sofre já após o seu nascimento, como pessoa humana ou pessoa singular, na expressão civilista», não há que «envidar tentativas jurisprudenciais para radicar a titularidade de direito à indemnização de tais danos em nascituros, sobretudo numa ordem jurídica, como a portuguesa, em que a regula aurea é que tais direitos radiquem em pessoas físicas».

E consequentemente «que o presente recurso deverá ser decidido em sede da problemática da imputação objectiva e não da demanda de sustentação teórica de direitos de nascituros não expressamente previstos na lei, ou da pura e simples rejeição de tal possibilidade, como aconteceu no caso vertente em tantos outros».

Deste modo, não poderá sequer ser equacionada a probabilidade (ou o risco que, apenas por si, não poderia constituir fundamento) de vir a ser proferida decisão que ponha em causa a estabilidade ou contrarie a jurisprudência estabelecida do Supremo Tribunal sobre a questão específica sob apreciação.

Nestas circunstâncias, perante o sentido das decisões e os elementos disponíveis, não estão verificados os pressupostos de necessidade e conveniência «para assegurar a uniformidade de jurisprudência» que justificam o julgamento ampliado da revista.».

Nas palavras dos próprios Recorrentes, o presente recurso vem interposto da decisão que negou a atribuição por danos não patrimoniais à nascitura CC, bem como dos montantes atribuídos a título de danos patrimoniais aos AA.

São, portanto estas duas questões que constituem o thema decidendi do presente recurso de revista interposto pelos Autores.

1ª questão:  Danos não patrimoniais próprios da autora CC

Entrando na apreciação do presente recurso, cumpre, em primeiro lugar, equacionar a 1ª questão decidenda de que nos vamos ocupar, ou seja, a que se refere aos danos não patrimoniais  próprios da filha do sinistrado, CC.

A problemática desta questão gravita em torno do facto de o Acórdão recorrido não ter reconhecido o direito à indemnização por dano próprio à menor CC, filha do desditoso EE (factos provados 17º e 18º do acervo factual supra transcrito), na medida em que a mesma ainda não tinha nascido no dia fatídico em que se deu o acidente que veio a atingir mortalmente o aludido sinistrado – 02.10.2006 – tendo nascido no dia 20-10-2006, ou seja, 18 dias depois do falecimento do referido EE, vindo a ser estabelecida a paternidade do mesmo em relação à menor por sentença proferida no processo n.º 121/10.1TBPNF, do 4º Juízo do Tribunal da Comarca de Penafiel, transitada em julgado no dia 10-09-2010.

Deste modo, o Acórdão recorrido reconheceu o direito à indemnização por tais danos ao filho menor BB que já era nascido à data do falecimento do Pai, mas já não à menor CC, assentando tal decisão no seguinte argumentário, que se nos afigura ser de toda a relevância deixar aqui transcrito: 

«Está provado nos autos que o falecimento do referido EE ocorreu na data do acidente, no dia 02.10.2006. Nessa altura  o EE vivia com a A. em comunhão de habitação, mesa e leito (15) estando esta grávida, vindo a nascer, na sequência dessa gravidez, a autora  CC. O nascimento ocorreu no dia 20-10-2006 (16) ou seja , 18 dias  depois do falecimento do referido EE, vindo no entanto a ser estabelecida a sua paternidade em relação aquela CC (17).

Dito isto, a questão coloca-se em saber se, para efeitos da atribuição de indemnização por danos não patrimoniais, nos termos do disposto no artº 496º, nº 1 , do CC, deve atender-se igualmente ao sentimento de privação eventualmente sofrido pelo filho da vítima nascido após o falecimento desta.

A questão não é pacífica, e dificilmente será obtido um entendimento uniforme, a não ser pela via normativa, considerado que o surgimento da vida é um processo sem descontinuidades – natura non facit saltus.

No entanto, mesmo abstraindo dos aspectos filosóficos da questão, ao procurar surpreender o pensamento do legislador, somos defrontados com previsões legais onde casuisticamente são reconhecidos direitos patrimoniais ao nascituro, tal como aliás é referido na sentença recorrida. Tal constatação, se pode sustentar a posição de quantos defendem a atribuição de indemnização por danos não patrimoniais ao nascituro por morte do progenitor, não se afigura no entanto decisiva, na medida em que pode revelar precisamente o contrário, ou seja, que a necessidade de prever a atribuição de tais direitos em determinadas situações concretas, se prende com a ausência de uma consagração geral do nascituro enquanto sujeito de direitos. Por outro lado, o facto de a lei civil dispor que os direitos que assim são reconhecidos aos nascituros dependem do seu nascimento completo e com vida – nº 2 do artº 66º do CC – sublinha, por um lado, a ideia de excecionalidade daquelas previsões, e por outro que os direitos assim atribuídos o são em função da “pessoa”, entendida esta como o ser humano após o nascimento completo e com vida.

Acresce que, ao procurarmos normas de previsão mais genérica deparamos previsões normativas onde que claramente se distingue entre “pessoa” e “vida humana” . Assim artigo 2º, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que , ao prever «o direito de toda a pessoa à vida», sendo certo que a Comissão Europeia dos Direitos do Homem considerou que o termo «pessoa» não abrange o ser humano, já concebido, mas ainda não nascido.

Por outro, considerando que a personalidade jurídica é a susceptibilidade de ser sujeito de deveres e obrigações, o artigo 66º, nº 1, do CC, situa o seu começo “ …no momento do nascimento completo e com vida”.

Por sua vez o artigo 24º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, ao consagrar o direito fundamental à vida, declarando inviolável a vida humana, parte de um conceito normativo de vida considerada esta após o nascimento [1], e quando contempla a proteção da vida pré-natal fá-lo como valor ou bem objetivo[2] .

As considerações anteriores levam-nos a concluir que, tal como referido na sentença recorrida, fora das situações em que a lei expressamente reconhece a atribuição de direitos aos nascituros, só com o nascimento completo e com vida se poderá falar em sujeitos titulares de direitos. Consequentemente não poderá reconhecer-se à autora DD a titularidade de um direito à indemnização por dano não patrimonial decorrente da morte do seu pai, uma vez que quando aquela morte – facto gerador do direito à indemnização – ocorreu, a mesma ainda não era nascida. Esta interpretação da lei colhe apoio na letra do artº artigo 496º, nº 2, do CC, subscrevendo-se nesta parte o entendimento vertido na sentença recorrida no sentido de que “não se aceita, com o muito devido respeito, a tese que sustenta, com base no estipulado pelo artigo 496º, nº 2, do CC, que o legislador, ao falar nos “…filhos;…”, quis referir-se, indistintamente, a todos eles, sem excluir os nascituros.

No artigo 66º, nº 2, do CC, o legislador estatuiu que “os direitos que a lei reconhece aos nascituros dependem do seu nascimento” e não que “os direitos dos nascituros dependem do seu nascimento”, o que significa que comprimiu o feixe desses direitos, que não quis alargar, indiscriminadamente, a qualquer situação, e que não confundiu o conceito de nascituro com o conceito de filho.”

Improcede pois nesta parte o recurso subordinado interposto pelos AA».

Aliás, este já havia sido o entendimento da 1ª Instância, ao sentenciar exactamente no sentido apontado pela Relação, com argumentos de tomo.

O punctum saliens da posição perfilhada pelas Instâncias centra-se no entrelaçamento de duas linhas de força que são as seguintes:

1ª O nascituro não pode ser titular de direitos, posto que tal titularidade  decorre da personalidade jurídica e esta  só se adquire com o nascimento completo e com vida, nos termos do nº 1 do artº 66º do Código Civil.

2ª  A responsabilidade civil decorrente da violação ilícita de um direito de outrem pressupõe uma personalidade contemporânea da lesão, pelo que não havendo ainda terceiro no momento da prática do facto ilícito, nenhum dever de indemnizar se formou, não sendo o eventual e posterior nascimento da pessoa que pode fazer radicar na mesma um crédito indemnizatório e constituir o infractor no dever de o satisfazer.

Este foi, aliás, o entendimento seguido maioritariamente pelo Acórdão desde Supremo Tribunal, de 17-02-2009, doutamente relatado pelo Exmº Conselheiro Hélder Roque, mas que, pelas razões que seguidamente  iremos expor, permitimo-nos não acompanhar, antes nos identificando, embora parcialmente, com a posição exposta na douta declaração de vencido do Exmº Conselheiro Mário Cruz.

Vejamos, então, com o merecido detalhe, que pensar da posição que propugna a impossibilidade de um nascituro (este era, como vimos, o caso da menor CC) ser titular de um direito próprio à compensação por danos não patrimoniais – nascido na sua esfera jurídica e não recebido ex vi hereditatis da vítima, seu pai –  por morte deste.

Comecemos por recordar a situação concreta que se nos depara na presente acção, é dizer no presente caso real da vida.

Ao menor BB, irmão da DD, já nascido à data do decesso do seu Pai, o desditoso EE, foi atribuída a título de compensação por danos não patrimoniais próprios decorrentes do falecimento do progenitor, a importância de € 20.000,00 ( vinte mil euros), acrescida do respectivos juros de mora.

À menor CC, filha do mesmo pai, nada foi atribuído a este título em virtude de ter tido o “azar” de não ter ainda nascido na data em que aquele decesso ocorreu, embora o seu nascimento, completo e com vida, tenha ocorrido apenas 18 dias depois da morte do pai.

Ninguém duvidará de que repugna ao mais elementar sentido de justiça que – como neste caso paradigmático – dois irmãos que sofrem a perda do mesmo progenitor, tenham tratamento jurídico tão gritantemente diferenciado, pela circunstância de um deles já ter nascido à data do falecimento do pai (tinha 16 meses de idade) e outro ter nascido apenas 18 (dezoito) dias depois de tal acontecimento fatídico.

Essa diferença radica, segundo o entendimento defendido por certa posição jurisprudencial e perfilhada por ambas as Instâncias nos presentes autos, na circunstância de o artº 66º, nº 1 do C.Civil estatuir que «a personalidade adquire-se no momento do nascimento completo e com vida».

Daqui inferem os defensores da posição sufragada no acórdão recorrido que, sendo a personalidade jurídica o suporte da titularidade de direitos e de obrigações, enquanto tal personalidade não sobrevier, o nascituro não poderá ser titular daqueles direitos que não sejam expressamente conferidos por lei.

Trata-se de um terreno jurídico pedregoso, eriçado de não menosprezáveis escolhos hermenêuticos.

É que, não obstante a aparente clareza do falado inciso legal, a interpretação do nº 1 do artº 66º do Código Civil vigente não é isenta de dúvidas.

Acolhemo-nos aqui à lição magistral do Prof. Pedro Pais de Vasconcelos, que de forma desenvolvida e com amplo recenseamento bibliográfico, analisa cuidadosamente a apontada divergência hermenêutica, tomando aberta posição sobre o tema.

Para este Ilustre Catedrático da Faculdade de Direito de Lisboa, que discorre sobre esta temática no seu manual de Teoria Geral do Direito Civil, importa desde logo distinguir entre o estatuto dos nascituros e o regime jurídico dos concepturos.

Segundo o Autor que vimos citando, «os concepturos não estão concebidos, não têm vida humana e não têm sequer existência. Não são entes. O termo concepturo exprime apenas uma potência, a possibilidade abstracta de alguém vir a ser concebido» ( Pais de Vasconcelos, «Teoria Geral do Direito Civil», 2012 –  7ª edição, Almedina, pg. 74).

Para o dito Professor, ao contrário do que sucede com os concepturos, os nascituros «são seres humanos, com vida, que se encontram numa particular fase da sua vida. A vida humana tem início na concepção por comunicação da vida de ambos os pais. Daí em diante, o nascituro desenvolve-se de um modo progressivo e ininterrupto, sem patamares nítidos. O nascimento é apenas mais um facto relevante na vida da pessoa. Não há grande diferença entre a véspera do nascimento e o dia seguinte. A vida é a mesma e algumas funções vitais tornam-se mais autónomas da mãe. O recém-nascido fica numa situação de maior fragilidade do que antes de nascer e continua a depender da mãe para quase tudo. A sua natureza como ser humano não se altera.

O nascimento importa, porém, uma importante modificação no que respeita ao contacto e relacionamento da pessoa. Antes de nascer o nascituro praticamente apenas tem contacto com a mãe. Embora oiça e sinta algo do que se passa no exterior da mãe e possa ser influenciado, e mesmo ferido, pelo exterior, o nascituro relaciona-se pessoalmente apenas com a sua mãe. Não tem contacto interpessoal com mais ninguém.

Após o nascimento, o recém nascido reconhece a mãe, em cujo seio viveu até então toda a sua vida. É no campo do relacionamento social que o nascimento tem maior relevância: antes de nascer, a pessoa relaciona-se praticamente apenas com a mãe; com o nascimento, passa a relacionar-se com as outras pessoas. O nascimento significa o ingresso da pessoa na polis.

A relevância da pessoa no Direito é sobretudo interpessoal. Por isso, o nascimento tem uma muito grande relevância jurídica. Mas nem por isso a pessoa deixa de existir e de ser relevante para o Direito antes de nascer. A sua natureza humana é a mesma, a sua situação biológica continua a evoluir; a sua situação jurídica modifica-se de acordo com a natureza das coisas.

 

O nascituro é um ser humano vivo com toda a dignidade que é própria à pessoa humana. Não é uma coisa. Não é uma víscera da mãe.

A protecção jurídica que a lei lhe dá não é apenas objectiva. Se o fosse, o seu estatuto não seria diferente daquele que é próprio das coisas ou animais especialmentemente protegidos. O próprio cadáver tem um regime jurídico de protecção muito intensa, é uma coisa sagrada; mas o cadáver não tem vida nem dignidade humana. O nascituro não é, pois, objecto do direito. Como pessoa humana viva, o nascituro é pessoa jurídica. A sua qualidade pessoal impõe-se ao Direito, que não tem o poder de negar a verdade da pessoalidade, da hominidade, da humanidade do nascituro. Não pode, pois, deixar de ser reconhecida, pelo Direito, ao nascituro a qualidade de pessoa humana viva, o mesmo é dizer, a. personalidade jurídica» (idem, pg. 65/66).

Esta conclusão do Ilustre Civilista pode, à primeira vista, causar alguma perplexidade, na medida em que se afigura entrar frontalmente em rota de colisão com a littera legis do nº 1 do artº 66º do CCivil que exige expressamente o «nascimento completo e com vida» do ser humano para a outorga da personalidade jurídica.

Porém, não será assim, na perspectiva do eminente jurisconsulto que aqui seguimos de perto, pois, segundo escreve, «o nascimento tem relativamente pouca relevância biológica no nascituro. É no aspecto relacional que esse facto tem um impacto importante: o relacionamento pessoal da criança, que até ao nascimento se reduzia à mãe, alarga-se então a outras pessoas. Com o nascimento, o recém nascido, que já tinha vida humana e personalidade jurídica, sai do seio da mãe e ingressa na polis.

A construção tradicional do estatuto jurídico do nascituro está inquinada por dois factores de perturbação: o monismo tradicional na doutrina portuguesa que identifica formalmente a personalidade humana com a coletiva e o formalismo positivista que não permite uma clara distinção entre personalidade jurídica e capacidade de direito.

Ao perguntar pela personalidade do nascituro, os autores têm usado de um processo que é próprio apenas para a busca da personalidade coletíva e que se traduz em tentar encontrar no texto da lei regras ou regimes jurídicos dos quais se possa concluir que há titularidade de posições jurídicas. Este método só é próprio para a determinação da personalidade coletiva porque só esta é determinada por lei, mas já o não é para a personalidade individual, porque esta é pré-legal. Não é do texto da lei que se pode afirmar ou refutar a personalidade jurídica de pessoas singulares.

Por outro lado, a construção positivista do conceito de personalidade jurídica como susceptibilidade de direitos e obrigações mal se distingue da de capacidade de direito. Vem já do formalismo normativista kelseniano. a construção da sub­jectividade no direito sob a perspectiva da posição de sujeito na relação jurídica. Sujeito de direito é, na construção de kelsen, aquele que assume a titularidade de posições jurídicas na relação. Nesta óptica, é possível unificar a ideia de sub­jectividade jurídica de modo a englobar, num só conceito geral e abstracto, as pessoas singulares e as pessoas colectivas.

Mas, a personalidade jurídica das pessoas humanas e a das pessoas colectivas é qualitativamente diferente, como se deixou já bem expresso. Aquela está fora do domínio da lei; esta é determinada pela lei. Por isto, o método de tentar encontrar na lei regimes de titularidade de direitos subjectivos é próprio apenas para a verificação da personalidade coletiva, mas já o não é para a personalidade humana, porque não é a lei que a concede ou que a recusa. Deve antes partir-se da descoberta da qualidade humana ou não humana. Admitido que o nascituro é um ser humano com vida, é inexorável a sua qualificação como pessoa jurídica.

Outra questão é a aferição da capacidade de direito, da capacidade de gozo do nascituro. Esta sim pode ser limitada ou condicional, como defende relevante doutrina. Melhor se lhe poderia chamar capacidade jurídica embrionária. A capacidade de direito do nascituro é limitada pela natureza das coisas. Limita-se aos direitos de personalidade, que são inerentes à sua hominidade, e àqueles que a lei lhe atribui: direito de adquirir por herança e por doação. A capacidade genérica de gozo, segundo o artigo 66º do Código Civil, só se adquire com o nascimento completo com vida» ( idem, pg. 72).

Neste sentido, aliás, o Prof. Diogo Leite Campos, depois de reconhecer que todo o ser humano é pessoa (humana) desde a sua concepção até à morte, se pronunciou na sua conhecida afirmação de que não pode haver dois tipos de pessoas humanas: as jurídicas e as não jurídicas pois a pessoa comporta em si própria a dimensão da subjectividade jurídica.

Nas suas Lições de Direitos da Personalidade de 1992, Leite Campos afirmava:

«Assente na biologia, na essência do homem que é a vida, o Direito reconhece o início da personalidade jurídica no começo da personalidade humana – na concepção» (Leite Campos, Lições de Direitos da Personalidade, Coimbra, 1992, pg. 43).

Para Pais de Vasconcelos, o fulcro desta questão reside essencialmente na redacção do artº 66º do nosso diploma substantivo civil que, segundo afirma, não terá sido feliz, advertindo que o intérprete não deve ficar prisioneiro da letra de tal preceito.

Isto porque, a personalidade jurídica das pessoas humanas não depende da lei e está fora do poder legislativo do Estado retirar ou não reconhecer a qualidade de pessoa humana a quem a tem.

Assim, para este Autor, «o artigo 66º do Código Civil deve ser entendido como referido à capacidade de gozo e não propriamente à personalidade jurídica.

Assim interpretado, o artigo 66º do Código Civil torna-se harmonioso com os demais citados preceitos do mesmo Código. A personalidade jurídica das pessoas humanas tem início concomitantemente com o início da sua vida e  existência enquanto pessoas.

Este momento do início da vida só consegue ser determinado aproximadamente, num certo intervalo temporal, mas não exactamente (artigo 1789º do Código Civil).Porém tal dificuldade não deve obstar a que se reconheça a qualidade e a dignidade humana e a consequente personalidade jurídica a quem ainda está no seio da mãe, envolvido e protegido pelo seu corpo, mas já existe com vida. Se a pessoa, para o Direito, é sobretudo pessoa- em – relação, a pessoa nascitura tem uma relevância adequada à sua situação».

O artº 66º do Código Civil vigente veio suceder, afinal, ao artº 6º do vetusto Código de Seabra ( Código Civil de 1867), que tinha a seguinte redacção:

«A capacidade jurídica adquire-se pelo nascimento; mas o indivíduo, logo que é procriado, fica debaixo da protecção da lei, e tem-se por nascido para os efeito declarados no presente código»

Não falava o antigo Código Civil, como se viu, em «personalidade jurídica», mas em «capacidade jurídica», embora grande parte da doutrina entendesse tal termo como sinónimo de personalidade.

Assim, por exemplo, o eminente tratadista que foi Cunha Gonçalves lapidarmente escreveu sobre a aplicação retroactiva de tal capacidade ao momento em que o indivíduo é procriado (ter-se por nascido logo que é procriado), o seguinte:

«O nascituro, porém, tem-se por nascido somente no que toca aos seus interesses: quoties de commodis ejus agitur. Se nascer com vida e figura humana, adquire definitivamente todos os direitos que estavam dependentes dessa condição; e, no caso de morte imediata, fica sendo, por seu turno, autor de herança e transmite aos seus herdeiros os bens por pouco tempo adquiridos. Se nascer morto, como nada herdou, nada transmite aos que seriam seus sucessores legítimos; pois a lei colocara-o sob a sua protecção só para o efeito de poder adquirir, depois de nascido, os direitos condicionais que lhe advieram desde a sua concepção» ( Luiz da Cunha Gonçalves, Tratado de Direito Civil (1929), vol. I, pg.181).

Para este preclaro Civilista, a sinonímia entre personalidade jurídica e capacidade jurídica parecia evidente, apenas distinguindo de tais conceitos o da capacidade de agir ou capacidade civil, deixando assim escrito no seu monumental e histórico Tratado:

«A personalidade ou capacidade jurídica é a precondição ou pressuposto de todos os direitos; e, por isso, ela encontra-se até nos recém-nascidos e nos dementes, ou em qualquer outro ente que ao qual a lei a reconhece; mas há uma capacidade de agir, que supõe a capacidade jurídica, sendo uma situação diversa. A personalidade é o homem jurídico num estado por assim dizer estático; a capacidade é o homem jurídico no estado dinâmico (op. cit., pg. 169)».

Mais adiante, Cunha Gonçalves escreveu:

«Os alemães, por isso, designam estas situações por dois termos diversos e mais expressivos: Rechtfaehigkeit ou aptidão de ser titular de direitos e obrigações e Handlungsfaehigkeit ou aptidão de os exercer. A estes dois conceitos poderemos fazer corresponder, respectivamente, as expressões legais personalidade ou capacidade jurídica e capacidade civil ou capacidade de agir» ( op. cit., pg. 170).

A actualmente tão vulgarizada dicotomia capacidade de gozo / capacidade de exercício, embora conhecida na época do tratadista a que nos vimos referindo, não gozava da simpatia de Cunha Gonçalves que chegou mesmo a escrever que «estas expressões tem o duplo defeito de não estabelecerem, nitidamente, a antítese e só se referirem a direitos e não às obrigações, que não podem ser, decerto, gozadas. Gozo e exercício exprimem um facto concreto e não uma potencialidade, alem de não significarem ideias diversas, pois o gozo é também exercício»( op. cit., pg. 169).

É nesta perspectiva que Pais de Vasconcelos, com inteira razão, observa que  o artº 6º do Código de 1867 «não falava em personalidade jurídica, mas em capacidade, como era característico da terminologia da época. Ainda hoje, a generalidade da doutrina alemã usa o temo Rechtsfähigkeit que, em rigor, significa capacidade de gozo, e amalgama indistintamente nesse conceito a personalidade e a capacidade de gozo, o que cria alguma equivocidade» (op. cit, pg. 69), chamando a atenção para o facto de no actual Código Civil pátrio, em vez de  «capacidade», como no anterior, ter surgido o termo «personalidade», de acordo com a orientação generalizada, mas nem sempre correcta, de traduzir o termo alemão Rechtsfähigkeit  por personalidade jurídica, em vez de capacidade.

Ora como bem aponta o referido Professor de Lisboa, o reconhecimento da personalidade de seres humanos está fora do alcance e da competência da lei, seja ela ordinária ou constitucional, pelo que o falado artº 6º do nosso Código Civil, para ser compaginável com a Constituição da República, com as coordenadas axiológicas do sistema e com a natureza das coisas, «tem de ser interpretado como referido, não à personalidade jurídica, cuja existência, início e termo são extra e supra legais, mas antes à capacidade jurídica, como fazia o seu antecessor, artigo 6º do Código Civil de 1867 e o § 1 do BGB» (Pais  de Vasconcelos, op. cit., pg 69/70 sendo o destaque e sublinhado nossos).

Uma interpretação do artº 6º do C. Civil neste sentido, decerto aplanaria o terreno eriçado de escolhos hermenêuticos em que nos afoitamos, sem mais esforços tendentes a vencer um apego exacerbado à interpretação puramente literal!

 Porém, não deixa de ser confortável observar que, mesmo não enveredando exactamente por tal caminho interpretativo, é considerável o escol de conceituados juristas que percorrem trilhos destinados a demonstrar que os danos próprios dos nascituros ou os adquiridos por sucessão mortis causa ou doação mereceram do legislador de 1966 a devida tutela jurídica, respeitando, afinal, o que, pelo menos até ao advento do Código Civil de 1966, mais não era do que a consagração no nosso ordenamento jurídico contemporâneo do vetusto brocardo latino «nasciturus pro jam natus habetur quotiens de commodis ejus agitur» ( o nascituro tem-se por nascido apenas no que se refere aos seus interesses) como veremos mais adiante.

Um brevíssimo excurso pela mais abalizada dogmática no sentido apontado, dar-nos-á conta do referido panorama doutrinário, mesmo após o advento do actual Código Civil.

Desde logo, poderemos citar Dias Marques, saudoso Professor Catedrático da Universidade de Lisboa que, nos longínquos anos 50, portanto, ainda no domínio do Código de Seabra, negava, na sua Teoria Geral do Direito Civil, que o nascituro tivesse personalidade jurídica, mas, não obstante tal negação, assim escreveu:

«Os direitos deixados aos nascituros por doação ou por testamento ficam-lhe reservados, na expectativa de que venha a nascer; e a sua aquisição só se vem a tornar efectiva com o seu nascimento. Se o nascituro vem a nascer com vida, a aquisição dos direitos que lhe foram deixados retroage ao momento da deixa, e não apenas ao momento do nascimento. Se não chega a nascer não adquire quaisquer direitos.

Esta configuração do instituto da protecção aos nascituros parece-nos exacta, mas incompleta, pois não explica como podem os direitos deixados ao nascituro vir a considerar-se por ele retroactivamente adquiridos.

Uma tal afirmação pressupõe, necessariamente, uma retroacção da personalidade» ( Dias Marques, «Teoria Geral de Direito Civil», vol. I, Coimbra Editora, 1958, pg. 57).

Mais adiante, Dias Marques afirmava:

«É que o dizer-se, como se diz neste artigo (artº 6º do Código de Seabra), que a capacidade surge com o nascimento, acrescentando-se logo de seguida que indivíduo, para certos efeitos, se « tem por nascido», não significa outra coisa senão atribuir-lhe, por via de ficção, e retroactivamente, a capacidade de gozo estritamente indispensável para encabeçar os direitos que lhe forem atribuídos» ( Idem, ibidem).

Não nos iremos alongar neste interessante bosquejo historiográfico da variada literatura jurídica civilista, no domínio do Código de 1867, sobre a problemática que ora nos ocupa, dadas as conhecidas e naturais limitações de uma decisão judicial que não se compadece com tão grande extensão.

Por isso, e na esteira do ensino de Pais de Vasconcelos e do amplo registo bibliográfico indicado na sua obra, apenas no referiremos aos autores que escreveram já sob o imperium do Código actual.

Assim Galvão Telles, na sua Introdução ao Estudo do Direito,  considera que o nascituro já concebido – «carece de personalidade jurídica mas goza de protecção jurídica. Embora ainda sem existência física autónoma, porque não separado da mãe, tem jus à tutela do direito, como sujeito de direito em gestação» (Inocêncio Galvão Telles, Introdução ao Estudo do Direito, vol. II, 10ª edição ( reimpressão), 2001, pg. 165).

 O saudoso Prof. Carlos Mota Pinto – na sua obra de referência para o estudioso do Direito Civil que é e o será por longo tempo – a sua Teoria Geral do Direito Civil, recusando, embora, a admissão de uma personalidade pré-natal aos nascituros, assim ponderou a problemática do pedido de indemnização, formulado pelo filho, por danos físicos ou psíquicos sofridos no ventre da mãe, de causa medicamentosa ou acidental:

«Seja qual for a posição que se adopte quanto à respectiva construção jurídica — direitos sem sujeito, estados de vinculação ou retroacção da personalidade (adquirida no momento do nascimento) ao momento da atribuição do direito —, é de admi­tir a tutela jurídica do nascituro concebido, no que concerne às lesões nele provocadas. Assim, a título de exemplo, um filho poderá pedir indemnização pelas deformações físicas ou psí­quicas que sofreu ainda no ventre da mãe, causadas por um medicamento ou qualquer acidente.

O surgimento deste direito de indemnização não impõe forçosamente a atribuição de personalidade jurídica aos nascituros ou aos concepturos. O direito surge só no momento do nascimento, momento em que o dano verdadeiramente se consuma, apesar de a acção, que o começa a desencadear, ser anterior. Se o feto, «agredido» no ventre materno, não chega a nascer com vida, ele não terá direito a qualquer indemni­zação» ( C. A. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª edição actualizada, 1999, pg. 201)».

Para o Prof. Carvalho Fernandes, os direitos que advêm ao nascituro antes do nascimento, por herança ou doação, serão direitos sem sujeito que, se nascer com vida, os adquire ao tempo do nascimento, sem que qua ocorra qualquer retroacção (Carvalho Fernandes, apud, Pais de Vasconcelos, op. cit., pg. 71).

Como adverte o Prof. Pais de Vasconcelos na sua citada obra que aqui seguimos de perto, mais recentemente tem-se verificado um poderoso movimento doutrinário no sentido da admissão de personalidade do nascituro já concebido, referindo nomes como Oliveira Ascensão, Menezes Cordeiro  que reconhece «estar em aberto a necessidade de uma revisão doutrinária do artigo 66º/1: no limite, a personalidade deveria adquirir-se logo com a concepção, em nome do principio básico que todo o ser humano é pessoa» (ibidem) e ainda Capelo de Sousa, Paulo Otero e Leite de Campos.

O Ilustre Professor de Coimbra, Capelo de Sousa, na sua conhecida dissertação de doutoramento «O Direito Geral de Personalidade», defende uma personalidade jurídica parcial do nascituro já concebido, afirmando a dado passo:

«São ilícitas e susceptíveis de reparação as omissões que lesem a personalidade do concebido, nos casos em que haja um dever de terceiros, por força da lei ou de negócio jurídico, de prestar assistência ao concebido ou à sua mãe. Assim, v. g., haverá dever de indemnização face ao concebido quando um médico parteiro, de turno numa maternidade oficial ou contratado pela grávida, não assistir, com dolo ou negligência à parturiente e daí resultarem danos ao nascituro.

Acresce que, a tutela da personalidade do concebido face a omissões ilícitas não se cinge à obrigação de reparação prevista nos termos gerais do artº 486º do CCiv., antes abrange também, face ao nº 2 do art. 70º do CCiv, as  providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça de omissão ou uma omissão em trânsito bem como de atenuar os efeitos de uma omissão já cometida, o que nalguns casos pode ser mais eficaz e urgente» [Rabindranath Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade (dissertação de Doutoramento),  Coimbra Editora, 1995, pg. 165].

Mais adiante, Capelo de Sousa assim considera:

«Ora a temática dos direitos de personalidade do nascituro vem colocar novas questões, v.g., a de saber se antes do nascimento, e independentemente deste, existem ou não direitos de exigir a abstenção ou a acção face, respectivamente, a intervenções ou a omissões lesivas da personalidade do concebido, v .g., da sua vida e da sua saúde. Como já vimos que sim (supra, pág. 161 e segs), daí decorre que é necessário reconhecer no concebido uma entidade parcialmente dotada de força jurisgénica, pois podem existir lesões e ilícitos juscivilisticamente tutelados nos casos em que o concebido morra antes do nascimento e para o esclarecimento de tais efeitos jurídicos mostra-se ainda mais adequada a construção do concebido como uma personalidade jurídica parcial. É claro que ele agirá juridicamente através dos seus representantes legais, mas a atribuição ao concebido da titularidade dos poderes jurídicos sobre o bem geral da sua própria personalidade física e moral poderá ter interesse mesmo face aos seus próprios representantes legais» ( Idem, pg. 363).

Reconhecendo também que a ordem jurídica não pode negar  a evidência de que, face à realidade biológica, se verifica uma identidade entre o nascituro e a criança nascida, do mesmo passo que entende não ser possível a atribuição de uma personalidade limitada ou uma retroacção da personalidade da criança nascida  ao momento da lesão, visto não haver nenhum fundamento legal para o efeito, Heinrich Ewald Hörster, da Universidade do Minho, assim escreve na sua obra «A Parte Geral do Código Civil Português (Teoria Geral do Direito Civil)»:

«Não sendo possível atribuir ao nascituro uma personalidade limitada ou fazer retroagir a personalidade de uma criança nascida ao momento da lesão, visto não haver nenhum fundamento legal para o efeito, a ordem jurídica não pode, porém, negar o facto evidente de que, face à realidade biológica, o nascituro e a criança nascida são idênticos. Assim, do mesmo modo que a lei estabelece uma conexão entre o nascimento e a personalidade, deve estabelecer também uma ligação entre o nascimento e as lesões anteriormente verificadas. No momento do nascimento, as lesões sofridas pelo nascituro tornam-se lesões da própria criança, ou seja, de um ser com personalidade. Nestes termos, ao ter nascido, a criança adquiriu um direito à indemnização e isto em conformidade com a lei que faz depender a personalidade do nascimento completo e com vida, não conhecendo qualquer tipo de personalidade limitada ou com efeitos retroactivos» ( H. E. Hörster, A Parte Geral do Código Civil Português, Almedina, 5ª reimpressão da edição de 1992, pg. 301, sendo o destaque e o sublinhado nossos).                                                                                                                                                                                                                            

Depois de termos efectuado, de forma necessariamente perfunctória como se impunha, um curto excurso panorâmico pela doutrina civilista nacional, sobre a questão de saber se o nascituro qua tale pode ou não ser titular de direitos, cremos que face às posições referidas, a questão da personalidade jurídica do mesmo não poderá ser entrave ao reconhecimento do direito à compensação por danos não patrimoniais próprios sofridos com a morte de um dos progenitores vitimado pela conduta negligente de um terceiro.

Perfilhando a douta posição de Pais de Vasconcelos, supra referida, segundo a qual «o artigo 66º do Código Civil deve ser entendido como referido à capacidade de gozo e não propriamente à personalidade jurídica» e que «assim interpretado, o artigo 66º do Código Civil torna-se harmonioso com os demais citados preceitos do mesmo Código», nenhum óbice se nos depararia em radicar o direito à compensação dos danos não patrimoniais da menor CC no seu estado de nascitura, qua tale,  interpretando o disposto no artº 66º do nosso compêndio legal substantivo justamente como alusivo à capacidade de gozo (Rechtsfähigkeit no idioma germânico e que correspondia ao preceito homólogo no vetusto Código Civil de 1867 e não Rechtspersönlichkeit que é o correspondente à personalidade jurídica).

Deste modo, como acima dissemos, estariam arredados os escolhos hermenêuticos a que um exacerbado apego ao litreralismo do preceito poderia conduzir com manifesta injustiça da decisão em casos como o presente.

De qualquer forma, temos por seguro que os danos não patrimoniais decorrentes da morte do seu pai, traduzidos na falta deste, quer durante o período final da gestação (os 18 dias que antecederam o seu nascimento), quer depois de nascer, efeito indiscutível do acidente que vitimou aquele progenitor, ceifando-lhe a vida, constituem danos psíquicos merecedores de compensação.

O nascituro não é uma simples massa orgânica, uma parte do organismo da mãe ou, na clássica expressão latina, uma  portio viscerum matris, mas um ser humano (ente humano) e, por isso, já com a dignidade da pessoa humana, independentemente de as ordens jurídicas de cada Estado lhe reconhecerem ou não personificação jurídica e da amplitude com que o conceito legal de personalidade jurídica possa ser perspectivado.

O que o Direito, criação normativa mutável e, por isso mesmo, potencialmente instável, nunca lhe poderá negar é a personalidade humana, isto é, a sua conformação ôntico-naturalística como ser humano que é, de natureza pré-jurídica, isto é, anterior e independente de todo o Direito.

Trata-se de uma realidade ontológica e, por isso mesmo, que se move essencialmente no mundo do ser [daí a palavra ente (do termo latino ens, entis = particípio presente do verbo ser em latim)] ao contrário do Direito que é uma ciência de valores (sociais, morais, etc que, tidos como necessários à vida em sociedade, vêm a ser normativizados ou são normativizáveis) e, como tal, de criação cultural, que se move no terreno do dever ser, constituindo, portanto, uma realidade essencialmente axiológica.                                                                           

Como afirma o Prof. Diogo Leite Campos, «desde a fase da concepção até à velhice é sempre o mesmo indivíduo que se desenvolve, amadurece e morre. As suas características tornam-no único e insubstituível» (Leite Campos, «O Início da Pessoa Humana e da Pessoa Jurídica» in Revista da Ordem dos Advogados (ROA), ano 61, Dezembro de 2001 (edição comemorativa), pgs. 1257.

Sendo assim, afigura-se-nos patente que ainda na fase intra-uterina, os efeitos da supressão da vida paterna se fazem sentir no ser humano e, quanto mais desenvolvido estiver, maior ainda a sensibilidade para os mesmos, dado o progressivo desenvolvimento do sistema nervoso.

Há aqui claramente uma relação causal que, aliás, nunca foi minimente questionada, entre a conduta produtora da morte do desditoso pai da DD e os efeitos psico-fisiológicos que a supressão do conforto da presença paterna terão causado na nascitura e na criança nascida, sendo que o tempo em que a menor ainda permaneceu no estado pré-natal constituiu um processo contínuo e breve até ao seu nascimento ocorrido apenas 18 ( dezoito) dias depois da morte do pai.

Torna-se conveniente convocar aqui a uma brevíssima mas elucidativa passagem do Acórdão deste Supremo Tribunal e desta mesma Secção, de 08-05-2008, relativamente a um caso similar, doutamente relatado pelo Exmº Conselheiro Serra Baptista, onde assim se ponderou:

«Trata-se agora de encontrar a justa reparação para o dano não patrimonial também sofrido pela A. GG, à data do sinistro ainda não nascida.

O que não significará, por certo, e segundo padrões que comummente se deverão aceitar para uma personalidade normalmente estruturada, que não sinta grande desgosto pela perda de seu pai que, sem nunca conhecer, lhe acarretará todo o penar inerente à tão precoce orfandade.

Serão desgostos bem diferentes, estamos certos, o sofrido pela perda do progenitor que bem se conhecia, que se estimava e em quem se via, em princípio, um inestimável e inesquecível apoio ou aquele outro trazido pela ausência do progenitor, que nunca se chegou a conhecer, com as inerentes angústias que advirão de tal irreversível vazio que também, com certeza, perdurará pela vida fora.» ( Pº 08B762, disponível em www.dgsi.pt).

Haverá assim que ter em atenção a lição de Heinrich Ewald Hörster, supra transcrita e identificada, quando judiciosamente afirma:

 

«No momento do nascimento, as lesões sofridas pelo nascituro tornam-se lesões da própria criança, ou seja, de um ser com personalidade. Nestes termos, ao ter nascido, a criança adquiriu um direito à indemnização e isto em conformidade com a lei que faz depender a personalidade do nascimento completo e com vida, não conhecendo qualquer tipo de personalidade limitada ou com efeitos retroactivos».

           

Nem haverá que esgrimir, em abono de tese adversa, com o argumento da exigência da contemporaneidade da personalidade com a lesão, em primeiro lugar porque, nos Estados de Direito contemporâneos, é hoje cada vez mais frequente a demanda cível e a responsabilização criminal dos agentes cujos actos se produzem a longo prazo, desde a transmissão de doenças cujos efeitos patológicos se manifestam anos depois, como no caso das infecções por HIV, como no caso de ocorrência da catástrofes cujos efeitos nocivos se revelam depois de logo tempo, como de traumatismos causados por acidentes cuja evolução para neoplasias malignas acontece a considerável distância cronológica da conduta traumática.

A grande dificuldade que estas situações comportam diz respeito à prova da conexão causal concreta, dado que podem ter, entretanto, ocorrido outros factores causais, mas não ao estabelecimento racional da relação de causalidade adequada entre a conduta ilícita e o dano.

Em segundo lugar, porque entre a data do fatídico acidente que ceifou a vida do pai da DD e o nascimento desta, decorreram apenas 18 dias o que torna irrelevante a questão da falada contemporaneidade.

Cumpre citar, pela sua indiscutível pertinência, o douto voto de vencido brilhantemente elaborado pelo Exmº Conselheiro Mário Cruz, no Acórdão deste Supremo Tribunal, de 17-02-2009 (Pº 08A2124, disponível em www.dgsi.pt), onde se lê:

«A relação entre causa e efeito, por outro lado, não implica necessariamente que os danos ocorram imediatamente, podendo vir a verificar-se ao retardador. O que interessa é que exista esse nexo umbilical, por forma a que possa determinar-se que o efeito (leia-se aqui dano não patrimonial ao longo da vida por crescer sem pai) ocorreu devido à ocorrência de um evento causado por terceiro em violação de um direito.

O desenvolvimento da personalidade, não estaria a ser cumprido, se porventura interpretássemos o artigo enunciado de uma forma discriminativa, castrada, limitativa e sem razão, atribuindo o direito de indemnização por danos não patrimoniais aos filhos que já tenham nascido e não reconhecendo esse mesmo direito a quem, por maior azar, já esteja concebido mas ainda não tenha atingido esse estado físico, ainda que comungando da mesma fonte identitária ou genética da personalidade progenitora.

Violaria, por outro lado também, o direito constitucional da igualdade em que seriam colocados os descendentes no mesmo grau, do mesmo progenitor, relativamente ao enunciado direito, sendo certo que tanto um como outro provêm das mesmas pessoas e que a identidade física do filho nascido é a mesma do filho antes gerado (nascituro) enquanto encerrado no ventre materno, e que se desenvolve ininterruptamente desde a concepção.

De trazer à colação os artºs. 24.º, 25.º e 13.º da Constituição, que, em nosso entender, apoiam claramente a posição aqui sustentada».

No domínio do Direito Penal e a este propósito, cabe recordar a seguinte passagem da obra da Penalista espanhola Maria del Carmen Gómez Rivero, Catedrática da Universidade de Sevilha, intitulada La Imputación de los  Resultados Producidos a Largo Plazo:

«A problemática específica que se levanta nos casos em que entre a acção e a consequência danosa medeia um lapso temporal relevante, tem sido até à data, não obstante a sua relevância, um dos temas menos tratados da teoria da imputação de resultados.

Só nos últimos anos, e fortemente ligada à específica fenomenologia da transmissão do vírus da SIDA, tem recebido certa atenção, especialmente na doutrina alemã.

A escassez do seu tratamento contrasta, apesar disso, com a sua elevada incidência prática.

Com efeito, para além das hipóteses que coloca a eventual responsabilidade do transmissor do HIV, quando a vítima morre ou desenvolve a enfermidade transcorridos vários anos desde o contágio, a peculiar morfologia dos processos causais dilatados no tempo apresenta-se nos mais variados âmbitos. Basta pensar nos casos em que uma primeira lesão grave – por exemplo, um estado de coma devido a um acidente de trânsito – determina, anos depois, a morte da vítima; ou nas lesões e mortes provocadas por defeitos de construção decorridos vários anos após o fim das obras.

Conhecidos casos que saltaram para os meios de comunicação colocam em relevo igualmente a incidência prática do problema da distância temporal entre a conduta e o resultado.

Ilustrativas são, a respeito das enfermidades e inclusivamente das mortes que se registaram vários anos depois do desastre nuclear de Chernobyl, ou, já no nosso país, a consequência da adulteração e venda de óleo destinado ao consumo humano, o famoso caso do óleo de colza.

Também no seio de um âmbito tão actual como o das condutas relacionadas com o ambiente, se realça a importância prática do problema. Basta, para prova disso, a recente ruptura de um reservatório próximo da mina de Boliden, em Aznalcóllar. Para além das consequências imediatas, os ecologistas não hesitaram em qualificar a catástrofe como « bomba tóxica de efeito retardado», já que o lodo derramado continha metais de alta toxicidade que, ao ser ingerido, pode provocar, a longo prazo, malformações nas espécies que pertençam à mesma cadeia trófica de alimentação» (Mª del Cármen Gómez Rivero,  La Imputación de los  Resultados Producidos a Largo Plazo, Tirant lo Blanch, Valencia, 1988, pg. 11 e 12, sendo a tradução livre do castelhano, do Relator do presente acórdão).

Sendo os danos não patrimoniais sofrimentos ou lesões de natureza psico-fisiológica (moral, estética, sensorial, psíquica, etc) são, antes do mais, de ordem ontológica, rectius, ôntico-naturalística, logo, não dependem de perspectivação jurídica para a sua existência e, se porventura, o Direito se alhear de tal realidade, tais danos não deixarão de prejudicar o nascituro, independentemente do reconhecimento ou não da sua personalidade, enquanto conceito jurídico.

Porém, após o nascimento, eles ganham relevância jurídica que justifica a sua compensação, não perdendo, lógica e naturalmente, a sua proveniência anterior (natura non fit saltus), o que assegura também a sua contemporaneidade com o acto lesivo, como se colhe da lição, inter alia, de Ewald Hörster, cuja síntese se mostra supra transcrita.

Mais longa do que se pretendia vai já a dissecação da questão em análise, pelo que importa terminar.

Em face de tudo o que exposto se deixou, há que reconhecer razão à Recorrente CC e, em conformidade, julgar procedente, nesta parte o presente recurso de Revista condenando a Recorrida seguradora, nos termos das disposições combinadas dos artºs 496º e 13º da CRP a pagar-lhe a título de danos não patrimoniais próprios a quantia de € 20.000,00 (vinte mil euros), que vem pedida e que, aliás, foi também a fixada para o seu irmão BB e que, aliás, se mostra justa, considerando o princípio constitucional da igualdade (artº 13º da CRP), e que o maior dano não patrimonial é a falta do necessário apoio e carinho paterno que ambos os irmãos sentem e sentirão com equivalente intensidade.

Dado que tal importância pecuniária corresponde integralmente ao montante pedido relativamente à compensação por estes danos, serão devidos juros de mora, à taxa legal, computados desde a citação até integral pagamento.

2ª questão: dos montantes atribuídos a título de danos patrimoniais aos AA.

A esta questão se reportam as conclusões a 16ª nas quais os Recorrentes condensam todo o argumentário pertinente que elaboraram na sua douta minuta recursória.

Foi atribuído pelo acórdão recorrido à Recorrente AA, a título de danos patrimoniais, a quantia de € 120.000,00 ( cento e vinte mil euros).

Todavia, a Recorrente defende que a este montante se lhe deve atribuir mais € 143.535, 42, apresentando a seguinte fórmula de cálculo: ( € 402,06 x 14 = € 5.628, 84 x 25 anos =  €140.721,00 x 2% = € 143.535, 42), num total global de € 215.303, 13.

Para tanto, afirma que «para a A. AA, há a considerar que, quando os menores deixassem de necessitar dos alimentos, o que ocorreria quando a DD perfizesse 25 anos de idade, em Outubro de 2031, os 201,03 € de pelo menos um dos menores reverteriam para a A. durante, previsivelmente, 25 anos, correspondentes à diferença entre a idade que a AA terá quando a DD perfizer os 25 anos de idade (45 anos) e a esperança média de vida de 70 anos».

A Recorrida, Cª de Seguros DD, S.A., defende, nas suas contra-alegações,  que as pensões atribuídas pecam por excesso, pedindo a redução dos montantes fixados, nas suas alegações de recurso.

Não se nos afigura que, neste capítulo, haja que aumentar os montantes fixados pelo Tribunal da Relação.

É certo que a Portaria 377/2008, de 26 de Junho, com as alterações posteriores não pode ser utilizada no caso concreto, dado que o acidente ocorreu em 02.10.2006, tendo a acção sido interposta em 2007 e que o critério fundamental para a determinação judicial das indemnizações é o fixado pelo Código Civil, como doutamente alegam.

Porém, não é menos certo que, não estando os tribunais vinculados a tal Portaria pelas razões invocadas pelos Recorrentes, a verdade é que também não lhes é vedado o recurso às fórmulas de cálculo delineadas na mesma, se assim o entenderem útil para a fixação do montante pecuniário a arbitrar.

Como é sabido, neste tipo de decisões o recurso puro e simples à aplicação das tabelas financeiras não tem merecido o aplauso geral da nossa jurisprudência, sendo pacífico que o seu relevo é simplesmente indicativo, não substituindo, de modo algum, a devida ponderação judicial com base na equidade.

Por isso, a utilização de critérios matemáticos, ainda que contidos em diplomas não directa ou reflexamente aplicáveis ao caso, mas desde que se mostrem facilitadores do cálculo para a determinação da pensão justa, não se mostra proibida, pois pode tratar-se de um instrumento útil para a decisão pretendida.

E esta consideração ganha ainda maior relevo se, como acontece no caso sub judicio, o critério seguido tiver sido idêntico ao seguido por uma decisão judicial anterior que lhe sirva de precedente.

Na verdade, o Acórdão recorrido expressamente fez constar o que a seguir se transcreve:

«Assim que, relativamente aquela autora AA haverá de considerar-se que o valor do contributo que terá deixado de auferir devido ao falecimento do seu companheiro, deverá ser contabilizado, durante 25 anos nos já referidos € 250,00, e nos 25 anos restantes (até perfazer os 50 anos em que previsivelmente se manteria aquele contributo) deverá ser contabilizado em €750,00:2=375,00.

E assim sendo o valor da contribuição anual que os autores BB e DD deixaram de receber foi de € 3.500,00, durante 24 anos no caso do primeiro, e durante 24 anos no caso da segunda. Já no que concerne à autora AA esse valor foi de €3.500,00/ano durante os primeiros 25 anos, e de €5.250,00 nos 25 anos restantes. Tendo em conta estes valores para efeitos do calculo de um capital indemnizatório, utilizando a fórmula contida na Portaria 377/2008, que por sua vez é idêntica à utilizada no acórdão da relação de Coimbra de 4/4/1995 ( CJ T II, págs. 23 e sgs.) teremos que, considerando uma taxa de crescimento de 2% ao ano, atualizado segundo uma taxa nominal de 5%, nos levaria a valores de indemnização bastante abaixo daqueles que foram considerados na sentença recorrida – e menos ainda daqueles que os autores sustentam no recurso subordinado por eles interpostos. Tais valores seriam respetivamente de € 157.885,37 para a autora AA, € 63.151,75 para a autora DD, e de € 61.406,21 para o autor BB.

Refere a recorrente seguradora que, na medida em que a indemnização a atribuir, segundo o referido cálculo, representa um adiantamento daquilo de que os beneficiários da mesma iriam receber da vítima ao longo de vários anos, deveria ser reduzida em 1/3 como forma de evitar o enriquecimento sem causa dos beneficiários da mesma. Nesta parte o raciocínio da recorrente merece a nossa concordância, e a objeção colhe tanto mais que da decisão recorrida não se infere que isso tenha sido de facto ponderado.

Teremos assim que os valores acima calculados deverá ser reduzidos em 1/3, o que nos reconduziria para os seguintes valores indemnizatórios:

Autora AA - €105.256,92

Autora DD - €42.101,17

Autor BB - € 40.937,48

No entanto, e por outro lado não poderemos deixar de relevar, em termos de varáveis a ponderar em sede de juízo de equidade, a legítima expectativa de uma progressão dos índices remuneratórios, sobretudo considerado que se parte de um valor de remuneração (753,00 euros/mensais) relativamente baixo, e em que a vítima tinha apenas 25 anos de idade, sendo por isso razoável esperar uma melhoria da remuneração, por força da progressão profissional ou da maior experiência associada ao decurso do tempo.

Dito isto, temos como indemnização adequada a arbitrar, os valores seguintes:

Autora AA - €120.000,00

Autora DD - €48.000,00

Autor BB - €46.000,00»

Na indemnização assim atribuída à autora AA haverá que deduzir-se o valor respeitante às quantias pagas pela Ré a título de alimentos provisórios e em cumprimento da sentença proferida no procedimento cautelar de arbitramento de indemnização provisória que constitui o apenso A ao presente processo» (destaque nosso).

O extracto transcrito permite também aquilatar da observância pelo Tribunal recorrido dos parâmetros legais e dos critérios jurisprudenciais seguidos na fixação dos montantes indemnizatórios relativos a danos patrimoniais futuros, como ocorre no caso em apreço.

Não há, assim, que proceder a qualquer alteração relativamente a esta indemnização, claudicando as conclusões pertinentes.

I ­– Recurso da Ré, Companhia de Seguros DD, S.A,

Antes do mais importa recordar que se encontram supra-transcritas as conclusões da minuta recursória desta Recorrente, que deverão ser tidas em atenção na apreciação e decisão do presente recurso.

Depois, deverá consignar-se que tudo o que anteriormente se disse a propósito do recurso dos Autores,  deve considerar-se aplicável mutatis mutandis ao presente recurso, desde que não seja específico do anterior.

Dito isto, importa dizer que, segundo diz a Recorrente, o presente recurso destina-se a impugnar as indemnizações arbitradas pelo Tribunal a quo aos Autores/Recorridos, bem como o critério da fixação dos juros incidentes sobre aquelas indemnizações.

Da primeira questão ocupam-se as conclusões a 11ª da douta minuta recursória desta Recorrente e da segunda, as conclusões restantes.

Relativamente à primeira questão, não assiste razão à Recorrente!

Pretende a Ré/Recorrente que seja reduzida a indemnização atribuída aos Autores pelo dano da perda do direito à vida do seu marido e pai (o valor indemnizatório arbitrado pelo Tribunal a quo aos Autores pela perda do direito à vida é um pouco excessivo).

Em seu entender, tal indemnização não deveria ultrapassar os € 50.000,00 (para tal, deverá ser tomada em consideração a orientação que vem sendo seguida pelos Tribunais Superiores, nomeadamente, a atribuição a este título do montante de €50.000,00).

            Já no seu recurso de Apelação, a Ré havia tentado sustentar, embora sem sucesso, tal posição.

         Porém, a Relação explanou o seguinte entendimento na sua decisão:

         «Compreende-se assim a existência de decisões jurisprudenciais que relativamente a cada caso, apontem valores de indemnização diverso, ainda que aproximados. Tais valores têm vindo a ser fixados pela jurisprudência entre € 50.000,00 euros e os €60.000,00 euros, chegando em certas decisões – menos frequentes – a ser arbitrado um valor que atinge os € 70.000,00 – V. a propósito a resenha jurisprudencial do Supremo Tribunal de Justiça, contida no acórdão daquele Supremo Tribunal, de 27-6-2012 (RAUL BORGES) Processo nº 3283/09.7TACBR.S1, disponível in www.dgsi.pt.

Assim que, para respeitar o princípio do tratamento igualitário, o valor indemnizatório haverá de ser assim encontrado dentro destes parâmetros.

Mas por outro lado, e em consonância com o referido princípio de equidade, deverão atender-se aos vários aspectos da situação concreta. E a esse respeito, e no caso dos autos, vem dado como assente que a vítima EE tinha à data do embate tinha 25 anos de idade (F);Tinha uma família , constituída pela companheira e um filho , estando o casal à espera de uma outra filha , que viria a nascer 18 dias após a morte do malogrado EE. Estava- como costuma dizer-se – na “força da idade”, tendo pela frente toda uma vida, se considerarmos o que é a normalidade das coisas.

Temos assim como perfeitamente adequado fixar-se em €60.000,00 euros o valor indemnizatório, valor que, como a recorrente reconhece, não tendo pretensões de indemnizar a perda do bem que é a vida, visa apenas compensar de alguma forma esse dano através da atribuição de vantagens ou benefícios que podem estar associados aquela quantia monetária, respeitando a uniformidade de tratamento para situações análogas»

Como é sabido, não há tabelas ou quadros pré-fixados para a indemnização de tais danos não mensuráveis nem avaliáveis pecuniariamente e, por outro lado, como bem decidiu a 2ª Instância, o valor de € 60.000 é, há vários anos, o geralmente fixado para tal dano.

Improcede, assim, a presente questão.

Quanto aos danos não patrimoniais e aos danos patrimoniais futuros, também não assiste razão à Recorrente.

Relativamente aos danos não patrimoniais, há que concluir que todos os factores considerandos foram devidamente ponderados e o quantum fixado pela Relação também se acha em conformidade com os parâmetros em vigor, tendo até em atenção a jurisprudência mais recente.

Importa, todavia, ter sempre presente que quando se trata de formular juízos equitativos, há sempre uma margem de subjectivismo, apesar da preocupação de observância do princípio da igualdade e da uniformização de critérios.

         Como não é desconhecido, por um lado inexiste uma medida-padrão, tudo dependendo dos contornos concretos do caso, embora pautando-se por critérios objectivos e, por outro, como decidiu este Supremo Tribunal no seu acórdão de 20.11. 03[3] de que foi Relator o Exmº Conselheiro Santos Bernardino, «sendo certo que nestes casos a indemnização não visa propriamente ressarcir, tornar indemne o lesado, mas oferecer-lhe uma compensação que contrabalance o mal sofrido, não é menos verdade que tal compensação deve ser significativa e não meramente simbólica. A prática deste Supremo Tribunal acentua cada vez mais a ideia de que está ultrapassada a época das indemnizações miserabilistas para compensar danos não patrimoniais», acrescentando, porém, que «importa sublinhar que indemnização significativa não quer dizer indemnização arbitrária»[4].

Mas tal não se confunde com a entrega a critérios de puro subjectivismo do julgador.

Como tem decidido pacificamente a nossa Jurisprudência, «não devendo confundir-se a equidade com a pura arbitrariedade ou com a total entrega da solução a critérios assentes em puro subjectivismo do julgador, devendo a mesma traduzir a “justiça do caso concreto, flexível, humana, independente de critérios normativos fixados na lei”, devendo o julgador ter em conta as regras de boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida» (Acs. do STJ de 10-02-2008 in CJ/STJ, t. 1, pg. 65 e de 23.10. 2008 (Relator, Exmº Cons. Serra Baptista, Pº 08B2318 in www.dgsi.pt).

No que concerne aos danos patrimoniais futuros, também não se vislumbra qualquer excesso.

Para melhor aquilatarmos da adequação da decisão recorrida aos parâmetros legais e critérios jurisprudenciais aplicáveis a esta questão, torna-se imprescindível a transcrição da pertinente passagem da decisão recorrida:

«Questionam, a recorrente seguradora e os recorrentes subordinados ( autores)  apenas o quantum do valor da indemnização a atribuir, sustentando a primeira como adequado um valor na ordem dos €77.000 para a autora AA ( a sentença havia fixado esse valor em € 215 000 ) e de € 35.000,00, para os filhos ( a sentença havia fixado esse valor em € 38.500,00 para o Autor BB, e em €40.000,00 para a Autora DD), enquanto os recorrentes autores sustentam a alteração desses valores para 250.000,00 € ( AA),  44.500,00€ ( BB) , e  46.300,00€ (DD),  acrescida de a quantia de 46.300,00€  no caso da Autora AA , considerando que a partir do momento em que os filhos do falecido EE, não necessitassem do contributo do pai, o valor que lhes seria destinado passaria , previsivelmente, a ser afeto aos gastos domésticos e da companheira da vítima.

Deve antes de mais sublinhar-se que o que decorre do preceituado no artº 566º, nº 3 do CC, é que, na impossibilidade de ser averiguado o valor exato dos danos, o tribunal julgará equitativamente, fixando a indemnização dentro dos limites que tiver como provados.

Na busca de uniformização de critérios, têm os tribunais superiores desenvolvido jurisprudência cujos vectores principais se podem equacionar nos seguintes termos:

-  A indemnização deve corresponder a um capital produtor do rendimento que a vítima não auferirá e que se extinguirá no período provável da sua vida;

- No cálculo desse capital, e como base de trabalho, com vantagens em termos de objetivação, admite-se como adequado, o recurso a tabelas financeiras, que permitam determinar qual o capital necessário, produtor do rendimento, que, entregue de uma só vez, e diluído no tempo em que previsivelmente duraria o rendimento perdido, proporcione esse mesmo rendimento que o beneficiário da indemnização auferiria  se não fosse a morte do obrigado a alimentos;

- Considera-se igualmente que as tabelas financeiras ou fórmulas matemáticas de que se deite mão, não substituem a necessária ponderação judicial com base na equidade, no qual deve atender-se, além do mais,  que a indemnização será sempre paga de uma só vez, o que permitirá ao seu beneficiário rentabilizá-la em termos financeiros, e, assim, considerando-se esses proveitos, deverá introduzir-se um desconto no valor achado, sob pena de se verificar um enriquecimento abusivo do lesado à custa de outrem, e que, por outro lado, haverá que ponderar  igualmente outras variáveis, que aquelas tabelas ou fórmulas não refletem, como sejam a progressão profissional e remuneratória previsível,  ou a expectável melhoria das condições de vida do país e da sociedade.

Dito isto, haverá que salientar, antes de mais, que muito embora o critério mencionado na sentença recorrida como critério a seguir, coincida, em traços largos, com o que vem de dizer-se, os valores a que ali se chega extravasam largamente os resultados a que aquele mesmo critério conduziria. E se é certo que os resultados obtidos através das referidas tabelas financeiras não são necessariamente para adotar sem mais, certo é também que quaisquer conclusões que se traduzam em desvios significativos aos resultados a que ali se chegue, deverão ser fundamentados, sob pena de se cair no arbítrio.

A propósito de fatores que deveriam conduzir a resultado diverso daquele que foi alcançado na sentença recorrida, refere a recorrente seguradora que não poderia deixar de ponderar-se que o facto da supressão da vida da vítima, implicava uma redução de despesas do agregado familiar. E é assim de facto. No entanto, uma vez que no cálculo efetuado na sentença, já não é considerado a parte do rendimento que o falecido EE destinaria às suas despesas pessoais, e que, no que concerne à indemnização atribuída aos filhos apenas foi considerado o valor tido como equivalente ao valor do rendimento mensal da vítima lhes seria destinado, será fácil concluir que aquele argumento não colhe. Para além disso – ainda que sem prejuízo do que assim se deixou dito - acresce ainda que, como muito bem salienta a recorrida  nas suas contra-alegações, a parte imputável ao falecido EE, nas despesas domésticas, seria sempre pouco significativa, uma vez que está demonstrado que 26. EE tinha como único vício fumar (15º); 29. Sempre que estava em casa dedicava-se à família, não tendo o hábito de frequentar cafés, bares, ou ir ao cinema (18º); 27. No trabalho, não tinha qualquer despesa com os transportes, uma vez que era transportado pela entidade patronal (16º); 28. A alimentação era paga, também, pela entidade patronal (17º); 30. Por norma, limitava-se a ir tomar um café à sexta-feira depois de jantar, acompanhado da mãe do seu filho e aproveitando para ler o jornal (19º); 31. Aos sábados e domingos costumavam ir visitar os pais (do EE) onde tomavam as refeições, indo depois ao café tomar um café (20º). É assim legítimo concluir , como se concluiu na sentença recorrida, que, tirando o valor calculado como o necessário para  as despesas pessoais do falecido EE ( que na sentença foi calculado em € 150,00/mensais) toda a parte restante do valor por ele auferido mensalmente era  e continuaria a ser afeto aos gastos domésticos com a companheira e com os filhos, até porque para satisfazer tais encargos o valor que assim ficaria do que auferia mensalmente - €753,08 euros “líquidos” – seria até insuficiente. Já não vemos razão para, entre mãe e filhos, o rendimento fosse repartido de forma diferente – nessa parte acolhendo a objeção da recorrente seguradora – tanto mais que as  despesas domésticas, que na sentença recorrida , são contabilizadas na parcela a imputar à autora AA, serão despesas dos vários elementos do agregado familiar, não havendo elementos para considerar que devam ser calculadas de forma diferente para cada um desses elementos. Teremos assim que cada um dos autores terá deixado de receber um contributo da vítima, equivalente a €250,00»

Já no seu recurso de Apelação a Ré havia manifestado a sua discordância relativamente a esta questão, o que mereceu da Relação a decisão cuja passagem se acabou de transcrever.

Não vemos que tal decisão seja censurável por ter decidido do modo como o fez, pelo que claudicam também as conclusões que lhe são atinentes.

No que concerne à decisão sobre o cômputo dos juros, a Relação fundamentou devidamente tal decisão como se alcança da seguinte transcrição:

«Nos termos do disposto no artº 804º, nº 1 do CC, o devedor que incorra em mora constitui-se na obrigação de reparar os danos sofridos. Por sua vez os nº 1 e 2  do artº 805º do mesmo diploma dispõem que , nas obrigações pecuniárias a indemnização corresponde aos juros legais , salvo se for devido ou convencionado um juro mais elevado. A indemnização no caso das obrigações pecuniárias corresponde assim aos juros de mora, que assumem assim natureza ressarcitório, abrangendo, no caso dos factos ilícitos, os danos registados desde a prática do facto – cfr. parte final do nº 3 do artº 805º do CC – e é devida independentemente de interpelação – atº 805º, nº 2, al. b), do CC.

Dos normativos citados decorre que, nos casos de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco a regra é a de que o devedor se constitui em mora desde a citação.

No entanto, e em termos ressarcitórios, nada obsta no entanto a que o lesado opte por peticionar que a indemnização seja atualizada nos termos previsto no artº 566º, nº 2 do CC. Com efeito, e com fundamento neste normativo pode o lesado peticionar, e pode o tribunal ponderar, a atualização da indemnização por forma a esta seja uma indemnização integral e atual, reportada à data mais recente que puder ser atendida. O que não pode manifestamente é cumular a indemnização ressarcitória dos juros moratórios, com a atualização indemnizatória  a que se refere o nº 2 do artº 566º do CC.

Nesse sentido veio o STJ uniformizar jurisprudência ao decidir em AC UNIF n.º 4/2002, de 9-5, que “Sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objeto de cálculo atualizado, nos termos do n.º 2 do artigo 566.º do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artigos 805.º, n.º 3 (interpretado restritivamente), e 806.º, n.º 1, também do Código Civil, a partir da decisão atualizadora, e não a partir da citação

Dito isto.

Como se refere na sentença recorrida, os AA peticionavam na ação que aos valores indemnizatórios encontrados acrescessem juros de mora desde a citação até integral pagamento.

Não obstante, considerou-se na sentença que no caso dos danos não patrimoniais do autor BB foi tida em conta a data daquela sentença, estando por isso atualizado, fixando os juros de mora a partir dessa data.

Disso discordam os recorrentes AA, e cremos que com razão.

Por um lado, porquanto nos referidos artºs 805º e 566º do CC nenhuma destrinça é feita entre danos patrimoniais e não patrimoniais. Igualmente nenhuma distinção é feita a esse respeito no já referido AC UNIF n.º 4/2002, de 9-5. Por outro lado, lida e relida a sentença, à parte a conclusão a que se chega no final, nada do que ali consta permite concluir que na fixou em € 20.000,00 euros da indemnização por danos não patrimoniais ao autor BB, foi tida em conta qualquer raciocínio atualizador. O simples facto de ter sido fixada indemnização em valor abaixo do que era peticionado, não é, só por si,  suficiente para se considerar, sem mais, que foi efetuada uma qualquer atualização do valor indemnizatório, nomeadamente nenhuma referência é feita ao valor que seria o adequado no momento em que os AA o peticionaram. Como tal, e nos termos das disposições legais citadas, sobre a indemnização arbitrada aquele autor para ressarcimento dos danos não patrimoniais próprios, são devidos juros de mora desde a citação, e não desde a sentença, como foi decidido, procedendo nesta parte (B. I ) o recurso dos AA.

Pela mesma ordem de razões haverá que decidir pela improcedência do recurso da Ré seguradora nesta parte. Com efeito, peticionados juros desde a citação, nada na sentença recorrida permite concluir que ao pronunciar-se sobre a indemnização pedida pela perda do direito à vida, e ao fixar essa indenização em 60.000€ a sentença tivesse tido qualquer preocupação de a corrigir através de um juízo atualizador. Aliás, datando a ação de 2007, mesmo alguma da jurisprudência mencionada na decisão recorrida como referência do valor fixado, é de data anterior ( 2006).

Quanto aos danos patrimoniais futuros decidiu-se na sentença, que os juros de mora incidentes sobre o valor indemnizatório fixado a esse título deveriam contabilizar-se a partir da citação. Pretende a recorrente seguradora (A.IV ) que devem contabilizar-se a partir de momento da decisão que fixa o montante a arbitrar àquele título. No entanto, nada na decisão permite concluir que, ao fixar-se aquele valor indemnizatório, se tenha entrado em linha de conta com um fator de correção, por atualização do valor arbitrado, nos termos do disposto no artº 566º, nº 2 do CC. Ao contrário, o que se pode constatar é que o rendimento da vítima que está na base do cálculo  do valor indemnizatório é o vencimento por ele auferido à data do acidente. Assim que terá de entender-se que subiste o disposto no  art.º 805º, nº 2, al. b), e nº 3 do CC devendo por isso manter-se o decidido na sentença recorrida quando considera que os juros de mora incidentes sobre o valor  indemnizatório fixado pelos danos patrimoniais futuros deverão contabilizar-se a partir da citação.

            Improcede por isso nessa parte, o recurso da ré seguradora»

            Seriam ociosas e repetitivas e, por isso, inúteis, mais palavras para se afirmar a nossa concordância com o decidido que está em plena conformidade com as disposições legais indicadas e com a jurisprudência uniformizada pelo Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 4/2002, de 9-05-2002, publicado no DR I Série-A, de 27-06-2002, que fixou jurisprudência no sentido de que «sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do nº 2 do artigo 566º do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artigos 805º, nº 3 ( interpretado restritivamente) e 806º, nº 1, também do Código Civil, a partir da decisão actualizadora e não a partir da citação».

           

Pelo exposto, claudicam igualmente as restantes conclusões, o que linearmente conduz à improcedência do presente recurso.

DECISÃO 

Face a tudo quanto exposto fica, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal de Justiça em:

– Conceder parcialmente a Revista aos Autores, revogando a parte do acórdão recorrido que denegou a compensação por danos patrimoniais próprios à menor CC e substituir tal decisão por outra que condena, nos termos supra referidos, a Recorrida Cª DD de Seguros, S.A., a pagar à referida menor, na pessoa da sua legal representante, a quantia de € 20.000,00 (vinte mil euros) a título de compensação por danos não patrimoniais próprios em decorrência da morte do pai daquela menor em consequência do acidente de que tratam os autos.

Sobre esta quantia incidirão juros de mora, à  taxa legal, devidos desde a citação até integral pagamento.

– Manter em tudo o mais o Acórdão recorrido, no que tange ao presente recurso.

– Julgar totalmente improcedente o recurso da Ré Cª DD de Seguros, S.A, negando-lhe a Revista.

Custas do recurso dos AA, por ambas as partes, na proporção do seu decaimento.

Custas do recurso da Ré, a cargo da Recorrente, por força da sua sucumbência.

Processado e revisto pelo Relator.

Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça, 3 de Abril de 2014

Álvaro Rodrigues (Relator)
Fernando Bento
João Trindade



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[1] Vital Moreira e Gomes Canotilho - Constituição da República anotada , págs. 448

[2] Obra e autores citados, págs. 449

[3] Disponível em www.dgsi.pt.

[4] Ibidem.