Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2791/04.0TBVLG.P2.S2
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: ANA PAULA BOULAROT
Descritores: COMPRA E VENDA DE IMÓVEL
INCUMPRIMENTO
VENDA DEFEITUOSA
Data do Acordão: 11/06/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS / CONTRATOS EM ESPECIAL / COMPRA E VENDA / EFEITOS DA COMPRA E VENDA / VENDA DE BENS ONERADOS / VENDA DE COISAS DEFEITUOSAS / DEPOSITO / DEFEITOS DA OBRA.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / VÍCIOS E REFORMA DA SENTENÇA / RECURSOS / JULGAMENTO DO RECURSO – PROCESSO DE EXECUÇÃO / EXECUÇÃO PARA PRESTAÇÃO DE FACTO.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 406.º, N.º 1, 879.º, ALÍNEA B), 905.º, 913.º, N.º 1, 1220.º, 1221.º, 1222.º E 1225.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 615.º, N.º 1, ALÍNEA C), 682.º, N.º 1 E 874.º.
Sumário :

I O incumprimento de um contrato de compra e venda de uma fracção autónoma, traduzido na entrega de um lugar de garagem diverso do constante da escritura e correspondente àquela mesma fracção, gera responsabilidade negocial resultante na falta de entrega da coisa devida, e não qualquer outro tipo de responsabilidade, máxime a adveniente de um eventual cumprimento defeituoso do contrato.

II O regime da venda de coisas defeituosas é um regime especial que se sobrepõe a um qualquer regime geral, o qual implica, face ao preceituado no artigo 913º, nº1 do CCivil que tivesse sido apontado algum vício ou desvalorização ao imóvel e respectivo lugar de garagem, que a integrava o que não é de todo em todo o caso, o qual se resume, afinal das contas, tal como entenderam as instâncias, a um contrato de compra e venda que não se mostra pontualmente cumprido, porquanto a coisa vendida não foi entregue na sua totalidade, ou melhor, foi incorrectamente entregue, pois o lugar de garagem não era o correspondente à fracção vendida, mas antes um outro, correspondente a fracção diversa, o que veio a causar incómodos e prejuízos à Recorrida.

(APB)

Decisão Texto Integral:

ACORDAM, NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I E intentou ação declarativa sob a forma de processo comum ordinário, contra C, M e P, pedindo: que sejam condenados os Réus a reconhecer a Autora como legítima proprietária da fração autónoma designada pelas letras BQ-um, que faz parte da fração BQ; que seja a Ré P... condenada a abster-se de violar o direito de propriedade da autora deixando de aí guardar qualquer veículo, nem permitindo que outrem aí guarde quaisquer bens ou veículos, bem como a devolver tal fração à Autora, livre de pessoas e bens; que sejam condenados os 1ºs Réus (C e M) no pagamento à Autora da quantia que se vier a liquidar em execução de sentença; subsidiariamente, se se entender que a 2ª Ré (P) é a única responsável pela ocupação abusiva da garagem - aparcamento, deverá ela ser condenada na indemnização à autora na quantia que vier a ser liquidada em execução de sentença.

Como fundamento da sua pretensão, alegou a Autora, em síntese, que por escritura pública de 8 de Janeiro de 1987, os 1°s Réus (C e M) venderam a M C a fração autónoma designada pelas letras 'BR', correspondente a habitação no 9º andar esquerdo e lugar de garagem na cave designado por BR-um; por escritura pública de 5.12.1986, os mesmos Réus (C e M) venderam à Autora e ao ex-marido A..., a fração autónoma designada pelas letras BQ correspondente a habitação no 9º andar direito e lugar de garagem na cave designado por BQ-um; porém, embora a Autora e seu então marido ocupassem a fração desde meados de 1987, nunca ocupou a garagem BQ-um, mas sim, sem que se apercebesse da diferença, e por indicação dos lºs Réus, a garagem BR-um; é que os lugares de garagem encostados às paredes foram transformados em garagens fechadas e isso fez com que diminuísse o espaço e faltasse, do lado respetivo, uma garagem nas 15 previstas - facto de que nunca a Autora se apercebera; M C foi sucessivamente ocupando diversas garagens, à medida que elas iam sendo vendidas e os adquirentes respetivos as reivindicavam, até que ficou sem lugar; por isso, em 1996, M C intentou uma ação contra a Autora e seu ex-marido reivindicando a posse e propriedade da garagem BR-l; tal ação foi julgada improcedente; em 1997 M C intentou uma outra ação contra os aqui 1°s Réus (C e M), julgada procedente, tendo sido a Autora e seu ex-marido condenados a devolver - e já devolveu - o lugar de garagem que ocupavam e a pagar-lhe indemnização a liquidar em execução de sentença (vide acórdão desta Relação de 21 de Outubro de 1997 - fls. 65), ficando, portanto, sem aparcamento, com consequentes prejuízos; com a Ré P sucedeu o mesmo: adquiriu a fração com lugar de garagem M-um mas nem ela, nem os anteriores proprietários que adquiriram dos lºs Réus, alguma vez a ocuparam, antes tendo sempre ocupado o lugar BQ-um [da autora]; além disso, a Autora praticou atos de posse sobre as frações autónomas [habitação e garagem] integradores dos pressupostos de aquisição por usucapião.

Os Réus contestaram.

Os primeiros (C e M) contestaram nos termos que constam do articulado de fls. 232 a 234, impugnando os factos, e alegando, designadamente, que houve delimitação de lugares “através do levantar de paredes divisórias”, que não desapareceu qualquer lugar, que o lugar de parqueamento da autora continua a existir, que a delimitação foi feita por iniciativa e no interesse exclusivo dos comproprietários, não tendo havido qualquer alteração (mormente de dimensões) em função do projeto de construção aprovado, e que ignoram se a autora usa o seu lugar ou não, sendo que a cave do prédio mantém a divisão constante da planta incluída no projeto de construção aprovado e licenciado.

A segunda Ré, P, contestou nos termos que constam do articulado de fls. 253 a 263, impugnando a factualidade alegada pela autora, alegando que sempre possuiu, tendo adquirido por usucapião, a garagem questionada (BQ-1), sendo certo que as garagens fechadas o foram antes da primeira transmissão ocorrida em 1986. Mais impugnou os prejuízos invocados e deduziu reconvenção na qual pede a condenação de «todos os reconvindos a reconhecerem que a reconvinte adquiriu por usucapião o direito de propriedade sobre a garagem constituída pelos lugares designados como BQ-l e BN-l no doc. 4 e que corresponde à garagem designada como Ml no doc. 5, ambos da pi.».

Deduziu ainda o Incidente de Intervenção Provocada de A e de A M, adquirentes da fração BN por ela parcialmente ocupada e alegadamente adquirida (por usucapião).

A Autora apresentou réplica, conforme consta de fls. 271 a 275, alegando que a posse invocada pela 2ª Ré não é titulada, referindo que a posição desta é igual à da Autora nas ações judiciais anteriores e que toda a situação (desconformidade entre os títulos e a realidade e ocupação das garagens) era amplamente conhecida.

Foi proferido despacho (fls. 288) no qual foi indeferida a intervenção principal provocada requerida pela Ré P, intervenção essa que veio a ser admitida após recurso de Agravo.

A Autora requereu a ampliação do pedido (fls. 691), o que foi indeferido por despacho de fls. 725, ampliação essa que veio a ser admitida por via da decisão do recurso de Agravo interposto.

Na sequência de convite (fls. 1255), veio a autora requerer a intervenção principal provocada passiva de R e D, P C e S, por serem os proprietários dos aparcamentos BMT e BR1, aparcamentos esses confinantes com aquele que é objeto dos presentes autos (fls. 1258 e seg.), o que foi deferido.

Foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:

I - Julga procedente, por provada, a acção e, em consequência:

- Condena os RR a reconhecerem que a Autora E é titular do direito de propriedade sobre a garagem BQ-l, com a área de cerca de €10,56 m2, que faz parte da fracção autónoma BQ do prédio em questão constituído no regime de propriedade horizontal.

- Condena a 2ª Ré P e RR intervenientes a abster-se de violar tal direito da Autora, deixando de nela guardar qualquer veículo, nem permitindo que outrem aí guarde quaisquer bens ou veículos.

- Condena a 2ª Ré P a restituir à Autora E a referida garagem BQ-l, livre de pessoas e bens.

- Condena os RR intervenientes a demolirem as paredes e portas que integram os lugares de aparcamento vizinhos do BQ-l, da titularidade dos intervenientes, BM-1 e BR-1;

- Condena os l°s RR C e mulher M a pagarem à Autora E..., nos termos e limites acima apontados, e a título de indemnização, a quantia que se vier a liquidar em execução de sentença.

II - Julga totalmente improcedente, por não provada, a reconvenção e, em consequência, absolve a Autora E do pedido reconvencional contra ela deduzido pela Ré P.

III Como litigantes de má-fé, condenaram-se os R M, C, D e V a pagarem ao Estado a multa de 8 (oito) UCs.

Desta sentença interpuseram recurso de Apelação os Réus M, C, D... e V, no qual se decidiu:

«A. Em julgar parcialmente procedente o recurso da decisão da matéria de facto nos termos referidos no ponto 2.3.3.;

B. Em manter na íntegra os pontos I e II do dispositivo da sentença recorrida, julgando totalmente improcedente o recurso quanto ao mérito jurídico da sentença, com exceção da nulidade invocada;     

C. Em julgar procedente o recurso no segmento da nulidade invocada, por violação do princípio do contraditório, anulando a condenação por litigância de má fé e, em consequência, em determinar a baixa dos autos, após trânsito da presente decisão, a fim de permitir à Ma Juíza o cumprimento da formalidade em falta - princípio do contraditório (art.° 3.°, n.° 3, do CPC) - que a habilitará a proferir nova decisão, em conformidade com o que vier a ser apurado.».

Inconformados com este desfecho, quanto ao ponto B, recorrem de novo os Réus M, C, D e V, agora de Revista apresentando as seguintes conclusões:

- Na decisão sobre a matéria de facto relativa aos Pontos 34 e 42 da matéria provada, os fundamentos da decisão do acórdão estão em contradição com a decisão;

 - Considerando que não foi produzida prova suficiente para fundamentar a resposta aos Pontos 34 e 42 da matéria de facto, relativos ao valor da renda da garagem descrita nos autos, só restaria julgar como não provados aqueles factos e não reduzir o valor da renda fixado na sentença;

- O Acórdão "a quo" padece assim de nulidade à luz do art° 615º n° 1 c) CPC;

- Ao concluir que não há prova que suporte a resposta aos Pontos 34 e 42 da matéria de facto, ao acórdão "a quo" estava vedado responder àquela matéria, fixando de forma arbitrária e sem prova o valor da renda da garagem identificada nos autos;

- Ao fixar um valor de renda para a garagem identificada nos autos sem qualquer prova ou presunção ou regras de experiência que o fundamentem, o acórdão violou o art° 607º n°s 3 a 5 CPC;

- Ao não cumprirem a obrigação - de entrega da garagem contratada - a que estavam vinculados, os Recorrentes deram origem a uma desconformidade do contrato;

- Essa desconformidade traduz-se no cumprimento defeituoso da prestação do contrato de compra e venda, dado que a prestação não corresponde à designada no contrato e à qual o comprador tinha direito;

- As normas que regulam o cumprimento defeituoso na compra e venda são os art°s. 905º e segs e 913º e segs CC, que são normas especiais em relação às regras gerais da responsabilidade contratual prevista no art° 798º e segs CC;

- Sendo disposições especiais, as regras de cumprimento defeituoso na compra e venda preferem em relação às regras gerais de cumprimento e incumprimento contratual;

- A obrigação de indemnização derivada do cumprimento defeituoso nos contratos de compra e venda tem regras específicas;

- Por isso, o credor só pode atuar os seus direitos subjetivos, legais e convencionais, relacionados com o cumprimento defeituoso, respeitando as condições explicitadas no referido regime legal especial da compra e venda defeituosa;

- O direito à indemnização peticionado nos autos pela A. no âmbito de um contrato de compra e venda com fundamento em cumprimento defeituoso não tem autonomia dos restantes direitos explicitados no identificado regime legal especial;

- E extensivo à indemnização o disposto nos art°s. 905º e segs e 913º CC, não podendo por isso ser pedida em substituição de qualquer dos outros pedidos fixados na lei;

- A A. não respeitou a sequência lógica/imperativa fixada no regime especial do cumprimento defeituoso para fazer valer os seus direitos;

- Ao assim não entender, o acórdão "a quo" fez uma errada interpretação e aplicação do regime do cumprimento defeituoso na compra e venda, de coisa imóvel defeituosa previsto nos art°s. 905º e segs e 913º e segs, 1220º, 1221º, 1222º e 1225º CC.        

Nas contra alegações os Recorridos pugnam pela manutenção do julgado.

II As instâncias declararam com assente a seguinte factualidade:

1 - Em 08 de Janeiro de 1987, no Cartório Notarial do …, por escritura pública, os l.°s Réus [C e esposa] declararam vender a M C, livre de ónus, a fração autónoma designada pelas letras BR, com tudo o que a compõe, correspondente a uma habitação no nono andar esquerdo, traseiras, e lugar de garagem na cave, designada por BR-um (...) do prédio em propriedade horizontal sito no …. (certidão de fls. 14 e ss., não impugnada, que aqui se da por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais).

2 - A aquisição descrita em A encontra-se registada na Conservatória do Registo de Predial de …., provisória por natureza e convertida pela Ap. 27/170287 (documento junto a fls. 25 e seg., não impugnado, que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais).

3 - Por escritura pública lavrada em 05 de Dezembro de 1986, os l°s Réus [C e esposa M] declararam vender à Autora e seu então marido A M C a fração autónoma designada pelas letras BQ\ correspondente a uma habitação no nono andar direito e lugar de garagem na cave, designado por 'BQ-um', do prédio referido em 1.

4 - A aquisição descrita em 3 encontra-se registada na Conservatória do Registo Predial de … a favor da A e de A M C, pela inscrição G-1, Ap.05/051186, provisória por natureza, convertida pela Ap. 04/08187 (documento junto a fls. 31 e seg., não impugnado, que aqui se da por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais).

5 - O imóvel descrito em 3 encontra-se inscrito a favor da Autora, por inscrição G- 2, Ap. 23/14022001, por partilha subsequente a divórcio (documento junto a fls. 31 e seg., não impugnado, que aqui se por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais).

6 - Por sentença datada de 26 de setembro de 2003, confirmada pelo Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21 de outubro de 1997, foi reconhecido o direito de propriedade de M C sobre o lugar de garagem identificado pelas letras BR-1\ que compõe a fração autónoma designada pela letra BR, condenando-se a aqui Autora, juntamente com A M C, a reconhecer tal direito ao Autor, bem como a absterem-se de violar o direito de propriedade do ai autor sobre o referido lugar de garagem, nomeadamente deixarem de ai guardar qualquer veiculo ou de ai depositarem qualquer objeto, e a entregarem ao aí autor o referido lugar de garagem, ao aí autor completamente livre (documentos junto a fls. 345 e seg. dos autos).

7 - Nos termos da mesma decisão aludida em 6, foi igualmente julgado procedente, por provado, o pedido reconvencional deduzido pela aqui Autora e A M C, condenando-se o aí autor M C a reconhecer que a aqui Autora e A... eram donos e legítimos possuidores da garagem designada por BQ-1, integrada na fração autónoma BQ do imóvel identificado nos autos (documentos junto a fls. 345 e seg. dos autos).

8 - Por Escritura Pública de 9.07.1986, os l°s RR declararam vender a M A S M e mulher M A S a fração autónoma designada pela letra M, com lugar de garagem na cave M-l, com tudo que a compõe, correspondente ao Segundo andar frente esquerdo, com entrada pelo n.º duzentos e catorze, do prédio em propriedade horizontal sito nas Ruas …. (documento de fls. 103 e seg.).

9 - Por escritura pública de 4 de Janeiro de 1995, M A S declarou por si e na qualidade de procuradora do marido M A S M, vender à 2.ª Ré P, a fração identificada em 8 (certidão de fls. 107 e seg.).

10 - A aquisição descrita em 8 encontra-se registada a favor de M A S M e mulher pela inscrição G-l e Ap. 05/231194.

11 - A aquisição descrita em 1 encontra-se registada a favor da 2.a Ré pela inscrição G-2 e Ap. 03/200295.

12           - A e A M são os titulares inscritos no registo da propriedade sobre a fração autónoma designada pelas letras BN, correspondente a uma habitação no 8o andar esquerdo traseiras e lugar de garagem designado como BN-1, na cave, do prédio construído em propriedade horizontal sito na Rua ….

13 - A Autora E e o então seu marido A C ocuparam a habitação correspondente à fração autónoma BQ em meados de 1987.

14 - Sendo que, por indicação dos primeiros RR, ocuparam o lugar de garagem denominado BR-l.

15 - Desconhecendo, na altura, a designação do mesmo.

16 - Os lugares de garagem encostados à parede do lado onde, segundo a planta aprovada pela Câmara, se situavam os lugares BR-l e BQ-1, foram transformados em garagens (fechadas) com paredes laterais e portas.

17 - 0 que fez com que, com tais construções, se ocupasse um maior espaço.

18 - Provocando que onde inicialmente se previam 15 lugares de aparcamento passassem a existir 14 garagens.

19 - A Autora, no início, não se apercebeu que os l.°s RR lhes estavam a entregar um espaço de aparcamento diferente do convencionado.

20 - Apenas tendo tido conhecimento do descrito em 19 alguns anos depois.

21 - Tendo sido da iniciativa e conhecimento dos lºs RR a construção de garagens em lugares de aparcamento.

22 - Que realizaram as primeiras obras de transformação da cave de meros lugares de aparcamento, sem qualquer vedação, colocando-lhes paredes e portas.

23 - Ocupando cada vez mais espaço.

24 - Permitindo ao mesmo tempo que outros condóminos ocupassem mais espaço do que lhes era devido e haviam adquirido.

25 - Permitindo e colaborando na ocupação de espaços que não eram permitidos.

26 - Fazendo com que desaparecesse o espaço físico de uma garagem.

27 - Foram os primeiros Réus que indicaram à Autora o lugar de garagem reivindicado por M C C na ação a que se alude supra.

28 - A Autora já devolveu o espaço de aparcamento/garagem a M C C, no seguimento da decisão judicial referida 6.

29 - Sendo que desde Janeiro de 2004 comunicou ao mesmo que a garagem aparcamento em causa estava à sua disposição.

30 - Tendo ficado sem qualquer lugar de aparcamento/garagem para utilizar.

31 - (eliminado)

32 - Sendo que em virtude do descrito em 30, o apartamento da Autora sofre uma desvalorização.

33 - Sendo que a Autora utilizava igualmente a garagem como arrecadação de objetos e bens domésticos, assim como de mercadorias de uma loja de que é dona.

34 - A renda de um espaço equivalente ascende a cerca de 60,00€ mensais.

35 - O aludido lugar de garagem na cave M-1, referido em 8, nunca foi ocupado por M A S M e mulher.

36 - Nem pela segunda Ré.

37 - Antes tendo [M... e mulher e segunda Ré P...] ocupado o espaço de garagem-aparcamento correspondente a BQ-1\

38 - Após a decisão judicial aludida em 6, a Autora tentou junto da Ré P...que esta lhe entregasse a garagem/aparcamento referida em 37.

39 - O que esta recusou.

40 - E recusa.

41 - A Autora está, assim, impedida de aí guardar a sua viatura automóvel, assim como objetos da sua pertença.

42           - Sendo que a renda de um local idêntico para guarda do seu veículo automóvel ascende a cerca de 60,00€ mensais.

43 - A 2ª Ré P, desde 09 de Julho de 1986, ocupa o lugar de garagem/aparcamento correspondente à designação BQ-l à vista de todos.

44 - Sem qualquer oposição.

45 - O que fez por si e através de seus antecessores.

46 - Os primeiros compradores da fração M, M A SM e M A S ocuparam a garagem designada pelas letras BQ-l por indicação dos lºs RR.

47 - Desconhecendo a denominação de tal lugar de garagem/aparcamento.

48 - Nem tendo possibilidades de a conhecer, dado que o lugar que o Io. Réu lhes indicou e que ocuparam não continha qualquer identificação, seja pelas letras ou números.

49 - 0 lugar de garagem em causa foi indicado à 2ª Ré por M A SM e M A S.

50 - Passando a 2ª Ré a ocupar o mesmo nos precisos termos que os seus antecessores.

51 - As garagens construídas, designadamente a BQ-l foi sem a existência de processo relativo a obras de vedação.

52 - 0 alargamento da área das garagens reduziu o espaço de circulação de veículos.

53 - E ocupou espaços não pertencentes aos condóminos.

54 - 0 condomínio está a ocupar o espaço de uma garagem adquirida pela ré P.

55           - Na Câmara Municipal de … não existe qualquer processo relativo a obras de vedação efetuadas nos lugares de garagem.

56 - A área da garagem BQ-l é de cerca de 10,56m2.

57 - A garagem que a Reconvinte sempre ocupou e ocupa nos termos descritos na contestação é - segundo as plantas juntas como documentos n°s 4 e 5 da pi - constituída por parte do lugar originalmente designado com BQ-1 e pelo espaço designado por BN-1 e corresponde à designação MT do documento 5 junto à petição.

58 - Consta de fls. 119 a 126 cópia do documento dirigido pelo Réu C à Câmara Municipal de … e nesta entrado em 13 de dezembro de 1985 e através do qual requereu a constituição do prédio, a que respeitava o processo de obras 628-0C/82, em propriedade horizontal, do mesmo constando as frações autónoma que ficavam a constituí-lo segundo tal regime e a seguinte descrição da fração BQ: «Situada ao nível do 9º andar direito, destinada a habitação, com entrada pelo n.°… , composta por 3 quartos, sala comum, cozinha, zona de lavar, quarto de banho, WC, banho privativo, hall de entrada e arrumas, com a área de 138 m2, e lugar de garagem na cave, assinalado com a letra BQ-1, com entrada pelo n° …, a que corresponde uma permilagem de 18,40 milavos do valor do conjunto».

59 - Constam de fls. 53,235, 342, 516, 586 e 625 cópias da planta dessa cave relativa à propriedade horizontal constante do respetivo processo de obras n.° 628-0C/82 da Câmara Municipal de … que instruiu o requerimento aludido em 45 e que serviu de base à constituição da propriedade horizontal, e nela se identifica o lugar de garagem 'BQ'.

60 - O requerimento referido em 45 foi deferido pela Câmara em 16 de janeiro de 1986, conforme documento de fls. 118.

61 - Consta de fls. 517 a 573 certidão da escritura pública notarial, de 13 de março de 1986, intitulada de «Constituição de Propriedade Horizontal», outorgada pelo Réu C, na qual ele declarou o seu propósito de constituir o prédio no regime de propriedade horizontal e que, como parte individualizada desse prédio, entre outras, ficava a fração autónoma identificada por BQ e assim descrita: «Situada ao nível do 9.° andar direito, destinada a habitação, com entrada pelo n.° …, composta por três quartos, sala comum, cozinha, zona de lavar, quarto de banho, quarto de banho de serviço, banho privativo, hall de entrada e arrumas, com a área de 138 m2, e lugar de garagem na cave, assinalado com a letra BQ-um, com entrada pelo nº… ».

62 - Conforme certidão de fls. 606 a 617, tal escritura foi instruída com certidão da Câmara Municipal de … do requerimento aludido em 45 e da aprovação da propriedade horizontal referida em 47.

63 - Consta de fls. 20 a 22, 33 a 36, 112 a 114, 127 e 128, 206 e 331, 327 a 331, que o ato de constituição da propriedade horizontal referido em 45 foi averbado à descrição do prédio e inscrito na Conservatória do Registo Predial por Ap. 28/020486, ficando a fração BQ nessa repartição identificada pelo n.° 00607/020486-BQ, e assim descrita: "Habitação no nono andar direito, e lugar de garagem na cave BQ-1 - … ".

64 - As plantas de fls. 54, 344 e 790 mostram a mesma cave do prédio referida em 46, mas tal como se encontra atualmente.

65 - A planta junta a fis.793 mostra, por sobreposição da inicial com a atual, a diferença entre o aprovado para a cave e o lá existente.

1.Da nulidade

Insurgem-se os Recorrentes contra a decisão ínsita no Aresto sob censura, porquanto no seu entender o mesmo é nulo, nos termos do artigo 615º, nº1, alínea c) do CPCivil, já que na decisão sobre a matéria de facto relativa aos pontos 34 e 42 da matéria provada relativos ao valor da renda da garagem, os fundamentos da decisão do acórdão estão em contradição com a decisão, tendo em atenção que não foi produzida prova suficiente para fundamentar a resposta dada aos mesmos, só restaria julgar como não provados aqueles factos e não reduzir o valor da renda fixado na sentença.

Dispõe o aludido artigo 615º, nº1, alínea c) que a sentença (Acórdão) é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão, ou quando ocorra alguma obscuridade e/ou ambiguidade que a torne ininteligível.

Nos aludidos pontos de facto 34. e 42., o segundo grau, em sede de apreciação da impugnação factual havida no recurso de Apelação deu como provado que «34 – A renda de um espaço equivalente ascende a cerca de 60,00€ mensais.» e «42- [que] a renda de um local idêntico para guarda do seu veículo automóvel ascende a cerca de 60,00€ mensais.».

A contradição a que se refere o dispositivo assinalado é entre os factos e a decisão de direito que dos mesmos o julgador faz extrair, e neste conspecto, nenhum dissenso é apontado pelos Recorrentes.

O que os Recorrentes pretendem impugnar com a sobredita arguição de nulidade, é o apuramento factual efectuado pelas instâncias naquelas duas respostas, isto é, ao concluírem que entendem não ter sido produzida prova suficiente para fundamentar a resposta dada aos mesmos, mas este desacordo transcende por um lado o âmbito do vício que arguem e, por outro, o âmbito do próprio recurso de Revista que se limitado à apreciação do regime jurídico aplicado aos factos materiais fixados pelo Tribunal recorrido, nos termos do artigo 682º, nº1 do CPCivil.

Improcede, pois, a nulidade arguida.

2.Do regime jurídico aplicável.

Insurgem-se ainda os Recorrentes contra o decidido, porque na sua tese, ao não cumprirem a obrigação de entrega da garagem deram origem a uma desconformidade do contrato, traduzida no cumprimento defeituoso da prestação do contrato de compra e venda, dado que a prestação não corresponde à designada contratualmente e à qual o comprador tinha direito, sendo que as normas que regulam o cumprimento defeituoso na compra e venda - artigos 905º e segs e 913º e segs doCCivil, que são normas especiais em relação às regras gerais da responsabilidade contratual prevista no artigo 798º e segs do mesmo diploma, preferindo a estas.

Vejamos.

Esta tese, da aplicação ao caso sub judice do regime da compra e venda de coisa defeituosa, já havia sido ensaiado pelos Recorrentes em sede de recurso de Apelação, sem sucesso e de novo aqui, adiantamos já, igual sorte irá ter.

A questão solvenda que deu origem ao peticionado pela Autora, aqui Recorrida, nestes autos, traduz-se na aquisição por esta aos Réus, aqui Recorrentes C e M da fração BQ, à qual correspondia o lugar de garagem BQ-1, tendo-lhe todavia sido indicado pelo Réu um outro lugar de garagem que a autora passou a utilizar, mas que veio a ser reclamado judicialmente, mais tarde, por um outro condómino, M C C, dono da fração BR, tendo a Autora sido condenada a reconhecer que o lugar de garagem que utilizava correspondia à designação BR-1 e a devolvê-lo àquele, sendo certo que o lugar de garagem que efectivamente pertencia à Autora, o aludido BQ-1 encontrava-se e encontra-se ocupado pela Ré P, de onde a Autora ter ficado despojada dum lugar de garagem que adquiriu e pagou e ter tido prejuízos com tal despojamento.

Estamos face a um contrato de compra e venda de uma fracção autónoma que incluía um lugar de garagem, contrato esse subsumível no disposto no artigo 874º do CPCivil.

A Autora, aqui Recorrida, recebeu a fracção e um lugar de garagem que não era o correspondente àquela, cfr matéria provada nos pontos 3., 13 14, 15., 19., 20., 25., 27. e 28 o que nos conduz, desde logo, a um incumprimento da obrigação, porque a coisa entregue não corresponde totalmente à coisa devida.

De outra banda, igualmente ficou apurado que o lugar de garagem que pertencia por direito à Autora, aqui Recorrida, é ocupado pela Ré/Recorrente P, pontos 37. a 40, 43. a 50., o que justifica o pedido de reconhecimento e de propriedade e consequente restituição que se mostra formulado e decidido

Dispõe o artigo 913º, nº1 do CCivil que «Se a coisa vendida sofrer de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada, ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização daquele fim, observar-se-á, com as devidas adaptações, o prescrito na secção precedente, em tudo quanto não seja modificado pelas disposições dos artigos seguintes.».

Efectivamente, o regime da venda de coisas defeituosas é um regime especial que se sobrepõe a um qualquer regime geral.

Todavia, necessário se tornaria para que a situação em tela pudesse ser subsumida na aludida fattispecie, que tivesse sido apontado algum vício ou desvalorização ao imóvel e respectivo lugar de garagem, que a integrava conforme ponto 3. da factualidade assente, o que não é de todo em todo o caso, o qual se resume, afinal das contas, tal como entenderam as instâncias, a um contrato de compra e venda que não se mostra pontualmente cumprido, porquanto a coisa vendida não foi entregue na sua totalidade, ou melhor, foi incorrectamente entregue, pois o lugar de garagem não era o correspondente à fracção vendida, mas antes um outro, correspondente a fracção diversa, o que veio a causar incómodos e prejuízos à Recorrida.

Estamos em sede de incumprimento contratual, como deflui inequivocamente do disposto nos artigos 406º, nº1 e 879º, alínea b) do CCivil.

Os princípios gerais que regem o incumprimento, conduzem-nos à responsabilidade do devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação, perante o seu credor, artigo 798º do CCivil, o que conduz ao apuramento da indemnização nos termos gerais, tal como decidido se mostra pelas instâncias e afasta, a se, qualquer outra interpretação, maxime, a aventada pelos Recorrentes, em sede de venda de coisa defeituosa e de empreitada (artigos 1220º a 1222º e 1225º do CCivil).

Soçobram, assim, as conclusões de recurso.

III Destarte, nega-se a Revista, mantendo-se a decisão plasmada no Acórdão impugnado, devendo-se ter em atenção, na primeira instância, que há lugar ao cumprimento da parte “C” do dispositivo do Acórdão da Relação, que não foi objecto do presente recurso.

Custas pelos Recorrentes.

Lisboa, 6 de Novembro de 2018

                     

Ana Paula Boularot (Relatora)

Pinto de Almeida

José Rainho