Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02P3222
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: ARMANDO LEANDRO
Nº do Documento: SJ200212040032223
Data do Acordão: 12/04/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 2 V CR LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 3222/02
Data: 07/11/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Sumário :
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo tribunal de Justiça:

I.
Pelo Tribunal Colectivo da comarca de Loures foi julgado o arguido
A, solteiro, sem profissão, nascido em 13/09/1975, natural de S. Sebastião da Pedreira, filho de .... e de ...., residente na Rua ..., Lote .. - ...., ..., ...., Pontinha e actualmente detido no E.P. de Lisboa, acusado pelo Ministério Público da prática, como autor material, em concurso efectivo, de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo artº. 21º, nº. 1 do DL 15/93 de 22/1, com referência às Tabelas I-A e I-C publicadas em anexo ao mesmo diploma, e um crime de detenção ilegal de arma de defesa p. e p. pelo artº. 6 da Lei 22/97 de 27/6.
Por douto acórdão foi a final proferida decisão, de que se transcreve a parte que importa considerar:
"acordam as juízas que constituem o tribunal colectivo em julgar a douta acusação procedente, por provada e, em consequência:
a) - Condenam o arguido A, pela prática de:
a.1) - um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo artº. 21º, nº. 1, do DL 15/93 de 22/1, com referência à Tabela I-C publicada em anexo ao mesmo diploma, na pena de 4 (quatro) anos e 10 (dez) meses de prisão;
a.2) - um crime de detenção ilegal de arma de defesa p. e p. pelo artº. 6º, nº. 1 da Lei 22/97 de 27/6, na pena de 7 (sete) meses de prisão;
a.3) - operando o cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas aos crimes acima referidos, nos termos do artº. 77º do Cód. Penal, vai o mesmo arguido condenado na pena única de 5 (cinco) anos de prisão.
c) - Declaram perdidos a favor do Estado, nos termos dos artºs 35º e 36º do DL 15/93 de 22/1, o haxixe, a heroína e o ecstasy apreendidos a fls. 3, 81, 82 e 84, a viatura Renault 19 de matrícula DX apreendida a fls. 83, a quantia total de € 107,54, o relógio e os telemóveis apreendidos a fls. 81, 82 e 84 dos autos;
d) - Declaram perdidas a favor do Estado, nos termos do disposto no artº. 109º do C.Penal, a pistola de calibre 6,35 mm, respectivo carregador e munições, bem como as duas facas, apreendidas a fls. 81, 82 e 84 e examinadas a fls. 143, 144 e 168 dos autos.
f) - Determinam se proceda, após trânsito, à entrega dos objectos em ouro apreendidos a fls. 81 e 82 e depositados a fls. 180, aos pais do arguido, por a eles pertencerem, mediante termo no processo;
O arguido recorreu desta decisão, formulando na respectiva motivação as seguintes conclusões:
Sendo assim claro que, se encontra provado que o recorrente prevaricou cometendo o crime de tráfico de estupefacientes, parece-nos, salvo melhor opinião, se encontrar também provado que o recorrente traficava apenas para ganhar para o seu consumo, o que sendo censurável, evitava que o recorrente tivesse que recorrer a outros métodos ilícitos para conseguir dinheiro para pagar o seu consumo, pelo que deverá o recorrente ser condenado, nos termos do nº1 do artº 26º do DL 15/93, de 22 de Janeiro, numa pena não superior a 3 anos de prisão, nos termos do artº 40º nº 1, do Cód. Penal, sob pena de se violar o disposto no artº 40º nº 2 do também do Cód. Penal;
1. Ainda que não seja esse o entendimento de V.Exas, haverá que ponderar a condenação do recorrente nos termos do artº 25º do DL 15/93, de 22 de Janeiro, por a quantidade e qualidade de substância estupefaciente que o recorrente vendia não ser significativa, atendendo que sempre foi detido na posse de pequenas quantidades de haxixe e não ficando provado que vendia qualquer outro produto estupefaciente, nos termos do artº 40º, nº1, do Cód. Penal, sob pena de se violar o disposto no art.º 40º nº. 2 do também do Cód Penal.
3. Deve ainda ser ordenada a restituição dos bens apreendidos nos autos, nomeadamente a viatura Renault 19 de matricula DX, o relógio e os telemóveis apreendidos (cfr. al. c) do dispositivo do douto Acórdão ora recorrido), por não se vislumbrar da matéria dada como provada no douto Acórdão ora recorrido a relação que estes objectos possam ter tido com a prática do crime ora em apreço, pelo que deverá ser ordenada a sua devolução, sob pena de se violar o disposto no n.º 1 do artº 109º, à contrário, do Cód Penal;
4. Violados se revelam, em consequência, salvo melhor opinião, os preceitos legais invocados nas presentes alegações de recurso.
Nestes termos e nos mais de direito, deve ser julgado procedente o presente recurso, revogando-se a decisão recorrida na parte em que determina a condenação do recorrente nos termos do nº 1 do artº 21º do DL 15/93, de 22 de Janeiro, condenando-o nos termos do nº 1 do artº 26º ou ainda nos termos do artº 25º do DL 15/93, de 22 de Janeiro, ordenando-se ainda a entrega dos requeridos bens, por ser de Justiça.
Na sua resposta o Exmo. Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal recorrido defendeu a improcedência do recurso, concluindo:
1. Ao contrário do que sustenta o recorrente, não é aplicável ao caso sub judice, o tipo legal do artº 26 do D.L. 15/93 de 22.01 (tráfico para consumo) uma vez que resulta inequívoco dos factos dados como provados no douto acórdão recorrido que o arguido, ao vender o produto estupefaciente a terceiros, tinha como propósito obter lucros, não tendo ficado assente que o mesmo destinasse o valor obtido exclusivamente à aquisição de produto para seu uso pessoal.
2. Não é, igualmente, aplicável aos factos provados nos autos o dispositivo legal do art. 25º do D.L. 15/93 (tráfico de menor gravidade) porquanto:
- A quantidade de haxixe apreendida ao arguido (mais de 200 gramas) não é uma quantidade diminuta, sendo suficiente para cerca de 200 doses individuais e excedendo largamente a quantidade necessária para o consumo médico Individual durante o período de cinco dias;
- Acresce que a quantidade apreendida ao arguido - já por si só bastante significativa - é, evidentemente, apenas uma pequena amostra da quantidade global por ele movimentada entre os meses de Julho de 2001 e Janeiro de 2002;
- Para além disso, verifica-se que arguido desenvolveu a actividade de tráfico durante um período temporal alargado - pelo menos seis meses consecutivos.
- Por último, a partir das quantidades apreendidas ao arguido é possível perceber com clareza que o "negócio" que o mesmo levava a cabo implicava já um relevante investimento económico e, concomitantemente, uma certa organização.
3. Quanto à questão dos objectos declarados perdidos a favor do Estado, entende-se que também não existiu a violação de qualquer disposição legal, uma vez que, encontrando-se provado que o arguido à data dos factos era desempregado e não tinha outras fontes de rendimento, pode, efectivamente, concluir-se que tais bens foram adquiridos com proventos do único "negócio" que desenvolvia - o tráfico de droga.
Nestes termos, o douto acórdão recorrido efectuou um correcto e justo enquadramento jurídico-penal da actuação do arguido, pelo que deve ser mantido nos seus precisos termos, assim se fazendo Justiça.
Subidos os autos ao S.T.J., o Exmo. Procurador-Geral-Adjunto pronunciou-se no sentido de nada obstar ao conhecimento do recurso.
Admitido o recurso e após vistos, teve lugar audiência, cumprindo agora apreciar e decidir.
II.
Conforme entendimento pacífico, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da respectiva fundamentação, pelo que, salvo o caso de existência de questões de conhecimento oficioso permitido, as questões a decidir são as que resultam dos termos dessas conclusões:
No presente recurso essas questões são as seguintes:
a) Os factos provados não integram crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art. 21º do DL nº 15/93, de 22/01, mas crime de traficante-consunidor, p. e p. pelo art. 26º, nº 3, desse Decreto-lei ou, quando assim se não entenda, crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo art. 25 do mesmo diploma?
b) Deve ser revogada a parte da decisão que declarou perdidos a favor do Estado o veículo automóvel Renault 19, de matricula DX, bem como o relógio e os telemóveis apreendidos a fls. 81, 82 e 84 dos autos, «por não se vislumbrar da matéria dada como provada no douto acórdão recorrido a relação que estes objectos possam ter tido com a prática do crime ora em apreço, pelo que deverá ser ordenada a sua devolução, sob pena de se violar o disposto no art. 109º, a contrario, do Código Penal»?
Apreciemos.
III.
Do douto acórdão recorrido consta a seguinte decisão de facto e respectiva fundamentação:
Factos provados e não provados.
Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos:
1. Pelo menos, no período compreendido entre Julho de 2001 e 29 de Janeiro de 2002, o arguido dedicou-se à compra e posterior venda de haxixe a terceiros.
2. No dia 30 de Julho de 2001, cerca das 21h e 30m, o arguido, quando se encontrava junto à sua residência, sita na Rua ...., junto ao Lote B, Porto da Paiã, Pontinha, tinha na sua mão, dentro de um maço de tabaco, vários pedaços de haxixe, com o peso total líquido de 21, 353 gramas.
3. No dia 29 de Janeiro de 2002, cerca das 17h e 30m, quando se encontrava no mesmo local, o arguido tinha consigo vários pedaços de haxixe com o peso total líquido de 2,089 gramas.
4. Nesse mesmo dia e à mesma hora, o arguido tinha no interior da sua residência, em cima de uma mesa, no seu quarto de dormir, vários pedaços de haxixe, com o peso total líquido de 192,600 gramas, cinco "quartas" e duas "palhinhas" de heroína, com o peso total líquido de 2,093 gramas e uma pastilha de ecstasy.
5. Nessa mesma ocasião, o arguido tinha ainda, dentro do bolso de um casaco, guardado num roupeiro, no seu quarto, uma pistola de calibre 6,35 mm, marca "Astra", fabrico italiano, de cor prateada, com platinas em fibra de cor preta, com carregador e quatro munições do mesmo calibre, a qual não se encontra manifestada nem registada.
6. O arguido destinava o haxixe que tinha consigo, nas referidas circunstâncias, à venda a terceiros; destinava a heroína e o ecstasy que tinha em seu poder para o seu consumo pessoal.
7. O arguido conhecia a natureza e características do sobredito produto que no referido período comprou, vendeu e detinha com ele, designadamente a sua natureza estupefaciente.
8. Sabia que a sua aquisição, detenção para venda e cedência a terceiros eram proibidas, mas, não obstante, quis detê-lo e vendê-lo.
9. Actuou o arguido com o propósito de através da venda daquele produto obter lucros.
10. O arguido conhecia também as características da arma que tinha na sua casa e sabia que não a podia ter sem a mesma se encontrar manifestada e registada; mesmo assim, quis tê-la na sua posse.
11. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei.
Mais se apurou que:
- O arguido, de 26 anos de idade, é solteiro e tem como habilitações o 8º ano de escolaridade. À data dos factos, encontrava-se desempregado e vivia com os pais, sendo o pai empregado de balcão e a mãe auxiliar da acção médica.
Era toxicodependente - consumia heroína desde os 18 anos de idade, fumando. Desde que se encontra detido, tem tido acompanhamento médico para deixar o consumo de drogas.
Esteve a trabalhar em Inglaterra, pelo menos, desde Setembro a Dezembro de 1999, tendo regressado a Portugal em Fevereiro de 2000, após o que começou a trabalhar como motorista até Julho de 2001, data em que ficou desempregado.
Trabalhou, ainda, alguns dias como ajudante de mecânico, numa oficina de um vizinho.
O arguido não tem antecedentes criminais.
Encontra-se preso preventivamente no E.P. de Lisboa desde 29/01/2002, à ordem dos presentes autos.
Nenhum outro facto se provou com interesse para a boa decisão da causa, para além dos supra descritos, designadamente:
- que o arguido, no período compreendido entre Julho de 2001 e 29/01/2002, se dedicasse à venda de heroína a terceiros;
- que o arguido destinasse a heroína e o ecstasy que tinha em seu poder, no dia 29/01/2002, à venda a terceiros, com fim lucrativo.
2.2 - Motivação de facto e de direito.
2.2.1 - Meios de prova:
O Tribunal baseou a sua convicção, quanto aos factos provados, nos seguintes elementos probatórios:
a) - nas declarações prestadas pelo arguido, que admitiu proceder à venda de haxixe desde que ficou desempregado em Julho de 2001, bem como o facto de, nas duas datas supra indicadas, ser portador do haxixe acima referido quando foi abordado pela autoridade policial, e de ter sido feita a busca a sua casa, onde lhe foi apreendido o restante haxixe, a heroína e o ecstasy, bem como a pistola atrás mencionados; teve-se, ainda, em atenção as suas declarações na parte em que admitiu ser toxicodependente e no que concerne às circunstâncias da sua vida pessoal; todavia, negou que se dedicasse à venda de heroína e ecstasy (esclarecendo que aquelas substâncias que foram encontradas em sua casa se destinavam ao seu consumo pessoal), referindo que da totalidade do haxixe que lhe foi apreendido, uma parte destinava-se ao seu consumo pessoal e a outra parte era para ser vendida a terceiros, sendo que o fazia apenas para sustentar o seu próprio consumo;
b) - porém, esta última parte da versão do arguido não logrou convencer o Tribunal, não só pelo facto de ele não ter feito prova de se dedicar a qualquer actividade profissional, geradora de rendimentos, que lhe permitisse sustentar o seu vício e prover à sua subsistência, mas também pela elevada quantidade de droga que lhe foi apreendida, que representa um investimento por parte do arguido demonstrativo de uma capacidade económica não consentânea com a sua situação de desempregado, que ele próprio admitiu; por outro lado, o arguido admitiu ser consumidor de heroína desde os 18 anos de idade, consumindo diariamente 3 a 4 "quartas" daquele produto, não sendo crível, segundo as regras da experiência comum, que ao consumir tal quantidade de uma droga "dura", como é a heroína, o arguido fosse também consumidor habitual de haxixe;
c) - levou-se, ainda, em consideração as declarações prestadas pelo arguido na parte em que admitiu ser sua a arma que foi encontrada no seu quarto e o facto de a mesma não se encontrar manifestada e registada;
d) - no depoimento da testemunha B, agente da PSP que participou na primeira detenção do arguido, em 30/07/2001 e na apreensão do produto estupefaciente que este trazia consigo, dentro do maço de tabaco, e interveio nas vigilâncias feitas à casa do arguido antes da segunda detenção dele, em 29/01/2002 e que se encontram documentadas nos autos, tendo confirmado a quantidade de haxixe que foi apreendida ao arguido e descrito a movimentação de pessoas que se fazia junto ao café próximo da casa do arguido, onde ele se encontrava, aquando da primeira detenção; confirmou, ainda, ter presenciado as trocas havidas entre o arguido e os indivíduos que se dirigiam a ele, aquando da segunda detenção, sendo que alguns acabavam por consumir a droga naquele local, e ter visto que o arguido encontrava-se sempre no café, não se apercebendo de que o mesmo saísse para ir trabalhar, tendo deposto com isenção e segurança;
e) - nos depoimentos das seguintes testemunhas de defesa:
- C e D, ambos amigos do arguido, que confirmaram o facto de o arguido ter estado a trabalhar em Inglaterra;
- E, dono de uma oficina de mecânica, que confirmou o facto de o arguido algumas vezes o ter ajudado na sua oficina;
- F e G, ambos amigos do arguido, que depuseram sobre as circunstâncias da sua vida pessoal e familiar, revelando ter um conhecimento directo e seguro dos factos;
f) - nos relatórios de vigilância constantes de fls. 57 a 63 e 93 dos autos, com início em 18/12/2001 e termo em 29/01/2002, à casa do arguido, durante períodos com duração variável (entre 2 e 5 horas), normalmente com início ao final da tarde e prolongando-se até às 23 horas, e em dias da semana diferenciados, onde se constata a afluência de várias pessoas àquele local para contactar o arguido e as trocas havidas entre eles;
g) - no auto de apreensão de fls. 3;
h) - nos autos de busca e apreensão de fls. 81 a 84 e nas guias de depósito de fls. 180 e 181;
i) - nos relatórios de exame toxicológico de fls. 27, 158 e 159 dos autos;
j) - no auto de exame a objectos de fls. 143 e 144;
k) - nos autos de exame e avaliação de fls. 161 e 168;
l) - nos documentos de fls. 104, 105, 223, 224, 226 a 231 e 251 a 255 dos autos.
No que concerne à ausência de antecedentes criminais do arguido, estribou-se o Tribunal no CRC inserto a fls. 189 e na guia do Estabelecimento Prisional de fls. 221 dos autos.
Os factos não provados ficaram a dever-se à circunstância de não ter sido feita qualquer prova suficientemente credível da sua ocorrência, pois para além de o arguido ter negado que se dedicasse à venda de heroína e ecstasy (referindo que estas substâncias que foram encontradas no seu quarto e que lhe foram apreendidas, destinavam-se unicamente ao seu consumo pessoal), os mesmos não foram confirmados pela testemunha presencial ouvida em audiência de julgamento; por outro lado, o Tribunal baseou a sua convicção de que o arguido não procedia à venda de heroína e ecstasy, na circunstância de ele trazer consigo apenas haxixe, nas duas ocasiões em que foi interceptado e detido pela autoridade policial na via pública, sendo que a heroína e o ecstasy estavam na sua casa, o que faz presumir que teria guardado tais substâncias somente para seu consumo pessoal.
Do texto desta decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, não resulta qualquer dos vícios ou nulidades a que se referem os nºs 2 e 3 do art. 410 do C.P.P., que embora não invocados nas conclusões seriam de conhecimento oficioso nos termos do art. 434º do C.P.P.
Deve pois considerar-se assente a matéria de facto apurada, para com base nela se apreciarem e decidirem as questões acima referidas.
IV.
Apreciemos as questões sintetizadas sob a alínea a), relativas à qualificação jurídico-criminal dos factos no que respeita à imputação de tráfico de estupefacientes.
É manifesto que, ao contrário do que o recorrente defende, não pode considerar-se integrado crime de traficante consumidor p. e p. pelo citado art. 26º, na medida em que resulta dos factos provados que o arguido procedia à venda de «haxixe» com o propósito de obter lucros, o que exclui que o fizesse com a finalidade exclusiva de obter produtos estupefacientes para uso pessoal, como seria indispensável à integração de elemento fundamental desse tipo de crime.
E também não pode concluir-se que estamos face a um crime de tráfico de menor gravidade previsto pelo mencionado art. 25º.
É certo que, como temos defendido (1) e constitui sentido da doutrina e da jurisprudência dominantes (2), não pode entender-se que o tipo privilegiado do crime de tráfico do art. 25º pressupõe necessariamente um tráfico de gravidade diminuta. O que exige é que da globalidade do circunstancialismo apurado, apreciada a partir dos índices exemplificativos indicados e/ou de outros significativos, resulte uma ilicitude consideravelmente diminuída face à que é pressuposta pela incriminação do art. 21º, que é muito elevada, como o revela a respectiva moldura penal abstracta, quando considerada à luz do quadro do nosso sistema sancionatório penal.
No caso dos autos não resulta porém caracterizada essa considerável diminuição da ilicitude.
É certo que o estupefaciente traficado (haxixe) é dos de menor potencialidade danosa para a saúde pública, mas o facto apurado das quantidades apreendidas (com o peso líquido de 21, 353 gramas em 31 de Julho de 2001 e o de 196,728 em 29 de Janeiro de 2002), quando relacionado com o período de pelo menos cerca de seis meses em que o arguido exerceu a actividade de tráfico, com intuito de lucro, actividade que prosseguiu mesmo depois de detenção policial e sequente intervenção judicial, em 31/07/01, que o confrontou com essa actividade, revela, no domínio do ilícito, um nível de persistente actuação de tráfico muito significativo, já não compatível com a acentuada diminuição pressuposta por esse tipo de crime privilegiado.
Improcede pois o fundamento do recurso relacionado com a qualificação jurídica dos factos.
Considerando porém a globalidade do factualismo apurado - nomeadamente o relativo ao grau de ilicitude do facto, situado perto do limite mínimo pressuposto pelo tipo do art. 21º do DL n.15/93, à intensidade do dolo, à ausência de antecedentes criminais, à sujeição do arguido a tratamento, à sua longa situação de toxicodependência, determinada por consumo de heroína desde os 18 anos de idade, portando há cerca de nove anos, e ainda à circunstância de ter tido actividades laborais - entende-se, à luz do disposto nos arts. 40º e 71º do C.P., como respeitadoras do limite correspondente à medida da culpa e necessárias e bastantes para a satisfação das necessidades concretas de prevenção geral positiva ou de integração, bem como, dentro da «moldura de prevenção geral», das exigências de prevenção especial de socialização reveladas no caso, as penas parcelares de quatro anos de prisão pela prática de rime p. e p. pelo art. 21º do DL N. 15/93 e de cinco meses de prisão pelo crime p. e p. pelo art. 6º, n. 1, da Lei n. 22/97, de 27/06.
Efectuando o cúmulo jurídico dessas penas, tendo em atenção, conjuntamente, nos termos do art. 77º do C.P., a globalidade do factualismo apurado e a personalidade do arguido reflectida nos factos, em que sobrelevam as circunstâncias da prática do tráfico, a sua longa situação de toxicodependência, conjugada com a ausência de antecendentes criminais e a sujeição a tratamento daquela situação, apresenta-se como justa e adequada a pena de quatro anos e dois meses de prisão.
Nesta medida se altera parcialmente o douto acórdão recorrido.
Espera-se que esta redução da pena facilite ao arguido uma perspectiva mais apelativa de futuro que ajude a motivá-lo a uma acrescida responsabilização, nomeadamente pela seriedade e continuidade dos esforços para superar a situação de toxicodependência, designadamente sujeitando-se ao tratamento adequado, disponível no Estabelecimento Prisional de Lisboa, onde se encontra. Atitude que, aliada ao repensar a gravidade do desvalor da sua conduta, o leve a preparar-se para uma vida em liberdade respeitadora dos valores com protecção-criminal, assim criando condições para a sua realização pessoal e comunitária, que parece depender essencialmente de si próprio, ainda que com os auxílios pessoais e institucionais que pode suscitar e lhe são devidos se os procurar e aproveitar seriamente.
V.
Apreciemos agora a questão acima sintetizada sob a alínea b), da forma seguinte:
Deve ser revogada a parte da decisão que declarou perdidos a favor do Estado o veículo automóvel Renault 19, de matricula DX, bem como o relógio e os telemóveis apreendidos a fls. 81, 82 e 84 dos autos, «por não se vislumbrar da matéria dada como provada no douto acórdão recorrido a relação que estes objectos possam ter tido com a prática do crime ora em apreço, pelo que deverá ser ordenada a sua devolução, sob pena de se violar o disposto no art. 109º, a contrario, do Código Penal»?
Começamos por referir que a situação deve ser apreciada à luz não do art. 109º do C.P., mas da normas especiais constantes do art. 35º, nº 1, do DL nº 15/93, de 22/01, na redacção resultante das alterações introduzidas pela Lei nº 45/96, de 03/09, e do art. 36º daquele Decreto-lei.
Conforme o citado art. 35º, em matéria de infracções previstas no citado diploma, a declaração de perda de objectos a favor do Estado deverá ocorrer sempre que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de alguma dessas infracções ou que por esta tiverem sido produzidos.
E estatui o referido art. 36º, nº 3, referido ao nº 2, que são perdidos a favor do Estado, sem prejuízo dos direitos de boa fé, os direitos, objectos ou vantagens obtidos mediante transacção ou troca com os direitos, objectos ou vantagens directamente conseguidos por meio da infracção.
Para a declaração de perda será pois bastante, mas também indispensável, que exista relação de causalidade adequada entre a concreta factualidade integradora da infracção prevista no diploma (em si mesma ou na modalidade de execução de que se revestiu) e o objecto, relação essa traduzida em alguma das seguintes situações: que o objecto tenha servido para a prática dos actos integradores da infracção; que estivesse destinado a servir para a sua prática; que o objecto tenha resultado da prática da infracção, considerando-se por isso sido por ela produzido; que o objecto seja obtido mediante transacção ou troca com os direitos, objectos ou vantagens directamente conseguidos por meio da infracção.
No caso concreto, do elenco da factualidade considerada provada não constam quaisquer factos concretos de que pudesse extrair-se conclusão no sentido de se encontrar preenchida alguma dessas previsões dos citados art. 35º e 36º, nº 3.
É certo que, já na parte do acórdão relativa ao «enquadramento jurídico-penal» dos factos, exarou-se o seguinte:
Importa, ainda, referir que, para além da droga, da arma de fogo, com o respectivo carregador e munições, apreendidas nos autos, serão também declarados perdidos a favor do Estado o veículo automóvel com a matrícula DX, a quantia em dinheiro, os dois telemóveis, o relógio e as duas facas que foram apreendidos ao arguido e que ele admitiu, em audiência de julgamento, serem dele (incluindo o dinheiro encontrado no interior do quarto de seus pais, que o arguido admitiu ter dado à mãe para pagar o seguro do carro), uma vez que os mesmos são produto ou meio de prática dos factos ilícitos acima referidos, cometidos pelo arguido, tanto mais que, à data dos factos, não lhe era conhecida qualquer ocupação laboral, geradora de rendimentos.
Estamos porém face a uma conclusão de facto, sem suporte em factualidade concreta que tivesse sido declarada provada e relativamente à qual se indicassem os motivos fundamentadores da decisão a tal respeito.
Factualidade que aliás não tinha sido indicados na acusação (cf. fls. 171 a 173), como seria necessário com vista a assegurar o contraditório relativamente a este aspecto.
Pelo que não pode manter-se a declaração de perda desses objectos, procedendo por isso este fundamento do recurso.
VI:
Em conformidade, julgando-se parcialmente procedente o recurso, revoga-se o douto acórdão recorrido, decidindo-se:
a) Fixa-se em quatro anos de prisão a pena pela prática de crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21º do DL n. 15/93, e em cinco meses de prisão a pena correspondente ao crime de detenção ilegal de arma de defesa, p.e p.pelo art. 21º do DL n. 15/93, e em cinco meses de prisão a pena correspondente ao crime de detenção ilegal de arma de defesa, p.e.p. pelo art. 6º, n. 1 da Lei 22/97 de 27/6, crimes por que foi condenado o arguido A;
b) Fixa-se em quatro anos e dois meses de prisão a pena única resultante do cúmulo jurídico das penas parcelares indicadas n alínea a);
c) Revoga-se a declaração de perda a favor do Estado dos seguintes bens: a viatura a viatura automóvel Renault 19 de matrícula DX, o relógio e os telemóveis e respectivos cartão e carregadores, a que respeitam as apreensões de fls 81v, 82 e 84 dos autos.
Determina-se, em conformidade, a restituição desses objectos ao recorrente.
d) Confirma-se no mais o douto acórdão recorrido.
São devidas custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em três Ucs.
Fixa-se em 5 URs os honorários ao Exmo Defensor Oficioso.
Elaborado pelo relator e revisto.

Lisboa, 4 de Dezembro de 2002
Armando Leandro
Virgílio Oliveira
Flores Salpico
Lourenço Martins
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(1) cf, vg, Ac. do S.T.J. de 20/03/02, CJASTJ, ano 10º, p. 239.
(2) Cf., v.g., Cf., v.g., Lourenço Martins, Droga e Direito, Aequitas, Editorial Notícias, pp. 145 e ss., Acs. do S.T.J. de 7/12/99, B.M.J. nº 492, p. 149, de 10/05/00, B.M.J. nº 497. p. 144, de 31/05/00, BMJ. nº 497, p. 167, de 15/07/00, proc. nº 273/00- 3ª, de 30/11/00, proc. nº 2849/00-5ª, de 30/11/00, proc. nº 2849/00 -5ª, de 17/05/00, proc. nº 260-00-3ª , de 28/06/00, proc. nº 113/00- 3 ª, de 05/07/00, proc. nº 137/00- 3ª, de 12/07/00, proc. nº 266/00- 3ª , de 12/10/00, proc. nº 170-00-5ª, de 21/06/91, proc. nº 863/01- 5ª, de 10/10/01, proc. n º 2446-01- 3ª, de 18/10/01, proc. nº 1188/01- 5ª, de 9/10/02, proc. nº 1676-02-3ª.