Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
631/1999.L1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: SALAZAR CASANOVA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
EQUIDADE
DEPENDÊNCIA ECONÓMICA
PERDA DA CAPACIDADE DE GANHO
ACTUALIZAÇÃO
Data do Acordão: 06/26/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 494.º, 566.º, N.ºS2 E 3.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): -ARTIGOS 663.º, N.º1.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
- PROCESSOS N.ºS 04B4477 E 07A481.
Sumário :



I - Na fixação da indemnização a título de danos morais deve ponderar-se, no juízo de equidade a fixar, entre as demais circunstâncias que o caso justifiquem (art. 494.º, n.º 1, do CC), a situação de carência económica, determinante de angústia, em que o sinistrado ficou por via do acidente que o levou a pedir quantias emprestadas de dinheiro.
II - Para essa indemnização contribui também a intensa culpa do condutor do veículo lesante que se pôs em fuga e que, pelo seu comportamento ulterior, dificultou o ressarcimento indemnizatório.
III - Intentada ação de indemnização em 1999, a sentença pode e deve atualizar o valor indemnizatório (art. 566.º, n.º 2, do CC) e, por isso, o valor que em 1999 poderia ser considerado excessivo à luz dos critérios jurisprudenciais existentes, já não o será ( ou pode não o ser) considerado o momento da sentença em 2011.
IV - A situação de crise económica que se vive atualmente, e que está a conduzir a totalidade da população que vive do salário do seu trabalho por conta de outrem a níveis de empobrecimento não vistos há muitas dezenas de anos e a elevados níveis de desemprego, constitui fator que leva um sinistrado de acidente de viação, que fique afetado pelas lesões sofridas em incapacidade funcional, a sentir uma angústia mais intensa do que sentiria quanto ao seu futuro se, contrariamente ao que se verifica, vivesse num Estado com níveis de bem-estar e onde uma pessoa incapacitada não sentisse particulares dificuldades de obter emprego ou de manter o emprego ou atividade exercida.


Decisão Texto Integral:

N.º 631/1999.L1.S1[1]

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. AA demandou no dia 3-11-1999 BB Companhia de Seguros, S.A. pedindo a sua condenação na quantia de 7.500.000$00 alegando que, no dia 2-11-1994 quando se encontrava na paragem de autocarros da via rápida da Costa da Caparica em cima da Ponte de Lazarim, foi colhido pela viatura de matrícula UG-... conduzida por CC tendo sofrido danos materiais e morais que contabiliza, respetivamente ,em 2.500.000$00 e 5.000.000$00.

2. Proferida sentença no dia 4-4-2011 a ação foi julgada parcialmente procedente, condenando-se a ré a pagar ao A. a quantia de 32.172,45€, respeitando 24.939,89€ a danos morais.

3. A indemnização a título de danos morais foi fundamentada nos seguintes termos:

No que respeita aos danos não patrimoniais, temos de considerar as dores e incómodos inerentes a 8 meses de inatividade profissional, a incapacidade definitiva com que ficou, apesar de ligeira, a angústia e constrangimento sentidos pela situação de carência económica e necessidade de pedir dinheiro a terceiros, ficando com dívidas que ainda não pagou.

Estes danos não patrimoniais são indemnizáveis em montante que se afigure ao tribunal equitativo (artigo 496.º/3), visando-se compensar indiretamente os prejuízos através da atribuição de uma quantia em dinheiro que permita alcançar um prazer capaz de neutralizar, na medida do possível, a sua intensidade. Nesse juízo de equidade deve ponderar-se a gravidade dos danos, da culpa, da situação económica do lesante e do lesado e o tempo decorrido, bem como outros fatores aptos a integrar os critérios de razoabilidade, prudência e justiça.

Não foi pedida a condenação em juros de mora, o que não pode deixar de ser considerado agora que se vai fixar a indemnização 12 anos depois de o pedido ter sido feito. Tendo em conta o princípio de que a indemnização deve refletir a situação mais recente que possa ser atendida, isso significa que os danos não patrimoniais que hoje se têm de ressarcir são mais do que aqueles que estiveram na base do pedido, visto que entretanto nos anos seguintes eles continuaram a verificar-se. Ora, pese embora a necessidade de respeitar o princípio processual da limitação do objeto pelo valor do pedido, este fator não deve deixar de ser equitativamente ponderado na fixação do dano não patrimonial.

Por isso, ainda que à data a indemnização pedida pudesse ser excessiva para os critérios jurisprudenciais que vigoravam, hoje, tendo em conta o que ficou dito, já não é. Daí que se fixe a indemnização no valor que foi pedido.

4. O acórdão da Relação, que confirmou a decisão, ponderou que

no caso sob análise, para além do mencionado pelo recorrente, presente que a sua pretensão em termos de alteração da matéria de facto não obteve merecimento, importa ainda reter do factualismo apurado, que o lesado ficou incapaz de trabalhar durante cerca de 8 meses, precisando de mover-se com o auxílio de canadianas e fazer tratamentos de fisioterapia, mas também que por vezes ainda tem dores que limitam os movimentos e a capacidade de trabalho, tendo as dores que padeceu e as carências económicas em que caiu sempre por via do acidente, lhe causado angústia. Denota-se, assim, do factualismo apurado, a efetiva verificação de uma situação de sofrimento, com consequências que se prolongaram no tempo e não de todo debeladas, e que afetaram de modo indelével o apelado, consubstanciando-se num desvalor próprio, que o inibe de concretizar uma vivência plena, dentro dos parâmetros de normalidade anteriores à situação lesiva.

Dessa forma, levando em linha de conta a extensão e a gravidade dos danos sofridos, considera-se que o montante fixado se mostra adequado em termos de equidade para o respetivo ressarcimento, entendendo-se que, nessa medida, é satisfeito, cabalmente, o fim a que a atribuição de tal indemnização visa atingir, retendo-se na concordância com o decidido, o consignado em sede de sentença sob recurso.

5. A seguradora, que recorre de revista, sustenta que a indemnização não deve ser fixada em montante superior a 6.0000€ , não significando o recurso à equidade arbitrariedade, sendo antes sinónimo de justa medida das coisas, não podendo deixar de se considerar a tendência jurisprudencial que promana designadamente dos acórdãos deste Supremo Tribunal 04B4477, de 15-6-2004 e 07A481 de 22-3-2007 em que foi atribuída a indemnização de 10.000€ em situações que se constata serem bastante mais graves do que a presente.

6. Nesses acórdãos os sinistrados sofreram diversas mazelas, para além das fraturas, ITA'S superiores a um ano, maiores dores que se manterão para toda a vida e que num dos casos se podem vir a agravar no futuro, sequelas bem mais graves e IPP'S de 15% fixadas em ambos os casos. Constata-se que, no caso, o recorrido sofreu uma fratura, ficando impossibilitado de trabalhar durante 8 meses, veio a recuperar quase completamente das lesões sofridas, ficando com sequelas de muito menor gravidade, como demonstram, nomeadamente, os factos provados nos presentes autos, uma IPP de apenas 2%, sentindo somente dores às vezes e ficando com um dano estético muito ligeiro. E se, para além destas circunstâncias, tivermos presente o facto de a indemnização dever ser fixada " na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal" não podemos deixar de ter em linha de conta a atual situação de crise em que vivemos com a inerente diminuição do poder de compra e do nível de vida, a que todos estamos sujeitos, e que não pode deixar de ter repercussões nos montantes indemnizatórios que vierem a ser fixados , nomeadamente por danos morais, ocorrendo, assim, violação do disposto no artigo 496.º do Código Civil.

7. Factos provados:

1. A R. era a 2 de novembro de 1994 a seguradora por responsabilidade civil perante terceiros, ilimitada, inerente à circulação de veiculo UG-..., por contrato de seguro titulado pela apólice n.º 31/001326201 (alínea a) f. a. ).

2. No dia 2 de novembro de 1994 o autor encontrava-se na paragem de autocarros, por cima da ponte do Lazarim, sobre a Via Rápida da Costa da Caparica (ponto n.°l, b. i.).

3. CC, naquele dia e local, conduzindo o automóvel UG-..., Lancia Delta HF Turbo, colheu o A, mediante atropelamento, apanhando-o pelas pernas (ponto n.° 2. b. i.).

4. Logo se pondo em fuga (ponto n.º 3, b. i.).

5. Logo o A. ficou cheio de dores (ponto n.º 4, b. i.)

6. Tendo sido assistido no Hospital Garcia da Horta (ponto n.º 5 b. i).

7. O autor ficou incapaz de trabalhar durante cerca de 8 meses (ponto n.º 6, b. i).

8. Posteriormente, o A. ficou a mover-se com o auxílio de canadianas (ponto n.º 7 b. i.).

9. E a fazer tratamentos de fisioterapia (ponto n.º 8, b. i).

10. Antes do acidente, o A. reformado, fazia trabalhos de jardinagem para garantir a sua subsistência e a do seu agregado familiar (mulher e três filhos menores) (ponto n.º 9, da b.i)

11. O autor por vezes ainda tem dores que limitam, os movimentos e a capacidade de trabalho (ponto n.º 11 da b.i).

12. Durante cerca de oito meses o A. deixou de trabalhar como jardineiro em várias casas com jardim, como é o caso da cada de DD (ponto n.º 14, da b. i.)

13. Tendo deixado de auferir 150.000S00 em cada mês (ponto n.º 15 da b. i.)

14. Por estar incapacitado de trabalhar 8 meses deixou de ganhar 1.200 contos (à moeda da época) (ponto n.º 16, da b.i.)

15. Em transporte para tratamentos e medicamentos o autor gastou cerca de 250 contos (à moeda da época) (ponto n.º 17 da b. i.)

16. Para fazer face à situação de carência económica em que ficou por via do acidente o A. teve que pedir a amigos quantias de dinheiro emprestadas que ainda não pagou (ponto n.º 18, da b.i.)

17. As dores que padeceu e as carências económicas em que caiu, sempre por via do acidente, causaram angústia ao A. (ponto n.º 19 da b. i.).

18. Pelo motivo das lesões sofridas e dos tratamentos a que foi submetido o A. manteve-se em situação de incapacidade geral e temporária, parcial de 40%, no período que medeia 2.11.1994 e 19.12.1994 e em situação geral temporária e parcial de 20% pelo período que medeia 20.12.1994 e 21.03.1995 (ponto n.º 20, da b. i.)

19. Todo esse período de incapacidade foi para o A. de incapacidade total para o exercício da sua atividade de jardinagem, com o esclarecimento que o período de incapacidade temporária para o exercício da sua atividade profissional se prolongou para além de 21.3.95, conforme resposta ao ponto 6." da b. i. (ponto n.º 21, da b.i.)

20. A data da consolidação médica legal das lesões sofridas é fixável em 22-03.1995 (ponto n.º 22 da b.i).

21. A partir dessa data persistem sequelas anatomofuncional determinantes de uma incapacidade genérica parcial e permanente de 2% (ponto n.º 23 da b.i.).

22. Verifica-se danos estéticos de grau 1 (multo ligeiro) na escala de 1 a 7 usualmente utilizada (ponto 24.° da b.i.).

Apreciando

8. A presente ação foi proposta, como se disse, em 3-11-1999 e o encerramento da audiência de discussão e julgamento - que é a data mais recente a atender para efeito de indemnização ( artigo 566.º/2 do Código Civil e 663.º/1 do C.P.C.) - verificou-se em 11-3-2011.

9. Na fixação da indemnização a título de danos morais, que implica um juízo de equidade, devem ponderar-se as circunstâncias mencionadas no artigo 494.º do Código Civil, a saber, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso que o justifiquem (ver artigo 566.º/3 do Código Civil).

10. Evidencia-se que o lesado foi vítima de um atropelamento pondo-se o lesante em fuga, o que revela uma intensidade culposa muito forte a justificar, logo no momento do acidente, a angústia acrescida de um sinistrado que se sente desprezado, assustado e justificadamente receoso do futuro.

11. No caso, não houve - facto que resulta dos autos - nenhuma participação do segurado à ré, tudo isto a originar dificuldades acrescidas determinantes de um ressarcimento tardio.

12. O lesado ficou em situação de carência económica resultante do acidente, vendo-se constrangido a pedir dinheiro a pessoas amigas que ainda não pagou.

13. Este é um circunstancialismo particular ao presente caso que o Tribunal não pode ignorar e não ignorou.

14. Com efeito, não está aqui em causa apenas a angústia derivada das lesões sofridas e do tempo da sua recuperação; o Tribunal não pode também deixar de ponderar igualmente circunstâncias outras que resultaram do acidente e que foram causadas pelo lesante que transferiu para a ré a sua responsabilidade em sede de indemnização.

15. Se o montante pedido quando a ação foi proposta podia efetivamente considerar-se excessivo atentos os critérios jurisprudenciais verificados, como aliás foi sublinhado pelas instâncias, o decurso do tempo no ressarcimento indemnizatório para o qual contribuiu o comportamento do lesante e o prolongamento de uma situação de carência económica justificam já que seja razoável a fixação de uma indemnização a título de danos morais superior àquela que deveria ser atribuída no momento do pedido.

16. A jurisprudência referenciada pela recorrente não teve de ponderar este tipo de questões - repare-se ainda que no P. 04B4477 a ação foi proposta em 2002 e no 07A481 foram pedidos juros desde a citação, não resultando desses autos, por conseguinte, a necessidade de um juízo de atualização referenciado ao momento da sentença , como sucedeu no presente caso.

17. A situação de crise em que se vive é geradora de sentimentos de angústia pela incerteza constante em que as pessoas vivem quanto ao presente e quanto ao futuro, verificando-se em larguíssimos setores da população, designadamente aqueles que trabalham por conta de outrem, um acentuado empobrecimento. A ponderar-se esta situação, já se vê que um sinistrado que veja a sua capacidade funcional diminuída sabe hoje que a diminuição dessa sua capacidade dificulta ainda mais ganhos de trabalho e remunerações acrescidas e a própria obtenção de emprego, se for o caso.

18. Nesse aspeto o futuro de um sinistrado que vê reduzida a sua capacidade de trabalho torna-se muitíssimo inseguro e incerto e, por conseguinte, a angústia sofrida pela situação a que foi sujeito pela atuação de um condutor gravemente negligente deve ser considerada ainda mais intensa.

19. Neste ponto a nossa discordância com a recorrente, salvo o devido respeito que é muito, é total, pois, a nosso ver, é exatamente a conclusão oposta que se deve extrair.

20. Entende-se, face ao exposto, que a decisão da Relação não pode deixar de se manter.

Concluindo:

I- Na fixação da indemnização a título de danos morais deve ponderar-se, no juízo de equidade a fixar, entre as demais circunstâncias que o caso justifiquem (artigo 494.º/1 do Código Civil), a situação de carência económica, determinante de angústia, em que o sinistrado ficou por via do acidente que o levou a pedir quantias emprestadas de dinheiro.

II- Para essa indemnização contribui também a intensa culpa do condutor do veículo lesante que se pôs em fuga e que, pelo seu comportamento ulterior, dificultou o ressarcimento indemnizatório.

III- Intentada ação de indemnização em 1999, a sentença pode e deve atualizar o valor indemnizatório (artigo 566.º/2 do Código Civil) e, por isso, o valor que em 1999 poderia ser considerado excessivo à luz dos critérios jurisprudenciais existentes, já não o será ( ou pode não o ser) considerado o momento da sentença em 2011.

IV- A situação de crise económica que se vive atualmente, e que está a conduzir a totalidade da população que vive do salário do seu trabalho por conta de outrem a níveis de empobrecimento não vistos há muitas dezenas de anos e a elevados níveis de desemprego, constitui fator que leva um sinistrado de acidente de viação, que fique afetado pelas lesões sofridas em incapacidade funcional, a sentir uma angústia mais intensa do que sentiria quanto ao seu futuro se, contrariamente ao que se verifica, vivesse num Estado com níveis de bem-estar e onde uma pessoa incapacitada não sentisse particulares dificuldades de obter emprego ou de manter o emprego ou atividade exercida.

Decisão: nega-se a revista

Custas pelo recorrente

Lisboa, 26-6-2012

Salazar Casanova ( Relator)

Fernandes do Vale

Marques Pereira

------------------------------

[1] Processo distribuído no Supremo Tribunal no dia 29-5-2012 [P. 2012/529 631/99]