Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2733/06.9TBBCL.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: NUNO CAMEIRA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
INCAPACIDADE PERMANENTE PARCIAL
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
CÔNJUGE
DEVERES CONJUGAIS
DANOS REFLEXOS
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 09/08/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I - São indemnizáveis os danos morais directos ou reflexos que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, tenha o facto lesivo causado ou não a morte da vítima (art. 496.º do CC).

II - São concretamente ressarcíveis os danos morais sofridos pelo autor em consequência do acidente de viação que vitimou a autora, sua mulher, e do qual resultaram para esta lesões e sequelas várias que comprometeram gravemente os direitos de coabitação (no qual se inclui o débito conjugal), cooperação e assistência de que o autor é titular enquanto membro da sociedade conjugal formada com a autora.

III - Nesta perspectiva, tais danos são directos, e não reflexos ou causados a terceiros, na medida em que atingem concomitantemente ambos os autores, enquanto pessoas casadas entre si.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I. Relatório
AA e seu marido BB propuseram uma acção ordinária contra G... – Companhia de Seguros, SA, e Companhia de Seguros T..., SA, pedindo que as rés fossem condenadas a pagar-lhes:
- À autora, a quantia de 760.000 € de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais que sofreu, bem como o que se apurar em execução de sentença quanto aos danos cuja extensão ainda não lhe foi possível contabilizar;
- Ao autor, a quantia de 150.000 € de indemnização pelos danos não patrimoniais que sofreu;
- Juros de mora à taxa legal sobre os danos patrimoniais, com referência à data em que os mesmos se verificaram.
O pedido teve por fundamento um acidente de viação ocorrido em 28/7/03 na área da comarca de Barcelos em que intervieram os veículos automóveis ...-...-EF e ...-...-FD, seguindo a autora como passageira do primeiro, de que resultaram para ela ferimentos muito graves, designadamente traumatismo craniano com esmagamento da massa encefálica, que implicaram tratamento hospitalar e dores de que ainda não está totalmente curada, necessitando de continuada assistência médica.
Segundo a petição inicial o veículo, ligeiro de passageiros, EF pertencia a CC e era conduzido por DD, que o fazia seguindo ordens, instruções e no interesse daquela.
O veículo, pesado de mercadorias, FD pertencia a A...R...P... & Filhos, Ldª, e era conduzido por um seu empregado, EE.
A condutora do EF circulava pela metade direita da estrada, a uma distância de cerca de 50 cm a um metro da berma, e a uma velocidade que não ultrapassava os 30 a 40 Km/hora.
Quando chegou ao local acima referido defrontou-se, repentinamente, com o FD, que, provindo do acesso ao adro da Igreja, entrava, de marcha-atrás, na estrada e na faixa de rodagem por onde seguia o EF, não se encontrando a mais de 4 ou 5 metros da embocadura daquele acesso.
Por não contar com tal manobra a condutora do EF não conseguiu evitar o choque, apesar de ter travado.
À data do acidente existiam no local algumas roulottes de um circo instalado no adro, roulottes essas que, estacionadas também junto à berma da faixa de rodagem por onde seguia o EF, tapavam por completo a visibilidade ao condutor do FD.
A ré G... contestou, impugnando parte dos factos relativos ao acidente e a extensão dos danos sofridos pela autora, assim como os alegados pelo autor.
A ré T... também contestou, aceitando, no essencial, a versão do acidente apresentada pelos autores, e concluindo, por isso, pela inexistência de culpa do veículo seu segurado na produção do sinistro.
Realizado o julgamento e estabelecidos os factos foi proferida sentença que, jul­gando a acção parcialmente procedente:
1) Condenou a Ré G... a pagar à autora a importância de 642.800,00 €, com juros de mora à taxa anual de 4% desde 12/7/06 no que se refere à importância de 581.800,00 €, e a contar da data da sentença sobre a importância total da parte da indemnização já liquidada;
2) Condenou ainda esta Ré a pagar à autora o que se liquidar em ulterior decisão no que toca ao futuro acompanhamento médico a que vai ser submetida, nos termos especificados no ponto VI da sentença;
3) E ainda a pagar ao autor 25.000,00 € a título de danos não patrimoniais, com juros de mora a contar da sentença;
4) Absolveu a ré T... do pedido.
A ré G... apelou, mas sem êxito, pois a Relação de Guimarães confirmou a sentença.
Por isso recorreu novamente, de revista, pedindo a revogação do acórdão recorrido por ter violado o disposto nos artºs 29º do Código da Estrada e 562º e seguintes do Código Civil. Em síntese, concluiu, de útil, o seguinte:
- Face à teoria da causalidade adequada, a actuação da condutora do veículo EF não foi indiferente ao facto lesivo (acidente);
2º - Ambos os condutores contribuíram para ele em termos causais pois tanto um como o outro violaram regras estradais e deveres de cuidado;
- Deve ser reduzido o montante de 316.800,00 € atribuído a título de assistência por terceira pessoa visto que não se atendeu a que a lesada o receberia de uma só vez;
4º - Se bem que elevado, o dano moral da recorrida não pode ser comparado a uma morte, contrariamente ao que as instâncias fizeram;
5º - O recorrido BB não tem direito a indemnização por danos morais sofridos devido à ausência de débito conjugal, pois não é um lesado nos termos e para os efeitos do disposto no artº 496º do CC.
O autor e a ré T... contra alegaram, defendendo a manutenção do jul­gado.
Tudo visto, cumpre decidir.


II. Fundamentação
a) Matéria de Facto:
1) No dia 28.7.03, cerca das 10,20 horas, no lugar da Igreja, na Estrada Municipal que liga Rio Covo Santa Eugénia a Areias de Vilar, ambas freguesias do concelho de Barcelos, ocorreu um embate em que intervieram o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula ...-...-EF, na altura conduzido por DD, e o veículo pesado de mercadorias com a matrícula ...-...-FO, na altura conduzido por EE.
2) À data do embate EE conduzia o veículo identificado em 1) por ordem de A...R...P... e Filhos, Ldª, sociedade por quotas, com sede na Zona Industrial de Neiva - 1ª. Fase, Neiva, Viana do Castelo, da qual é assalariado.
3) No veículo ...-...-EF, sentada no banco dianteiro ao lado do lugar da condutora, seguia a autora AA.
4) O veículo ...-...-EF circulava pela estrada identificada em 1) no sentido Rio Covo Santa Eugénia/Areias de Vilar.
5) - Do lado direito da estrada, atento o sentido de marcha do veículo onde seguia a Autora, existe uma saída/entrada para o adro da Igreja e que dá directamente para a referida estrada.
6) Antes do embate o veículo ...-...-FD encontrava-se imobilizado no adro referido em 5).
7) No adro referido em 5) estavam estacionadas algumas roulottes, junto à berma direita da estrada atento o sentido de marcha do veículo ...-...-EF, o que retirava ao condutor do veículo ...-...-FD a visibilidade sobre a hemi-faixa por onde circu­lava o veículo ...-...-EF.
8) O condutor do veículo ...-...-FD efectuou uma manobra de marcha-atrás.
9) Naquele local o piso da estrada é betuminoso e estava seco.
10) No dia referido em 1) o tempo estava seco.
11) No local onde se deu o embate, referido em 1), a via configura uma recta.
12) Na altura do embate DD conduzia o veículo iden­tificado em 1) ao serviço da proprietária do mesmo.
13) O veículo ...-...-EF circulava a uma velocidade que não ultrapassava os 30 a 40 Km/ hora.
14) O veículo ...-...-EF seguia pela hemi-faixa direita, atento o sentido referido em 4), afastado entre 50 cm a um metro da berma direita.
15) A autora AA seguia com o cinto de segurança devidamente acondicionado e preso nos pontos a tal destinados.
16) O condutor do veículo ...-...-FD efectuou a manobra referida em 8) quando o veículo ...-...-EF estava a uma distância inferior a 4 ou 5 metros da saída men­cionada em 5).
17) A parte traseira do veículo ...-...-FD e a parte frontal direita do veículo ...-...-EF colidiram quando aquele fazia a manobra referida em 8) e este circulava na estrada, como se refere em 4).
18) Por via do referido embate, o veículo ...-...-EF foi arrastado para e sobre o eixo da via.
19) Quando a traseira do veículo ...-...-FD se encontrava sobre a estrada referida em 1) o seu condutor apercebeu-se da aproximação do veículo ...-...-EF.
20) No momento em que se deu o embate não circulava qualquer outro veículo na via, pelo menos em sentido contrário ao seguido pelo EF.
21) A condutora do veículo ...-...-EF não travou.
22) Nem desviou a trajectória do veículo que conduzia.
23) Na sequência do embate referido em 1), a autora foi de imediato transportada ao Hospital de Barcelos, seguindo no mesmo dia para o Hospital de São Marcos, em Braga.
24) Em consequência do embate a autora sofreu traumatismo craniano grave com afectação por esmagamento da massa encefálica e perfuração do crânio.
25) Sofreu lesões na perna, braço, cotovelo, dedo mindinho e omoplata, que foi perfurada, do lado direito do corpo, e no peito, onde sofreu um golpe.
26) Em virtude das lesões sofridas foi submetida a uma intervenção cirúrgica, com carácter de urgência, à cabeça.
27) Esteve internada durante 45 dias, nos cuidados intensivos, na Unidade Hospitalar de S. Marcos, sempre assistida em regime de continuidade.
28) Foi submetida a transfusões de sangue.
29) Decorrido o período de internamento no Hospital de S. Marcos regressou à sua residência em Barcelos, continuando em tratamentos do foro de Neurologia, Ortopedia, Psiquiatria, Urologia, Cirurgia Plástica e Oftalmologia.
30) Teve de submeter-se a tratamentos na perna, braço, omoplata e cotovelo direitos e no dedo mindinho direito e peito, tudo em paralelo com as contínuas sessões de Fisioterapia.
31) Sentiu dores em virtude dos tratamentos a que teve de submeter-se.
32) Em virtude das lesões sofridas passou à situação de apatia total.
33) Perdeu a força do seu braço direito, sendo dextra.
34) Passou a padecer de contínuas quedas de cabelo.
35) A não poder caminhar porque lhe incha a perna direita.
36) Ficou a padecer de dores nas costas e no corpo.
37) O corpo da autora ficou marcado com diversas cicatrizes na perna, braço e cotovelo direitos.
38) Apresenta uma cicatriz no ombro direito.
39) A Autora perde a noção do lugar onde se encontra, ao ponto de se perder das pessoas.
40) Serve-se de qualquer lugar como se de um quarto de banho se tratasse.
41) Acende o fogão, permitindo fugas de gás e queima as próprias roupas da casa.
42) Em virtude do embate deixou de confeccionar as refeições para si e para a sua família e de arrumar a casa.
43) Esconde-se da filha P...C... quando a mesma vem de fim-de-semana, tratando-a às vezes como uma intrusa.
44) Não presta a atenção e os cuidados ao filho P..., que frequenta o ensino secundário, e a quem afasta da sua presença.
45) Quando tem períodos de lucidez, começa a pensar em toda a situação que lhe adveio, recolhendo-se em choro compulsivo, irritação e gritaria.
46) A situação descrita causa à autora transtornos, incómodos, tristeza e ansiedade.
47) A Autora terá de ser acompanhada por profissionais de saúde das espe­cialidades de neurologia, psiquiatria, fisioterapia, urologia e oftalmologia e demais especialidades que advirão da incerteza do seu estado físico.
48) Durante algum tempo teve em sua casa uma senhora a prestar serviços durante uma parte do dia e ganhava 100 € por semana.
49) A Autora vai precisar do auxílio de uma terceira pessoa durante o resto da sua vida.
50) À data do embate, a autora era saudável e alegre, vivia em harmonia com o marido, filhos e demais pessoas do meio e era voluntariosa no trabalho.
51) Era capaz de tratar de si própria e acompanhava a educação dos filhos, mantendo-se sempre atenta ao futuro destes.
52) Projectava a construção da sua casa e acompanhava a carreira profissional do marido.
53) À autora cabia a proporção de 50% em todos os direitos e obrigações decorrentes da actividade têxtil da empresa onde prestava serviços.
54) Auferindo mensalmente a média nunca inferior a 1.000,00 €, que por inteiro eram aplicados no património dela e do marido.
55) Em virtude do embate a referida empresa deixou de laborar, porque era a Autora que elaborava os respectivos negócios e desempenhava os trabalhos mais delicados.
56) Como consequência do embate a autora ficou com uma incapacidade permanente para o trabalho de 100%.
57) O Autor BB é funcionário judicial.
58) Em virtude da situação descrita o Autor esteve de baixa médica desde 15/9/03 até 2/1/04.
59) Por tal facto não subiu de escalão, perdendo o respectivo aumento salarial.
60) A Autora e o Autor acompanhavam-se mutuamente no dia a dia, com mani­festações de carinho, solidariedade, amizade e boa e sã convivência.
61) Desde a data do embate a autora rejeita toda e qualquer relação sexual, seja pelas dores que sente, seja pela falta de reacção a qualquer estímulo.
62) A Autora e o Autor casaram catolicamente em 4.8.84, sem convenção ante­nupcial (certidão do assento de casamento de folhas 121).
63) A autora nasceu em 17.11.62 (certidão do assento de nascimento de folhas 120).
64) O autor nasceu em 27.2.00 (certidão do assento de nascimento de folhas 119).
65) Mediante contrato de seguro titulado pela apólice nº ... a ré G... assumiu a responsabilidade civil por danos causados a terceiros com o veículo ...-...-FD.
66) Mediante contrato de seguro titulado pela apólice nº ... a ré T..., SA, assumiu a responsabilidade civil por danos causados a terceiros.
b) Matéria de Direito
A recorrente sustenta, em primeiro lugar, que ambos os veículos concorreram cul­posamente para a verificação do acidente, e que não é possível, face à matéria de facto apurada, concluir, como concluíram as instâncias, que só o condutor do pesado (o ...-...-ED) lhe deu causa.
É patente, contudo, que não lhe assiste razão.
A condutora do ligeiro (o ...-...-EF) nenhuma infracção ao Código da Estrada praticou, e também não violou, nas circunstâncias de tempo e de lugar identificadas nos autos, qualquer dever objectivo de cuidado ou regra de conduta a que estivesse adstrita. Isto porque seguia a uma velocidade muito moderada (não superior a 40 Km/hora), dentro da sua mão de trânsito e a uma distância da berma entre 50 cm e um metro. O condutor do pesado, pelo contrário, violou claramente a norma do artº 46º, nº 1, do CE, segundo a qual a marcha atrás só é permitida como manobra auxiliar ou de recurso, devendo efectuar-se lentamente e no menor trajecto possível, e ainda a do artº 47º, nº 1, d), do mesmo diploma, que proíbe a marcha atrás “onde quer que a visibilidade seja insuficiente”. Ora, não há qualquer dúvida de que este condutor tinha a visibilidade perigosamente diminuída para o lado de onde pro­vinha o ligeiro em virtude das roulottes que se encontravam estacionadas junto à berma direita da estrada (facto 7); de tal modo era assim que só quando a traseira do FD estava já sobre a estrada na qual o EF circulava pôde ele aperceber-se da aproximação desta viatura (facto 19). Por outro lado, iniciada a manobra de marcha atrás quando o ligeiro se encontrava a tão curta distância da saída do adro da igreja – escassos 4 ou 5 metros (factos 5, 6 e 16) – é óbvio que em tais circunstâncias o acidente se tornou praticamente inevitável, face à impossibilidade de qualquer manobra de recurso por parte do ligeiro no sentido de evitar o choque. No mínimo, o condutor do pesado devia ter solicitado o auxílio de alguém que o pudesse alertar para a aproximação de veículos que a presença das roulottes naquele local o impedia de confirmar, não iniciando sequer a realização de tão arriscada marcha atrás sem semelhante cautela; a condutora do ligeiro, por seu turno, de modo algum tinha que adivinhar o corte da sua linha de trânsito causado por tão inopinada quanto perigosa manobra. Deste modo, impõe-se a conclusão de que só o pesado deu causa (adequada) ao acidente, não fazendo sentido, salvo o devido respeito, a alegação de que recaía sobre a condutora do ligeiro o dever de lhe ceder passagem, nos termos do artº 29º, nº 1, do CE, abrandando a marcha ou parando. A culpa – e culpa exclusiva – do condutor do EF resulta de sem motivo minima­mente plausível ter confiado que podia completar a marcha atrás sem perigo para o trânsito.
Improcedem, assim, as duas primeiras conclusões.
A recorrente defende, em segundo lugar, a redução das indemnizações atribuídas à autora a título de acompanhamento por terceira pessoa e danos não patrimoniais (respectivamente, 316.800,00 e 61.000,00€).
A respeito do primeiro segmento indemnizatório referido ponderou-se o seguinte na sentença da 1ª instância:
“ Ficou provado que a A. AA necessita do auxílio de uma terceira pessoa, necessidade que se vai prolongar pelo resto dos seus dias.
Durante algum tempo - não se conseguiu apurar quanto tempo – teve uma senhora em sua casa durante uma parte do dia, pagando-lhe € 100 por semana.
Não tendo sido possível contabilizar esta despesa, visto que, provadamente, a Autora teve e tem necessidade do auxílio de terceira pessoa, terá sempre ou o encargo de lhe pagar, caso seja con­tratada, ou o prejuízo resultante da não actividade profissional, caso se trate de um familiar próximo que deixe de trabalhar para cuidar dela, (v.g. cônjuge ou filhos), ou a despesa com a compen­sação a um familiar de grau de parentesco mais afastado, que se disponibilize a olhar por ela.
De qualquer modo, é sempre um dano que resulta do acidente de viação e, por isso, dele tem direito a ser ressarcida.
Para se calcular o montante desta parte da indemnização tomar-se-ão como pressupostos a data em que regressou a casa, com alta hospitalar – 10/09/2003 (cfr. fls. 240) -, e a idade de 85 anos, aqui usada como tempo provável de duração de vida da Autora, considerada a previsível evolução da ciência médica, no que se incluem os tratamentos médicos e os medicamentos.
Considerar-se-á ainda um salário médio mensal de € 600, tendo em conta não só o valor do salá­rio mínimo nacional para 2008, que é de € 426 (cfr. Dec.-Lei nº. 398/2007) como também a previsível necessidade que o auxílio da terceira pessoa se prolongue para além das oito horas da jornada de trabalho diária, sendo certo que o acompanhamento de terceira pessoa se há-de fazer mesmo aos fins-de-semana, feriados, e férias.
Deste modo, se a Autora teve alta hospitalar em 10/09/2003, e atingirá os 85 anos de idade em 17/11/2047, o tempo de duração da despesa referida é de 528 meses.
Se é certo que previsivelmente os salários, ao longo de todo este tempo vão sofrer aumentos sucessivos (o salário mínimo nacional conhece um aumento todos os anos, e tem sido promessa política um aumento “visível” a muito curto prazo), também é certo que a Autora irá receber a importância correspondente de uma vez só, pelo que os réditos que poderá auferir desta importância compensarão o aumento do salários.
Deste modo, esta parte da indemnização é fixada em € 316.800”.
Entende-se que é de manter este valor, por se mostrar equitativamente esta­belecido, nos termos dos artºs 564º, nº 2, e 566º, nº 3, CC. Com efeito, embora seja certo, como bem se salienta no acórdão recorrido, que a sentença desconsiderou a vantagem do recebimento imediato do montante apurado, também é exacto que não se entrou em linha de conta, designadamente, com o aumento do salário mínimo durante o período provável de vida da lesada, o que conduziria a um acrés­cimo não despiciendo do montante achado; e assim, porque este, ao cabo e ao resto, se mostra proporcionado e aderente às particularidades da situação em concreto, não há que proceder à sua redução.
Quanto à indemnização por danos não patrimoniais vale, mutatis mutandis, o que já ficou dito. Mandando a lei atender aos danos que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, afigura-se que a indemnização atribuída é equitativa, consoante determina o nº 3 do artº 496º, pois valoriza equilibradamente o conjunto dos factos apurados, cuja “eloquência” no tocante à seriedade e profundidade dos sofrimentos da autora fala por si, dispensando comentários (cfr, em especial, os factos 24 a 46).
Improcedem, consequentemente, as conclusões 3ª e 4ª.
Em terceiro e último lugar, a recorrente insurge-se contra a indemnização arbitrada a título de danos morais ao autor, argumentando, em suma, que ele não é um lesado nos termos e para os feitos do artº 496º do CC.
Sobre este ponto escreveu-se o seguinte na sentença:
“O A. BB pede que lhe seja arbitrada uma indemnização de € 150.000 – cfr. item 87º., a fls. 15 – alegando que à data do acidente tinha 43 anos de idade, e formava com a Autora um casal feliz que se acompanhava mutuamente no dia-a-dia com manifestações de cari­nho, solidariedade, amizade, e boa e sã convivência.
Acontece que após o acidente, e por causa das lesões que lhe provocou, a A., sua esposa, ficou a padecer do foro neurológico e psicológico, o que a afecta no dia-a-dia, tendo passado, desde então, a rejeitar toda e qualquer relação sexual, seja pelas dores que sente, seja pela falta de reacção a qualquer estímulo, ficando totalmente impossibilitada do exercício e vontade sexuais, o que a ele próprio lhe causa sofrimento.
Como consta em II., sob os nºs. 65 a 67, a Autora e o Autor acompanhavam-se mutuamente no dia a dia, com manifestações de carinho, solidariedade, amizade e boa e sã convivência.
Ora, desde a data do acidente a Autora rejeita toda e qualquer relação sexual, seja pelas dores que sente, seja pela falta de reacção a qualquer estímulo.
O relatório médico-legal aponta para um prejuízo sexual de grau 3, numa escala até 7.
O certo, porém, é que se provou que a vida sexual do casal terminou com o acidente.
Os Autores haviam casado já há 19 anos, tempo suficiente para pressupôr que assim se irão manter pela vida fora.
O casamento é (também) um estado de comunhão diária entre duas pessoas e sabe-se como a acti­vidade sexual, para além de constituir a manifestação, por excelência, do amor, também influencia directamente o estado psíquico das pessoas, assumindo-se como elemento preponderante do equi­líbrio emocional.
O Autor, que quer manter os laços matrimoniais com a sua esposa, está impedido, devido ao estado de saúde desta, de consumar o matrimónio, de comungar plenamente com ela, sendo certo que o romântico amor platónico caindo bem aos poetas, não calha bem com o dia-a-dia da nossa sociedade de hoje, não se podendo, por isso, exigir ao Autor (no restrito campo da decisão em que ora nos situamos) que leve uma vida de asceta, sendo certo que a sua idade à data do acidente - 43 anos, já que nasceu em 27/02/1960 – lhe permite ter um normal desempenho sexual.
Se o acidente de viação provocou lesões ao seu cônjuge que a impedem de ter relações sexuais, na medida em que isso afecta o casamento, sentindo-se o Autor também afectado, está provado o nexo de causalidade entre o evento e o dano, que se configura como dano não patrimonial.
Se o casamento tem já um período de duração que faz prever que se mantenha ao longo do tempo, a gravidade daquele dano fá-lo merecedor da tutela do direito.
Deve, pois, o Autor ser ressarcido deste dano, fixando-se-lhe, para tanto a indemnização no montante de € 25.000”.
O acórdão recorrido limitou-se a confirmar o entendimento da 1ª instância, citando alguns arestos das Relações que “vêm propugnando, contra visões passadistas, o respeito do dever de indemnizar, por equivalente, os danos reflexos da disfunção sexual da mulher que defluí­ram na cessação da comunhão de vida de que promana a obrigação da relação jurídica complexa do débito conjugal” (fls 503).
Esta questão tem vindo a ser debatida na doutrina e na jurisprudência desde há bastante tempo, sendo certo que nos últimos anos tomou forma uma orientação que de algum modo quebrou a quase unanimidade prevalecente a respeito do assunto.
Assim, em acórdão recente deste Supremo Tribunal, tirado sem votos de vencido em 26.5.09 (Pº 3413/03.2TBVCT.S1), escreveu-se o seguinte:
“O entendimento clássico a esse respeito é o de que só tem direito a indemnização por danos não patri­moniais o titular do direito violado ou do interesse imediatamente lesado com a violação da disposição legal, afirmando--se que os danos de natureza não patrimonial a ressarcir são apenas os sofridos pelo pró­prio ofendido, por serem direitos de carácter estritamente pessoal. – Ac. do STJ de 2.11.95, in www.dgsi.pt.
Argumenta-se, em síntese, que só o titular do direito violado tem direito à indemnização (art. 496.º, nº 1, do CC), pelo que não estão incluídos na obrigação de indemnização os danos sofridos directa ou reflexamente por terceiros, salvo no caso de morte, sublinhando a natureza excepcional da norma do nº 2 do art.º 496º do Código Civil. Ora, dada a impossibilidade de interpretação analógica das normas excepcionais e a impossibilidade de interpretação extensiva, por o legislador apenas ter querido abranger as pessoas indicadas no preceito, como decorre do argumento histórico, a exclusão impõe-se (Neste sentido, DARIO DE ALMEIDA, Manual, p. 165, ANTUNES VARELA, RLJ, ano 103.º, p. 250, nota 1, Revista dos Tribunais, ano 82.º, p. 409; Ac. da RP de 4.4.91, CJ, ano XVI, tomo I, p. 255; Ac. da RC de 20.9.94, CJ, ano XIX, tomo IV, p. 35, Ac. da RC de 26.10.93, CJ, ano XVIII, tomo IV, p. 69, Ac. da RL de 6.5.99, CJ, ano XXIV, tomo III, p. 88, Acs. do STJ de 13.1.70, BMJ n.º 193, p. 349 e de 21.3.2000, CJ, ano VIII, tomo I, p.138).
Contra tal posição clássica, VAZ SERRA (RLJ, ano 104.º, p. 14), RIBEIRO DE FARIA (Direito das Obrigações, vol. 1.º, p. 491, nota 2) AMÉRICO MARCELINO (Acidentes de Viação e Responsa­bilidade Civil, 6.ª ed., p. 380) ABRANTES GERALDES, Temas da Responsabilidade Civil, II, pp. 9-90, e em “Ressarcibilidade dos danos não patrimoniais de terceiro em caso de lesão cor­poral”, em Estudos em Homenagem ao Prof Dr Inocêncio Galvão Teles, IV, 263 e ss, e o CONS. SOUSA DINIS (“Dano Corporal em acidentes de viação”, CJ, ano IX, tomo I, pp.11 e 12) sustentam a possibilidade de uma interpretação diversa.
Justifica-se que se faça, à semelhança do que fez o acórdão recorrido, apelo à argumentação aduzida por VAZ SERRA, em anotação ao Ac. do STJ de 13.1.70, para justificar a possibilidade desta inter­pretação:
“Ora, o dano não patrimonial pode ser causado a parentes do lesado imediato, não somente no caso de morte deste, mas também em casos diversos desse e, pode ser em tais casos tão justificado o direito de reparação do dano não patrimonial dos parentes como no de morte do lesado imediato.
Se, por ex., como na hipótese sobre que o acórdão incidiu, um filho menor é vítima de um acidente de viação, ficando aleijado gravemente, a dor assim causada a seus pais pode ser tão forte como o seria se o filho tivesse morrido em consequência do acidente ou mais forte ainda.
Seria, pois, incongruente a lei que, reconhecendo aos pais o direito a satisfação pela dor sofrida por eles no caso de morte do filho, lhes recusasse esse direito pela dor por eles sofrida no caso de lesão corporal ou da saúde do filho.”
“Para se admitir tal direito, bastará dar à al. 3 do n.º 1 do artigo 56.º do Código da Estrada uma inter­pretação extensiva, considerando-a aplicável também a outros casos em que os parentes nela indicados sejam causados danos em consequência da lesão do lesado imediato, ao menos quando esses danos forem tão graves como os que podem resultar da morte deste.”
E diz, ainda, o ilustre Mestre:
“A lei refere-se expressamente só ao caso de morte por ser aquele em que, em regra, maiores danos existem, não excluindo, portanto, que os parentes da vítima imediata tenham também direito de repara­ção dos seus danos em outros casos. A razão de ser é a mesma “(loc. cit., p.15).
Conclui VAZ SERRA que, embora sejam excepcionais as normas dos artigos 56.º, nº 1, al. 3 do CE/56, 495.º e 496.º, n.º 2, do Código Civil, elas são susceptíveis de interpretação extensiva e, por conseguinte, de extensão a outros casos compreendidos no espírito da lei (loc.cit., p.16).
E advoga que o reconhecimento do direito de indemnização por danos não patrimoniais de terceiros pode assentar directamente na norma do art.º 496.º, n.º 1, do Código Civil.
Vai na mesma linha AMÉRICO MARCELINO (obra citada, p. 380), ao afirmar que o “grande princípio do n.º 1 do artigo 496.º não põe outras reservas, outras condições que não seja o tratar-se de danos tais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. O que depois se diz nos nºs 2 e 3 do art. 496.º não afecta em nada este princípio. Trata-se de disposições para determinados circunstancialismos ou sobre o modo de encontrar indemnizatório.”
RIBEIRO DE FARIA (obra e local citado) defende a interpretação extensiva do artigo 496.º, n.º 2, do Código Civil, de modo a abarcar casos que caibam no seu espírito, considerando que o parente é ele mesmo pessoa lesada em juridicamente protegido e reputando equiparável a gravidade dos danos que resultem da morte com a dos que decorrem de outras lesões profundamente incapacitantes e que se reflectem nos familiares da vítima.
Por sua vez, o Desembargador ANTÓNIO GERALDES, analisou com profundidade esta temática, designadamente com contributos do direito comparado, concluindo (Temas…, p. 89-90):
“São ressarcíveis os danos não patrimoniais suportados por pessoas diversas daquela que é direc­tamente atingida, designadamente quando fique gravemente prejudicada a sua relação com o lesado ou quando as lesões causem neste grave dependência ou perda de autonomia que interfira fortemente na esfera jurídica de terceiros;
Tal direito de indemnização deve ser circunscrito, por ora, às pessoas indicadas no n.º 2 do art.496.º do CC.“
Também SOUSA DINIS, no estudo citado, defende, a respeito da impotência sexual do marido, que não podendo fundar-se no art 496.º,n.º 2 essa ressarcibilidade, por este pressupor a morte da vítima, vai encontrá-lo na violação de um direito de personalidade, encarando a sexualidade como um desses direitos, acrescentando que “o débito conjugal tem tanta força que a sua recusa pode ser motivo de divórcio. Ao débito corresponde o direito do cônjuge ter com o outro um relacionamento sexual normal. Logo a sexualidade, pelos menos dentro do casamento, pode ser encarada como um direito de personalidade”.
Tratando especificamente a questão do núcleo essencial da comunhão conjugal diz JORGE DUARTE PINHEIRO (O Núcleo Intangível da Comunhão Conjugal, p. 737) que “o acto ilícito de terceiro que impossibilita uma pessoa casada de ter relações sexuais viola direitos de duas pessoas que são eficazes erga omnes: o direito à integridade física de que é titular a «vítima principal», e o direito de coabitação sexual, pertencente ao cônjuge da vítima de lesão corporal”, sendo que este é, como o primeiro, um dano directo (v., no mesmo sentido, PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Ano­tado, vol. IV, p. 258 e PEREIRA COELHO, Curso de Direito de Família, p. 356).
Em termos de jurisprudência, assinalaram-se no acórdão decisões em que, embora não a respeito concreto da lesão corporal de que resultou impotência sexual, mas, umas vezes, de lesões em menores que se tra­duzem em aleijões significativos (cfr Ac. do STJ de 25.11.98, relatado por Herculano Lima, BMJ 481.º, p. 470 e Ac. da RP de 23.3.06, proc. 0631053, in www.dgsi.pt), outras de publicações jorna­lísticas contendo insinuações referentes ao comportamento de mulher casada (Ac STJ 26.2.04, relatado por Araújo Barros, proc. 03B3898, in www.dgsi.pt), se admite o ressarcimento de danos de carácter não patrimonial de parentes próximos do lesado que não haja falecido em consequência da lesão.
Além disso, a específica situação considerada nos presentes autos – tutela dos danos não patrimoniais resultantes da privação do débito sexual na sociedade conjugal em consequência da impotência do cônjuge marido decorrente de acidente de viação – foi tratada nos acórdãos da RP de 26.6.03 (proc. 0333036, em que foi relator Gonçalo Silvano) e da RC de 25.5.04 (processo 3480/03, em que foi relator Jorge Arcanjo), ambos acessíveis em www.dgsi.pt, onde foi admitida essa tutela, na base de um ou outro destes entendimentos: pela interpretação extensiva do disposto no n.º 2 do art 496.º, ou recorrendo apenas ao n.º 1 do art 496.º, entendendo que a lesão em causa ofende directamente o direito à sexualidade, encarando este direito como um direito de personalidade.
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Os argumentos aduzidos em defesa da interpretação mais aberta do direito de indemnização, nos casos como o relatado nos presentes autos, afiguram-se--nos ponderosos.
Esta tese foi ainda acolhida no acórdão deste STJ de 8.03.05, proferido no processo n.º 4486-04-6ª Sec­ção, publicado em adenda ao livro de ABRANTES GERALDES, citado.
Pelas razões expostas, parece-nos ter sido bem decidido pelo acórdão recorrido reconhecer à Autora o direito à indemnização pelos danos não patrimoniais invocados, que são graves, dada a factualidade provada, uma vez que a sua qualidade de vida ficou profundamente afectada, os seus direitos conjugais amputados numa parte importante para uma mulher jovem e os seus projectos de ter mais filhos irr­mediavelmente comprometido”.
Pela nossa parte, tudo ponderado, entendemos também que nesta matéria vale em primeira linha o princípio fundamental estabelecido no artº 496º, nº 1, - o de que apenas são ressarcíveis os danos morais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. Assim, a norma do nº 2 do mesmo preceito não deve servir para condicionar e limitar o alcance (o raio de acção) daquele princípio, que somente faz apelo à gravidade do dano, independentemente do facto lesivo ter causado a morte da vítima. É certo que este texto legal não incorpora a proposta apresentada pelo Prof. Vaz Serra (BMJ 83º, pág. 108), na qual se admitia expressamente a indemnização de danos morais reflexos fora dos casos de morte do lesado. Isso, porém, não deve ser tomado como a inequívoca demonstração de que o legislador quis de caso pensado conceder a satisfação dos danos morais causados a terceiros apenas e só no caso de morte da vítima. Efectivamente, não sendo conhecidos os motivos que levaram à opção final consagrada na lei, não se justifica a sobrevalorização do elemento histó­rico na sua interpretação, tendo em conta, designadamente, que a ponderação do elemento racional (ratio legis) aponta com clareza no sentido da inclusão na área de protecção da norma de situações em que não ocorreu a morte da vítima. Não se vê que este entendimento das coisas possa originar, como já se tem dito, a abertura duma tal ou qual “caixa de pandora”, geradora de incerteza máxima (e da conse­quente insegurança) na aplicação do direito. Na verdade, os tribunais têm que exigir sempre, em todos os casos, que os danos morais sejam graves, medindo essa gravi­dade por padrões objectivos mais ou menos estritos (nº 1 do artº 496º); além disso, apenas estão autorizados a conceder compensação por danos não patrimoniais aos parentes do lesado identificados no nº 2 deste artigo. Se a estas duas balizas acres­centarmos ainda a decorrente de a lei ordenar que o juiz recorra à equidade na fixação da indemnização (nº 3 do referido artº 496º), logo se verifica que o perigo da insegurança jurídica fica esconjurado, a benefício duma interpretação da lei que, sendo actualista (e nessa medida conforme aos cânones estabelecidos no artº 9º, que manda atender, além do mais, ao pensamento legislativo e às condições específicas do tempo em que ela é aplicada), conduz sem qualquer dúvida a uma sua aplicação prática mais próxima da justiça que aos tribunais compete assegurar. Também se afigura que o facto de no artº 495º se prever, contrariamente ao que acontece no artigo seguinte, a indemnização dos terceiros aí identificados tanto no caso de morte como de lesão corporal, não significa que na estatuição do artº 496º se incluam apenas as situações em que ocorreu a morte da vítima e que essa tenha sido a declarada intenção do legislador. É que aquela norma disciplina a indemnização a terceiros por danos patrimoniais, cuja natureza jurídica é substan­cialmente diversa da indemnização por danos morais: na verdade, visa-se ali a reconstituição da situação anterior à lesão, de todo impossível quando estão em causa danos morais, uma vez que estes têm por objecto um interesse não avaliável em dinheiro; por isso é unanimemente entendido que os danos morais são tutelados pelo direito em termos compensatórios (para proporcionar ao lesado determinadas satisfações que contrabalancem as dores causadas pela lesão), enquanto que os danos materiais o são em termos indemnizatórios verdadeiros e próprios (artºs 562º e sgs). Deste modo, não é de estranhar que quando esteja em causa a indemnização a terceiros o legislador defina em termos diversos quem são os titulares do direito e quais são os danos a reparar, consoante a natureza destes.
No caso presente o autor pediu e viu satisfeita pelas instâncias, como já se referiu, a concessão duma reparação pelos danos morais sofridos em consequência do aci­dente que vitimou a autora, sua mulher. E cremos que, vistos os factos apurados e a interpretação dos textos legais aplicáveis que reputamos adequada, acima exposta, a decisão é de manter (note-se que a recorrente não questiona o valor da reparação arbitrada, mas sim o direito a ela). Efectivamente, não há qualquer dúvida de que a comunhão plena de vida que constitui o elemento definidor essencial do casamento, nos termos do artº 1577º, ficou profundamente alterada por virtude do acidente sofrido pela autora. Tal comunhão, segundo a lei, é constituída pelo conjunto de direitos e deveres recíprocos que vinculam os cônjuges, fixado no artº 1672º; e ante os factos relatados, designadamente, sob os nºs 32 a 37, 39 a 45, 49 a 52, 60 e 61, reveladores das sequelas físicas e psíquicas que passaram a afectar em permanência a autora, é inquestionável que a consistência prática, se assim nos podemos exprimir, dos direitos de coabitação (no qual se inclui o débito conjugal), cooperação e assistência de que o autor é titular enquanto membro da sociedade conjugal que forma com sua mulher ficou seriamente comprometida; tais direitos – todos eles – sofreram uma relevante amputação, desequilibrando em manifesto desfavor do autor os pratos da balança que integra a comunhão de vida por ambos projectada; e quando se tenha na devida conta a relativa juventude de ambos à data do acidente, em conjugação com o facto de então constituírem um casal feliz e realizado, unido pelo casamento há dezanove anos, logo se poderá concluir como assumem particular gravidade os danos morais do recorrido, justificando-se, por isso, a sua tutela jurídica no quadro do artº 496º, nº 1. Trata-se, aliás, nesta perspectiva, de danos directos – e não de danos reflexos ou causados a terceiros – por isso que atingem concomitantemente ambos os autores enquanto pessoas casadas uma com a outra.
Improcede, consequentemente, a conclusão 5ª.

III. Decisão
Nega-se a revista.
Custas pela recorrente.

Supremo Tribunal de Justiça, 8 de Setembro de 2009

Nuno Cameira (Relator)
Sousa Leite
Salreta Pereira