Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
71/12.7YRPRT.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO JOAQUIM PIÇARRA
Descritores: REGULAMENTO (CE) 2201/2003
PROTECÇÃO DA CRIANÇA
RESPONSABILIDADES PARENTAIS
INCAPACIDADE
MAIORIDADE
TRIBUNAL ESTRANGEIRO
REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
TRIBUNAL COMPETENTE
Data do Acordão: 12/18/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática: DIREITO COMUNITÁRIO - COMPETÊNCIA JUDICIÁRIA, RECONHECIMENTO E EXECUÇÃO DE DECISÕES EM MATÉRIA CIVIL E COMERCIAL
DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO - ACTOS PÚBLICOS ESTRANGEIROS - COMPETÊNCIA DAS AUTORIDADES E LEI APLICÁVEL EM MATÉRIA DE PROTECÇÃO DE MENORES
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO ESPECIAIS - REVISÃO DE SENTENÇAS ESTRANGEIRAS
Doutrina: - Carlos M.G. de Melo Marinho, in Textos de Cooperação Judiciária Europeia em Matéria Civil e Comercial, Coimbra Editora, 2008, págs. 49 a 53, 88 e 89.
- Isabel Magalhães Collaço, in Revisão de sentenças estrangeiras (Apontamentos de alunos), 1963, pág. 7.
- Katharina Boele-Woelki e outros, in Principles of European Family Law Regarding Parental Responsibilities, Antuérpia/Oxford, Intersentia, 2007, que contém versões em línguas francesa (pág. 289 e ss.) e espanhola (pág. 315 e ss.).
- Luís de Lima Pinheiro, in Revista da Ordem dos Advogados, ano 66, Setembro de 2006, págs. 517 a 522 e 526 a 529.
- Rui Manuel Moura Ramos, in Estudos de Direito Internacional Privado e de Direito Processual Civil Internacional, Coimbra Editora, 2002, págs. 108 e 109.
Legislação Nacional: CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 1094.º E SEGS..
DL Nº 303/2007, DE 24-8: - ARTIGOS 11.º, N.º 1, E 12.º, N.º 1.
DL Nº 52/2008, DE 13-11.
Legislação Comunitária: - DECISÃO 2001/470/CE, DO CONSELHO, DE 28 DE MAIO DE 2001 (ALTERADA PELA DECISÃO Nº 568/2009/CE DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO DE 18 DE JUNHO, APLICÁVEL A PARTIR DE 01.01.2011).
- DECISÃO 2008/431/CE, DO CONSELHO DA EU, DE 5 DE JUNHO DE 2008.
- DECISÃO DO CONSELHO DE 19 DE DEZEMBRO DE 2002.
- REGULAMENTO (CE) N.º 1347/2000 DO CONSELHO, DE 29 DE MAIO DE 2000.
- REGULAMENTO (CE) N.º 2201/2003, DE 27-11: - ARTIGOS 1º, Nº 1, ALS. A) E B), N.º 2, ALÍNEA B), 2.º, N.º3 E 7, 21.º, N.ºS1 E 3, 29.º, N.º 1, 33.º, N.º2 E 3, 41.º, N.º1, 42.º, N.º1, 68.º.
- REGULAMENTO (CE) Nº 44/2001, DE 22 DE DEZEMBRO DE 2000.
- RESOLUÇÃO DO PARLAMENTO EUROPEU, 18 DE DEZEMBRO DE 2008, (2008/2123 (INI)).
- RESOLUÇÃO DO PARLAMENTO EUROPEU, PUBLICADA NO JORNAL OFICIAL DA UNIÃO EUROPEIA, DE 23.2.2010 C 45 E/71 E 72.
Referências Internacionais: XII CONVENÇÃO RELATIVA À SUPRESSÃO DA EXIGÊNCIA DE LEGALIZAÇÃO DE ACTOS PÚBLICOS ESTRANGEIROS (ADOPTADA NA 9ª SESSÃO - HAIA, 5.10.1961).
XVI E XVII CONVENÇÃO SOBRE O RECONHECIMENTO E A EXECUÇÃO DE SENTENÇAS ESTRANGEIRAS EM MATÉRIA CIVIL E COMERCIAL E RESPECTIVO PROTOCOLO ADICIONAL (ADOPTADOS NA SESSÃO EXTRAORDINÁRIA DE 1966 - HAIA, 01.02.1971).
Sumário :
I - Do âmbito de aplicação material do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, de 27-11, encontram-se excluídas medidas de protecção instituídas a favor de maiores, pelo que as decisões proferidas noutros Estados-membros a decretá-las não se encontram abrangidas pelo princípio do reconhecimento automático consagrado no seu art. 21.º, n.º 1.

II - Tais decisões, para que produzam os seus efeitos em Portugal, têm ainda de ser revistas e confirmadas (arts. 1094.º e segs. do CPC).

III - O tribunal da Relação é o competente para rever e confirmar a sentença proferida pelo Juzgado de 1.ª instância e Instucción número uno de Astorga, Espanha, a decretar a incapacidade de um cidadão português já adulto.
Decisão Texto Integral:

         Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



I – O Ministério Público instaurou acção com processo especial de revisão de sentença estrangeira contra AA, solteiro, com residência em Calle ...S/Nº , ... – ... – ..., pretendendo ver revista e confirmada, para que produza os seus efeitos em Portugal, a sentença proferida pelo Juzgado de 1ª instância e Instrucción número uno de Astorga, Espanha, no dia 07 de Julho de 2011, em que foi decretada a incapacidade do requerido, o que corresponde ou equivale à sua interdição.

O Exm.º Juiz Desembargador do Tribunal da Relação do Porto a quem o processo foi distribuído indeferiu liminarmente a petição, com fundamento em incompetência absoluta do tribunal, em razão da hierarquia.

Inconformado com a decisão, o Ministério Público entendeu submetê-la à conferência que proferiu acórdão confirmativo do despacho de indeferimento liminar e, persistindo irresignado, interpôs o presente recurso de revista, rematando a respectiva alegação, com as conclusões seguintes:
1. Não é aqui aplicável o Regulamento (CE) n.° 2201/2003, do Conselho, de 27 de Novembro de 2003 uma vez que ele se aplica, tão-somente, à tutela de menores[1];
2. Com efeito, a tutela de maiores, decretada em sentença estrangeira, tem que ser revista e confirmada através da acção de "Revisão de Sentença Estrangeira" para a qual é competente o Tribunal da Relação, conforme dispõem os artigos 1094°, n° 1, e 1095°, ambos do CPC;
3. É o que resulta do seu considerando 5º, ao dizer que para se "garantir a igualdade de tratamento de todas as crianças, o presente regulamento abrange todas as decisões em matéria de responsabilidade parental, incluindo as medidas de protecção da criança, independentemente da eventual conexão com um processo matrimonial";
4. Por outro lado, no seu artigo 1º, n°s 1 e 2, consta que o Regulamento (CE) n° 2201/2003, do Conselho, de 27 de Novembro de 2003, é aplicável, independentemente da natureza do tribunal, às matérias civis relativas:
i.    Ao divórcio, à separação e à anulação do casamento;
ii.   À atribuição, ao exercício, à delegação, à limitação ou à cessação da responsabilidade parental.
5. Acresce que as matérias referidas na alínea b) do n° 1 dizem, nomeadamente, respeito:
1. À tutela, à curatela e a outras instituições análogas.
6. Ora, no artigo 2º, n° 4, do Regulamento, define-se "decisão" como sendo "qualquer decisão de divórcio, separação ou anulação do casamento, bem como qualquer decisão relativa à responsabilidade parental proferida por um tribunal de um Estado-Membro, independentemente da sua designação (...)";
7. Por sua vez, entende-se por Responsabilidade Parental "o conjunto dos direitos e obrigações conferidos a uma pessoa singular ou colectiva por decisão judicial, por atribuição de pleno direito ou por acordo em vigor relativo à pessoa ou aos bens da criança" [n.° 7] e por Titular da Responsabilidade Parental "qualquer pessoa que exerça a responsabilidade parental em relação a uma criança" [n.° 8];
8. Acresce que o Regulamento (CE) n° 2201/2003, quanto à competência, está dividido em duas secções:
a)   Divórcio, separação e anulação do casamento [seus artigos 3º a 7°]',
b)   Responsabilidade parental [seus artigos 8º a 15°].
9. Do exposto resulta que a tutela referida no artigo 1º n° 1, alínea b), e 2º alínea b), do Regulamento, é a tutela respeitante a crianças e não a decretada a maiores;
10. Ora, o facto de à tutela de maiores se aplicarem as disposições do Código Civil, que fixam para os menores os meios de suprir o poder parental através do instituto da tutela, e de essas regras se aplicarem, também, à interdição, não significa que, relativamente à interdição (maiores), se aplique, igualmente, o Regulamento (CE) n° 2201/2003 uma vez que este não permite efectuar essa interpretação extensiva [seu artigo 1º, n.° 2, alínea c)].
11. Na verdade, da letra do Regulamento n.° 2201/2003, não existem quaisquer elementos que nos permitam concluir que se pretende a sua aplicação, também, à interdição;
12. Pelo contrário, dele resulta, inequivocamente, que só se aplica, independentemente da natureza do tribunal, às matérias civis relativas "à atribuição, ao exercício, à delegação, à limitação ou à cessação da responsabilidade parental";
13. É, deste modo, inaplicável à incapacidade decretada ao requerido - equivalente à nossa interdição - o Regulamento (CE) n.° 2201/2003, do Conselho, de 27 de Novembro de 2003, uma vez que este se aplica, tão-somente, à tutela e à curatela de crianças;
14. Deve, assim, conceder-se a revista e alterar-se o acórdão recorrido, ordenando-se a citação do requerido, nos termos e para os efeitos do artigo 1098°, do CPC, seguindo-se, após, o demais ritualismo legal.

Não foi oferecida contra-alegação e, colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
IIFundamentação de facto

Além dos passos processuais antes descritos releva ainda para a apreciação da revista o seguinte:

1. O requerido nasceu em ..., no dia … de … de ....

2. O requerido é filho de BB e CC e o seu nascimento encontra-se registado na Conservatória do Registo Civil de ....
III – Fundamentação de direito
A apreciação e decisão do presente recurso de revista, delimitado pelas conclusões da alegação do Recorrente (art.ºs 684º, n.º 3 e 685º-A, n.ºs 1 e 2, do Cód. Proc. Civil[2]), passa pela análise e resolução da única questão jurídica por ele colocada a este tribunal e que consiste em determinar se a sentença proferida pelo Juzgado de 1ª instância e Instrucción número uno de Astorga, Espanha, no dia 07 de Julho de 2011, a decretar a incapacidade do requerido cai no âmbito de aplicação material do Regulamento (CE) nº 2201/2003, de 27 de Novembro ou, ao invés, é necessária a sua revisão pelo Tribunal da Relação para produzir efeitos em Portugal.
A Relação do Porto entendeu que a referida sentença está abrangida pelo citado Regulamento, por considerar que a incapacidade nela decretada equivale à interdição e que esta é suprida nos mesmos moldes das responsabilidades parentais, ou seja, a tutela ou curatela (art.ºs 1921ºe ss do Cód. Civil), enquanto o Recorrente defende o contrário.
De que lado está a razão?
Antes de responder, importa sublinhar que as decisões estrangeiras só produzem efeitos na ordem jurídica portuguesa por força de regras ou princípios, vigentes nesta ordem jurídica, que operam o seu reconhecimento[3]. Até muito recentemente, as proposições de reconhecimento vigentes na ordem jurídica portuguesa eram de fonte interna ou internacional, mas o Tratado de Amesterdão, de 2 de Outubro de 1997, veio alterar esse panorama e, como resultado disso, os principais regimes de reconhecimento de decisões judiciais estrangeiras em vigor na nossa ordem jurídica são hoje de fonte comunitária[4].
De qualquer modo, tanto os regimes internacionais como os comunitários «prevalecem sobre o regime interno de reconhecimento de decisões estrangeiras, contido primacialmente nos art.ºs 1094º e ss do Cód. Proc. Civil, e, por conseguinte, o regime interno só é aplicável fora do âmbito de aplicação dos regimes supraestaduais ou na medida em que estes regimes excluam a sua aplicação»[5].
O Regulamento (CE) nº 2201/2003, de 27 de Novembro, como sucedera, aliás, também com o seu antecessor (o Regulamento 1347/2000 do Conselho, aprovado em 29 de Maio de 2000) inspirou-se na Convenção de Haia de 19 de Outubro de 1996, instrumento de uniformização e de protecção de crianças no plano internacional em que é definido o Estado cujas autoridades são competentes para decretar medidas de protecção da pessoa e bens da criança, a lei aplicável por essas autoridades no exercício dessa competência, a garantia do reconhecimento, execução e cooperação em matéria de responsabilidade parental e medidas de protecção de menores, tendo, por Decisão do Conselho de 19 de Dezembro de 2002, sido autorizados os Estados-membros, no interesse da União Europeia, a aderir à citada Convenção.
Portugal aprovou-a, por Decreto-Lei nº 52/2008 de 13 de Novembro, mas o depósito do respectivo instrumento manteve-se em suspenso, por determinação da Decisão 2008/431/CE, do Conselho da EU, de 5 de Junho de 2008. Entretanto, o nosso país procedeu ao depósito do instrumento de aprovação, vigorando a referida Convenção, em Portugal, desde 1 de Agosto de 2011, tendo-se mantido em vigor, até essa data, a Convenção da Haia de 1961.
Relativamente ao seu âmbito de incidência pessoal estabelece o art.º 2º que se aplica «às crianças a partir do nascimento até à idade de 18 anos» e o art.º 3º fornece uma enumeração não exaustiva do seu âmbito de aplicação material, nele se contemplando as questões referentes «à atribuição, exercício, retirada e delegação de responsabilidades parentais, os direitos de guarda e de visita, a tutela e curatela e institutos análogos, a designação e funções de pessoa ou organismo encarregado de se ocupar de se ocupar da pessoa e bens da criança…»[6]
Também as conclusões da Presidência do Conselho Europeu de Tampere, de 15 e 16 de Outubro de 1999, constituíram um marco importante no caminho que conduziu à aprovação do actual sistema relativo à competência, reconhecimento e execução de decisões em matéria matrimonial e de responsabilidades parentais, sufragando-se, aí, «o princípio do reconhecimento mútuo» que se qualificou como «pedra angular da cooperação judiciária na União» e consignando-se dever tal princípio aplicar-se às «sentenças e outras decisões das autoridades judiciárias».
 Na sequência disso, em 29 de Maio de 2000, veio a ser aprovado o Regulamento 1347/2000 do Conselho, que regulava a competência, o reconhecimento e a execução de decisões judiciais em matéria matrimonial e de responsabilidade parental em relação a filhos comuns do casal, proferidas no âmbito de acções de natureza matrimonial, verdadeira antecâmara e experiência percursora do actual Regulamento (CE) nº 2201/2003, de 27 de Novembro, e o Regulamento (CE) nº 44/2001, de 22 de Dezembro de 2000, relativo à competência judiciária e ao reconhecimento e execução de decisões em matéria civil e comercial, que permanece como sistema normativo de natureza geral ou comum e aplicável a todas as situações não abrangidas por regras específicas[7].
Por sua vez, o Regulamento (CE) n.º 2201/2003, de 27 de Novembro, revogou o Regulamento (CE) 1347/2000, de 29 de Maio de 2000, e é aplicável desde 01.03.2005, com excepção dos artigos 67º, 68º, 69º e 70º, aplicáveis desde 01.08.2004, data da sua entrada em vigor[8]. Trata-se de um texto de direito processual civil internacional, prevendo normas uniformes sobre competência judicial internacional (Capítulo II) e reconhecimento de decisões em matéria matrimonial e de responsabilidades parentais (Capítulo III), contendo ainda normas relativas à cooperação entre autoridades em matéria de responsabilidades parentais (capítulo V), cooperação esta facilitada pela criação da Rede Judiciária Europeia em Matéria Civil e Comercial[9].
No tocante ao seu âmbito espacial de aplicação, o Regulamento (CE) n.º 2201/2003, de 27 de Novembro, regula as decisões proferidas por tribunais de Estados-Membros, com excepção da Dinamarca (art.ºs 21º, n.º 1, e 2º, n.º 3) e, relativamente ao seu âmbito material, aplica-se às matérias civis, relativas ao divórcio, à separação e à anulação do casamento e à atribuição, ao exercício, à delegação, à limitação ou à cessação da responsabilidade parental, entendendo-se por tal expressão o conjunto dos direitos e obrigações conferidos a uma pessoa singular ou colectiva, por decisão judicial, por atribuição de pleno direito ou por acordo em vigor relativo à pessoa ou aos bens de uma criança (cfr. artº 2º, nº 7)[10].
Nessa expressão inclui-se, em particular, o direito de guarda, o direito de visita, a tutela, a curatela e outras instituições análogas, bem como a designação e funções de qualquer pessoa ou organismo encarregado da pessoa ou dos bens da criança e da sua representação ou assistência, a colocação da criança ao cuidado de uma família de acolhimento ou de uma instituição e ainda as medidas de protecção da criança relacionadas com a administração, conservação ou disposição dos seus bens (cfr. art.º 1.º, nº 2 e art.º 1.º, nº 1, als. a) b))[11].
Prosseguindo na análise deste Regulamento, detecta-se no art.º 21º, n.º 1, a consagração do já referido princípio do reconhecimento automático das decisões proferidas sobre as aludidas matérias nos outros Estados-Membros, o que torna dispensável o recurso a qualquer procedimento. Qualquer parte interessada pode pedir, no entanto, uma declaração judicial de reconhecimento ou de não reconhecimento[12], aplicando-se nesse caso o procedimento estabelecido para a declaração de executoriedade (art.ºs 21º, n.º 3), ou seja, há que instaurar um processo prévio, de carácter sumário e não contraditório[13], da competência do tribunal de comarca ou, existindo, do Tribunal de Família e Menores (art.ºs 29º, n.º 1 e 68º), intervindo o tribunal da Relação apenas na fase do recurso que vise impugnar a decisão proferida sobre o pedido de declaração de executoriedade (art.ºs 33º, n.º 2 e 68º)[14].
Do teor do Regulamento em análise e mais impressivamente dos 33 considerandos que o precedem resulta inequivocamente que se reporta a crianças e não a adultos, o que, aliás, sucedia já com os já citados instrumentos em que se inspirou, o Regulamento 1347/2000 do Conselho, aprovado em 29 de Maio de 2000, e a Convenção de Haia de 19 de Outubro de 1996, cujo art.º 2º diz expressamente aplicar-se «às crianças a partir do nascimento até à idade de 18 anos». E tanto assim é que o Parlamento Europeu se viu na necessidade de tomar uma Resolução, no dia 18 de Dezembro de 2008, contendo recomendações à Comissão sobre a «protecção jurídica de adultos e implicações transfronteiriças» (2008/2123(INI)) em que, depois de inúmeros considerandos em torno da necessidade da criação de um instrumento comunitário em ordem a assegurar os direitos e medidas protectores dos adultos vulneráveis,  e favorecer igualmente o reconhecimento e execução das decisões judiciais ou administrativas relativas a pessoas que sejam objecto de medidas de protecção, solicita à Comissão que, logo que tenha sido adquirida experiência suficiente sobre o funcionamento prático da Convenção de Haia, submeta ao Parlamento, com base no artigo 65º do Tratado CE, uma proposta legislativa com o objectivo de reforçar a cooperação entre Estados-Membros, bem como melhorar o reconhecimento e a execução das decisões relativas à protecção dos maiores e dos mandatos em caso de incapacidade[15].
Mais solicita à Comissão que financie a realização de um estudo comparativo da legislação dos Estados-Membros relativa aos adultos vulneráveis e às medidas para a sua protecção com vista a controlar os pontos susceptíveis de levantarem questões jurídicas e que medidas serão necessárias a nível da UE ou dos Estados-Membros para resolver essas questões. Além disso considera ainda que o estudo deverá também ocupar-se da questão dos adultos com deficiências intelectuais colocados em instituições, no que respeita à sua tutela e à sua capacidade de exercerem os seus direitos e recorda à Comissão e aos Estados-Membros que nem todos os adultos vulneráveis o são por força da idade, solicitando igualmente que sejam tomadas medidas para reforçar a protecção jurídica e os direitos, não apenas dos adultos vulneráveis idosos, como também daqueles adultos cuja vulnerabilidade é imputável a grave deficiência física e/ou mental, e que as necessidades destes últimos sejam também tidas em conta aquando da adopção de futuras medidas sociais tendentes a garantir os referidos direitos.
Esta Resolução do Parlamento Europeu e as recomendações aí contidas, aliadas ao teor do Regulamento (CE) nº 2201/2003, de 27 de Novembro, seus considerandos e instrumentos que o precederam, revelam bem que a protecção de adultos se encontra excluída do âmbito de aplicação material desse Regulamento, que, como bem sustenta o Recorrente, respeita, tão só, a crianças. De contrário, aquele órgão do poder legislativo comunitário não sentiria necessidade de, em Dezembro de 2008, propor a adopção de medidas protectoras de adultos que afinal já constavam, muito antes, do ordenamento jurídico comunitário.
Deste modo, afigura-se-nos, sem quebra do devido respeito, que o acórdão recorrido e o despacho de indeferimento liminar, quando concluíram que a sentença a rever caía no âmbito de aplicação do Regulamento (CE) nº 2201/2003, de 27 de Novembro, não terá equacionado devidamente a situação em apreço e não terá feito correcta leitura, interpretação e aplicação dos citados instrumentos de cooperação judiciária.
Significa isto que a referida sentença, por respeitar à protecção de adulto, não se encontra dispensada de prévia revisão e confirmação, nos termos dos art.ºs 1094 e ss. do Cód. Proc. Civil, como requerido pelo Recorrente. Só depois de revista e confirmada pela Relação é que estará em condições de produzir efeitos, no nosso país.
Ao invés do que entendeu a Relação, não há lugar, neste caso, ao processo sumário estabelecido para a declaração de executoriedade, esse sim, da competência do tribunal de comarca ou, existindo, do Tribunal de Família e Menores (art.ºs 29º, n.º 1 e 68º). Nada permite interpretar extensivamente o art.º 1º, n.º 2, alínea b), do Regulamento (CE) nº 2201/2003, de 27 de Novembro, que contempla apenas medidas protectoras de menores, sendo obviamente que, quando alude à tutela, à curatela ou a outras instituições análogas se refere só às instituídas a favor destes e não também de maiores. A ordem jurídica comunitária não autoriza que o regime de reconhecimento automático estabelecido para as decisões referentes às responsabilidades parentais seja interpretado de molde a estender a sua aplicação também a maiores, incluindo a sentença que decrete a interdição, a qual terá de ser revista pelo tribunal da Relação.   
Nesta conformidade, procedem as conclusões do Recorrente a quem assiste toda a razão em se insurgir contra o decidido pela Relação, o que implica o total êxito do recurso e a revogação do acórdão confirmativo do indeferimento liminar da petição inicial.

IV – Decisão

Nos termos expostos, concede-se a revista e consequentemente revoga-se o acórdão recorrido e o despacho de indeferimento liminar confirmado pelo mesmo, determinando-se que o Tribunal da Relação, por ser o competente, assegure a tramitação do processo de revisão de sentença.

Sem custas.


*

Lisboa, 18 de Dezembro de 2012

António Piçarra (relator)

Sebastião Póvoas

Moreira Alves


_______________________
[1] O Recorrente escreveu, por lapso, maiores, quando pretendia reportar-se a menores ou crianças.
[2] Na versão introduzida pelo DL n.º 303/2007, de 24 de Agosto, uma vez que o processo foi instaurado depois de 01 de Janeiro de 2008, data em que entrou em vigor tal diploma legal (cfr. os seus art.ºs 11º, n.º 1, e 12º, n.º 1).
[3] Cfr. Isabel Magalhães Collaço, in Revisão de sentenças estrangeiras (Apontamentos de alunos), 1963, pág. 7.
[4] Cfr., neste sentido, Luís de Lima Pinheiro, in Revista da Ordem dos Advogados, ano 66, Setembro de 2006, págs. 517 e 518, e Carlos M.G. de Melo Marinho, in Textos de Cooperação Judiciária Europeia em Matéria Civil e Comercial, Coimbra Editora, 2008, págs. 49 e 50.
[5] Cfr., neste sentido, Luís de Lima Pinheiro, in Revista da Ordem dos Advogados, ano 66, Setembro de 2006, pág. 518.
[6] Cfr., para maior desenvolvimento, Rui Manuel Moura Ramos, in Estudos de Direito Internacional Privado e de Direito Processual Civil Internacional, Coimbra Editora, 2002, págs. 108 e 109.
[7] Cfr., para maior desenvolvimento, Carlos M.G. de Melo Marinho, in Textos de Cooperação Judiciária Europeia em Matéria Civil e Comercial, Coimbra Editora, 2008, págs. 50 e 51. 
[8] Cfr., para maior desenvolvimento sobre a sua aplicação no tempo, Carlos M.G. de Melo Marinho, in Textos de Cooperação Judiciária Europeia em Matéria Civil e Comercial, Coimbra Editora, 2008, pág. 52, e Luís de Lima Pinheiro, in Revista da Ordem dos Advogados, ano 66, Setembro de 2006, pág. 518.  
[9] Cfr. Decisão 2001/470/CE, do Conselho, de 28 de Maio de 2001 (alterada pela Decisão nº 568/2009/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 18 de Junho, aplicável a partir de 01.01.2011).
[10] Aliás, igual entendimento veio a ser consagrado nos «Princípios do Direito da Família Europeu Relativos às Responsabilidades Parentais», publicados em 2007, onde, depois da definição dos direitos da criança (capítulo II), se alude à responsabilidade parental como “um conjunto de direitos e deveres destinados a favorecer e a salvaguardar o bem-estar da criança” (corpo do princípio 3:1) - Cfr. Katharina Boele-Woelki e outros, in Principles of European Family Law Regarding Parental Responsibilities, Antuérpia/Oxford, Intersentia, 2007, que contém versões dos princípios em línguas francesa (pág. 289 e ss.) e espanhola (pág. 315 e ss.).
[11] Cfr., para maior desenvolvimento sobre o seu âmbito material de aplicação, Carlos M.G. de Melo Marinho, in Textos de Cooperação Judiciária Europeia em Matéria Civil e Comercial, Coimbra Editora, 2008, págs. 53, 88 e 89, e Luís de Lima Pinheiro, in Revista da Ordem dos Advogados, ano 66, Setembro de 2006, págs. 519 a 522.
[12] Em matéria de direito de visita e ou de regresso da criança não se admite o pedido de declaração de não reconhecimento (art.ºs 41º, n.º 1, e 42º, n.º 1, do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, de 27 de Novembro. 
[13] O contraditório é assegurado apenas na fase de recurso (art.º 33º, n.º 3).
[14] Cfr., para maior desenvolvimento, Luís de Lima Pinheiro, in Revista da Ordem dos Advogados, ano 66, Setembro de 2006, págs. 526 a 529.
[15] A aludida Resolução do Parlamento Europeu está publicada no Jornal Oficial da União Europeia, de 23.2.2010 C 45 E/71 e 72.