Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
806/07.0TBTND.C1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: SERRA BAPTISTA
Descritores: DIREITO DE PROPRIEDADE
BEM IMÓVEL
ESPAÇO AÉREO
FUNÇÃO SOCIAL DO DIREITO
ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
PARECERES
JUNÇÃO DE PARECER
EXTEMPORANEIDADE
LEGITIMIDADE PARA RECORRER
NULIDADE DE ACÓRDÃO
OPOSIÇÃO ENTRE FUNDAMENTOS E DECISÃO
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
Data do Acordão: 02/14/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DOS DIREITOS / DIREITOS REAIS / DIREITO DA PROPRIEDADE.
DIREITO CONSTITUCIONAL - DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS - DIREITOS E DEVERES ECONÓMICOS - ORGANIZAÇÃO ECONÓMICA - TRIBUNAIS.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO / ACTOS PROCESSUAIS - INSTÂNCIA - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / ARTICULADOS / INSTRUÇÃO DO PROCESSO / SENTENÇA / RECURSOS.
Doutrina:
- A. Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, p. 265 e ss.
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Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 1.º, 334.º, 1302.º, 1305.º, 1306.º, 1308.º, 1311.º, 1315.º, 1344.º, 1346.º E SEGS..
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 3.º, 151.º, 264.º, 487.º, N.º1, 489.º, 514.º, 664.º, 665.º, 525.º, 653.º, N.º 2, 655.º, N.º1, 660.º, N.º2, 664.º, 668.º, N.º 1, ALS. B), C) E D), 680.º, N.º 1, 690.º-A, 700.º, N.º 1, AL. E), 706.º, N.º 2, 712.º, N.º 1, AL. A), N.º4, 716.º, N.º 1, 722.º, N.º 2, 726.º, 729.º, N.º 3.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 13.º, 18.º, N.º 2, 62.º, 84.º, N.º1, AL. B), 205.º, N.º 1.
DL N.º 189/88, DE 27-05, E POSTERIORMENTE PELOS DL N.º 186/95, DE 27-07; DL N.º 313/95, DE 24-11; DL 313/95, DE 24-11; DL N. º 189/88, DE 27-05; DL N.º 168/99, DE 18-05 E O DL N.º 225/2007, DE 31-05.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 21-9-93, C.J., S., ANO I, T. III, P. 21;
-DE 25-03-2004, EM WWW.DGSI.PT;
-DE 27-04-2006, P.º N.º 4270/05 - 6.ª SECÇÃO;
-P.º N.º 6150/06.2TBALM.L1.S1, EM WWW.DGSI.PT;
-REVISTA N.º 3206/08 - 6.ª SECÇÃO, SUMARIADO E DISPONÍVEL PARA CONSULTA NAS BASES DE DADOS DO STJ;
-DE 27-11-2008, P.º N.º 2778/08, 2.ª SECÇÃO, EM WWW.DGSI.PT;
-P.º N.º 6/10.1TVPRT.P1.S, EM WWW.DGSI.PT;
-DE 06-05-2010, P.º N.º 2148/05.6TBLLE.E1.S1, EM WWW.DGSI.PT;
-DE 09-11-2010, P.º N.º 495/04.3TBOBR.C1.S1 - 1.ª SECÇÃO, EM WWW.STJ.PT.
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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:
-DE 13/04/1988, ATC, IN WWW.DGSI.PT; DE 10/12/1997, ATC, IN WWW.DGSI.PT; N.º 491/02; Nº 44/84, IN ATC, 3º VOL., P. 133; N.º 39/88, IN ATC, 11º VOL., PP. 233 E SS.; N.º 325/92, IN ATC, 23º, PP. 369 E SS.; N.º 210/93, IN ATC, 24º VOL., PP. 549 E SS.; N.º 786/96, ATC, 34º VOL., P. 41; N.º 302/97, IN ATC, 36º VOL., PP. 793 E SS.; N.º 12/99, IN ATC, 42º VOL., P. 99;N.º 683/99, IN DR, II SÉRIE, DE 3 DE FEVEREIRO DE 2000; N.º 491/2002, PROCESSO N.º 310/99, EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I - Tem legitimidade para recorrer a parte para a qual a decisão é desfavorável, qualquer que tenha sido o seu comportamento na instância recorrida e independentemente dos pedidos por ela formulados no tribunal a quo.

II - O sentido do art. 706.º, n.º 2, do CPC – na redacção anterior ao DL n.º 303/2007, de 24-08 –, é que a prolação do despacho de vista aos juízes adjuntos seja o prazo final de junção de pareceres, uma vez que ela marca o início do julgamento, independentemente de ter sido ou não aberta conclusão aos adjuntos para o efeito.

III - Tal sentido – conferindo a ambas as partes a possibilidade de junção de parecer até tal momento –, não viola o princípio da igualdade, mormente quando a parte que não procedeu a tal junção, se pronunciou quanto ao teor do parecer junto.

V - A condenação além do pedido verifica-se quando o tribunal condena em pedido ou com fundamento (causa de pedir) distinto dos suscitados pelas partes, o que não se verifica se o acórdão da Relação, julgando dentro dos pedidos formulados, se limita a alterar a resposta à matéria de facto, que fora impugnada pelo recorrente, julgando provado um facto que integrava a causa de pedir dos autores e integrava a base instrutória.

VI - O tribunal não pode servir-se de factos que não resultem das situações a que aludem os arts. 664.º e 264.º do CPC, designadamente daqueles que, delas não resultando, não se possa concluir que hajam resultado da via presuntiva.

VII - Só a falta absoluta de fundamentação integra a nulidade a que alude o art. 668.º, n.º 1, al. b) do CPC.

VIII - A nulidade do acórdão por contradição entre os fundamentos e a decisão ocorre quando a fundamentação aponta num sentido e a decisão extrai um sentido contrário.

IX - O direito de propriedade define-se conceptualmente pelos poderes que confere ao seu titular, abrangendo, como componentes: (i) a liberdade de adquirir bens, (ii) a liberdade de usar e fruir dos bens de que se é proprietário; (iii) a liberdade de os transmitir; (iv) o direito de não ser privado deles e, ainda, (v) o direito de reaver os bens sobre os quais o mesmo direito de mantém.

X - O direito de propriedade encontra-se limitado, quer ao nível do seu conteúdo, quer ao nível dos seus limites objectivos, estendendo-se os poderes do seu titular apenas na medida em que se revele necessário para preservar a utilidade por este proporcionada – «função social» -, bem como pelo instituto do abuso de direito, que se projecta no interior de tal função.

XI – Ainda que o direito de propriedade de imóveis abranja o espaço aéreo correspondente à superfície, bem como o subsolo, são-lhe, à luz dos limites referidos em X, conceptualizados limites materiais superior (definido pelo espaço aéreo público) e inferior (subsolo), aos quais alude o art. 1344.º do CC.

XII – O art. 1344.º, n.º 2, do CC – ao vedar ao proprietário a proibição de actos de terceiro que pela altura ou profundidade a que têm lugar não haja interesse em impedir – exige ao proprietário um interesse actual, concretizável e materializável, e não meramente abstracto ou conjectural.

XIII – Não integra tal interesse concretizável e materializável a simples expectativa de instalação de um parque eólico – que, por ser regulamentada, não depende da mera vontade dos proprietários dos imóveis – num prédio dos autores.

XIV – Em face o referido em X a XIII não têm direito a opor-se ao funcionamento de um aerogerador – implantado em prédio vizinho, mas cujas pás em funcionamento, e girando a 24 m de altura, invadem em 20 m o espaço aéreo correspondente à superfície do prédio dos autores – os proprietários de um prédio, com a área de 250000 m2 e no qual apenas se apurou proceder-se à plantação de eucaliptos.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

AA, BB e mulher CC, DD e mulher EE, FF e mulher GG, HH, II e mulher JJ, KK, LL e mulher MM, NN e mulher OO, PP e marido QQ, RR, SS e marido TT, UU e VV e mulher XX vieram intentar acção, com processo ordinário, contra ZZ), S.A. e AAA, S.A., pedindo que:

         a) se declare que são os donos e legítimos comproprietários do prédio rústico, sito na Encosta do ........, freguesia de Mosteirinho, concelho de Tondela, inscrito na matriz sob o artigo 2400 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Tondela sob a inscrição 000000000000, e se condenem as rés a reconhecer tal;

         b) se condenem as rés a abster-se, de imediato e totalmente, de colocar em funcionamento o aerogerador n.º 9, referido nos artigos 26º e 27º da petição inicial, suspendendo definitivamente a actividade do mesmo; ou, em, alternativa

         c) se condenem as rés a retirar o dito aerogerador, e respectiva torre, para a distância superior a 250 m da extrema nascente do prédio dos autores.

Alegando, para tanto, e em suma:

São os únicos e legítimos comproprietários do prédio identificado em a) do seu pedido, o qual se encontra registado a seu favor na competente Conservatória do Registo Predial e que, adquiriram por usucapião, uma vez que, por si e seus antepossuidores, há mais de 30 anos, pública e pacificamente vêm usufruindo, na convicção de que este lhe pertence.

A primeira ré procedeu à construção e montagem de um parque eólico, na cumeada do Serra do ........, composto por 16 aerogeradores, implantada ao longo de uma estrada.

O parque eólico e o prédio dos autores ficam separados por uma estrada.

O prédio dos autores fica do lado esquerdo da referida estrada.

Como cada aerogeradores tem uma altura de 67 metros, as pás 43 m e o roter 87 metros, pelo menos um deles ocupa o espaço aéreo do prédio dos autores numa distância superior a 20 metros.

Além do mais, o prédio dos autores ficou onerado e diminuído nas suas utilidades, já que nele ficam os autores privados de instalar outro parque eólico, ainda que por cedência ou arrendamento a terceiros.

A primeira ré transferiu para a segunda ré a titularidade da licença do estabelecimento do dito parque eólico.

Citadas, as rés vieram contestar, defendendo-se por excepção e por impugnação.

A ré ZZ invocou a excepção da sua ilegitimidade passiva, por já não ser a proprietária do parque eólico e afirmou que as pás do gerador n.º 9 nem sempre sobrevoam o prédio dos autores e quando o fazem apenas o atingem numa extensão de 1 a 20 metros, não se verificando uma violação que mereça a tutela do direito.

A ré AAA contestou deduzindo a excepção de ilegitimidade activa dos 2.º a 4.º, 8.º a 10.º, 12.º e 13.º autores, por que não se encontra inscrito, a favor deles, o respectivo direito de propriedade. Por impugnação, invocou, em suma, que as pás do gerador n.º 9 apenas em certas condições sobrevoam o prédio dos autores, pelo que não se verifica uma violação que mereça a tutela do direito. Mais disse que as pás giram a uma altura muito superior a 24 metros de altura não se encontrando o prédio minimamente onerado, pelo que os autores actuam abusivamente.

E, concluem, pugnando para que os sejam absolvidos da instância, por procederem as excepções por si invocadas, ou seja a acção julgada improcedente, com a sua absolvição do pedido.

Replicaram os autores, pugnando pela improcedência das excepções deduzidas.

A ré AAA, S.A., treplicou reafirmando a sua posição quanto à ilegitimidade de alguns autores.

Foi proferido o despacho saneador, que ordenou o desentranhamento da tréplica e julgou improcedentes as excepções – de ilegitimidade passiva da ré ZZ, S.A. e da ilegitimidade activa dos 2.º; 3.º; 4.º; 8.º; 9.º; 10.º; 12.º e 13.º autores – arguidas.

Foram fixados os factos tidos por assentes, tendo sido organizada a base instrutória, ulteriormente aditada, por procedência de reclamação.

BB e mulher CC, DD e mulher EE, FF e mulher GG – 2.os; 3.os e 4.os autores – vieram desistir do pedido, desistência homologada por despacho de fls. 484.

Realizado julgamento, foi decidida a matéria de facto da base instrutória pela forma que do despacho junto de fls 533 a 536 consta.

Foi proferida sentença, onde, na improcedência da acção, se absolveram as rés ZZl), S.A. e AAA, S.A. dos pedidos formulados pelos autores AA, HH, II e mulher JJ, KK, LLe mulher MM, NN e mulher OO, PP e marido QQ, RR, SS e marido TT, UU e VV e mulher XX.

Inconformados, vieram os autores interpor recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Coimbra, onde, por acórdão de fls 727 e ss, na parcial procedência do mesmo, com alteração da resposta dada ao artigo 19.º e correcção da redacção dada à alínea E) dos factos assentes e artigo 4.º dos factos provados, se declarou os autores comproprietários do prédio rústico, sito na Encosta do ........, freguesia de Mosteirinho, concelho de Tondela, inscrito na matriz sob o artigo 2400 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Tondela sob a inscrição 000000000000 e condena-se as rés a reconhecerem esse direito e se condenou a ré AAA a abster-se, de imediato e totalmente, de colocar em funcionamento o aerogerador n.º 9 identificado nos autos, revogando-se nesta parte a sentença recorrida. 

         No mais, julgou-se improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida.

Agora irresignadas, vieram as rés pedir revista.

A ré ZZl), S.A., formulou, na sua alegação, as seguintes conclusões, que se transcrevem:

                        1ª – Nas suas alegações de recurso, os Recorridos fazem depender a alteração da decisão da primeira instância de uma modificação da resposta ao quesito 19.° para termos que especificamente os Recorridos indicaram e que visavam sustentar a existência de um dano.

                2.ª – A resposta ao quesito em causa foi alterada pelo Tribunal a quo, mas não nos termos pretendidos pelos Recorridos, sendo que a resposta dada não permite determinar de forma lógica e de acordo com a experiência média um "dano sério" para os ora Recorridos: porque não se considerou provada a impossibilidade de cedência do imóvel em causa, sendo certo que o terreno dos ora Recorridos tem uma área de total 250.000 m2 – al. E) da matéria assente – e que as pás do Aerogerador invadem o espaço aéreo do prédio em causa numa distância de apenas 28 metros (cfr. resposta ao quesito 10° da Base Instrutória).

3.ª - Assim sendo, não se verificaram as premissas que permitiriam ao Tribunal a quo alterar a decisão como o fez, ou seja, dando como demonstrados, sem mais, sérios prejuízos para os ora Recorridos pela mera invasão do espaço aéreo. Para tal, seria necessário que os ora Recorridos tivessem feito uma prova cabal desse prejuízo, tomando por base na resposta dada ao quesito pelo Tribunal a quo.

4.ª - Os Venerandos Desembargadores conheceram, assim, em excesso de pronúncia, de questões de que não poderiam ter conhecido, atendendo à limitação dos poderes de cognição do tribunal de recurso, nulidade que é subsumível na alínea d) do número 1 do artigo 668.° do CPC, aplicável ex vi artigo 716.° do CPC. Deve, pois, o tribunal ad quem declarar a nulidade do Acórdão e reverter a decisão em conformidade.

5.ª - O Tribunal a quo extravasou igualmente os seus poderes de cognição, permitindo-se conhecer, sem que tal lhe tenha sido requerido, factos nunca antes alegados e provados no processo.

6.ª - O Tribunal a quo fundamenta o interesse dos ora Recorridos, em evitar o sobrevoo do seu imóvel pelas pás do aerogerador, no seguinte "facto" não anteriormente carreado ou alegado no processo: " (...) ao andar-se por baixo das pás do aerogerador (...) ter-se-á uma sensação de desconforto, quiçá de insegurança, que será tanto maior, quanto maior for a velocidade a que aquelas estiverem a circular. Esse desconforto ou insegurança acabam por condicionar a circulação de pessoas nessa parte do imóvel o que, evidentemente, afecta o gozo do mesmo" (sublinhado nosso). Ora, tal "facto" não poderia ter sido utilizado na decisão de que agora se recorre.

7.ª - Desde logo, porque o tribunal de recurso fica limitado às alegações e respectivas conclusões das partes, sendo nessa base delimitados os seus poderes de cognição, bem como da matéria carreada para o processo pelas partes.

8.ª - Adicionalmente, porque o Tribunal a quo apenas poderia exceder o pedido dos Recorridos se estivéssemos perante matérias de conhecimento oficioso, que não é o caso.

9.ª - Com efeito, não é defensável, que uma situação de desconforto ou de insegurança pela passagem por baixo das pás de um aerogerador configure um facto notório de conhecimento oficioso. Tal situação constitui um facto interno e como tal, carece de alegação e de prova, sendo que nem um nem outro se verificaram nos autos.

10.ª - Mesmo que tal facto pudesse considerar-se como uma presunção decorrente de máximas de experiência, sempre haveria necessidade de especificar a concreta matéria de facto no qual se apoiou o Tribunal a quo para obter e dar como provado que determinada realidade se constituiu e existiu ou existe efectivamente (fazendo a doutrina referida apelo, nomeadamente, ao previsto nos artigos 638.°, número 1 e 653.°, número 2, ambos do CPC) o que não foi feito.

11.ª - Termos em que, deve Acórdão ser considerado nulo por excesso de pronúncia, por aplicação da alínea d) do número 1 do artigo 668.° do CPC, aplicável ex vi artigo 716.° do CPC, devendo a decisão ser revertida nesta parte.

12.ª - Igualmente se configura um excesso de pronúncia do Acórdão na sua decisão de determinar a cessação imediata e total do funcionamento do Aerogerador.

13.ª - Para que tal decisão fosse possível, era necessário demonstrar-se uma legitimidade e um interesse de terceiros que não se alegou nem materializou nos presentes autos, sendo nessa medida nula e insustentável a conclusão e respectiva decisão a que o tribunal recorrido chega.

14.ª - Deste modo, laborou o Tribunal a quo em excesso de pronúncia. Termos em que, deve o Acórdão ser considerado nulo por excesso de pronúncia, por aplicação da alínea e) do número 1 do artigo 668.° do CPC, aplicável ex vi artigo 716.° do CPC, devendo a decisão ser revertida nesta parte.

15.ª - O Acórdão padece ainda de nulidade pela não especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.

16.ª - O Acórdão é claro ao afirmar "regista-se que o funcionamento do aerogerador n.° 9 atinge o direito de propriedade dos Autores, pelo que, deixando ele de funcionar, a violação desse direito cessa. Quer isso dizer que para se pôr fím a tal violação basta que cesse esse funcionamento, ficando o aerogerador parado numa posição em que as suas pás não se encontrem no espaço aéreo do prédio dos Autores". Não obstante, no Acórdão concluiu-se no sentido de condenar a "ré AAA a abster-se, de imediato e totalmente, de colocar em funcionamento o aerogerador n.° 9 identificado nos autos", como efectivamente veio a condenar (sublinhados nossos).

17.ª - O Acórdão omite de forma absoluta os fundamentos seja de facto seja de direito que levaram o Tribunal a quo a decidir a paragem total e imediata do aerogerador, justificando essa decisão em conformidade com as premissas anteriores, ou seja, quando para colocar um fim à eventual violação do direito de propriedade dos ora Recorridos, bastaria, como o Tribunal a quo bem o diz, que o aerogerador ficasse numa posição em que as suas pás não invadissem o espaço aéreo do Autor.

18.ª - Nesta parte, deve o Acórdão ser considerado nulo pela não especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão em crise, nos termos da alínea b) do numero 1, do artigo 668.° do CPC, aplicável ex vi artigo 716.° do CPC, devendo a decisão ser revertida.

19.ª - O Acórdão é nulo também por oposição entre os fundamentos e a decisão ao condenar a "ré AAA a abster-se, de imediato e totalmente, de colocar em funcionamento o aerogerador n.° 9 identificado nos autos" pois é o próprio Tribunal a quo quem admite claramente que o funcionamento do Aerogerador apenas viola o direito de propriedade dos ora Recorridos no momento em que sobrevoa o imóvel destes, tendo em conta que ficou provado que o aerogerador gira a 360.° sobre um eixo - resposta ao quesito 22.° da base instrutória.

20.ª - Do exposto, deve também o Acórdão ser considerado nulo dado que existe oposição entre os fundamentos e a decisão, nos termos dos artigos 668.°, número 1, alínea c), ex vi artigo 716.° do CPC).

21.ª - Para além das nulidades atrás descritas, entende a ora Recorrente ter havido por parte do Tribunal a quo erro de julgamento, pela errada subsunção do direito aos factos provados no processo, por referência à extensão do direito de propriedade, o que deverá levar o Tribunal a quem a reverter a decisão, em conformidade com o pedido da Recorrente no presente recurso (artigo 721.° do CPC).

22.ª - O direito à propriedade privada, enquanto direito constitucionalmente garantido não pode o seu conteúdo ser apercebido isoladamente. O direito de propriedade, no seu contexto mais vasto, cruza-se na vertente da função social da propriedade.

23.ª - O direito de propriedade, porque assente na CRP, é delimitado em função desta e não pode ser analisado sem se tomar em linha de conta as referências ao meio ambiente e à importância do desenvolvimento sustentado que a CRP aponta.

24.ª - Resulta dos artigos 1305.° e 1344.° do CC que o legislador ordinário se absteve de definir em concreto os limites objectivos do direito de propriedade, nomeadamente a sua extensão, fazendo antes apelo aos interesses do proprietário em impedir actos de terceiro.

25.ª - A repercussão do princípio da função social da propriedade sobre as situações jurídicas radica, no nosso ordenamento, no âmbito da figura do abuso do direito. Neste sentido, acaba por obter uma consagração normativa, no domínio da propriedade, a imposição ao proprietário de proibição de impedir actos de terceiro que não tenham interesse em impedir, atendendo à profundidade ou à altitude a que ocorrem (número 2 do artigo 1344.° do CC).

26.ª - Não deve relevar o interesse meramente egoístico do seu titular, nem tão pouco, o interesse abstracto, potencial e eventual, o que obriga a não poder excluir a actividade de outrem (terceiro entidade pública ou privada) que assuma interesse manifestamente relevante.

27.ª - O espaço aéreo é insusceptível de apropriação privada, porquanto não constitui objecto de direito real e em relação a ele, o proprietário do solo é apenas titular de um poder de conteúdo negativo: o qual consiste em interditar as intromissões de terceiro que tenha interesse em impedir.

28.ª - Quando definimos o domínio aéreo de determinado prédio, reflectimos sobre a medida do interesse em impedir actos de terceiro que decorram nesse espaço. Deve por isso, tomar-se em consideração os seus requisitos de razoabilidade, de aproveitamento normal e de racionalidade económica, correspondentes a um interesse sério do proprietário.

29.ª - No entender da Recorrente, não existe qualquer interesse, legal e legítimo dos Recorridos em impedir o sobrevoo das pás do aerogerador sobre o imóvel dos Recorridos, nem tão pouco interesse dos Recorridos na concreta expansão do direito de propriedade, nos termos e com os efeitos pretendidos pelos Recorridos.

30.ª - Os ora Recorridos alegaram na sua petição inicial é a lesão dos seguintes interesses:

(i) Ficarem impossibilitados de dar de arrendamento o imóvel, ou cedê-lo por qualquer outro tipo de contrato, a uma sociedade que se dedique à produção e venda de energia eólica, para instalação de outro parque eólico;

(ii) O imóvel ficar muito diminuído no seu valor florestal e económico e onerado com uma servidão de passagem aérea (servidão que o Tribunal a quo, e bem não reconheceu); e

(iii) O crescimento das árvores que aí têm plantadas e que queiram plantar ser afectado pelo ar resultante do movimento das pás do aerogerador.

31.ª - Na base instrutória, a estas alegações dos ora Recorridos corresponderam, respectivamente, os quesitos 14.°, 15.° e 19.°

32.ª - Aos quesitos 14.° e 15.° foi dada resposta negativa, sendo dados como "não provados". O quesito 19.° foi considerado inicialmente não provado, sendo essa resposta alterada pelo acórdão do Tribunal a quo, para a seguinte redacção: provado apenas que, em virtude do local onde se encontra o aerogerador, os Autores, pretendendo ceder o uso do seu prédio, com ou sem retribuição, a uma sociedade que se dedique à produção e venda de energia eólica, para instalação de outro parque eólico, estão impossibilitados de colocar outro aerogerador a uma distância inferior à mencionada na resposta ao quesito 16.° da Bl.

33.ª - Por outro lado, constam da matéria assente os seguintes factos:

(i) A passagem das pás do aerogerador sobrevoa, na sua posição de translação mais desfavorável aos Recorridos, uma área de 1.860 m2 (resposta do perito ao artigo 10,° da base instrutória);

(ii) O sobrevoo ocorre apenas periodicamente, uma vez que as pás giram a 360.° sobre um eixo (artigo 22 da matéria assente); e

(iii) A área total do imóvel dos Recorridos corresponde a 250.000 m2"

34.ª - Resulta da conjugação que Recorridos reclamam um sobrevoo que incide, tão só e apenas, sobre uma parcela de 1850 m2. correspondente a 0,74 % do seu imóvel, sendo certo que tal sobrevoo é meramente esporádico.

35.ª - Resulta também que os Recorridos não lograram provar, a partir desta matéria assente e em qualquer das instâncias, os seus prejuízos tendo em conta o espaço diminuto sobrevoado esporadicamente pelo aerogerador; ou o interesse em impedir o funcionamento do aerogerador já que os Recorridos nunca demonstraram em qualquer parte do processo ter um interesse atendível na eventual instalação de um aerogerador no terreno sobrevoado pelo aerogerador.

36.ª - Comparando os benefícios/prejuízos da cessação da actividade do aerogerador com os decorrentes da alegada limitação do direito de extensão da propriedade que os Recorridos invocam ao longo de todo o processo, constata-se o sacrifício desproporcionado da cessação de funcionamento do aerogerador face aos alegados benefícios a retirar de tal cessação.

37.ª - Assim, seria necessário demonstrar que o proprietário, in casu os Recorridos, possuíam um interesse sério que os levasse a ocupar o espaço aéreo reclamado, ou seja, neste caso a franja que atinja, no mínimo, 24 metros de altura, porquanto é nessa faixa que giram as pás do aerogerador. Ora tal não se materializou, quer em concreto, quer em abstracto, nos presentes Autos.

38.ª - Na verdade, os Recorridos apenas demonstraram nos autos que plantam eucaliptos no terreno em questão mas na cumeada sobrevoada pelo aerogerador.

39.ª - Do mesmo modo, nunca resultou provado nos autos que o ar resultante da movimentação das pás do aerogerador afecte o crescimento de árvores que têm plantadas e que venham a plantar no seu prédio, nem foi feita prova quanto aos concretos e quantificáveis danos verificados no regular crescimento das árvores no prédio dos Recorrentes pela referida passagem das pás do aerogerador. Note-se que nem sequer se provou que do movimento das pás do aerogerador resulte a criação de ar (vento) (cfr. fundamentação da resposta aos quesitos).

40.ª - Os Recorridos tão-pouco lograram provar nos autos a alegada e concreta impossibilidade de cederem o uso do seu prédio, com ou sem retribuição, a uma sociedade que se dedique à produção e venda de energia eólica, nem que foram alguma vez contactados para o efeito por uma empresa que se dedique a esse tipo de actividades e, em consequência da sobrepassagem das pás do aerogerador, ter sido o prédio de que são proprietários desconsiderado para a instalação de um parque eólico. Ao longo de todo o processo, os ora Recorridos reportaram-se apenas à hipotética eventualidade de pretensão de construção de um parque eólico no seu prédio, sendo certo que não provaram ter-se tal construção tornado inviável em resultado da preexistência e do funcionamento do aerogerador e, em geral, do parque eólico onde se insere o referido aerogerador, ónus que, de resto, impendia sobre os recorrentes (cfr. fundamentação da resposta aos quesitos).

41.ª - Por sua vez, foi provado por documentos juntos pela 1.ª ré aos autos com as suas peças processuais e pelas testemunhas por si apresentadas (cfr. fundamentação da resposta aos quesitos) que a instalação de parques eólicos naquele local não pode ser efectuada até 2013, por estar esgotada a capacidade de recepção de energia eléctrica produzida por parques eólicos no ponto de recepção da zona em questão (cfr. na fundamentação da resposta aos quesitos a resposta da testemunha da 1ª Ré, Eng.° DDD) e que inexistem novos projectos para a zona em causa (cfr. fundamentação da resposta aos quesitos a resposta da testemunha da 1.ª Ré, Eng.°BBB. Motivo pelo qual não se pode estabelecer, para efeitos do gozo do direito de propriedade dos ora Recorridos, que as árvores que aí existem ou que venham a existir são mais afectadas pelo movimento das pás do aerogerador do que pelo vento existente na zona, como aliás referiu a testemunha dos próprios ora Recorridos Senhor CCC e as testemunhas das 1ª e 2ª Rés, Eng. DDD e Eng. EEE (cfr. fundamentação da resposta aos quesitos, nas respectivas respostas).

42.ª - A alegação do impedimento dos Recorridos cederem o imóvel para que nele se possa instalar um parque eólico é ainda destituída de fundamento porque existem uma série de factores administrativos e legais que não a permitem enquadrar validamente.

43.ª - A capacidade de ligação à rede na zona de rede onde está implantado o aerogerador está esgotada, não existindo capacidade de rede disponível para absorver a energia eléctrica gerada por novos parques eólicos a instalar nessa zona de rede, pelo que, pelo menos até 2013, mais nenhum parque eólico (cfr. fundamentação da resposta aos quesitos) poderá ser licenciado para essa zona.

44.ª - Não existe um qualquer interesse sério e concreto dos Recorridos não só porque o mesmo não possui sequer condições legais para existir, mas também porque caberia sempre aos Recorridos demonstrar que o seu imóvel revela (apesar da distância de 250 metros que tem de existir, por imperativo técnico) uma aptidão para a instalação de um parque eólico, e que a zona onde não poderão ser instalados aerogeradores constitui localização ideal ou preferencial para a montagem e funcionamento de um dispositivo daquela qualidade, o que também não foi feito.

45.ª - Face à falta de prova, tem de se concluir que, se não existe interesse na utilização económica desse espaço, então, é manifestamente infundada a invocação de que a utilização, pela Recorrida e Ré AAA, consubstancia uma violação do seu direito de propriedade, entendido no sentido de direito à extensão vertical da propriedade.

46.ª - A admitir-se que o direito de propriedade dos Recorridos se estende ao espaço aéreo sobre o seu terreno onde circulam esporadicamente as pás do aerogerador, exercício de tal direito de propriedade que os ora Recorridos alegaram será subsumível na categoria de exercício inútil danoso: é exercido em claro desequilíbrio, sem que apresentem qualquer interesse legítimo; impede uma actividade económica relevante traduzida nomeadamente na remuneração pela electricidade produzida, a qual, apurada nos termos dos autos, se cifra em Euros 443.650,00 (quatrocentos e quarenta e três mil, seiscentos e cinquenta euros) anuais (cf. resposta ao quesito 21.°), traduzindo-se a sua atitude na utilização de um alegado direito à extensão da propriedade num sentido axiologicamente contrário à finalidade com que este é atribuído.

47.ª - Considerando a figura do abuso do direito (e do respectivo desequilíbrio no exercício dos direitos), anteriormente explanada, facilmente se depreende que os ora Recorridos, ao pretenderem obter uma decisão que declare o seu direito de propriedade com a extensão por estes preconizada estão a agir em abuso do direito que invocam, porquanto as utilidades que retiram da cessação da actividade do aerogerador seriam, ainda assim, por referência às utilidades retiradas pela ora Recorrente e 2.ª ré AAA, desproporcionadas, tendo em conta os prejuízos causados.

48.ª - Mesmo que se argumente que não há que discutir a função social e económica dos direitos ou outras posições jurídicas, mas antes que apurar, face a cada situação, até onde vai o espaço de liberdade concedido pela ordem jurídica, utilizando, para tanto as dimensões da interpretação, a solução defendida pela aqui Recorrente não poderia deixar de ser a mesma anteriormente defendida.

49.ª - A CRP determina, na alínea b) do número 1 do artigo 84.° que pertencem ao domínio público as camadas aéreas superiores ao território acima do limite reconhecido ao proprietário ou ao superficiário.

50.ª - Do vertido no artigo 1344.° do CC resulta que a propriedade dos imóveis abrange o espaço aéreo correspondente à superfície, bem como o subsolo, com tudo o que neles se contém e não esteja desintegrado do domínio por lei ou negócio jurídico, sendo, nos termos do número 2 desse preceito, vedado ao proprietário proibir actos de terceiro que, pela altura ou profundidade a que têm lugar, não haja interesse em impedir.

51.ª - Deverá, pois, considerar-se que integra o domínio público o espaço aéreo a partir da altitude em que o proprietário já não possui interesse em impedir quaisquer actos de terceiros.

52.ª - Ora, não dispondo de quaisquer elementos carreados para o processo e que possam nesse sentido corroborar um qualquer interesse dos Recorridos no imóvel, que não seja o de cultivar para venda eucaliptos, e sem que se possa, analisando os elementos do processo, concluir que os referidos eucaliptos são cultivados na área sobrevoada pelo Aerogerador e que possam atingir a altura de 24 metros na cumeada do terreno em questão, em virtude da altura e dos ventos fortes, poderemos, legitimamente, considerar que as pás do aerogerador estão a circular sobre domínio público e não sobre domínio privado, porquanto inexiste um qualquer interesse dos Recorridos, na utilização concreta daquele espaço aéreo.

53.ª - Importa finalmente sublinhar, com relevância para a definição em concreto dos limites do direito de propriedade dos Recorridos e do domínio público sobre o espaço sobre a parcela sobrevoada pelo aerogerador, que o aerogerador está instalado na aérea da Reserva Ecológica Nacional, sendo esse facto considerado assente no processo, atendendo ao teor do despacho do Senhor Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Economia, datado de 31/12/2003. E ainda que o Despacho Conjunto número 221/2006, publicado no Diário da República, número 40, II Série, de 26 de Fevereiro de 2006, claramente reconhece "o manifesto interesse público do empreendimento, face às vantagens ambientais das energias renováveis".

54.ª - Conclui-se, pois, que as pás do aerogerador em causa estão a sobrevoar domínio público, não violando, por isso, qualquer direito dos Recorridos.

55.ª - Das conclusões quanto ao erro de julgamento em que, no entender da Recorrente, o Acórdão incorre, deve extrair-se uma outra, síntese de todas elas; a de que a o Acórdão recorrido claramente violou os artigos 1305.° e 1344.°, número 2 do CC e o artigo 334.° do CC, pelo que deverá ser revertida a decisão, pois provoca uma clara desproporção com a finalidade económica e social com que o direito de propriedade e o correlativo direito à expansão da mesma foram erigidos pela CRP e pela Lei.

Tendo, por seu turno, a ré AAA, S.A., na sua alegação, formulado também as seguintes e ora reproduzidas conclusões:

         1ª - Vem o presente recurso interposto do douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, o qual julgou parcialmente o recurso de apelação e, em consequência, condenou a ora Recorrente a abster-se, de imediato e totalmente, de colocar em funcionamento o aerogerador número 9 identificado nos autos.

       2ª - Os Recorridos pediam a declaração judicial de que são os donos e legítimos comproprietários do prédio identificado na alínea D) e que fosse a ora Recorrente condenada a reconhecer tal direito e, sobretudo, a abster-se, de imediato e totalmente, de colocar em funcionamento o aerogerador n.° 9, suspendendo definitivamente a actividade do mesmo.

       3ª - A causa de pedir funda-se no facto dos Recorridos serem proprietários de um prédio e de o seu direito de propriedade estar a ser limitado e prejudicado pela exploração de um aerogerador pela Recorrente junto desse mesmo prédio.

       4ª - Como muito bem identificou o Meritíssimo Juiz do Tribunal de Primeira Instância, as questões essenciais a resolver consistiam: primeiro, em saber se o direito de propriedade dos aqui Recorridos estaria a ser violado e, segundo, se estaria a ser violado através da actuação da ora Recorrente e, finalmente, saber se os Recorridos haviam exercido ilegitimamente algum direito.

       5ª - Os Recorridos são proprietários de um terreno de 250.000 m2 sito desde a cumeada da Serra do ........ e pela Encosta do ........ que na matriz se encontra descrito como eucaliptal e terreno rochoso.

       6ª - O aerogerador n° 9 está implantado num prédio vizinho, separado da propriedade dos Recorridos por um caminho com cerca 3,50 metros de largura; sendo que este aerogerador está afastado da berma da estrada 13,60 m.

       7ª - Em funcionamento, o Aerogerador n° 9 gira a 360° sobre o seu eixo, o que significa que na sua posição de translação mais desfavorável, as pás do Aerogerador n° 9 invadem o espaço aéreo da propriedade dos Recorridos em cerca de 28 metros.

       8ª - Invasão esta que se dá, apenas, esporadicamente, e em determinada posição, que não é, contudo, a posição dominante, e a uma altura de 24 metros, altura a que giram, pois, as pás do aerogerador n° 9.

       9ª - Dos factos dados como provados nos presentes autos, resulta que o imóvel identificado em D) é objecto do direito de propriedade dos Recorridos, ao qual se aplicam as normas constantes dos arts. 1302° e seguintes do Código Civil.

       10ª - Os Recorridos, enquanto proprietários, gozam, efectivamente, de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, conforme prescreve a norma constante do art. 1305° do Código Civil, mas pode ler-se neste dispositivo que tais faculdades deverão ser exercidas dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas.

       11ª - A legislação em vigor impõe limitações ao exercício do direito de propriedade, desde logo, atendendo-se ao que dispõe o art. 334° do Código Civil, que define o abuso de direito e tem permitido à jurisprudência harmonizar os poderes dos proprietários com as concepções actuais da propriedade. Efectivamente, pode afirmar-se que os limites ao exercício do direito de propriedade constituem parte integrante do seu conteúdo conceptual.

       12ª - O direito de propriedade dos Recorridos está sujeito às limitações a que se referem a parte final do art. 1305° do Código Civil, restrições legais, sejam elas de interesse público sejam de interesse privado.

       13ª - Há muito que a doutrina e a jurisprudência consideram existir uma relação íntima entre o fundamento do direito real, maxime do direito de propriedade e a sua função social. É neste quadro que surgem aquilo que se poderão denominar de limitações sociais à propriedade.

       14ª - A lei positiva portuguesa consagra em matéria do exercício e tutela dos direitos o princípio do abuso do direito (cfr. o art. 334° do Código Civil), afirmando-se a ilegitimidade do exercício de um direito, quando o seu titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

       15ª - Como todos os direitos, também o direito de propriedade não poderá ser exercido de forma abusiva, impondo a norma uma consideração funcional ou finalística do direito de propriedade. O seu exercício estará limitado pelo seu fim social ou económico, traduzindo verdadeiramente o art. 334° do Código Civil o princípio da função social dos direitos e, em especial, do direito de propriedade.

       16ª - No caso concreto em apreço os Recorridos não podem exercer o seu direito de propriedade atentando apenas nas suas conveniências particulares, contrariando interesses sociais relevantes, atenta a reduzida utilidade económica que retiram da sua propriedade e, em particular, de um espaço aéreo a 24 metros de altitude, com uma dimensão de expressão reduzida de 28 metros, quando comparados com a dimensão global da propriedade dos Recorrentes de 250.000 m que se estendem da zona cumeira, onde se encontra o aerogerador n° 9, e por toda a vertente.

       17ª - A sobrepassagem ocasional das pás do aerogerador n° 9 pelo espaço aéreo da propriedade dos Recorrentes não tem qualquer representação em termos de privação normal de uso da dita propriedade.

       18ª - Os factos dados como provados nos autos impunham a aplicação da norma constante do artigo 1344° do Código Civil, em especial a constante no seu número 2, a qual dispõe que: «2.º O proprietário não pode, todavia, proibir os actos de terceiro que, pela altura ou profundidade a que têm lugar, não haja interesse em impedir».

       19ª - O Acórdão objecto do presente recurso, além de violar o disposto no art. 334° do Código Civil, viola a norma vertida no número 2 do artigo 1344° deste diploma legal.

       20ª - Os Recorridos não são titulares da qualquer interesse legítimo e concreto em impedir a exploração e a manutenção em funcionamento do aerogerador n° 9, de facto, e conforme já mencionado, a existir, o único interesse invocado pelos Recorridos reconduz-se a um mero interesse abstracto de natureza egoística, pretendem apenas fazer valer e ver judicialmente reconhecido o seu direito de propriedade de forma absoluta, independentemente da relevância económica da actividade de Recorrente, isto é, a produção de energia eléctrica renovável, e do justo equilíbrio que se impõe atentos os interesses em causa.

       21ª - A implantação do aerogerador n.° 9, no local onde se encontra, tem uma finalidade económica específica, trata-se de um meio de produção de energia eléctrica através de recursos renováveis.

       22ª - Aos Recorridos não é possível ceder o uso da sua propriedade a um outro promotor de parques eólicos, e tal não resulta do facto de ali estar colocado o aerogerador n.° 9, mas sim de legalmente estar tal possibilidade esgotada, a lei não permite a implantação de mais aerogeradores no local em causa, e isto não é um facto imputável à ora Recorrente, mas sim a critérios que o legislador enumerou para o licenciamento da montagem de parques eólicos.

       23ª - Ao Parque Eólico do Alto do Monção, no qual se insere o aerogerador n° 9 em causa nos presentes autos, foi reconhecido interesse público, não sendo previsível que venha a ser permitida a construção de um outro parque eólico naquela zona.

       24ª - Os Recorridos não concretizaram qualquer tipo de prejuízo causado pela sobrepassagem ocasional das pás do aerogerador n.° 9 pelo espaço aéreo do imóvel da sua propriedade.

       25ª - Os Recorridos não alegaram nem tão pouco demonstraram quaisquer danos concretos e quantificáveis, o prejuízo alegado pelos Recorrentes não é mais do que um prejuízo eventual e de verificação incerta, reconduzindo-se, neste ponto, a uma hipótese infundada e a mera especulação. Os Recorrentes reduzem o seu pedido a uma expressão do princípio da propriedade absoluta o qual, como se afirmou, se encontra há muito afastado da ordem jurídica portuguesa.

       26ª - Dos autos não resulta, efectivamente, quais os prejuízos concretamente sofridos pelos Recorridos, em termos tais que justificassem a desactivação do aerogerador n.º 9, sendo a pretensão dos Recorridos um exercício manifestamente abusivo do seu direito de propriedade.

       27ª - Os factos dados como provados impunham a aplicação da proibição contida na norma constante do número 2 do artigo 1344° do Código Civil.

       28ª - Bem esteve, pois, o Tribunal de Primeira Instância ao entender que o direito de propriedade dos Recorridos não se encontra a ser violado pela Recorrente, fundamentando tal posição na conjugação das normas constantes dos art. 62° da Constituição da República Portuguesa e arts. 334°, 1305° e 1344°, nos 1 e 2, todos do Código Civil.

       29ª - Da conjugação destas normas, outra conclusão se não poderá retirar senão a de que o direito de propriedade dos Recorridos se encontra limitado no seu exercício e que estes, enquanto proprietários, gozam de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, mas tais faculdades deverão ser exercidas dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas.

       30ª - O Acórdão objecto do presente recurso pressupõe a existência de um interesse atendível dos Recorridos em impedir a sobrepassagem esporádica das pás do aerogerador n.° 9 em 28 metros da sua propriedade de 250.000 m2, interesse esse cuja existência se fundamentaria, em primeiro lugar, no facto de estarem impedidos de, naqueles 28 metros, plantarem quaisquer árvores cujo porte pudesse eventualmente alcançar os 24 metros de altura, não obstante não estar provado nos autos que o ar resultante da movimentação das pás do aerogerador afecte o crescimento das árvores que se encontram plantadas no local ou das que os Recorridos aí venham a plantar.

       31ª - Assim, os Recorridos não têm qualquer interesse em impedir o sobrevoo das pás pois que inexiste qualquer dano quantificável ou prejuízo efectivamente por aqueles sofridos.

       32ª - Caso fosse, por hipótese, prejudicado o crescimento de algumas árvores, seria impossível de apurar quantas árvores seriam afectadas, qual o valor de cada uma delas ou mesmo qual seria o valor dos 28 metros de terreno equivalente à área de sobrepassagem; acresce que, de nenhum dos factos se poderá retirar a conclusão que naquele local as árvores atingem ou podem atingir os 24 metros de altura, resultando aliás dos autos exactamente o contrário, atento o local, a altitude e demais condições que já acima se mencionaram.

       33ª - Por outro lado, socorre-se o Acórdão objecto do presente recurso numa alegada sensação de desconforto, quiçá de insegurança, que será tanto maior quanto maior for a velocidade a que as pás do aerogerador estiverem a circular. E que tal desconforto e segurança acabam por condicionar a circulação de pessoas nessa parte do imóvel. Tal conclusão carece, pois, de qualquer fundamento, não só na factualidade dada como assente, mas também qualquer fundamento normativo. Nada nos autos permite, pois, retirar esta conclusão, o Tribunal da Relação pronuncia-se, pois, sobre factos que não foram alegados ou demonstrados pelos Recorridos.

       34ª - A decisão objecto do presente recurso desconsidera a função económica da propriedade em causa, por um lado, e da actividade do aerogerador número 9, por outro.

       35ª - Os Recorridos nada alegaram ou demonstraram quanto ao valor do terreno em causa, das árvores que nos 28 metros se encontram plantadas ou mesmo do quantum indemnizatório que reputariam como adequado. Já quanto à utilidade económica do aerogerador número 9 é facto assente nos autos que este produz anualmente energia eléctrica renovável remunerada cujo valor ascende a € 443.650,00.

       36ª - Claros são, pois, os interesses de cada uma das partes em confronto, sendo que o Acórdão sob recurso é omisso quanto às funções e utilidades económicas concretas do prédio da propriedade dos Recorridos, erradamente concluindo pela existência de um interesse atendível dos Recorridos em proibir a actividade do aerogerador número 9.

       37ª - Acresce que a execução da decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Coimbra trará consequências absolutamente desproporcionadas para cada uma das partes atentos os interesses em causa.

       38ª - A Recorrente ver-se-ia forçada a imobilizar por completo um aerogerador instalado que produz anualmente electricidade renovável remunerada no valor de € 443.650,00, em virtude das suas pás, esporadicamente, invadirem, a 24 metros de altura, pelo menos 28 metros do espaço aéreo da propriedade rústica dos Recorridos, sita na cumeada e encosta da Serra do ........, composta por terreno rochoso e eucaliptos, sendo que tal sobrevoo, para além de em nada influenciar o crescimento das árvores que, em concreto, existem no local, ou daquelas que os Recorridos aí pretendam plantar, nenhum prejuízo efectivo traz aos Recorridos.

       39ª - A Recorrente está legalmente impedida de colocar o aerogerador em causa num outro local, e mesmo que tal fosse possível, ainda assim, o custo de tal operação ascenderia a cerca de € 700.000,00, o que seria claramente desproporcional face ao interesse de que são titulares os Recorridos.

Os recorridos contra-alegaram, pugnando pela manutenção do decidido.

Como questão prévia suscitaram a ilegitimidade da ré ZZ para interpor recurso, uma vez que não ficou vencida no acórdão proferido, que apenas condenou a ré AAA a não colocar em funcionamento o areogerador n.º 9.

A ré ZZ veio ainda juntar aos autos um parecer (fls. 963 a 1013).

Notificados da junção do parecer os recorridos: (i) pugnaram pela sua inadmissibilidade, considerando que o recurso do seu apresentante também não deve ser admitido (por ilegitimidade, como defenderam nas suas contra-alegações); (ii) sustentaram a sua intempestividade por tal parecer apenas ser admissível com a junção das alegações e violar o princípio da igualdade e (iii) pronunciaram-se quanto ao seu teor.

Notificada do invocado pelos recorrentes aquando a junção do parecer, a apresentante ZZ pronunciou-se no sentido do indeferimento de todas as questões suscitadas pelos recorridos, como melhor conta de fls. 1047 e segs..

Corridos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar e decidir.



               

                Vem dado como PROVADO:

1. No dia 24 de Março de 1994, no Cartório Notarial de Águeda foi celebrada escritura de habilitação de herdeiros por óbito de FFF, natural da freguesia de Pardonelo, falecida na freguesia de Agadão, no dia 23 de Março de 1993, tendo sido declarado que os únicos herdeiros de FFF são: seu marido, AA, e os filhos FF, casado com GG, BB, casado com CC, DD, casado com EE e HH, casado com GGG(escritura de fls. 9 a 13 dos autos aqui tida por integralmente reproduzida) – A) dos factos assentes;

2. No dia 6 de Fevereiro de 2007, no Cartório Notarial deHHH foi celebrada escritura de habilitação de herdeiros por óbito de III, natural da freguesia de Agadão, falecido no dia 12 de Março de 2006, na freguesia de Castanheira do Vouga, concelho de Águeda, tendo sido declarado que os únicos herdeiros de III são: a sua mulher KK, e os filhos LL casado com MM, NN casado com OO e PP, casada com QQ (escritura de fls. 14 a 17 dos autos aqui tida por integralmente reproduzida) – B) dos factos assentes;

3. No dia 8 de Maio de 2002, no Cartório Notarial de Águeda, foi celebrada escritura de habilitação de herdeiros por óbito de VV, natural de Águeda, falecido no dia 20 de Março de 2002, na freguesia de Borralha, tendo sido declarado que os únicos herdeiros de VV são: a sua mulher RR, uma filha SS, casada com TT; uma neta UU filha do filho pré- falecido VV (escritura de fls. 18 a 20 dos autos aqui tida por integralmente reproduzida) – C) dos factos assentes;

4. O prédio rústico, sito na Encosta do ........ com a área de 250000 m2, inscrito na matriz sob o artigo 2400, encontra-se inscrito na Conservatória do Registo Predial de Tondela sob a inscrição 000000000000, descrito como eucaliptal e terreno rochoso, com as seguintes inscrições:

- Ap.00 de 1996/01/22 sujeito activo: aquisição por compra na proporção de 1/7 a favor de HH casado com GGG; na proporção de 1/7 a favor de II casado com JJ, RR casada com VV, KK casada com III; na proporção de 1/7 a favor de VV casado com XX, na proporção de 1/7 a favor de VV casado com RR, na proporção de 2/7 a favor de AA, na proporção de 1/7 a favor de III casado com KK, XX casada com VV, JJ casada com II e sujeito passivo JJJ;

- AP.9 de 2008/04/16 sucessão hereditária, quota adquirida 1/7 sujeitos activos KK, NN casado com OO, PP casada com QQ, LL casado com MM; sujeito passivo III casado com KK aquisição em comum e sem determinação de parte ou direito sujeito activo LL;

- Ap.15 de 19/6/2008 – aquisição sucessão hereditária, quota adquirida 1/7 sujeito activo RR, UU, SS casada com TT, sujeito passivo VV casado com RR, aquisição em comum sem determinação de parte ou direito – E) dos factos assentes[1];

5. A ré ZZ tem, entre outros, o objecto social de produção, distribuição, venda de energia eléctrica com recurso a fontes renováveis, como a energia eólica, através da construção e exploração de parques eólicos e de linhas de transporte de energia eléctrica – F) dos factos assentes;

6. No âmbito da sua actividade, a ré ZZ procedeu à construção, instalação e montagem de um parque eólico, na cumeada da serra do ........, abrangendo as freguesias de Pala e Sobral, no concelho de Mortágua e Mosteiro e Barreiro de Besteiros, no concelho de Tondela – G) dos factos assentes;

7. Tal parque é designado por parque Eólico de Alto Monção e tem como objectivo final a produção de energia através da acção do vento – H) dos factos assentes;

8. A ré ZZ foi autorizada a estabelecer o referido Parque Eólico por despacho de 31 de Dezembro de 2003 do secretário de estado adjunto do Ministro da Economia tendo sido concedido o interesse público da construção do parque pelo Despacho Conjunto n.º 221/2006 – I) dos factos assentes;

9. A ré ZZ procedeu à instalação e montagem dos 16 aerogeradores autorizados, quatro dos quais no concelho de Tondela, com uma potência de 2Mw, tendo iniciado em princípios do ano de 2006 e concluído em Julho do mesmo ano – K) dos factos assentes;

10. Cada torre dos aerogeradores tem uma altura de 67 metros, sendo que as pás têm 43 metros de comprimento e o roter (diâmetro de uma á outra) 87 metros – L) dos factos assentes;

11. Foram erigidos ao longo da estrada que liga Seixo do Boi e Malha Pão, estrada esta que é o prolongamento da EN 000000 Boialvo e encontram-se implantados no lado direito da mesma, atento o seu sentido ascendente, seguindo ao longo da berma direita da estrada – M) dos factos assentes;

12. O prédio referido em 4. localiza-se no lado esquerdo da estrada acompanhando-a – N) dos factos assentes;

13. A ré ZZ transferiu para a ré AAA a titularidade da licença de estabelecimento do referido Parque Eólico de Alto de Monção que lhe tinha sido concedida – O) dos factos assentes;

14. Essa transferência foi autorizada por despacho de 12 de Junho de 2007 pela Direcção Geral de Geologia e Energia – P) dos factos assentes;

15. Em 18 de Julho de 2007 foi concedida á ré AAA a licença de exploração do dito parque – Q) dos factos assentes;

16. A ré AAA é uma sociedade anónima detida em 100% pela Iberdrola – R) dos factos assentes;

17. O prédio referido em 4. confronta do Norte com KKK e C........., de Sul com limite de Mortágua, do nascente com G.....do VV.......... e do Poente com LLL – resposta ao quesito 1.º da base instrutória;

18. Os autores, por si e antepossuidores, no prédio referido em 4. têm plantado eucaliptos, cortando-os e vendendo a respectiva madeira, o que fazem há mais de 30 anos, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja, sem interrupções e na intenção e com a convicção de que o mesmo lhes pertence – resposta aos quesitos 1.º a 7.º da base instrutória;

19. O prédio referido em 4. é paralelo aos aerogeradores referidos em 9. e os mesmos situam-se em frente àquele prédio e a outro prédio, sito na freguesia do Agadão, concelho de Águeda, inscrito sob o artigo 4792 – resposta aos quesitos 8.º e 9.º da base instrutória;

20. As pás do aerogerador n.º 9 contado no sentido descendente e em movimentação invadem o espaço aéreo do prédio mencionado em 4. numa distância superior a 20 metros, sendo que na sua posição de translação mais desfavorável, as pás do aerogerador n.º 9 invadem o espaço aéreo do prédio em causa numa distância de 28 metros – resposta ao quesito 10.º da base instrutória;

21. A torre do aerogerador n.º 9 está afastada 13,60 metros da berma direita do caminho, atento o sentido descendente – resposta ao quesito 11.º da base instrutória;

22. O caminho naquele local tem 3,50 metros de largura – resposta ao quesito 12.º da base instrutória;

23. Os autores não autorizaram à ré ZZ, nem qualquer outra sociedade congénere, o sobrevoo das pás do aerogerador pelo espaço aéreo do prédio referido em 4. – resposta ao quesito 13.º da base instrutória;

24. A separação entre aerogeradores deve ser de cerca de 3 a 5 vezes superior ao diâmetro nas pás, medido no sentido perpendicular aos ventos dominantes, para que as máquinas não interfiram umas nas outras – resposta aos quesitos 16.º e 17.º da base instrutória;

25. Em virtude do local onde se encontra o aerogerador n.º 9, os autores, pretendendo ceder o uso do seu prédio, com ou sem retribuição, a uma sociedade que se dedique à produção e venda de energia eólica, para instalação de outro parque eólico, estão impossibilitados de colocar um outro aerogerador a uma distância daquele inferior à mencionada em 24. – resposta ao quesito 19.º da base instrutória[2];

26. A estrema nascente do prédio referido em 4., dista das pás do aerogerador n.º 9, na sua posição mais desfavorável, cerca de 43,60 metros – resposta ao quesito 18.º da base instrutória;

27. As pás do aerogerador n.º 9 giram a cerca de 24 metros de altura – Resposta ao quesito 20.º da base instrutória;

28. O aerogerador n.º 9 produz electricidade remunerada a 443,650,00 euros por ano – resposta ao quesito 21.º da base instrutória;

29. O aerogerador n.º 9 gira a 360º sobre um eixo – resposta ao quesito 22.º da base instrutória.

                São, como é bem sabido, as conclusões da alegação dos recorrentes que delimitam o objecto do recurso – arts. 684.º, nº 3 e 690.º, n.os 1 e 4 do CPC[3], bem como jurisprudência firme deste Supremo Tribunal.

         Sendo, pois, as questões atrás enunciadas e que pelos recorrentes nos são colocadas que urge apreciar e decidir, segundo a ordem imposta pela sua procedência lógica.

              As quais assim se podem resumir:

              1.ª – A admissão do recurso da ré ZZ- , S.A..: a legitimidade para recorrer;

              2.ª – A admissão do parecer apresentado pela ré ZZ- , S.A: a legitimidade para recorrer; a tempestividade da junção; a violação do princípio da igualdade;

              3.ª – A admissão da resposta, pelos recorridos, ao parecer e a tempestividade deste;

              4.ª – A da nulidade do acórdão recorrido – art. 668.º, n.º 1, als. b), c) e d) – por falta de fundamentação; excesso de pronúncia e oposição entre os fundamentos e a decisão;

              5.ª – A existência, ou não, de violação do direito de propriedade dos recorridos e a cessação de tal violação: a paragem do aerogerador n.º 9.

Vejamos:

Analisando-se, antes de mais, a primeira questão (prévia) de inadmissibilidade do recurso da ré ZZ, S.A., por alegada ilegitimidade.

Os autores, recorridos no âmbito do recurso interposto pela ré AAA, S.A. invocaram, como questão prévia, a ilegitimidade da ré ZZ, S.A. para interpor recurso, já que esta, dizem, não ficou vencida na decisão recorrida.

A legitimidade do recorrente – como referido no acórdão deste Supremo Tribunal em acórdão por nós relatado[4]– é um dos pressupostos processuais específicos do recurso, sendo certo que, quer o despacho do relator, no Tribunal recorrido, quer o do relator, neste STJ, sobre a admissibilidade do recurso interposto, são sempre provisórios, bem podendo ser modificados pela conferência.

O art. 680.º, n.º 1 do CPC determina, a respeito, que “os recursos, exceptuada a oposição de terceiro, só podem ser interpostos por quem, sendo parte principal na causa, tenha ficado vencido.”

Equivalendo a palavra “vencido” a “prejudicado”, não pode considerar-se tal requisito – o do vencimento - apenas como uma exigência lógica do instituto, tendo antes o seu fundamento, principalmente, numa razão prática: a de se considerar como parte vencida, não aquela a quem a decisão causa prejuízo, mas como sendo a parte cujo pedido, pretensão, ou requerimento, seja desatendido.

Havendo que atender à decisão para se concluir se a parte é ou não vencida e não aos respectivos fundamentos.

Sendo irrelevante a razão da derrota ou da vitória[5].

Vindo a doutrina portuguesa maioritariamente a entender dever a propósito ser adoptado um critério material, o qual implica ter legitimidade para recorrer a parte para a qual a decisão for desfavorável (ou não for a mais favorável que podia ser), qualquer que tenha sido o seu comportamento na instância recorrida e independentemente dos pedidos por ela formulados no tribunal a quo[6].

Ora, a recorrente – ré na acção –, foi, na 1ª instância, absolvida de todos os pedidos contra si formulados.

Tendo os autores recorrido para o Tribunal da Relação, decidiu-se no acórdão recorrido, além do mais, revogar parcialmente tal decisão, julgando procedente o pedido de reconhecimento de que os autores são donos e legítimos comproprietários do prédios em discussão nos autos, condenando-se, ainda, a mesma ré em custas.

Assim, sem necessidade de mais, resta concluir ter a dita ré legitimidade para recorrer de tal decisão, já que a mesma, no confronto com a de 1ª instância, lhe é desfavorável.

Se o erro de julgamento na delimitação do direito de propriedade ou do domínio público, colidem – ou não, conforme invocado nas alegações – com o reconhecimento do direito de compropriedade dos autores cujo conhecimento a recorrente pode, ou não, tacitamente ter delimitado nas suas alegações de recurso, é questão que contende com a apreciação do mérito da decisão e já não com o pressuposto processual da legitimidade para recorrer suscitado pelos autores/recorridos como questão prévia.

Passemos à segunda questão prévia suscitada pelos recorridos: a (in) admissibilidade da junção dos pareceres pela recorrida ZZ e da pronúncia pelos recorridos.

Sustentam os recorridos que a junção de parecer deve ocorrer com a junção das alegações e que a sua junção, após tal momento, viola o princípio da igualdade.

Os recorrentes, por seu turno, vieram invocar a inadmissibilidade da resposta dos recorridos.

Cumpre apreciar.

Os pareceres são documentos por meio dos quais o jurista fornece informações técnicas acerca de determinado tema, objecto da consulta.

Em primeira instância podem ser oferecidos em qualquer estado do processo – art. 525.º do CPC[7] – e em recurso podem ser juntos pelas partes até se iniciarem os vistos aos juízes, nos termos do art. 706.º, n.º 2, do CPC (aplicável à revista por força do artigo 726.º).

Em abono da tese defendida pelos recorridos, há «quem preconize, como Amâncio Ferreira, Manual de Recursos em Processo Civil, Coimbra, Almedina, edição de 2006, pág. 8, a eliminação da faculdade de juntar pareceres nos tribunais superiores[8].

Do regime referenciado, resulta que se na redacção do CPC, introduzida pelo DL n.º 303/2007, de 24-08, não é admissível a junção de pareceres na fase do recurso de revista[9], o sentido do art. 706.º, n.º 2, do CPC (ex vi do art. 726.º), na redacção anterior àquele diploma – conforme veio sendo defendido na jurisprudência deste Tribunal[10] –, é que a prolação do despacho de vista aos juízes adjuntos seja o “terminus ad quem” da junção de pareceres, uma vez que ela marca o início do julgamento, independentemente de ter sido ou não aberta conclusão aos adjuntos para o efeito. 

No caso dos autos, o parecer foi apresentado em 20-03-2012 e o despacho de vista aos juízes adjuntos foi proferido a 24-05-2012.

Concluindo-se, assim, pela improcedência da questão prévia da inadmissibilidade, por intempestividade, da junção do parecer pela recorrente ZZ.

Sustentaram ainda os recorridos que a junção do parecer, no momento em que o foi, viola o princípio da igualdade.

Sob a epígrafe de princípio da igualdade, dispõe o art. 13.º da Constituição da República Portuguesa que «ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social».

O princípio da igualdade, numa das suas dimensões, traduz-se na proibição de estabelecer diferenciações de tratamento irrazoáveis, porque carecidas de fundamento ou justificação material bastante[11].

Dito de outro modo, como se refere no Acórdão do mesmo tribunal de 10/12/1997, “o princípio da igualdade proíbe diferenciações destituídas de fundamentação racional, à luz dos critérios axiológicos constitucionais. Porém, não resulta do princípio da igualdade qualquer imposição genérica de que situações diversas deverão ter tratamento diferente. Apenas decorre de tal princípio que será exigível um tratamento diferenciado de duas categorias de situações quando existir justificação para tal num plano de justiça material. Só nesse caso é que a omissão de tal diferenciação consubstanciará uma violação do princípio da igualdade”[12] (sublinhado nosso).

No mesmo sentido, consigna-se no Ac. (TC) 491/02, que “O princípio da igualdade não consiste, como tem sido sucessivamente reiterado pela jurisprudência do Tribunal, em proibir ao legislador que faça distinções, mas em proibir diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, sem uma justificação razoável, segundo critérios objectivos e relevantes (Acórdão nº 44/84, in ATC, 3º vol., p. 133; Acórdão n.º 39/88, in ATC, 11º vol., pp. 233 e ss. Acórdão n.º 325/92, in ATC, 23º, pp. 369 e ss. Acórdão n.º 210/93, in ATC, 24º vol., pp. 549 e ss. Acórdão n.º 786/96, ATC, 34º vol., p. 41; Acórdão n.º 302/97, in ATC, 36º vol., pp. 793 e ss. Acórdão n.º 12/99, in ATC, 42º vol., p. 99; Acórdão n.º 683/99, in DR, II Série, de 3 de Fevereiro de 2000). Deste modo, ao impor ao legislador que trate igualmente aquilo que é igual e desigualmente o que é desigual, esse princípio pressupõe uma comparação de situações, a realizar a partir de determinado ponto de vista. A perspectiva a partir da qual se vai proceder à comparação de situações e, consequentemente, a justificação do tratamento desigual, não podem ser arbitrárias. Tais perspectiva e justificação têm de apresentar-se como razoáveis e, nessa medida, constitucionalmente adequadas” [13].

Os recorridos, em face da apresentação do parecer pela recorrente, vieram apresentar a sua pronúncia quanto ao teor do mesmo, pelo que excluídas ficam quaisquer diferenciações de tratamento irrazoáveis entre recorrentes e recorridos.

Restando concluir pela admissão, em consequência, nos termos do art. 700.º, n.º 1 al. e) do CPC, da junção do parecer e da correspectiva resposta.

Inexistindo outras excepções ou questões prévias que cumpra conhecer, comecemos pela análise dos vícios apontados ao acórdão recorrido, designadamente, e em primeiro lugar, a sua nulidade por: (i) excesso de pronúncia, (ii) falta de fundamentação e (ii) oposição entre os fundamentos e a decisão.

Sustenta a recorrente ZZ, S.A. que, ao alterar a resposta à matéria de facto provada o tribunal alterou a factualidade invocada, fazendo uso de factos que não se provaram e que ao mandar parar as pás do aerogerador n.º 9 vai para além dos factos apurados, os quais não permitem concluir pela ocorrência de um concreto interesse em tal imobilização, em afronta ao preceituado no art. 668º, n.º 1, al. d), do CPC (por excesso de pronúncia).

Nesta decisão – de imobilização do aludido aerogerador – se violando, diz, também, o princípio o dever de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.

Prescreve-se na al. d) do n.º 1 do citado normativo – art. 668.º do CPC – que a decisão[14] é nula, além do mais, quando conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (excesso de pronúncia).

A nulidade aí constante, aplicável aos acórdãos da Relação por remissão do art. 716.º, n.º 1, é a sanção para a violação, pelo julgador, da norma contida no segundo segmento do n.º 2 do art. 660.º, todos do CPC, a proibir expressamente a apreciação de questões que as partes não tenham suscitado, com ressalva das de conhecimento oficioso.

A expressão legal “questões” abrange o pedido, a causa de pedir e as excepções da exclusiva disponibilidade das partes, de tal modo que, para tomar posição sobre certa pretensão, é necessário que concorra a causa de pedir invocada pela parte, vale dizer, o facto jurídico em que se encontra baseada tal pretensão[15].

Sendo certo que, segundo o princípio dispositivo, ainda hoje básico na nossa processualística civil, é às partes que - incumbindo-lhes pedir a resolução do conflito - devem eleger o meio concreto de tutela que pretendem perante a alegada violação do direito, carreando os factos e as provas que reputem adequados[16].

Vedado está, pois, ao julgador, limitado pelos princípios do dispositivo e do pedido, sobrepor-se às pretensões jurisdicionalmente reclamadas pelas partes, nos termos em que a lei lhes impõe a identificação e delimitação das questões a apreciar, alegando os factos que integram a causa de pedir e as excepções (arts. 3.º e 264.º do CPC).

Não estando o Juiz, como é bem sabido – embora, em princípio, só se possa servir dos factos articulados pelas partes–, sujeito às alegações destas no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 664.º do CPC).

Não se devendo confundir a ora arguida nulidade com o eventual erro de julgamento, por errada aplicação do Direito aos factos apurados.

No que em concreto importa a este erro de julgamento – ou melhor, à reapreciação dos factos –, permite-se à Relação, mormente quando tenha havido gravação da prova em audiência – como houve –, no regime em vigor aplicável[17], a alteração da decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto.

Designadamente quando a mesma tenha sido impugnada nos termos do art. 690.º-A do CPC – cf. art. 712.º, n.º 1, al. a).

Nesta tarefa, o julgador da matéria de facto «aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto» (art. 655.º/1), impondo-se-lhe o dever de motivação (fundamentação da convicção do julgador) enquanto garantia fundamental do “segundo grau de jurisdição” em matéria de facto.

Com o dever de motivação das decisões – constitucionalmente consagrado no art. 205.º, n.º 1 da CRP e expresso no art. 653.º, n.º 2 do CPC – e assegurada a documentação da prova, criadas ficam as condições para o julgamento eficaz do segundo grau de jurisdição em matéria de facto, pondo termo ao anterior sistema de oralidade plena[18], em substituição por um sistema de oralidade mitigada.

Tal sistema veio a ser reforçado pela reforma de 1995/96, operada pelos DL n.º 329-A/95, de 12-12 e DL n.º 180/96, de 25-09, e ainda pelo DL n.º 183/2000, de 10-10.

A par dos poderes de controlo da matéria de facto em conformidade com o âmbito de impugnação a que alude o art. 690.º-A do CPC (e do correspectivo dever de fundamentação), conferiram-se ainda à Relação poderes de controlo oficioso da validade da decisão de facto.

Neste conspecto, compete-lhe mesmo sanar, havendo gravação dos depoimentos, eventuais contradições, sem necessidade de usar a faculdade cassatória a que alude o art. 712.º, n.º 4, do CPC. No entanto, e perante a impugnação da matéria de facto restrita a pontos determinados da base instrutória, não pode estender a reapreciação do decidido a outros pontos, em jeito de uma sindicabilidade oficiosa sistemática e global da matéria de facto decidida na 1.ª instância, sob pena de incorrer em excesso de pronúncia[19].

Percorrido este itinerário, e fora dos casos a que alude o art. 722.º, n.º 2 do CPC – em que, em bom rigor, o que o Supremo faz é sindicar a observância de regras de direito probatório material –, a decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada (art. 729º, n.º 2), podendo apenas o Supremo ordenar a baixa do processo ao tribunal recorrido quando entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, de forma a constituir base suficiente para a decisão de direito, ou que ocorrem contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizam a decisão jurídica do litígio (art. 729.º, n.º 3).

Expostos que ficam estes princípios, respeitantes à que julgamos boa interpretação das disposições legais que regem a matéria em apreço, crendo-se mais não ser necessário para a compreensão da nossa decisão, vejamos, finalmente, o que dizer sobre a decisão recorrida.

Na sua apelação os ora recorridos pediram a alteração da matéria de facto, mormente da resposta ao artigo 19.º da base instrutória sustentando que o mesmo deveria ser respondido como provado, ou, pelo menos, ter uma reposta explicativa no sentido da impossibilidade de construir no seu prédio um parque eólico.

O teor daquele artigo consistia em saber se a distância do aerogerador (n.º 9) à estrema do prédio dos réus «impossibilita os autores de cederem o uso do seu prédio, com ou sem retribuição, a uma sociedade que se dedique à produção e venda de energia eólica, para instalação de outro parque eólico».

Tendo a primeira instância considerado não provada tal factualidade com o esclarecimento de que «não poderão ser colocados aerogeradores a uma distância mínima de 250 metros do aerogerador n.º 9», no acórdão recorrido os senhores Juízes Desembargadores, em face às razões que nele e a propósito melhor explanaram, concluíram pela alteração da resposta a tal artigo, considerando provado que «Em virtude do local onde se encontra o aerogerador n.º 9, os autores, pretendendo ceder o uso do seu prédio, com ou sem retribuição, a uma sociedade que se dedique à produção e venda de energia eólica, para instalação de outro parque eólico, estão impossibilitados de colocar um outro aerogerador a uma distância daquele inferior à mencionada em 24».

Assim tendo procedido, o tribunal ora recorrido alterou o que no seu critério entendeu alterar, explicitando o iter decisório alcançado (com fundamento nos elementos dos autos), não incorreu no vício de excesso de pronúncia, encontrando-se a resposta conferida – e fundamentada – ao artigo 19.º da base instrutória no âmbito da matéria que nele estava vertida.

Conclusão distinta se impondo, contudo, ao invocado a propósito do desconforto assinalado na decisão recorrida quando nela se consigna que «ao andar-se no terreno situado por baixo das pás do aerogerador, que relembra-se que estão a 24 metros do solo, ter-se-á uma sensação de desconforto, quiçá de insegurança, que será tanto maior quanto maior for a velocidade a que aquelas estiverem a circular. Esse desconforto ou insegurança acabam por condicionar a circulação de pessoas nessa parte do imóvel o que, evidentemente, afecta o gozo do mesmo».

Sustentam os ora recorrentes que a Relação não poderia ter considerado tal matéria, ainda que por presunção, desconhecendo-se, desde logo, qual tenha sido a concreta matéria de facto no qual se apoiou para dar como provada tal factualidade, consignada na decisão.

As presunções judiciais são simples meios de prova (arts. 349.º a 351.º do CC), ficando a este Supremo Tribunal vedado censurar a decisão da Relação quando, no que respeita a conclusões ou ilações de factos, tiver infringido norma legal que a respeito vigore.

É jurisprudência pacífica que o uso de presunções judiciais ou naturais – ilações que o julgador tira de um facto conhecido (facto base da presunção) para afirmar um facto desconhecido (facto presumido) –, segundo as máximas da experiência, os juízos correntes de probabilidade, os princípios da lógica e os próprios dados da intuição humana, não pode ser censurado por este Supremo, como Tribunal de revista, cabendo apenas apreciar e sindicar se os métodos e critérios usados se mostram respeitados do ponto estrito da legalidade[20].

Sem se olvidar que, no caso vertente, a Relação consignou tal conclusão, não na alteração da matéria de facto mas no enquadramento jurídico, cumpre dizer, a respeito, que não se trata de meras conclusões ou ilações lógicas retiradas pela Relação da matéria de facto dada como provada, limitando-se a desenvolvê-la.

Não resulta do acórdão recorrido que o Tribunal da Relação se tenha socorrido da via presuntiva, para inferir da matéria de facto levada à base instrutória, para suprir a falta de prova relativamente a factos devidamente discutidos e apreciados em audiência de julgamento: não se vislumbra na decisão recorrida que o Tribunal haja alterado o que, em seu critério, julgou adequado alterar na matéria de facto, por os elementos de prova produzidos nos autos, aliados a presunção judicial também utilizada, assim, e quanto a ela, o imporem.

Pelo que, podendo sindicar-se em sede de Revista tal conclusão, extraída não de factos, mas do próprio enquadramento jurídico, a solução será, a da limitação da actividade do tribunal à factualidade apurada, em conformidade com a invocada pelas partes, em conformidade com o disposto no art. 664.º do CPC, não sendo de concluir que a sensação de desconforto resultante do vento (num prédio rústico, sito na cumeada da serra do ........, onde foi erigido o parque Eólico de Alto Monção) se possa reputar como um facto notório.

Conduzindo, não à nulidade da decisão, mas à desconsideração de tal factualidade na apreciação dos fundamentos (mérito) da decisão.

Em abono da nulidade do acórdão, invocam, ainda, os recorrentes a falta de fundamentação, nos termos do art. 668.º, n.º 1, al. b) do CPC, preceito segundo o qual a sentença[21] é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.

Por não especificar quais as razões por que se impõe a paragem do gerador n.º 9.

A esta decisão (de paragem) imputam ainda a nulidade da decisão por oposição entre os fundamentos e a decisão, já que, provando-se que o gerador é rotativo, rodando sobre um eixo de 3600, não se percebe porque é que tal imobilização é total e imediata.

Assacadas estas nulidades à decisão quanto à (mesma questão da) razão de ser da paragem do aerogerador n.º 9, em discordância do que se decidira em primeira instância, permite-se o seu conhecimento conjunto.

É jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal que só a falta absoluta de fundamentação constitui a nulidade ora em apreço.

Por outro lado, a nulidade do acórdão, por verificação de contradição entre os fundamentos e a decisão (cf. art. 668.º, n.º 1, al. c), do CPC), verifica-se, apenas, quando ocorre um vício real no raciocínio expresso na decisão, consubstanciado na circunstância da fundamentação explicitada na mesma apontar num determinado sentido, e, por seu turno, a decisão que foi proferida seguir caminho oposto, ou, pelo menos, diferente.

Dito de outro modo, quando a fundamentação adoptada conduz logicamente a determinada conclusão e, a final, o juiz extrai outra, oposta ou divergente (de sentido contrário).

Não se confundindo com o erro de julgamento, seja quanto à apreciação dos factos feita pelas instâncias, seja quanto às consequências jurídicas deles extraídas, por inadequada ter sido a sua subsunção à regra ou regras de direito pertinentes à situação concreta a julgar.

Colhidos estes ensinamentos temos que, na decisão recorrida, se consignou, a propósito das invocadas nulidades, que :

«O artigo 1305.º do Código Civil dispõe que "o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas".

Por sua vez, o n.º 1 do artigo 1344.º do mesmo diploma estabelece que "a propriedade dos imóveis abrange o espaço aéreo correspondente à superfície, bem como o subsolo, com tudo o que neles se contém e não esteja desintegrado do domínio por lei ou negócio jurídico", acrescentando o seu n.º 2 que "o proprietário não pode, todavia, proibir os actos de terceiro que, pela altura ou profundidade a que têm lugar, não haja interesse em impedir".

(…)

Sendo assim, somos conduzidos à conclusão de que a invasão do espaço aéreo da propriedade dos autores não lhes é indiferente, tendo eles interesse em a impedir.

A circunstância de, como diz a ré AAA, a invasão do espaço aéreo se dar "apenas esporadicamente"[22] é insuficiente para a legitimar, pois essa penetração, mesmo que ocasional, é quanto basta para limitar, nos termos mencionados, a utilização que os autores podem dar ao seu prédio. E não se vê qualquer abuso por parte destes em quererem preservar a possibilidade de gozarem plenamente desse seu bem. Acresce que a ré AAA nada alegou no sentido de que não havia outro local para colocar o aerogerador n.º 9, nomeadamente que não era possível que ele tivesse ficado 28 m mais afastado do prédio dos autores, de modo a que as suas pás já não invadissem o respectivo espaço aéreo. E não figura nos factos provados que, em virtude das características do local (altitude e ventos), "aí dificilmente um eucalipto ultrapassará os 15 metros de altura", pelo que, contrariamente ao que afirma[23] a ré AAA, nenhuma conclusão se pode extrair dessa sua alegação.

No que toca à utilidade económica que o aerogerador n.º 9 tem, e é pacífico que a tem, pois, se dúvidas houvesse, provou-se que ele produz electricidade remunerada em 443 650,00 € por ano[24], há que dizer que ela não autoriza, per se, que esse aparelho seja colocado de forma a invadir o espaço aéreo de um terreno cujo proprietário que não autorizou essa invasão e que em virtude dela não recebe qualquer contrapartida, até porque, como já se disse, nada figura nos factos provados no sentido de que tal finalidade económica já não se podia obter com o aerogerador afastado mais 28 m do prédio dos autores. O mesmo se diz quanto aos eventuais prejuízos decorrentes da cessação do funcionamento do aerogerador n.º 9 no local onde ele está e quanto ao interesse público inerente à exploração de energia eléctrica.

Convém também não esquecer que não estamos perante uma situação de expropriação ou de servidão.

Nestes termos, regista-se que o funcionamento do aerogerador n.º 9 atinge o direito de propriedade dos autores, pelo que, deixando ele de funcionar, a violação desse direito cessa. Quer isso dizer que para se pôr fim a tal violação basta que cesse esse funcionamento, ficando o aerogerador parado numa posição em que as suas pás não se encontrem no espaço aéreo do prédio dos autores. Para se respeitar o direito de propriedade destes não é necessário que o aerogerador seja retirado para uma distância superior a 250 m da estrema nascente do prédio dos autores».

Tendo o Tribunal recorrido descrito as razões de facto e enquadramento jurídico que considerou acertado para o caso sub iudice , e encontrando-se este em consonância com aquelas (não importando, para o que ora se aprecia, se bem ou mal), tanto basta para, sem mais, concluir pela improcedência das nulidades invocadas.

Ultrapassadas as questões prévias e as nulidades assacadas à decisão, passemos, então, à ultima questão, que é a (questão) central de saber se os autores têm o direito de impedir o funcionamento do aerogerador n.º 9.

Insurgindo-se contra o decidido pela Relação, invocam as recorrentes que a solução aí preconizada (i) envolve uma concepção de uso egoístico do direito de propriedade, sendo que (ii) não se provou que o funcionamento do gerador lhes cause um concreto prejuízo e que (iii) a paragem determinada é manifestamente desproporcionada ao direito dos autores (abuso do direito).

Invocando, ainda, a recorrente ZZ que (iv) as pás circulam sobre o domínio público, e não sobre o domínio privado.

Ora bem:

Os autores intentaram a presente acção pedindo se declare que são os donos e legítimos comproprietários do prédio rústico em discussão nos autos e a condenação das rés a abster-se de colocar em funcionamento o aerogerador n.º 9 ou, em, alternativa, a retirar o dito aerogerador, e respectiva torre, para a distância superior a 250 m da extrema nascente do prédio dos autores.

Ou seja, intentam uma acção ao abrigo do art. 1311.º do CC o qual, sob a epígrafe acção de reivindicação, reza que «o proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence».

A acção de reivindicação, sendo o meio idóneo para defender qualquer direito real de gozo em quaisquer circunstâncias (art.1315.º do CC), compreende dois pedidos distintos:

a) O pedido de reconhecimento de determinado direito e

b) O pedido de entrega da coisa objecto desse direito.

No caso sub judicio a Relação reconheceu o direito de propriedade dos autores sobre o prédio, pelo que tal segmento da decisão, transitada que está em julgado, impõe-se às partes com força de caso julgado.

Reconhecido o direito de propriedade dos autores, o mesmo (direito) não vem, no entanto, definido em tal aresto decisório, assim como o não fez o legislador.

Com efeito, o nosso Código não define a propriedade, referindo-se ao seu normal conteúdo ao estatuir, no art. 1305.º do Código Civil, que "o proprietário goza, de modo pleno e exclusivo, do uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas".

Assinalando dificuldades na conceptualização do direito de propriedade[25], a doutrina define-o como “o direito real que outorga a universalidade dos poderes que à coisa se podem referir” ou “afectação jurídico-privada de uma coisa corpórea, em termos plenos e exclusivos, aos fins de pessoas individualmente consideradas [26].

Ou seja, a doutrina define o direito de propriedade pelas notas que o caracterizam, designadamente pelos poderes que confere ao seu titular, já que “a essência da propriedade reside na sua aptidão para abarcar a generalidade dos poderes que permitam o total aproveitamento da utilidade de uma coisa, o que lhe dá carácter de exclusividade[27].

Como referem J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, “Teoricamente, o âmbito do direito de propriedade abrange pelo menos quatro componentes: (a) a liberdade de adquirir bens; (b) a liberdade de usar e fruir dos bens de que se é proprietário; (c) a liberdade de os transmitir; (d) o direito de não ser privado deles. Talvez se possa acrescentar uma quinta dimensão: o direito de reaver os bens sobre os quais se mantém o direito de propriedade (ex.: cláusula de resgate de propriedade na venda de bens móveis duradouros. Cfr. Directiva 2000/35/CE”)[28].

Quanto ao seu objecto, “o direito de propriedade não se limita ao universo das coisas, não coincidindo com o conceito civilístico tradicional, abrangendo, não apenas a propriedade de coisas (mobiliárias ou imobiliárias), mas também a propriedade científica, literária ou artística (art. 42.º, n.º 2) e outros direitos de valor patrimonial (direitos de autor, de créditos, de partes sociais)”[29], extensão da garantia constitucional – sistematicamente colocada entre os direitos económicos – do direito de propriedade, designadamente à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição (art. 62.º, n.º 1 da CRP).

“ (…) conforme se decidiu no Acórdão n.º 257/92, de 13 de Julho (in Acórdãos do Tribunal Constitucional [ATC], 22º vol., 1992, p. 753), o artigo 62º, n.º 1, da Constituição garante, «tanto o direito de propriedade – a propriedade stricto sensu e qualquer outro direito patrimonial – como o direito à propriedade, ou direito de acesso a uma propriedade». Resulta, assim, claro que o direito de propriedade a que se refere aquele artigo da Constituição não abrange apenas a proprietas rerum, os direitos reais menores, a propriedade intelectual e a propriedade industrial, mas também outros direitos que normalmente não são incluídos sob a designação de «propriedade», tais como, designadamente, os direitos de crédito e os «direitos sociais» – incluindo, portanto, partes sociais como as acções ou as quotas de sociedades (na doutrina, no sentido de que o conceito constitucional de propriedade tem de ser equivalente a património, cfr. Maria Lúcia Amaral, Responsabilidade do Estado e Dever de Indemnizar do legislador, Coimbra, 1998, pp. 548 e 559)”[30].

O Código Civil, no entanto, só regula o direito de propriedade sobre coisas corpóreas, móveis ou imóveis (art. 1302.º).

No que respeita à propriedade dos imóveis, em conformidade como o preceituado no disposto no n.º 1 do art. 1344.° do Código Civil, "abrange o espaço aéreo correspondente à superfície, bem como o subsolo, com tudo o que neles se contém e não esteja desintegrado do domínio por lei ou negócio jurídico".

Mantém-se, em substância, a estatuição do respectivo homólogo, o art. 2288.º do CC de 1867 (Código de Seabra), consagradora da velha concepção medieval "qui dominus est soli, dominus est usque ad coelum e ut usque ad inferos", concretizando-se a "indicação dos elementos do subsolo ou do espaço aéreo que devem considerar-se desintegrados da propriedade superficiária e cujo domínio é, consequentemente, atribuído a terceiro[31].

À semelhança da definição da noção do direito de propriedade, o legislador (constitucional e ordinário) renunciou à definição do que são os limites superiores do direito de propriedade privada sobre um imóvel, determinando o ponto a partir do qual cessa do direito do proprietário ou superficiário e se inicia o domínio público aéreo[32].

Por outras palavras, a propriedade privada sobre imóveis define-se pelos seus limites, superior e inferior.

As camadas aéreas superiores ao território acima do limite reconhecido ao proprietário ou ao superficiário pertencem ao domínio público (estadual), tal como resulta do disposto na al. b) do n.º 1 do art. 84.º da Constituição.

Este preceito recebe ainda uma concretização através do DL n.º 477/80, de 15-10, integrando-se no domínio público estadual as camadas aéreas situadas sobre qualquer imóvel do domínio privado, para além dos limites estabelecidos na lei em benefício do proprietário do solo (limite inferior) até (limite superior) ao limite da atmosfera, nos termos definidos por convenções internacionais, estando o espaço exterior sujeito a um regime semelhante ao do alto mar. O domínio público aéreo compreende naturalmente os elementos que lhe são conaturais, como sucede com o espectro rádio eléctrico. No que concerne com o domínio público aéreo (tal como o marítimo) o mesmo é inerente ao conceito de soberania, não podendo pertencer ao domínio de entes públicos infra-estaduais[33].

Na concretização do que devam poder considerar-se os limites do direito de propriedade a doutrina vem defendendo que a questão tem de ser colocada e abordada no âmbito da função social da propriedade privada.

A doutrina foi assim avançando uma intenção funcional aos limites objectivos da propriedade, devendo a coisa ser submetida aos poderes do proprietário (ou do superficiário) unicamente e na exacta medida em que se revele necessária para preservar a utilidade ordinariamente proporcionada pelo bem imóvel em causa.

O que no fundo corresponde à concretização prática das chamadas "função social da propriedade" ou da "socialização da riqueza", as quais assumiram foros de dignidade constitucional na Lei Fundamental de 1976, depois revista em 30-9-82 - cf. art. 62.º, n.os 1 e 2.

A primeira forma que a função social do direito de propriedade assumiu foi, como refere Coutinho de Abreu, a de «protecção da propriedade enquanto utilização produtiva de bens», protegendo-se, portanto, a utilização produtiva dos bens e desfavorecendo-se os proprietários que os não usam produtivamente. Contudo, hodiernamente, são sobretudo as ideias das relações sociais mais justas, de igualdade real, de aumento e distribuição mais equitativa da riqueza socialmente útil que consubstanciam a «função social da propriedade»[34].

Perspectiva que Heck aplicou sistematicamente ao direito das coisas alemão[35] e que entre nós foi ganhando expressão na doutrina, a reclamar que a ciência jurídica reclame que os institutos, designadamente o direito de propriedade – «Urbid» e «Vorbild» de todo o direito das coisas –, se afastem de uma visão idilicamente ruralista, ganhando o seu verdadeiro sentido – a sua dimensão sócio económica – quando vistos à luz de toda a problemática do domínio, recuperando o direito para uma perspectiva realística que os refira constantemente à sua função sócio-económica, o que significa, ao plano dos interesses [36].

A função social não interfere apenas ao nível do conteúdo do direito de propriedade privada, mas também contribui para traçar os limites objectivos (extensivos) do mesmo, como vem defendendo a doutrina e jurisprudência avalizadas[37].

Hoje, revela-se completamente desajustada uma qualquer perspectiva que estenda os poderes do proprietário usque inferos et usque as coelum: aliás em rigor o próprio domínio efectivo do titular do direito de propriedade nunca poderia ir tão longe, por muitas ampliações que sofresse.

Marcello Caetano[38] sustenta que integra o domínio público o espaço aéreo a partir do qual o proprietário já não tem interesse legítimo em impedir actos de terceiro.

Menezes Cordeiro[39] considera que o domínio público aéreo começa para lá da altitude onde o proprietário já não alcança, exemplificando que no que se reporta à construção de um viaduto a uma altitude que nunca seria ocupada pelo proprietário, este pode ter interesse em não ser «sobrevoado» pelo viaduto tem interesse em impedir quaisquer actos de terceiro.

Oliveira Ascensão[40] entende que o critério dominante da extensão dos limites em altura dos direitos incidentes sobre imóveis reside no interesse prático influenciado pela consagração do princípio da função social: são inaceitáveis «poderes de expansão» do direito a outras zonas que não correspondam a qualquer interesse efectivo do respectivo titular: o conceito de prédio, tal como emerge da vida social, deve limitar-se, em profundidade, àquela porção que for efectivamente ocupada. “Não obstante a lei outorgar a cada titular, entre os poderes que compõem o direito, também um poder de expansão a novas zonas, permitindo, assim, a extensão em profundidade do prédio (…) também aqui a regra da função social se vai repercutir: não podemos aceitar poderes de expansão que não correspondam já a nenhum interesse efectivo”.

Henrique Mesquita[41], acrescenta ainda que “é irrealista dizer que os poderes do proprietário se estendem «usque ad inferos», porquanto o domínio efectivo do proprietário termina, no seu limite inferior, nas caves ou galerias e, se bem que haja sempre a possibilidade (teórica) de ampliar esse domínio, tal possibilidade não pode considerar-se ilimitada”.

No interior desta função social do direito de propriedade projecta-se o instituto do abuso do direito[42].

Sob a epígrafe «abuso do direito», preceitua o art. 334.º do CC que: “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

Não basta, porém, que o titular do direito, ainda que não tenha consciência que está a exceder os limites da boa fé, exceda tais limites, sendo necessário que esse excesso seja manifesto e gravemente atentatório daqueles valores, assim se acolhendo a concepção objectiva do abuso do direito.

A complexa figura do abuso de direito, como é sublinhada no Acórdão do STJ, de 21.9.93[43], citando Manuel de Andrade[44], Almeida Costa[45], Pires de Lima e Antunes Varela[46], “é uma cláusula geral, uma válvula de segurança, uma janela por onde podem circular lufadas de ar fresco, para obtemperar à injustiça gravemente chocante e reprovável para o sentimento jurídico prevalente na comunidade social, à injustiça de proporções intoleráveis para o sentimento jurídico inoperante em que, por particularidades ou circunstâncias especiais do caso concreto, redundaria o exercício de um direito por lei conferido; existirá abuso de direito quando, admitido um certo direito como válido em tese geral, aparece, todavia, no caso concreto, exercitado em termos clamorosamente ofensivos da justiça, ainda que ajustados ao conteúdo formal do direito; dito de outro modo, o abuso de direito pressupõe a existência e a titularidade do poder formal que constitui a verdadeira substância do direito subjectivo, mas este poder formal é exercido em aberta contradição, seja com o fim (económico e social) a que esse poder se encontra adstrito, seja com o condicionalismo ético jurídico (boa fé e bons costumes) que, em cada época histórica, envolve o seu reconhecimento” [47].

O abuso de direito retrata, pois, uma actuação contrária ao sistema, na sua globalidade; daí que o exercício ilícito ou indevido, para além de contrariar normas de Direito estrito seja, ainda, abusivo.

Uma das categorias de comportamentos abusivos é constituída pelo desequilíbrio no exercício de posições jurídicas.

Aqui podendo ser consideradas três sub-hipóteses: (i) o exercício danoso inútil; (ii) o dolo agit qui petit quod statim redditurus est; (iii) e a desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular e o sacrifício imposto pelo exercício a outrem.

O exercício danoso inútil é contrário à boa fé, sendo, como tal, abusivo exercer os direitos de modo inútil, com o objectivo de causar danos na esfera alheia.

Na segunda subespécie citada deparamos com os casos em que é contrário à boa fé exigir o que de seguida se deva restituir.

Na terceira, tem-se em conta que a desproporcionalidade, ultrapassados certos limites, é abusiva, defrontando a boa fé.

Fazendo apelo, a redução dogmática do desequilíbrio no exercício, consoante as circunstâncias, ora ao princípio da confiança, ora ao da primazia da materialidade subjacente.

Reportando-se este último ao exercício de puro desequilíbrio objectivo[48].

No que em concreto respeita ao direito de propriedade, não pretendendo negar a evidência que os limites que tal instituto – e em geral a função social do direito – permitem alcançar na definição do direito de propriedade, levantam-se algumas vozes na doutrina contra o uso inflacionado da função ou vinculação do direito de propriedade – mormente em função da vaguidade de tal conceito – na definição ontológica do direito de propriedade, “de maneira a sugerir que a propriedade está ontologicamente obrigada a prosseguir finalidades específicas de carácter supra-individual”, relacionando-se na sua essência mais pura apenas como os bens produtivos[49].

A mesma doutrina avança como proposta de critério de que há abuso de direito quando um comportamento, aparentando ser exercício de um direito, se traduz na não realização dos interesses pessoais de que esse direito é instrumento e na negação de interesses sensíveis de outrem – inerente a todos os direitos, enquanto direitos sociais e a pressuporem intersubjectividade.

E no que especificamente respeita a imóveis, a norma do art. 1344.º, n.º 2, do CC, a vedar a proibição de actos que não haja interesse em impedir, deverá levar em linha de conta que o direito de propriedade, fora do âmbito dos bens produtivos, tem uma função essencialmente individualista, não podendo da sua função social (ou do, corolário, abuso de direito) resultar qualquer limite ao seu não uso[50]: «(…) em relação ao direito de propriedade, como direito em princípio absoluto (cf. art. 1305.º), é praticamente impossível distinguir o uso do não uso, pois que o não uso é uma das formas pelas quais, na plenitude de poderes que a lei lhe confere, o proprietário pode exercer o seu direito. Por outras palavras, o não uso (ressalvada a específica hipótese do art. 1397.º) é uma forma de uso como qualquer outra»[51].

Funcionando o abuso de direito como um limite interno e externo do direito de propriedade, ao lado, quanto a este último, conforme preceituado no art. 1305.º do CC, das restrições de direito público e de direito privado impostas por lei.

Com a sobreposição frequente dos interesses da colectividade aos interesses dos particulares, cresce a cada dia o número de restrições de direito público ao direito de propriedade[52], destacando-se, pela gravidade do sacrifício imposto ao titular do direito, a expropriação por utilidade pública (art. 1308.º do CC).

Já as restrições de direito privado – justificadas na sua essência pela função social do direito de propriedade –, são, de um lado, as que resultam das relações de vizinhança, em regra previstas nos arts. 1346.º e segs. do CC e, de outro, que se justifica a impossibilidade, a que alude o n.º 2 do, supra citado, art. 1344.º do CC, nos termos do qual “o proprietário não pode proibir os actos de terceiro que, pela altura ou profundidade a que têm lugar, não haja interesse em impedir”.

As primeiras, nas palavras de Oliveira Ascensão, «envolvem um princípio geral que, aflorando em diversas disposições reguladoras do direito de propriedade, geram para cada um dos proprietários de prédios vizinhos ou confinantes deveres de “manutenção do equilíbrio imobiliário”, implicando a necessidade de compressão e de actuação mútua no sentido da manutenção do statu quo que, por razões subjectivas ou objectivas, tenha sido modificado, causando uma forte perturbação na relação vicinal»[53].

No âmbito de previsão do citado art. 1344.º, n.º 2, do CC, a propriedade privada – que, como decorre do seu elemento literal, não deixa de ser privada –, encontra-se limitada, quer (i) pela sua própria função, (ii) quer pelo corolário desta, o instituto do abuso de direito, impõe que o proprietário só possa impedir actos de terceiro no subsolo ou no espaço aéreo correspondente à superfície do imóvel, quando seja portador de um interesse (actual ou potencial) devidamente concretizável e materializável, que não de um interesse meramente abstracto ou conjectural, de natureza simplesmente egoística.

Apreciando a concreta situação dos autos, e estando reconhecido o direito de propriedade dos autores sobre o prédio em discussão nos autos, as pás do aerogerador n.º 9, implantado no prédio vizinho[54], contado no sentido descendente e em movimentação invadem o espaço aéreo do prédio mencionado em 4. numa distância superior a 20 metros, sendo que na sua posição de translação mais desfavorável, as pás do aerogerador n.º 9 invadem o espaço aéreo do prédio em causa numa distância de 28 metros, girando a cerca de 24 metros de altura.

Altura que, nos seus articulados – v.g., nos arts. 12.º; 18.º, 20.º, 26.º e 30.º da contestação da ré ZZ[55] e 18.º e 37.º da contestação da ré AAA[56] –, as partes aceitaram integrar o espaço aéreo do prédio dos autores.

Ora, os recursos visam modificar as decisões recorridas, reexaminando-as, e não a criar decisões sobre matéria nova, que não haja sido submetida à consideração do tribunal de hierarquia inferior.

A recorrente ZZ, S.A., sustentando-se no douto parecer que foi junto aos autos, levanta a exclusão do espaço de funcionamento do aerogerador do âmbito do direito de propriedade dos autores em sede de recurso.

Os pareceres não substituem os articulados nem são fonte de direito – arts. 151.º do CPC e 1.º do CC.

Trata-se, consequentemente, de questão nova, que não foi oportunamente invocada na contestação, onde a ré, ora recorrente, devia deduzir toda a defesa de que pretendia socorrer-se (art. 489.º, n.º 1, do CPC), e da qual este Supremo Tribunal não pode conhecer, por constituir matéria que não é de conhecimento oficioso (arts. 487.º, n.º 1, 489.º, do CPC).

Vedado está, também a este Supremo, socorrer-se de matéria que não haja sido apurada nas instâncias, exceptuados os casos de factos notórios ou em que haja um uso anormal do processo – arts. 514.º; 664.º e 665.º, todos do CPC

Provou-se, a respeito, e apenas[57], que os autores, por si e antepossuidores, no prédio referido em 4. têm plantado eucaliptos, cortando-os e vendendo a respectiva madeira, o que fazem há mais de 30 anos.

Em virtude do local onde se encontra o aerogerador n.º 9, os autores, pretendendo ceder o uso do seu prédio, com ou sem retribuição, a uma sociedade que se dedique à produção e venda de energia eólica, para instalação de outro parque eólico, estão impossibilitados de colocar um outro aerogerador a uma distância daquele inferior a cerca de 3 a 5 vezes superior ao diâmetro de uma à outra (roter) de 87 metros.

Sucede, porém, que a actividade de produção de energia eléctrica a partir de recursos renováveis é, ainda, uma actividade regulamentada, cujas regras foram inicialmente definidas pelo DL n.º 189/88, de 27-05, e posteriormente pelos DL n.º 186/95, de 27-07; DL n.º 313/95, de 24-11; DL 313/95, de 24-11; DL n. º 189/88, de 27-05; DL n.º 168/99, de 18-05 e o DL n.º 225/2007, de 31-05[58].

Pelo que a simples expectativa de instalação de um parque eólico, desligado de um concreto procedimento quanto à sua instalação no prédio dos autores configura, por ora, um interesse meramente abstracto, potencial ou individual.

Ou, nas palavras de Rute Saraiva[59], de uma mera expectativa não realista e objectiva.

Insuficiente para legitimar a proibição de funcionamento do aerogerador à luz do n.º 2 do art. 1344.º, conforme supra aludido: como refere De Martino[60], “o interesse do proprietário deve ser considerado como categoria objectiva ou económico-social, e não meramente subjectiva; o interesse abstracto, potencial e eventual não pode excluir a actividade de outrem que seja economicamente relevante. Mas se, posteriormente, o interesse potencial se tornar efectivo, não poderá impedir-se o proprietário de fazer valer o seu direito de propriedade”[61].

Crendo-se, por conseguinte, que em face do que foi apurado, aos autores não está conferido o direito de proibir o funcionamento do aerogerador n.º 9.

E, inexistindo o direito, despicienda fica a análise do seu exercício à luz de uma actuação contrária ao sistema, na sua globalidade, que o torna ilícito ou indevido (abuso de direito).

Mas tão só –e apenas – em face do que foi alegado, pedido, e resultou apurado, cumprindo, deixar duas notas finais a este propósito.

Por um lado, retomando aqui o que se disse sobre o direito de propriedade, direito que se consubstancia na máxima «jus excludendi omnes allios», as restrições, quer de direito privado, quer de direito público, sujeitas ao princípio dos «numerus clausus», inserto no art. 1306.º do CC, segundo o qual não é permitida a constituição, com carácter real, de restrições ao direito de propriedade ou de figuras parcelares deste direito senão nos casos previstos na lei; toda a restrição resultante de negócio jurídico, que não esteja nestas condições, tem natureza obrigacional.

As restrições impostas aos direitos de propriedade, ainda que lícitas, estão adstritas ao princípio da legalidade que mais não é do que a imposição da exigência legal para as fundamentar (art. 18.º, n.º 2 da CRP), pressupondo a garantia constitucional do direito de propriedade que a sua ablação ou restrição, ainda que lícita – designadamente através da requisição ou expropriação – se faça mediante o pagamento da justa indemnização (art, 62.º, n.º 2 da CRP).

E “se a lei permite a ocupação do espaço aéreo correspondente ao prédio para satisfação de certos interesses de carácter colectivo, a licitude tal acto não impede a obrigação de reparar o dano, pela injustiça que constituiria o sacrifício de uns tantos em proveito de muitos outros”[62].

Por outro lado, retomando o que a propósito disse De Martino, se, posteriormente, o interesse potencial se tornar efectivo, não poderá impedir-se os AA, proprietários de fazer valer o seu direito de propriedade, exigindo a paragem do aerogerador.

Notas que, considerando o que foi pedido e os fundamentos invocados, excedem o âmbito desta revista e dos presentes autos.

Pelo que, quanto ao pedido formulado e aos fundamentos invocados pelos autores nesta acção, terá aquele de improceder.

Com a procedência da revista e a improcedência do pedido dos autores .

Concluindo:

I - Tem legitimidade para recorrer a parte para a qual a decisão é desfavorável, qualquer que tenha sido o seu comportamento na instância recorrida e independentemente dos pedidos por ela formulados no tribunal a quo.

II - O sentido do art. 706.º, n.º 2, do CPC – na redacção anterior ao DL n.º 303/2007, de 24-08 –, é que a prolação do despacho de vista aos juízes adjuntos seja o prazo final de junção de pareceres, uma vez que ela marca o início do julgamento, independentemente de ter sido ou não aberta conclusão aos adjuntos para o efeito.

III - Tal sentido – conferindo a ambas as partes a possibilidade de junção de parecer até tal momento –, não viola o princípio da igualdade, mormente quando a parte que não procedeu a tal junção, se pronunciou quanto ao teor do parecer junto.

V - A condenação além do pedido verifica-se quando o tribunal condena em pedido ou com fundamento (causa de pedir) distinto dos suscitados pelas partes, o que não se verifica se o acórdão da Relação, julgando dentro dos pedidos formulados, se limita a alterar a resposta à matéria de facto, que fora impugnada pelo recorrente, julgando provado um facto que integrava a causa de pedir dos autores e integrava a base instrutória.

VI - O tribunal não pode servir-se de factos que não resultem das situações a que aludem os arts. 664.º e 264.º do CPC, designadamente daqueles que, delas não resultando, não se possa concluir que hajam resultado da via presuntiva.

VII - Só a falta absoluta de fundamentação integra a nulidade a que alude o art. 668.º, n.º 1, al. b) do CPC.

VIII - A nulidade do acórdão por contradição entre os fundamentos e a decisão ocorre quando a fundamentação aponta num sentido e a decisão extrai um sentido contrário.

IX - O direito de propriedade define-se conceptualmente pelos poderes que confere ao seu titular, abrangendo, como componentes: (i) a liberdade de adquirir bens, (ii) a liberdade de usar e fruir dos bens de que se é proprietário; (iii) a liberdade de os transmitir; (iv) o direito de não ser privado deles e, ainda, (v) o direito de reaver os bens sobre os quais o mesmo direito de mantém.

X - O direito de propriedade encontra-se limitado, quer ao nível do seu conteúdo, quer ao nível dos seus limites objectivos, estendendo-se os poderes do seu titular apenas na medida em que se revele necessário para preservar a utilidade por este proporcionada – «função social» -, bem como pelo instituto do abuso de direito, que se projecta no interior de tal função.

XI – Ainda que o direito de propriedade de imóveis abranja o espaço aéreo correspondente à superfície, bem como o subsolo, são-lhe, à luz dos limites referidos em X, conceptualizados limites materiais superior (definido pelo espaço aéreo público) e inferior (subsolo), aos quais alude o art. 1344.º do CC.

XII – O art. 1344.º, n.º 2, do CC – ao vedar ao proprietário a proibição de actos de terceiro que pela altura ou profundidade a que têm lugar não haja interesse em impedir – exige ao proprietário um interesse actual, concretizável e materializável, e não meramente abstracto ou conjectural.

XIII – Não integra tal interesse concretizável e materializável a simples expectativa de instalação de um parque eólico – que, por ser regulamentada, não depende da mera vontade dos proprietários dos imóveis – num prédio dos autores.

XIV – Em face o referido em X a XIII não têm direito a opor-se ao funcionamento de um aerogerador – implantado em prédio vizinho, mas cujas pás em funcionamento, e girando a 24 m de altura, invadem em 20 m o espaço aéreo correspondente à superfície do prédio dos autores – os proprietários de um prédio, com a área de 250000 m2 e no qual apenas se apurou proceder-se à plantação de eucaliptos.


                Face a todo o exposto acorda-se neste Supremo Tribunal de Justiça em, na concessão da revista, se revogar parcialmente o acórdão recorrido e, em consequência, se julgar parcialmente improcedente a acção, absolvendo-se os réus do pedido de condenação da ré AAA a abster-se, de imediato e totalmente, de colocar em funcionamento o aerogerador n.º 9, identificado nos autos.

              Custas pelos recorridos.

Lisboa, 14 de Fevereiro de 2013

Serra Baptista (Relator)

Álvaro Rodrigues

Fernando Bento

_______________________

         


[1] Redacção corrigida pelo Tribunal da Relação.
[2] Resposta alterada pelo Tribunal da Relação.
[3] Sendo deste diploma legal todas as disposições a seguir citadas sem referência expressa.

[4] Agravo n.º 2778/08, 2.ª Secção, de 27-11-2008, in www.dgsi.pt.
[5] Neste sentido A. Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, p. 265 e ss.
Adianta este professor, a propósito do requisito de que a parte haja ficado vencida, que «É numa razão prática que o requisito tem o seu fundamento. Se a parte vencida não recorre, isso quer dizer que a decisão é justa, ou que a injustiça é de tal maneira insignificante que não vale a pensa reagir quanto a ela (…) Mas à razão prática acresce, segundo pensamos, a razão lógica, no sentido de vedar o recurso à parte vencedora (…) Se a parte vencedora obteve o benefício a que aspirava tem a posição de vencedora ainda que por fundamentos diversos dos alegados».
[6] Lebre de Freitas, CPC Anotado, vol. 3.º, pág. 19.
[7] O regime aplicável ao recurso é o anterior ao introduzido pelo DL n.º 303/2007, de 24-08, ou seja o que decorre do CPC, na redacção introduzida pelos DL n.º 39/95, de 15-02; DL n.º 329-A/95, de 12-12; DL n.º 183/2000, de 10-08 e DL n.º 180/96, de 25-09 (considerando a data da propositura da acção, 19-12-2007).
[8] Lebre de Freitas, ob. cit., vol. 3.º, tomo I, 2.ª edição (2008), pág. 97, com ressalva nossa.
[9] Revista n.º 6/10.1TVPRT.P1.S, Cons. Paulo Sá (Relator), disponível in www.dgsi.pt.
[10] Neste sentido, as decisões proferidas nos incidentes n.º 4270/05 - 6.ª Secção – de 27-04-2006, Cons.  Ribeiro de Almeida e n.º 495/04.3TBOBR.C1.S1 - 1.ª Secção – de 09-11-2010, Cons. Sebastião Povoas, todos com sumário disponível para consulta nas bases de dados do STJ (in www.stj.pt).
[11] Ac. TC de 13/04/1988 (Messias Bento), ATC, in www.dgsi.pt.
[12] Conselheira Fernanda Palma, ATC, in www.dgsi.pt.
[13] Conselheiro Paulo Mota Pinto, ATC, in www.dgsi.pt.
[14] E o acórdão mais não é do que a decisão do tribunal colegial (art. 156.º, nº 3 do CPC).
[15] Lebre de Freitas e outros, ob. cit., vol. 2.º, p. 669/670.
[16] Pereira Batista, Reforma do Processo Civil- Princípios Fundamentais, pág. 16.
[17] O regime aplicável ao recurso é o anterior ao introduzido pelo DL n.º 303/2007, de 24-08, ou seja o que decorre do CPC, na redacção introduzida pelos DL n.º 39/95, de 15-02; DL n.º 329-A/95, de 12-12; DL n.º 183/2000, de 10-08 e DL n.º 180/96, de 25-09.
[18] Amplamente criticado na doutrina, cf. Pessoa Vaz, Direito Processual Civil - Do antigo ao novo Código, 2.ª edição, Almedina, 2002, fls. 157 e ss.
[19] Neste sentido, cf. Ac. proferido nos autos de Revista n.º 3206/08 - 6.ª Secção, sumariado e disponível para consulta nas bases de dados do STJ.
[20] Neste sentido, cf. o acórdão de 06-05-2010, por nós relatado proferido nos autos de revista n.º 2148/05.6TBLLE.E1.S1, disponível in www.dgsi.pt.
[21] E o acórdão, como já dito, mais não é do que a decisão do tribunal colegial.
[22] Cfr. folha 649 (cit.).
[23] Cfr. folha 651.
[24] Cfr. facto 28 dos factos provados.
[25] Designadamente porque o gozo não é específico da propriedade e porque pode haver propriedade sem uso e disposição, como sucede, v.g., na nua propriedade na sequência de um direito de usufruto.
[26] Oliveira Ascensão, Direito Civil, Reais, Coimbra Editora, 5.ª edição, págs. 443-444.
[27] Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, Quid Juris, Sociedade Editora, Lisboa, 2009, pág. 333-334.
[28] J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, I, pág. 800.
[29] Ob. cit, pág. 802.
[30] Ac (TC) 491/2002, Processo n.º 310/99, Conselheiro Paulo Mota Pinto, disponível in www.itij.pt.
[31] Pires de Lima e Antunes Varela, in "Código Civil Anotado", vol III, 2.ª ed., pág. 173.
[32] Quanto ao domínio Público Aéreo, sua origem, natureza a e composição, cf. João Caupers, O Domínio Público, Themis, ano IX, n.º 15 (2008), págs. 109-116.
[33] J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., em anotação ao art. 84.º, págs. 1000 a 1007.
[34] J.M. Coutinho de Abreu, O Abuso de Direito, Almedina, pág. 33.
[35] No seu Grundriss des Sachenrechts, Tubinga, 1930, bem como, posteriormente, em Das abstrakte dingliche Rechtsgeschäft, Tubinga, 1937, citando Orlando Carvalho, DIREITO DAS COISAS (O Direito das Coisas em Geral), Coimbra, 1977, pág. 89 e segs.
[36] Orlando Carvalho, ob. cit., págs. 89 a 94.
[37] Neste sentido, na jurisprudência, cf. Ac. STJ de 25-03-2004, Cons. Ferreira de Almeida, in www.itij.pt.

[38] Manual de Direito Administrativo, vol. II, Almedina, pág. 906.
[39] Tratado de Direito Civil, Almedina, pág. 67.
[40] Ob. cit., Coimbra Editora, págs. 178 e 179 e 185.
[41] Direitos Reais, 1967, pág 138.
[42] Ana Raquel Gonçalves Moniz, O Domínio Público- O Critério e o Regime Jurídico da Dominialidade, Almedina, pág. 198.

[43] C.J., S., Ano I, T. III, pag. 21.
[44] Teoria Geral das Obrigações, 1958, pags. 63 e segs.

[45] Direito das Obrigações, pags. 60 e segs.

[46] Ob. cit., pags. 298 e segs.
[47] RLJ, Ano 114°-75.
[48] Menezes Cordeiro, ob. cit., I, pág. 205.
[49] J.M. Coutinho de Abreu, ob cit, pág. 40.
[50] J.M. Coutinho de Abreu, ob cit, pág. 37.
[51] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. III, 2.ª ed., pág. 104, com ressalva nossa.
[52] Como as impostas ao direito a construir, por motivos de estética ou de higiene, pelo desenvolvimento das telecomunicações, transporte de energia eléctrica, etc...

[53]A previsão do equilíbrio imobiliário como princípio orientador das relações de vizinhança” (ROA, ano 67º, págs. 7 e segs.). Quanto a este princípio geral, cf., ainda, o Ac. 6150-06.2TBALM.L1.S1, Cons. A. Geraldes, in www.dgsi.pt.
[54] Aceitando-se, como propalado no parecer junto aos autos que as relações de vizinhança – e as restrições dela advenientes – se apliquem a prédios que estejam separados por um caminho, por ser a solução conforme à ratio do instituto.
[55] “É certo também que as pás do aerogerador n.º 9 têm a susceptibilidade de passar, em certa medida e em certas circunstâncias pelo prédio dos AA(…)” (art. 12.º); “(…) as pás do aerogerador numero 9 apenas estão a 24 metros de altura de uma pequena parte do prédio dos AA.” (art. 26.º) e “Aliás, os próprios AA mantêm uma plantação de eucaliptos no prédio a qual não fica (…) afectada pela sobrepassagem das pás do aerogerador”(art. 30.º)
[56] “(…) esta sobrepassagem das pás do aerogerador numero 9 é mínima perante a dimensaão da propriedade(…)” (art. 37.º).
[57] Não se tendo por provado, ao invés do que a tal propósito se teorizou no acórdão da Relação, o desconforto e uma maior produção de vento, ao circular-se debaixo dos aerogeradores, conforme supra consignado, a propósito das nulidades da decisão.
[58] Ainda ulteriormente,o regime jurídico aplicável à produção de electricidade por intermédio de instalações de pequena potência, designadas por unidades de miniprodução, a que alude o DL n.º 34/2011, de 08-03-2011, a que não reporta a situação dos autos.
A propósito do regime jurídico das energias renováveis, mormente da energia eólica, vide Rute Saraiva in:
- Energia e Desenvolvimento Sustentado- O caso Das Energias Renováveis e da Eólica em Especial em Portugal, temas de Direito da Energia, O Direito, 3 (2008), págs. 215-277.
- As Pás da Discórdia - Parques Eólicos e Direito de Passagem Aérea, in Estudos de Homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano, vol. II, págs. 631 a 675, explicitando-se, nesta obra, a destrinça entre a organização e funcionamento do Sistema Eléctrico Nacional (e, dentro deste, dos Sector Eléctrico Público e sector Eléctrico Independente) e do Sistema Eléctrico Não Vinculado.
[59] Ob. cit. pág. 657.
[60] (Della proprietá, no Comm. de Scialoja e Branca)

[61] Pires de Lima e A. Varela, ob. cit., III, pág. 174.

[62] Idem, pág. 175.