Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
460/11.4TVLSB.L1.S2
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: SILVA GONÇALVES
Descritores: ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
AÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
DIREITO DE PROPRIEDADE
BEM IMÓVEL
USUCAPIÃO
REQUISITOS
POSSE TITULADA
POSSE PÚBLICA
POSSE PACÍFICA
POSSE DE BOA FÉ
REGISTO PREDIAL
PRAZO
AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA
FALÊNCIA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 02/09/2017
Nº Único do Processo:
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITOS REAIS / POSSE / USUCAPIÃO / DIREITO DE PROPRIEDADE.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA ( NULIDADES ).
Doutrina:
- Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil” Anotado, Vol. V, 139, 140.
- Galvão Telles, in O Direito, 121.º, 652.
- Menezes Cordeiro, A Posse, Perspectivas Dogmáticas Actuais, 54 e ss.; Direitos Reais, II Volume, 670, 675, 684.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 1251.º, 1252.º, N.º 1, 1258.º, 1260.º, 1287.º, 1294.º, AL. A), 1296.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 590.º, N.º 3, 615.º, N.º 1, AL. B), 639.º, N.º 3, 652.º, N.º 1, AL. A).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 26.10.1975, BOLETIM, 250.º, 150, ANOTADO NA R.L.J. N.º 109, 311.
-DE 14.01.1993, B.M.J., 423.º, 519.
-DE 6.4.2000, SUMÁRIOS, 40.º, 25.
Sumário :
I. Sendo a posse de boa fé e havendo título de aquisição e registo deste, é de 10 (dez) anos, contados desde a data do registo - alínea a) do art.º 1294.º do C.Civil - o prazo capaz de legitimar a aquisição do direito de propriedade sobre uma coisa imóvel.

II. Não obstante todas as vicissitudes processuais por que passou o processo de falência - designadamente a anulação de todos os seus trâmites processuais posteriores aos despachos de 17.07.1987 - possuindo o prédio de boa fé e apresentando título e registo de aquisição deste imóvel desde 05.07.1988 até 17.07.2002, isto é, durante mais de 10 anos, a ré adquiriu o prédio, por usucapião, ainda antes de 02.01.2002.

III. A usucapião constitui um modo de aquisição originária, ou seja, é uma forma de constituição de direitos reais e não uma forma de transmissão e, por isso, a propriedade conferida com base na usucapião não está dependente de qualquer outro circunstancialismo juridicamente relevante que surja ao lado do seu processo aquisitivo e que, só aparentemente poderá interferir neste procedimento de consignação de direitos; porque se trata de uma aquisição originária, o decurso do tempo necessário à sua conformação faz com que desapareçam todas as incidências que neste processo eventualmente possam ter surgido.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


Laboratórios AA, Lda" intentou contra "BB - Produtos Farmacêuticos, SA" a presente acção declarativa com processo comum e forma ordinária, pedindo:

a) - O reconhecimento e a declaração de que a Autora é legitima proprietária do prédio urbano sito na Rua … n.º …. e ...-A, em Alvalade, Lisboa, descrito na CRP de Lisboa sob o n.º 94…, da freguesia do Campo Grande (com a anterior descrição em livro n.º 20.612), condenando-se a Ré a reconhecer tal direito;

b) - A condenação da Ré a devolver tal prédio à Autora, livre e devoluto de pessoas e bens;

c) - A condenação da Ré a pagar à Autora uma indemnização, a liquidar no decurso do processo ou em incidente subsequente à sentença pelos prejuízos decorrentes da ilegítima ocupação e recusa na entrega desse prédio, e até que a mesma ocorra, e que terão por base, no mínimo, o valor locativo de mercado, correspondente ao possível arrendamento do mesmo;

d) - A condenação da Ré no pagamento da sanção pecuniária compulsória de € 1.500 por dia, a partir da data do trânsito em julgado da sentença e até ao seu efectivo cumprimento.

Fundamentando a sua pretensão, alegou, em síntese, ser proprietária do prédio mencionado, encontrando-se inscrita no registo a aquisição a seu favor, sendo que a Ré o ocupa, sem qualquer título, recusando-se a entregá-lo à Autora.

A Ré contestou, pronunciando-se pela improcedência da acção e, deduzindo reconvenção contra a Autora, pediu o reconhecimento e a declaração de ser ela a legítima possuidora e proprietária do prédio em causa, condenando-se a Autora a reconhecer esse direito.

Alega, para o efeito, que, desde 8/04/1988, está na posse do referido prédio, a qual se manteve ininterruptamente até à presente data, de forma pública, pacífica e de boa - fé, nunca tendo tal posse sido contestada até Janeiro de 2011, pelo que adquiriu a propriedade do referido prédio por usucapião.

As partes ainda replicaram e treplicaram, mantendo, contudo, as suas posições já defendidas nos seus anteriores articulados.

Oportunamente foi proferida sentença (cfr. fls. 1017 a 1033), tendo sido decidido:

a) - Julgar a acção totalmente improcedente, por não provada, e, em consequência, absolver a Ré de todos os pedidos contra si formulados;

b) - Julgar a reconvenção procedente, por provada, e, em consequência, reconhecer e condenar a Autora a reconhecer que a Ré é titular do direito de propriedade sobre o prédio urbano descrito na CRP de Lisboa sob o n.º 94… (anterior descrição n.º 20612, do Livro n.º 67), sito na Rua …, n.º … e …A, em Alvalade, freguesia do Campo Grande, Lisboa, inscrito na matriz predial da freguesia de S. João de Brito sob o artigo 97…, por o ter adquirido por usucapião:

c) - Ordenar o cancelamento do registo de aquisição a favor da Autora que impende sobre o mesmo prédio.

Inconformada com esta sentença, dela recorreu a autora, pedindo a sua revogação e substituição por outra em que se dê corno improcedente o pedido reconvencional e procedentes os pedidos da acção, com o fundamento de que, tendo a Autora registado a seu favor a propriedade do prédio, se presume ser titular desse direito.

Por acórdão de 11/11/2014, o Tribunal da Relação, na procedência da apelação e improcedência da reconvenção, decidiu:

1.º - Revogar totalmente a sentença recorrida e, em sua substituição:

a) - Declarou que a Autora é a legítima proprietária do prédio urbano, sito na Rua …, n.ºs … e …-A, em Alvalade, Lisboa, descrito na CRP de Lisboa sob o n.º 94…, da freguesia do Campo Grande (com a anterior descrição em livro n.º 20.612), condenando a Ré a reconhecer tal direito e a devolver esse prédio à Autora, livre e devoluto de pessoas e bens;

b) - Condenou, ainda, a Ré a pagar à Autora:

i - Uma indemnização, a liquidar em incidente a tramitar no processo de execução de sentença, pelos prejuízos decorrentes da ilegítima ocupação e recusa na entrega desse prédio, e até que a mesma ocorra;

ii - Uma sanção pecuniária compulsória de € 500,00 por dia, a partir da data do trânsito em julgado desta decisão e até ao seu efectivo cumprimento;

2.º - Absolveu a Autora do pedido reconvencional que a Ré contra ela havia deduzido.

Não se conformando com esta decisão, dela recorreu a ré “BB” para este Supremo Tribunal que, por acórdão de 28.05.2015 (cfr. fls. 1215 a 1299), anulou o acórdão recorrido, para que, sem prejuízo do disposto no artigo 662 do NCPC, os mesmos Senhores Juízes Desembargadores, com a alteração das respostas dadas aos pontos 2.º e 5.º da Base instrutória, reanalisassem as questões que foram suscitadas no recurso de apelação e que se não considerem prejudicadas por esta decisão.

A Relação de Lisboa, dando cumprimento ao que este Supremo Tribunal, por acórdão de 28/06/2016 (cfr. fls. 1293 a 1312) proferiu a seguinte deliberação:

Com os fundamentos enunciados nos pontos 4.1. e 4.2. do presente acórdão, julga-se, no essencial, procedente a apelação e, consequentemente, revoga-se totalmente a sentença recorrida, decretando-se em sua substituição que, por se julgar procedente a acção e improcedente a reconvenção:

i) se declara que a Autora é a legítima proprietária do prédio urbano sito na Rua …, n.ºs … e …-A, em Alvalade, Lisboa, descrito na CRP de Lisboa sob o n.º 94..., da freguesia do Campo Grande (com a anterior descrição em livro n.º 20.612), condenando-se a Ré a reconhecer tal direito e a devolver esse prédio à Autora, livre e devoluto de pessoas e bens:

ii) vai a Ré condenada a pagar à Autora:

 - uma indemnização, a liquidar em incidente a tramitar no processo de execução de sentença, pelos prejuízos decorrentes da ilegítima ocupação e recusa na entrega desse prédio, e até que a mesma ocorra,

- uma sanção pecuniária compulsória de € 500,00 por dia, a partir da data do trânsito em julgado do presente decreto judicial e até ao seu efectivo cumprimento:

iii) vai a Autora absolvida do pedido reconvencional contra ela deduzido pela Ré.

Irresignada, deste acórdão recorre a ré "BB - Produtos Farmacêuticos, SA" para este Supremo Tribunal, alegando e concluindo pela forma seguinte:

1. O presente recurso de revista tem por objecto o Acórdão proferido nos autos a fls. 1293 a 1312, o qual julgou, "no essencial", procedente a apelação e revogou totalmente a sentença recorrida, decretando a sua substituição por uma outra que julgue procedente a acção e improcedente a reconvenção.  

2. O acórdão recorrido responde a duas questões: "- a sentença recorrida viola o caso julgado formado pela decisão de 25 de Março de 2003, referida na alínea AA) dos «Factos Assentes»? - a sentença recorrida viola o estatuído nos artigos 1253.º,1257.º e seguintes do Código Civil?".

3. Andou bem o Venerando Tribunal a quo ao responder à primeira das questões enunciadas declarando "que o caso julgado formado com o trânsito em julgado da decisão transcrita na alínea AA) dos "Factos Assentes" não é operante para efeitos de gerar contradição entre esse decreto judicial e o proferido através da sentença recorrida".

4. O mesmo não se podendo afirmar quanto à resposta dada à questão remanescente, não se podendo a Recorrente confirmar com tal decisão em face da manifesta falta de razão que lhe subjaz, como se evidenciará e que determina, por conseguinte, a procedência do presente Recurso in totum.

5. A Recorrente não pode conformar-se com o Acórdão recorrido, porquanto o mesmo consagra uma solução jurídica aberrante, atento o caso concreto, violando as mais elementares garantias decorrentes da lei, assim como as suas legítimas expectativas quanto à aquisição do imóvel.

6. Mais, o Acórdão ora recorrido enferma de nulidade ao fazer tábua rasa do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça que anulou o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que lhe precedeu e que circunscreveu o juízo que cabia ao Venerando Tribunal a quo às "questões que foram suscitadas no recurso de apelação e que não se considerem prejudicadas por esta decisão".   

Igualmente por esta via não pode a Recorrente conformar-se com a decisão vertida no Acórdão de que ora se recorre.

7. A Recorrente adquiriu o imóvel, pagou o respectivo preço e procedeu ao seu registo, para além de ter exercido ininterruptamente actos materiais sobre o mesmo e actuado como sua legítima proprietária desde 1988, procedeu a obras de manutenção e outras benfeitorias no imóvel, para além de ter pago os respectivos impostos do imóvel ao longo dos anos - comprovando ter permanecido ininterrupta e publicamente no mesmo, tendo sediado aí a sua actividade em 1992.

8. A anulação dos actos processuais do processo de falência em nada influi na prática reiterada de actos materiais que se consubstanciam no exercício continuado da posse, os quais conduziram a uma nova aquisição do imóvel por usucapião.

9. O entendimento vertido no acórdão recorrido - ao considerar que a Recorrente tenha passado de uma situação de proprietária para possuidora titulada e de boa fé para possuidora não titulada e de má fé e, a posteriori, mera detentora - subtrai todos os efeitos garantísticos advenientes do direito de propriedade e da própria posse, subvertendo as prerrogativas conferidas pela lei nesta matéria, além de frustrar as legítimas expectativas da ora Recorrente de ter adquirido e registado o imóvel em 1988 e, posteriormente, adquirido o imóvel por usucapião em 1998, uma vez decorridos dez anos da sua posse titulada e de boa-fé.

10. Andou mal o Venerando Tribunal a quo ao aplicar erroneamente a lei substantiva aos respectivos factos.

11. Resulta provado nos autos que a Recorrente tem a posse continuada do imóvel desde 08.04.1988, data em que foi lavrado o termo de entrega daquele imóvel, tendo sido registada a aquisição em 05.07.1988.

12. Tal posse tem sido mantida, ininterruptamente, pela Recorrente, desde essa data.

13. A Recorrida só viria a contestar tal posse em Janeiro de 2011, volvidos mais de vinte anos desde que a Recorrente exercia a posse sobre o imóvel em disputa nos presentes autos.

14. Ficou amplamente demonstrado e provado na sentença da 1.ª instância, os elementos da posse estão verificados, aos quais se adiciona o decurso do intervalo temporal, verificando-se os pressupostos da figura jurídica da usucapião nos termos do artigo 1287.º e seguintes do C.C.

15. A Recorrente, através da CC, sua antecessora, tem justo título de posse, o qual se consubstancia na entrega judicial do imóvel em 1988, resultante da homologação do acordo de credores, momento a partir do qual se constituíram legítimos proprietários do imóvel.

16. Não obstante a existência da posterior anulação dos actos processuais do processo de falência, mormente do ato de entrega do imóvel, a posse permanece titulada, não obstante o título de aquisição ser inválido.

17. “A posse da DD/CC verificava-se desde 8 de Abril de 1988, tendo sido formalizada com o termo de entrega dos bens. A anulação dos actos jurídicos em que se fundamenta não afecta a posse, situação jurídica alicerçada sobre o exercício de poderes de facto sobre a coisa [...]. No caso, nenhuma das vicissitudes jurídicas teve o efeito de alterar a situação de posse. Nomeadamente, a apreensão do prédio, que é mais relevante que o registo". -vide parecer junto aos autos, da autoria dos Ilustres Professores Doutores J. Oliveira de Ascensão e Manuel A. Carneiro da Frada.

18. As vicissitudes jurídicas atinentes ao processo de falência não prejudicam a continuidade da posse da Recorrente, a qual tem vindo a exercer os poderes de facto sobre o imóvel.

19. A posse é constituída por dois elementos: relativamente ao corpus, não restam dúvidas que a Recorrente tem o domínio do imóvel desde 1988, pelo que se tem verificado, ao longo deste lapso temporal, a prática de actos materiais de forma reiterada e, bem assim, quanto ao animus, sendo evidente a actuação da Recorrente na qualidade de proprietária do imóvel.

20. Relativamente à verificação da boa-fé da posse, sendo esta titulada, conforme resulta claro da prova carreada aos autos - in casu, do registo do imóvel em nome da Recorrente, dotado de fé pública -, presume-se que a posse seja de boa-fé nos termos do disposto no artigo 1260.º, n.º 2 do CC.

21. "O momento decisivo é o inicial, relativo à aquisição, válida ou não, do direito. É então que se tem de apurar se o agente estava ou não de boa-fé. Isto tem muita importância no caso concreto. Vimos que a DD/CC estava de boa-fé quando, em 1987, adquiriu o direito sobre o imóvel" - vide parecer junto aos autos, da autoria dos Ilustres Professores Doutores J. Oliveira de Ascensão e Manuel A. Carneiro da Frada.

22. A Recorrida não logrou elidir a presunção de boa-fé decorrente da inversão do ónus da prova em face da presunção legal de que a Recorrente beneficia à luz do disposto no artigo 344.º, n.º 1 do CC.

23. As características relevantes para a aquisição do imóvel por usucapião adquirem-se no momento da aquisição da posse, não sendo alteradas posteriormente, e haverá titulo mesmo quando a validade substancial do negócio jurídico que serviu de causa à aquisição da posse seja posta em causa, impondo-se concluir que, ao contrário do que refere o acórdão recorrido, a possa da ora Recorrente não deixou de ser titulada, pacífica e de boa fé em 10.12.1992 (ou 09.07.1993) para passar a ser não titulada, não pacífica e de má fé.

24. O acórdão recorrido cai, ainda, em erro de apreciação dos factos porquanto desconsidera o facto de a Recorrente nunca ter sido parte nos autos de falência, não tendo por isso sido notificada de qualquer acto processual no âmbito dos mencionados autos, com excepção do indeferimento da sua habilitação como cessionária dos acordos da falida por despacho de 25.03.2003.

25. Donde, o referido acórdão de 10.12.1992, o despacho do Tribunal de 1ª Instância de 09.07.1993 e os autos de arrolamento e apreensão de bens não produziram quaisquer efeitos quanto à ora Recorrente (ou quanto à sua antecessora CC).

26. Os efeitos que o Acórdão Recorrido pretende tirar para a ora Recorrente das decisões judiciais, despachos e autos de arrolamento e apreensão de bens seriam atentatórios do constante no artigo 219.º do CPC no sentido em que não foram comunicados à Recorrente os elementos essenciais para que, eventualmente, esta possa vir a deduzir a sua defesa e do constante nos artigos 619.º, 620.º e 621.º do CPC no sentido em que não podem produzir efeitos fora do processo e da relação material controvertida nem extravasar os limites em que se julga.

27. Não obstante, ainda que o douto Tribunal considerasse, que o auto de arrolamento e apreensão de bens fosse oponível à ora Recorrente, o que apenas por mero dever de patrocínio se concebe mas não se concede: i) tal não interromperia a posse; e, ii) em qualquer caso, nessa data, o lapso temporal necessário para a aquisição através do instituto da usucapião já tinha decorrido.

28. O acórdão da Relação de que se recorre padece de vícios de falta de fundamentação, na medida em que tece conclusões sem, no entanto, as justificar e fundamentar e, bem assim, torná-las perceptíveis aos seus destinatários.

29. O Acórdão de que ora se recorre viola patentemente o artigo 205.º, n.º 1 da C.R.P., assim como o disposto no artigo 154.º do CPC.

30. À luz do disposto no artigo 615.º, alínea b) CPC, aplicável mutatis mutandis, o acórdão objecto do presente recurso é nulo por não especificar os fundamentos de facto e de direito que justificam a sua decisão.

31. Impugna-se igualmente os pontos 4.2.3 e 4.2.4 do Acórdão recorrido, referente à indemnização e à sanção pecuniária compulsória, porquanto os mesmos carecem de qualquer fundamento legal.

32. A Recorrida não cumpriu o ónus de alegação e prova dos factos que poderiam, em tese, consubstanciar o seu pedido de condenação da ora Recorrente no pagamento de uma indemnização, mais precisamente dos factos que preenchem os pressupostos de responsabilidade civil, donde, é inadmissível que o Acórdão recorrido tenha condenado a ora Recorrente no pagamento de uma indemnização.

33. Não obstante, e tendo a Recorrente exercido a posse de um modo titulado, de boa-fé, público e pacífico, importa concluir que um eventual pedido de indemnização e, consequentemente, de sanção pecuniária compulsória (assente na ilegítima ocupação e recusa de entrega do imóvel pela ora Recorrente) seja desprovido de qualquer fundamento.

34. Solução distinta daquela que ora se defende em sede de alegações de recurso - e, portanto, na esteira do decidido em primeira instância - contenderia frontalmente com os direitos que, pela Constituição, são reconhecidos e atribuídos à ora Recorrente, nomeadamente no que concerne ao direito de acesso à justiça, à segurança jurídica e a uma tutela efectiva dos seus direitos, além do juízo de desproporcionalidade que sempre imporia em face dos direitos e interesses em presença.

35. A interpretação feita pelo Venerando Tribunal a quo é inconstitucional por violar, desde logo, o disposto no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa e, bem assim, os princípios inerentes ao Estado de Direito Democrático, inscritos no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa (nomeadamente os princípios da segurança e da confiança jurídica), as garantias de defesa tal como consagradas no n.º 1 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, aplicável mutatis mutandis ao processo cível, o direito à propriedade privada tal como consagrado no artigo 62.º da Constituição da República Portuguesa e, em igual medida, os princípios e normas que regem a função jurisdicional, nomeadamente em face do disposto nos artigos 202.º, 203.º e 204.º, todos da Constituição da República Portuguesa.

36. Ao interpretar as normas aplicáveis ao caso concreto, nomeadamente aqueloutras constantes dos artigos 1287.º e seguintes do Código Civil, não pode o intérprete e aplicador da lei de processo deixar de atender aos princípios fundamentais da confiança, da segurança e da proporcionalidade.

37. Analisando a interpretação que dos factos e do Direito aplicável faz, não se aceita - nem pode aceitar - que um órgão de soberania se contradiga a ele próprio, conclua a contrario das premissas que ele próprio constrói, resultando num silogismo inválido e, sobretudo, atentatório dos mais basilares direitos assegurados às pessoas, singulares e colectivas, num Estado de Direito democrático.

Termina pedindo que seja reconhecida a nulidade do acórdão recorrido e determinada a reforma do mesmo, com todas as legais consequências; quanto ao mais, pede que seja revogada a decisão ora recorrida e se julgue improcedente a apelação, com todas as legais consequências.

Contra-alegou a recorrida “Laboratórios AA, Lda", concluindo assim:

a) Deve a recorrente ser convidada a completar, esclarecer e sintetizar as conclusões da revista, nos termos do art.º 639.º n.º 3 do CPC, por as mesmas se apresentarem difusas, pouco inteligíveis, repetitivas e extensas, em desconformidade com o preceituado no n° 1 daquele artigo;

b) O decidido no acórdão recorrido no tocante à matéria constante dos artigos 5.° e 7.º da Base Instrutória é contraditório, tornando a decisão, naqueles pontos, ambígua e obscura e, por isso, ininteligível, integrando a nulidade prevista no art.º 615° n.º 1 alínea c) do CPC e justificando que seja tido em consideração o disposto nos artigos 683.° n° 2 e 684.° do CPC;

c) Falecem todos os fundamentos da revista invocados pela recorrente, pois que a mesma não padece de qualquer vício por falta de fundamentação, tendo decidido corretamente no que toca à inexistência dos requisitos suficientes para que se possa ter como adquirido o direito de propriedade do prédio dos autos por usucapião.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

    

As instâncias consideraram provados os factos seguintes:

A - Encontra-se descrito na CRP de Lisboa sob o n.º 94… (anterior descrição n.º 20612, do Livro n.º 67) o prédio urbano sito na Rua …, n.ºs … e …A, em Alvalade, freguesia do Campo Grande, Lisboa, com a área total de 1032 m2, a área coberta de 756 m2 e a área descoberta de 276 m2, composto por três corpos ligados, com cave, rés-do-chão, 1 ° e 2° andares, anexo com rés-do-chão e primeiro andar e logradouro, inscrito na matriz predial da freguesia de S. João de Brito sob o art. 97..., conforme certidão permanente de fls. 577 e segs., doravante designado, apenas, Prédio;

B - Relativamente ao Prédio, foram feitas as seguintes inscrições:

 - em 07.01.1954, a aquisição, por arrematação, a favor de «DD - Produtos Farmacêuticos, L.da», rectificada, por averbamento, em 16.07.2002, passando ao constar que o sujeito activo é a sociedade «Laboratórios AA, Lda»;

 - em 27.02.2002, a apreensão de bens em processo de falência, cancelada por averbamento de 15.02.2011;

C - Foi lavrado, oficiosamente, em 16.07.2002, um averbamento à inscrição de 07.01.1954 (aquisição), do qual consta que o titular passou a ser «DD - Produtos Farmacêuticos, Lda.», tendo tal averbamento sido cancelado em 17.07.2002;

D - A R ocupa o Prédio;

E - A A., através do advogado signatário da petição inicial, remeteu à R, sob registo e aviso de recepção, a carta cuja cópia consta de fls. 137, datada de 21.01.2011, cujo teor se dá por reproduzido, da qual consta, nomeadamente: “(…) ficam intimados a proceder à respectiva entrega à minha Constituinte, no prazo de 15 dias. A falta de entrega do prédio implicará que vos seja pedida indemnização pejos prejuízos decorrentes da ocupação ilegítima e que se estimam em € 40.000,00 (...)";

F - A R recusou e recusa tal entrega;

G - Encontra-se matriculada na CRC de Lisboa sob o n.º 67..., a sociedade «DD - Produtos Farmacêuticos, Lda.», que mudou a firma para «CC - Produtos Farmacêuticos, Lda.», e para «CC Produtos Farmacêuticos, S.A.», por inscrições de 23.06.92 e 03.05.2001, conforme certidão de fls. 106 a 112;

H - Encontra-se matriculada na CRC de Lisboa sob o n.º 33…., a sociedade «CC Portuguesa, Lda.», que alterou a firma para «EE - Produtos Farmacêuticos, Lda.», para «EE - Produtos Farmacêuticos, S.A.», e para «FF - Farmacêutica, SA», por inscrições de 11.02.92, 12.06.2001 e 11.01.2002, sendo que, pela apresentação n.º 22 de 12.09.91, mostra-se inscrita a alteração da sede para a Rua do …, n.º s … e …A, Lisboa, tudo conforme certidão de fls. 122 a 133;

I - Encontra-se matriculada na CRC de Lisboa sob o n.º …., a sociedade «CC - Produtos Farmacêuticos, SA», tendo sido incorporada por fusão na sociedade «BB - Produtos Farmacêuticos, S.A.», ora R, com transferência global do património, por inscrição de 29.11.2010, conforme certidão permanente de fls. 96 a 105;

J - Encontra-se matriculada na CRC de Lisboa sob o n.º …, a sociedade «FF - Farmacêutica, S.A.», que alterou a firma para «BB - Produtos Farmacêuticos, SA», por inscrição de 12.04.2006, conforme certidão permanente de fls. 113 a 121;

K - A R. ocupa e utiliza o Prédio, desde 23.06.1992, o qual desde então passou a ser a sua sede;

L - No âmbito do Processo n.º 4058/1974, da 3.ª Secção da então 3.ª Vara Cível de Lisboa, posteriormente distribuído à 13.ª Vara Cível de Lisboa, foi proferida sentença, em 13.11.1974, decretando a falência da A., a qual veio a ser confirmada pelo Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 09.03.1976, transitado em julgado em 18.06.1976, conforme certidões de fls. 168 e segs e 247 e seguintes;

M - Ainda no âmbito do referido processo, foi lavrado, em 28.04.1977, um termo de apreensão do Prédio, conforme decorre da mesma certidão;

N - Por requerimento de 06.07.1987, os credores comuns da A., GG, HH e «II & C.ª», que haviam sido reconhecidos e graduados, requereram, ao abrigo o artigo 1266.º do CPC, a convocação de uma assembleia de credores a fim de deliberar sobre a conveniência de se estabelecer um acordo de credores, cujo projecto juntaram com o seu requerimento, e no qual se prevê, nomeadamente, a constituição de uma sociedade integrando os credores comuns cujos créditos fossem de valor, cada um deles, superior a 500 contos, o que deu origem ao Apenso DP (autos de acordo de credores), conforme docs. de fls. 61 a 77 e certidão de fls. 247 e segs;

O - Por despacho proferido no dia 17.07.1987, nos autos de falência, foram declarados suspensos os termos da falência, por ter sido recebido projecto de acordo de credores, conforme certidão de fls. 247 e segs;

P - Ainda por despacho de 17.07.1987, proferido no referido apenso DP, foi recebido o referido projecto de acordo e designada data para a reunião da assembleia de credores, conforme certidão de fls. 247 e segs;

Q - No dia 12.10.1987, foi realizada uma assembleia de credores, na qual foi declarado aceite o acordo de credores proposto, conforme certidão de fls. 247 e segs;

R - Na sequência daquela aprovação, foi constituída pelos credores GG e HH uma sociedade, com a denominação de «DD - Produtos Farmacêuticos, L.da», conforme escritura pública outorgada no dia 09.11.1987, no 17.º Cartório Notarial de Lisboa, a fls. 43 a 44 v.º do “Livro de Notas para escrituras diversas” n.º 252-F daquele Cartório, conforme doc. de fls. 87 a 93;

S - Por despacho proferido no referido apenso DP, em 25.11.1987, foi homologado o referido acordo de credores;

T - No dia 08.04.1988, foi lavrado, nos autos de falência, um termo de entrega de bens, nos termos do qual o então administrador da falência entregou à sociedade «DD - Produtos Farmacêuticos, L.da»., todos os bens que se encontravam apreendidos para a massa falida de «Laboratórios AA, Lda.», e que se encontram descritos nos autos de arrolamento junto ao processo, conforme doc. de fls. 95;

U - Na sequência de um requerimento apresentado pela falida, ora A., em 27.11.1989, nos autos de falência, e dos acórdãos proferidos, em 13.02.1992, pelo Tribunal da Relação de Lisboa, e em 10.12.1992 pelo STJ, foram, por despacho de 09.07.1993, transitado em julgado, declarados anulados todos os trâmites processuais posteriores aos despachos de 17.07.1987 a que se alude nas als O) e P), conforme doc. de fls. 139 a 165 e certidões referidas;

V - No dia 11.04.1994, foi realizada uma assembleia de credores, na qual foi declarado aceite o acordo de credores que havia sido apresentado em 06.07.1987 com as respectivas alterações, sendo que, para cumprimento do disposto no artigo 1167.º n.º 3 do CPC, foi fixado um prazo de 45 dias, conforme certidão de fls. 247 e segs;

W - No dia 20.07.2006, foi proferido despacho no apenso DP, que declarou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, mas onde consta que “(…) não foi dado cumprimento: a) ao judicialmente determinado na assembleia de credores a que se reporta a acta de fls. 285-289 (…) (a de 11.04.94); b) ao estipulado no art.º 1167.º n.º 3 do CPG. Consequentemente (…) há agora que dar sem eleito, o deliberado na assembleia de credores (…), assim como o projecto de acordo apresentado a fls 1-3, o que, inevitavelmente acarreta a insubsistência da razão de ser da presente acção", confirmado por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14.06.2007, cujo teor se dá aqui por reproduzido, do qual foi interposto, ainda, recurso para o STJ, que dele não conheceu por inadmissibilidade, conforme despacho de 14.02.2008, transitado em julgado em 08.05.2008 (cfr. certidão de fls. 247 e segs.);

X - No dia 06.07.2001, o senhor liquidatário judicial apresentou, no âmbito do apenso DU (liquidação) requerimento manifestando o entendimento de que, em virtude da anulação supra referida, «(…) ficam prejudicados todos os actos processuais efectuados depois de 17.07.1987, designadamente a transferência do bem imóvel (…), pelo que o bem imóvel (…), que lhe foi entregue, deve reverter para a massa falida, o que desde já se requer», com vista à respectiva venda, conforme certidão de fls. 247 e segs.;

Y - Tal requerimento foi deferido por despacho datado de 12.11.2001, conforme certidão de fls. 247 e segs.;

Z - Em 02.01.2002, foi elaborado pelo senhor liquidatário um auto de arrolamento e apreensão de bens, do qual consta que o Prédio foi apreendido, conforme certidão de fls. 247 e segs.;

AA - No dia 18.10.2002, a sociedade «FF - Farmacêutica, SA», apresentou requerimento nos autos de falência, querendo a sua habilitação como cessionária dos credores da falida, o que veio a ser liminarmente indeferido por despacho de 25.03.2003, transitado em julgado, que se dá por reproduzido, mas do qual consta, nomeadamente, "a sociedade DD, L.da, da qual a requerente FF alega ser cessionária, não tem qualquer existência legal, tanto mais que o acordo de credores obtido na assembleia realizada em 12.10.87 (…) e respectivo despacho homologatório, com base nos quais a mesma sociedade foi constituída, foram anulados pelo Tribunal Superior, tendo sido anulado todo o processado daquele apenso posterior a fls. 37, incluindo o referido acordo e despacho homologatório», conforme certidão de tis. 247 e segs;

BB - Por requerimento de 11.12.2002, apresentado no âmbito do apenso DU (liquidação), o senhor liquidatário informou que os sócios da falida desejam pôr fim ao processo de falência, pagando a todos os credores com créditos verificados, e requereu que fosse autorizada a publicação de anúncios visando notificar os credores que não fossem localizados directamente, com vista a lhes fazer pagamento, o que foi deferido por despacho de 11.02.2003, proferido nos autos de falência, transitado em julgado, conforme certidão de fls. 247 e segs.;

CC - Por despacho de 14.01.2010, foi determinado o levantamento da inibição da falida e a entrega à mesma do bem imóvel apreendido no âmbito dos autos, tendo tal decisão sido confirmada pelo Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 25.11.2010, cujo teor se dá por reproduzido, transitado em julgado em 13.12.2010, conforme certidão de fls. 247 e segs.;

Da Base Instrutória

1. Apesar do que consta da al. Z), nunca foram feitas diligências com vista à entrega efectiva do prédio, continuando o mesmo a ser ocupado e utilizado pela R. (resposta ao n.º 1 da BI);

2. Até à carta referida em E), nunca ninguém contestou o que consta das als. D) e K) (resposta ao n.º 2 da BI);

3. O que consta das als. D) e K) ocorreu à vista de toda a gente e foi sempre do conhecimento geral (resposta ao n.º 3 da BI);

4. O Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI) incidente sobre o Prédio foi emitido em nome da sociedade «CC - Produtos Farmacêuticos, L.da», entre 1993 e 2000 e em nome de «CC - Produtos Farmacêuticos, SA», entre 2000 e 2010, sendo que a segunda prestação do IMI de 2010 foi paga, em Setembro de 2011, por débito numa conta da titularidade da ora R. (resposta ao n.º 4 da BI);

5. A sociedade CC e, depois, a R. ignoravam que, ao passar a ocupar o Prédio, lesavam o direito de outrem (resposta ao n.º 5 da BI);

6. Em 10.09.1993, o advogado signatário da petição inicial remeteu cartas às sociedades «JJ - Sociedade Industrial de Expansão Farmacêutica, L.da», e «KK - Produtos Farmacêuticos, L.da», alertando-as de que a «DD», então já com a denominação «CC - Produtos Farmacêuticos, L.da», deixara de ter existência jurídica (resposta ao n.º 6 da BI);

7. Os relatórios anuais da sociedade “CC - Produtos Farmacêuticos, S.A.”, juntos a fls. 745 a 916, reconhecem a existência de um litigio sobre a legitima propriedade do prédio "entre a empresa e uma entidade externa" (resposta ao n.º 7 da BI).

Das certidões juntas após a BI (cfr. fls. 659)

8. Através da inscrição n.º 33.854, de 07.01.1954, foi inscrita a transmissão do prédio identificado na al. A), por arrematação, conforme certidão de fls. 666 a 680, que se dá por reproduzida;

9. Pela ap. n.º 2 de 05.07.1988, foi lavrado o averbamento n.º 2 à inscrição referida na al. B), com o seguinte teor “a titular da inscrição 33.854 passou a ser DD - Produtos Farmacêuticos, L.da (…) nos termos do acordo de credores homologado no processo de declaração de falência da sociedade AA”, conforme decorre da mesma certidão;

10. O prédio identificado na al. A) encontra-se inscrito na matriz predial urbana da freguesia de São João de Brito sob o art. 972.º, sendo titular a ora A., conforme certidões de fls. 698 a 700 e 705 a 707;

11. Tal prédio foi inscrito na matriz no ano de 1955, sob o artigo 15… da freguesia do Campo Grande, e esteve inscrito, a partir de 1988, em nome de «DD Produtos Farmacêuticos, L.da», e, a partir de 1996, em nome de «CC Produtos Farmacêuticos, L.da», por alteração da firma social em 14.05.1992. (fls 1019 a 1025).


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Pretende a ré/reconvinte que, na revista, a reconvenção por si deduzida seja julgada procedente, isto é, que a autora seja condenada a reconhecer que a ré é titular do direito de propriedade incidente sobre o prédio urbano sito na Rua …, n.º … e …A, em Alvalade, freguesia do Campo Grande, Lisboa, inscrito na matriz predial da freguesia de S. João de Brito sob o artigo 97… e descrito na CRP de Lisboa sob o n.º 94…, por o ter adquirido por usucapião.

Asseverando que é a exclusiva dona deste prédio urbano, a autora/reconvinda nega à ré este invocado direito de propriedade e afirma que a demandada não adquiriu tal imóvel por usucapião.

A 1.ª instância julgou procedente a reconvenção.

Todavia a Relação, declarando que a autora é a legítima proprietária do prédio urbano que reivindica, absolveu a demandante do pedido reconvencional contra ela deduzido pela demandada:

 - Se é indesmentível que a posse, mantida pelas entidades cuja situação jurídica é actualmente detida pela Ré, começou por ser titulada, pacífica e de boa-fé, pois “no dia 08.04.1988, foi lavrado, nos autos de falência, um termo de entrega de bens, nos termos do qual o então administrador da falência entregou à sociedade «DD - Produtos Farmacêuticos, L.da», todos os bens que se encontravam apreendidos para a massa falida de «Laboratórios AA, Lda», e que se encontram descritos nos autos de arrolamento junto ao processo, conforme doc. de fls. 95”, menos verdade não é que "na sequência de um requerimento apresentado pela falida, ora A., em 27.11.1989, nos autos de falência, e dos acórdãos proferidos, em 13.02.1992, pelo Tribunal da Relação de Lisboa, e em 10.12.1992 pelo STJ, foram, por despacho de 09.07.1993, transitado em julgado, declarados anulados todos os trâmites processuais posteriores aos despachos de 17.07.1987 a que se alude nas als O) e P), conforme doc. de fls. 139 a 165 e certidões referidas", pelo menos desde 10.12.1992 (data do acórdão proferido pelo STJ) e, no máximo, a partir de 09.07.1993 (data do despacho proferido pelo Tribunal de l.ª instância), que essa posse passou a ser não titulada, não pacífica e de má-fé, e, mais do que isso, após 02.01.2002 deixou mesmo de ser posse para passar a ser uma mera detenção, ainda por cima ilícita porque em patente violação de um auto de arrolamento e apreensão de bens determinado por decisão judicial transitada em julgado.

A consciência que a parte poderá ou não ter sobre a ilicitude da sua conduta é irrelevante porque a certeza e a segurança do comércio jurídico e o princípio da tutela da confiança impõe que os julgamentos sejam feitos não a partir do que sabe ou não sabe uma qualquer pessoa física - ou seja do real declaratário (e da boa ou má fé individual do mesmo) - mas sim do que era exigível que soubesse (art.º 6.° do Código Civil) porque seria necessariamente essa a convicção do declaratório normal colocado na posição do real declaratário (idem, art.º 236.° do Código Civil); e, porque assim é, nesse dia 02.01.2002 não havia ainda decorrido o período de tempo previsto na alínea b) do art.º 1249.º do Código Civil, há razão para se declarar e decretar que a ré não adquiriu por usucapião a propriedade do imóvel dos autos - conclui a Relação.

É contra esta decisão que a ré/recorrente se insurge.

Apontando ao acórdão recorrido a nulidade prescrita no artigo 615.º, n.º1, alínea b), C.P.Civil (falta de fundamentação), argumenta a recorrente "BB - Produtos Farmacêuticos, SA" que tem justo título de posse (a entrega judicial do imóvel realizada em 1988 e resultante da homologação do acordo de credores), momento a partir do qual se constituiu legítima proprietária do imóvel e, ininterruptamente, o vem possuindo.

    

Não obstante a existência da posterior anulação dos actos processuais do processo de falência, e, por isso, se ter tornado inválido o título de aquisição – prossegue a recorrente - a posse continuou a permanecer titulada; e só em Janeiro de 2011 é que a recorrida veio contestar tal posse, isto é, volvidos mais de vinte anos desde que a recorrente exercia a posse sobre o imóvel em disputa nos presentes autos.

Com excepção do indeferimento da sua habilitação como cessionária dos acordos da falida por despacho de 25.03.2003, a recorrente não é parte no processo de falência e, por isso, não foi notificada de qualquer acto processual no âmbito destes autos; não lhe não podem, assim, ser atribuídos quaisquer efeitos referentemente ao que foi decidido no acórdão de 10.12.1992, no despacho do Tribunal de 1.ª instância de 09.07.1993 e no auto de arrolamento de bens verificado em 02.01.2002 (elaborado pelo senhor liquidatário).

Vejamos, então, se lhe assiste razão.


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I. A sentença - ou acórdão - é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão - artigo 615.º, n.º 1, alínea b), C.P.Civil.

A "ratio" deste imperativo legal, que concede tão grande importância à motivação da sentença, tomando-a nula se esta for omitida, é fácil de descortinar, no dizer do Prof. Alberto dos Reis (in Cód. Proc. Civil Anotado; Vol. V; pág. 139):

- Razão substancial. A sentença deve representar a adaptação da vontade abstracta da lei ao caso particular submetido à apreciação do Juiz; ao comando geral e abstracto da lei o magistrado substitui um comando particular e concreto. Não se podendo este comando gerar arbitrariamente, cumpre ao Juiz demonstrar que a solução dada ao caso é legal e justa, ou, por outras palavras, que é a emanação correcta da vontade da lei.

- Razões práticas. As partes precisam de ser elucidadas a respeito dos motivos da decisão. Sobretudo a parte vencida tem o direito de saber por que razão lhe foi desfavorável a sentença.

Tenha-se, porém, em atenção que o que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação, não se podendo considerar nula a sentença que se caracteriza por uma motivação deficiente, medíocre ou errada (Prof. A. dos Reis; ob. citada; pág. 140).
Esta doutrina é a que tem sido seguida, desde há muito tempo, pela nossa jurisprudência (v. g. Ac. do S.T.J. de 14/01/93; BMJ; 423 °; pág. 519).
    
Cuidando o acórdão recorrido na procura da fundamentação jurídico-positiva que determinou a solução do litígio em que as partes estão envolvidas, esta nulidade não é suscetível de ser imputada à decisão proferida pela Relação.


II. No processo comum a nossa lei consagra a teoria da substanciação, segundo a qual o objecto da acção é o pedido mas definido através de certa causa de pedir (Ac. do STJ de 26.10.1975; Boletim; 250.º, pág. 150, anotado na RLJ n.º 109, pág. 311).
Bastará que o demandante descreva com cuidado - e prove - os factos que fundamentam o seu direito e isso chegará para que o Tribunal lhe conceda esse direito a que se arroga (como o pretor romano: "da mihi factum dabo tibi jus").

    
A presente lide configura, sem dúvida, uma acção de reivindicação.
Através dela a autora pretende, essencialmente, que a ré lhe restitua identificado prédio urbano que esta ocupa.

Nas acções de reivindicação incumbe ao autor demonstrar que tem o direito de propriedade sobre a coisa reivindicada e que esse direito se encontra na posse ou detenção de outrem. E é tudo quanto basta para que a entrega da coisa se faça ao reivindicante.

Só assim não acontecerá se o detentor da coisa demonstrar possuir direito real ou obrigacional que faça obstar ao exercício pleno do direito de propriedade, direito que consubstancia uma excepção peremptória (art.º 493.º, n.º 3, do C.P.Civil) e que o réu pode invocar no processo em seu proveito.

Na presente acção a autora pede o reconhecimento do direito de propriedade sobre o prédio urbano sito na Rua …. n.º … e …-A, em Alvalade, Lisboa, descrito na CRP de Lisboa sob o n.º 94…, da freguesia do Campo Grande e que a ré lhe restitua este imóvel.

Por sua vez a ré invoca em seu favor que, desde 8/04/1988 que está na posse deste prédio, a qual se manteve ininterruptamente até à presente data, de forma pública, pacífica e de boa - fé, nunca tendo tal posse sido contestada até Janeiro de 2011, pelo que adquiriu a propriedade do referido prédio por usucapião.

Em reconvenção pede o reconhecimento da aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre o prédio reivindicado.

Logrou a ré provar este desiderato, capaz de obstar a que à autora possa ser reconhecida a sua pretensão reivindicante e, simultaneamente, lhe proporcionar a propriedade deste diferenciado prédio?

     

III. De acordo com o art. 1251.º do Código Civil, a posse é concebida como o poder de facto que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.

A lei portuguesa veio consagrar, assim, a concepção subjectivista de posse (saliente-se, contudo, a tese defendida por Menezes Cordeiro no sentido de uma orientação objectivista do nosso Código Civil - in A Posse; Perspectivas Dogmáticas Actuais; pág. 54 e segs.), seguindo de perto Savigny, sendo possuidor aquele que, actuando por si ou por intermédio de outrem (art. 1252° n° l CC), além do "corpus" possessório tem também o "animus possidendi" que se caracteriza pela intenção de exercer sobre a coisa um direito real próprio.

Distingue a lei diferentes espécies de posse - titulada ou não titulada, de boa ou de má fé, pacífica ou violenta, pública ou oculta (art.º 1258.º do C.Civil) - a cada uma delas ligando efeitos também diversificados.

A este propósito saliente-se que, como está consagrado no artigo 1287.º do C.Civil, "a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião".

Quer isto dizer que a usucapião, uma forma de constituição de direitos reais, designadamente o direito de propriedade, apoia-se numa situação de posse - corpus e animus - exercida em nome próprio, durante os períodos estabelecidos na lei e revestindo os caracteres que a lei lhe fixa, pública, contínua, pacífica, titulada e de boa fé.

Remontando este instituto já à Lei das 12 Tábuas (usus auctoritas fundi biennium coeterarum rerum annus esto), a noção de usucapião é actualizada e definida por Menezes Cordeiro (in Direitos Reais, II Volume; pág. 670) como "a constituição, facultada ao possuidor, do direito real correspondente à posse, desde que esta, dotada de certas características, se tenha mantido pelo lapso de tempo fixado na lei".

O prazo de usucapião é diferente consoante a natureza da coisa de cuja aquisição se trate e varia conforme as características da posse sobre ela exercida.

Neste enquadramento legal temos que, sendo a posse de boa fé e havendo título de aquisição e registo deste, é de 10 (dez) anos, contados desde a data do registo - alínea a) do art.º 1294.º do C.Civil - o prazo capaz de legitimar a aquisição do direito de propriedade sobre uma coisa imóvel.

Presumindo-se de boa fé a posse titulada e de má fé a não titulada - a posse adquirida com violência é sempre de má fé (art.º 1260.º, n.º 2 e 3, do C.Civil).

A posse diz-se de boa fé, quando o possuidor ignorava, ao adquiri-la, que lesava o direito de outrem (art.º 1260.º, n.º 1, do C.Civil), ou seja, o possuidor, quando começa a gozar a coisa, não merece que seja apodado de malfazejo se actua na convicção de que não está a prejudicar outrem.
Como afirma Menezes Cordeiro (in ob. citada; pág. 675) é de boa fé a posse que, não sendo, na sua origem, violenta, se tenha constituído pensando o possuidor:
 - que tinha, ele próprio, o direito;
 - que ninguém tinha direito algum sobre a coisa.


IV. Como é comummente sabido e resulta da lei, a aquisição da propriedade, por usucapião, de identificado imóvel está dependente da verificação destes requisitos legalmente exigidos: - a posse em nome próprio do bem, ininterruptamente, por determinado período de tempo (de cinco a vinte anos), à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém e na convicção de que é o seu exclusivo dono.
Neste contexto jurídico-positivo está comprovada a seguinte facticidade:
1. Desde 08.04.1988 (altura em que o administrador da falência entregou à sociedade “DD - Produtos Farmacêuticos, L.da” o prédio que, entre outros, se encontrava apreendido para a massa falida de “Laboratórios AA, Lda”) e até à receção da carta com a/r que lhe foi endereçada em 21.01.2011 (que intimava a ré a proceder à entrega do prédio à autora), que a reconvinte/ré "BB - Produtos Farmacêuticos, SA", por si e sua antepossuidora (“CC - Produtos Farmacêuticos, SA”), vem ocupando o prédio urbano sito na Rua … n.º … e …-A, em Alvalade, Lisboa e descrito na CRP de Lisboa sob o n.º 940, da freguesia do Campo Grande (itens E. e T. dos factos provados);

2. Esta posse é ininterrupta - apesar de ter sido elaborado pelo senhor liquidatário um auto de arrolamento e apreensão de bens, do qual consta que o prédio foi apreendido, nunca foram feitas diligências com vista à entrega efectiva do prédio, continuando o mesmo a ser ocupado e utilizado pela R (resposta ao n.º 1 da BI);

3. À vista de toda a gente, sem oposição de ninguém e na convicção de que era a exclusiva dono dele - a21.01.2011 nunca ninguém contestou a ocupação do prédio (resposta ao n.º 2), ocorrida à vista de toda a gente e sempre do conhecimento geral (resposta ao n.º 3 da BI);

4. De boa fé - a ré e a sua antepossuidora “CC - Produtos Farmacêuticos, SA” ignoravam que, ao passar a ocupar o prédio, lesavam o direito de outrem (resposta ao n.º 5 da BI); este estado de graça só findou quando a ré rececionou a carta documentada a fls. 137, através da qual a autora a intimava a entregar-lhe o prédio que ocupava (item E. dos factos provados);

5. O Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI) incidente sobre o prédio, entre 1993 2010 foi emitido em nome da sociedade “CC” e a segunda prestação do IMI de 2010 foi paga, em Setembro de 2011, por débito numa conta da titularidade da ora ré “BB” (resposta ao n.º 4 da BI);

6. A ré goza do privilégio da inscrição do prédio na CRP, em seu favor, desde 05.07.1988 e até 17.07.2002 - pela ap. n.º 2 de 05.07.1988 foi lavrado à inscrição com o seguinte teor “a titular da inscrição 33.854 passou a ser DD - Produtos Farmacêuticos, L.da (…) nos termos do acordo de credores homologado no processo de declaração de falência da sociedade AA” (item 9. dos factos provados); foi lavrado, oficiosamente, em 16.07.2002, um averbamento à inscrição de 07.01.1954 (aquisição), do qual consta que o titular passou a ser “DD - Produtos Farmacêuticos, L.da”, tendo tal averbamento sido cancelado em 17.07.2002 (item C. dos factos provados).

Ponderando este circunstancialismo factual podemos confirmar que, não obstante todas as vicissitudes processuais por que passou o processo de falência (designadamente a anulação de todos os seus trâmites processuais posteriores aos despachos de 17.07.1987), possuindo o prédio de boa fé e apresentando título e registo de aquisição deste imóvel desde 05.07.1988 até 17.07.2002, isto é, durante mais de 10 anos, a ré adquiriu o prédio, por usucapião, ainda antes de 02.01.2002.

Convenhamos, outrossim, que, perdurando a posse para além de 20 anos (desde 08.04.1988 até 21.01.2011), a aquisição do imóvel pela ré, por usucapião, assenta ainda no disposto no art.º 1296.º do C.Civil.

V. Assinala o acórdão recorrido, com a natural aprovação da autora/recorrida, que a reconvenção tem de ser julgada improcedente, uma vez que, pelo menos desde 10.12.1992 (data do acórdão proferido pelo STJ que confirmou a declaração de anulação de todos os trâmites processuais posteriores aos despachos de 17.07.1987, proferida nos autos de falência), no máximo a partir de 09.07.1993 (data do despacho proferido pelo Tribunal de l.ª instância), a posse da ré passou a ser não titulada, não pacífica e de má-fé, e, mais do que isso, após 02.01.2002 deixou mesmo de ser posse para passar a ser uma mera detenção, ainda por cima ilícita porque em patente violação de um auto de arrolamento e apreensão de bens determinado por decisão judicial transitada em julgado.

     Não acompanhamos este entendimento.

A usucapião constitui um modo de aquisição originária, ou seja, é uma forma de constituição de direitos reais e não uma forma de transmissão e, por isso, os direitos que nela tenham a sua origem não sofrem em nada com os vícios de que possam eventualmente padecer os anteriores proprietários sobre a mesma coisa (Menezes Cordeiro; Direitos Reais; II; pág. 684).

Quer isto dizer que a propriedade conferida com base na usucapião não está dependente de qualquer outro circunstancialismo juridicamente relevante que surja ao lado do seu processo aquisitivo e que, só aparentemente poderá interferir neste procedimento de consignação de direitos.

     

Porque se trata de uma aquisição originária, o decurso do tempo necessário à sua conformação faz com que desapareçam todas as incidências que neste processo eventualmente possam ter surgido - a posse que interessa para efeitos de usucapião não é a posse causal, ou seja, a posse conforme com um direito que inquestionavelmente se tem e de que representa simples exteriorização; é a posse formal, correspondente a um direito que comprovadamente se não tem ou que poderá não se ter, mas cujos poderes se exercem como sendo um titular, posse vista com abstracção do direito possuído, algo com existência por si, susceptível de conduzir, pela via da usucapião, à aquisição do direito, caso não se seja, já, senhor dele (Galvão Telles, O Direito, 121.º - 652).

Ora, se é assim, porque a ré adquiriu, por usucapião, o prédio reconvindo ainda anteriormente a 02.01.2002 e nesta aquisição predial não podendo negativamente interferir a verificada invalidade da entrega do prédio à ré efetuada pelo administrador da falência de “Laboratórios AA, Lda”, à demandada assiste o direito que na sua reconvenção roga.

A procedência da revista faz prejudicar a apreciação das demais questões que a recorrente argúi nas suas alegações e atinentes conclusões.

VI. Tem o Julgador, por força no estatuído no art.º 590.º, n.º 3, do C.P.Civil, o poder-dever de convidar as partes a suprir as irregularidades dos articulados, fixando prazo para o suprimento ou correção do vício, designadamente quando careçam de requisitos legais ou a parte não haja apresentado documento essencial ou de que a lei faça depender o prosseguimento da causa.

Pretende o legislador com esta imposição legal que se impeça que alguma das partes veja destruído ou invalidado o seu direito, mercê da ocorrência duma mera irregularidade ou vício de que o outro sujeito processual vai poder aproveitar-se (é esta a ratio da lei).

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 1 do art.º 652.º do C.P.Civil, esta solicitação passou a ser uma incumbência também do Relator no que diz respeito ao convite às partes a aperfeiçoar as conclusões das respetivas alegações, nos termos do n.º 3 do artigo 639.º.

É desta pontificada regalia processual de que a recorrida pretende usufruir.

O recurso é o meio destinado a verberar a decisão proferida no processo que contraria o direito que o recorrente considera ter.

Neste expediente jurídico-processual há-de o recorrente se esforçar por procurar convencer o Tribunal ad quem de que a razão está do seu lado e que merece que seja revogada em seu favor a determinação jurisdicional contra si pronunciada no processo.

A lei permite-lhe que faça esta demonstração, mas impõe-lhe regras no caminho a trilhar para chegar a este seu objectivo:

1. Terá que fazer a alegação dos fundamentos em que baseia a sua discordância, ou seja, deduzirá os motivos que tenha encontrado e capazes de reformar em seu proveito a solução dada ao litígio; e são apenas estas as questões que o Tribunal aprecia;

2. Produzida a alegação exige-se ainda ao recorrente que apresente as conclusões desta sua exposição. Depois de expor sem limites as considerações de direito e de facto que na sua convicção protegem e abarcam o seu direito, prescreve-se-lhe depois que termine esta descrição com a elaboração de um simplificado texto onde se incluam os pontos essenciais em que se alicerça a sua alegação - as conclusões da alegação de recurso são proposições sintéticas onde se sumaria a exposição analítica do corpo das alegações (Ac. do STJ de 6.4.2000; Sumários; 40.º - 25).

   

Circunscrevendo-nos ao caso “sub judice” podemos asseverar que a recorrente pôs nas conclusões de recurso uma inteligível redação, compreensível ao entendimento do Julgador; quer isto dizer que, porque não há qualquer falta na composição dos pontos essenciais da conclusão - resumem de forma concisa os fundamentos por que a recorrente discorda da decisão recorrida e  anteriormente expendidos na sua alegação - soçobra o rogado pedido da recorrida feito neste Supremo Tribunal para que a recorrente seja convidada a completar, esclarecer e sintetizar as conclusões da revista, nos termos do art.º 639.º n.º 3 do C.P.Civil.

VII. Estamos perante uma factualidade obscura quando se não consegue apreender bem o seu conteúdo e determinar com clareza os seus limites e alcance; e existe contradição nas respostas dadas aos quesitos sempre que delas resulta um facto que exclua necessariamente o outro, isto é, quando, seguindo um raciocínio lógico, os factos neles referidos não possam coexistir ente si ou com outro já assente.

Ora, estes dois factos - a sociedade CC e, depois, a ré, ignoravam que, ao passar a ocupar o Prédio, lesavam o direito de outrem (resposta ao n.º 5 da BI) e os relatórios anuais da sociedade “CC - Produtos Farmacêuticos, S.A.”, juntos a fls. 745 a 916, reconhecem a existência de um litigio sobre a legitima propriedade do prédio "entre a empresa e uma entidade externa" (resposta ao n.º 7 da BI) - não estão entre si numa relação de incompreensão absoluta, isto é, o facto de a antepossuidora “CC”, e depois a demandada “BB”, se comportarem como estivessem a ocupar um prédio seu, não contende com estoutra situação, igualmente comprovada, no sentido de que os relatórios anuais da sociedade “CC” apontam para a existência de um litigio sobre a titularidade da propriedade do prédio em disputa por ambas as partes na ação.

Esta última circunstância factual - a existência de um litigio sobre a legitima propriedade do prédio "entre a empresa e uma entidade externa - porque retirada de informações extraídas do Registo Comercial referente à prestação de contas da “CC” e de documentação existente na Sociedade de Revisores Oficiais de Contas, não estorva a nossa perceção sobre o verdadeiro alcance destes relatórios anuais que, unicamente, nos fazem entender que o imóvel em discussão na ação era também reclamado pela autora/recorrida.

Mas esta ocorrência não impede que, ponderadamente, se ajuíze no sentido de que, apesar desta divergência, a “CC” e a demandada “BB” ocupavam o prédio na convicção de que o imóvel era verdadeiramente seu e, por isso, ignoravam que lesavam o direito de outrem.

Concluindo:

1. Sendo a posse de boa fé e havendo título de aquisição e registo deste, é de 10 (dez) anos, contados desde a data do registo - alínea a) do art.º 1294.º do C.Civil - o prazo capaz de legitimar a aquisição do direito de propriedade sobre uma coisa imóvel.

2. Não obstante todas as vicissitudes processuais por que passou o processo de falência - designadamente a anulação de todos os seus trâmites processuais posteriores aos despachos de 17.07.1987 - possuindo o prédio de boa fé e apresentando título e registo de aquisição deste imóvel desde 05.07.1988 até 17.07.2002, isto é, durante mais de 10 anos, a ré adquiriu o prédio, por usucapião, ainda antes de 02.01.2002.

3. A usucapião constitui um modo de aquisição originária, ou seja, é uma forma de constituição de direitos reais e não uma forma de transmissão e, por isso, a propriedade conferida com base na usucapião não está dependente de qualquer outro circunstancialismo juridicamente relevante que surja ao lado do seu processo aquisitivo e que, só aparentemente poderá interferir neste procedimento de consignação de direitos; porque se trata de uma aquisição originária, o decurso do tempo necessário à sua conformação faz com que desapareçam todas as incidências que neste processo eventualmente possam ter surgido.

Pelo exposto, concede-se a revista e, em consequência, revogando-se o acórdão da Relação, mantemos em vigor a sentença proferida em 1.ª instância.

Custas pela autora/recorrida.

    

Supremo Tribunal de Justiça, 9 de fevereiro de 2017.

Silva Gonçalves (Relator)

Joaquim Piçarra

Fernanda Isabel Pereira