Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
774/11.3TTFAR.E1.S1
Nº Convencional: 4ª. SECÇÃO
Relator: PINTO HESPANHOL
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
MATÉRIA DE FACTO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
CONFISSÃO
DOCUMENTO AUTÊNTICO
DESCARACTERIZAÇÃO DE ACIDENTE DE TRABALHO
NEGLIGÊNCIA GROSSEIRA
Data do Acordão: 06/16/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Área Temática:
DIREITO DO TRABALHO - ACIDENTES DE TRABALHO / DIREITO À REPARAÇÃO DOS DANOS EMERGENTES.
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS / PROVAS.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA / FUNDAMENTOS DA REVISTA.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 342.º, N.º 2, 358.º, N.º4, 361.º, 371.º, N.º1.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 674.º, N.º3, 682.º, N.ºS 2 E 3.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 59.º, N.º1, ALS. C) E F).
LEI N.º 98/2009, DE 4 DE SETEMBRO: - ARTIGOS 2.º, 8.º, N.ºS 1 E 2, ALÍNEAS A) E B), 9.º, N.º 1, 14.º, N.º1.
Sumário :
1.  Saber se uma declaração dirigida a terceiro, exarada num auto de ocorrência, tem natureza confessória é matéria da competência exclusiva das instâncias, sobre a qual o Supremo Tribunal de Justiça não pode exercer o seu poder cognitivo, pois a confissão extrajudicial feita a terceiro é apreciada livremente pelo tribunal.

2.  As declarações do sinistrado sobre o modo como ocorreu o acidente, constantes de auto de ocorrência, elaborado pela Guarda Nacional Republicana, porque não se trata de factos atestados com base nas perceções da entidade documentadora, só valem como elemento probatório sujeito à livre apreciação do julgador de facto.

3.  Provando-se a celebração de um contrato de trabalho entre as partes e que foi no âmbito do cumprimento desse contrato que o trabalhador sofreu o acidente a que se referem os autos, tal acidente deve ser qualificado como de trabalho.

4.  Não se tendo provado que o acidente tenha resultado de negligência grosseira do sinistrado, não está excluído o direito à reparação dos atinentes danos emergentes.
Decisão Texto Integral:
 

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

                                                    I

1. Em 17 de junho de 2013, no Tribunal do Trabalho de Faro, Secção Única, AA instaurou a fase contenciosa da presente ação especial emergente de acidente de trabalho, o qual foi participado, em Tribunal, no dia 12 de dezembro de 2011, data em que se iniciou a instância (cf. artigo 26.º, n.º 4, do Código de Processo do Trabalho), contra BB, LDA., e SEGUROS CC, S. A., pedindo a condenação das rés, conforme a sua responsabilidade, no pagamento das pensões, indemnizações e subsídios a que se julga com direito, com fundamento em acidente de trabalho, verificado em 12 de dezembro de 2010, quando exercia a sua atividade profissional de pintor ao serviço da primeira ré, cuja responsabilidade infortunística estava transferida para a mencionada seguradora.

A seguradora contestou, alegando, em suma, que o acidente não ocorreu no tempo de trabalho, nem no exercício da profissão do sinistrado, mas durante o seu período de descanso, sendo que ficou a constar do relatório de urgência do Hospital Distrital de … que o autor apresentava uma taxa de alcoolemia de 0,58 g/l e, além disso, estigmas de etilismo agudo, tendo concluído que o acidente dos autos não pode ser qualificado como acidente de trabalho, devendo a ação improceder.

A empregadora também contestou, invocando que o autor, no momento do acidente, não estava a prestar qualquer atividade profissional, mas sim a descansar na obra e que, pretendendo ir à casa de banho, resolveu saltar da janela do apartamento onde se encontrava para um muro contíguo, tendo caído na rampa de acesso à cave, o que apenas aconteceu por estar sob o efeito de álcool, devendo a ação improceder.
Realizado o julgamento, exarou-se sentença, que absolveu as rés do pedido.

2. Inconformado, o autor apelou para o Tribunal da Relação de Évora, que deliberou nos termos seguintes:

«Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção social do Tribunal da Relação de Évora em julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência, decidir:
1.º - Alterar a resposta à matéria de facto nos termos acima exarados e reconhecer como acidente de trabalho o acidente sofrido pelo autor, a que se referem estes autos, e condenar a ré seguradora, SEGUROS CC, S. A., a:
a) Pagar ao sinistrado a pensão anual e vitalícia no montante de € 6.856,20 (seis mil, oitocentos e cinquenta e seis euros e vinte cêntimos), a partir de 19.09.2011, em catorze frações, no valor mensal € 489,73 (quatrocentos e oitenta e nove euros e setenta e três cêntimos), sendo 12 (doze) correspondentes a cada ano civil e duas correspondentes aos subsídios de férias e de Natal, a pagar respetivamente nos meses de junho e novembro de cada ano, acrescidas dos juros desde a data do respetivo vencimento até pagamento e a reembolsar o Fundo de Acidentes de Trabalho de todas as importâncias adiantadas por este ao sinistrado, a título de pensão provisória.
b) Pagar ao sinistrado a quantia de € 4.132,76 (quatro mil, cento e trinta e dois euros e setenta e seis cêntimos), a título de indemnização pelo período de incapacidade temporária absoluta de 279 (duzentos e setenta e nove) dias, acrescida de subsídios de férias e de Natal; a importância de € 475,00 (quatrocentos e setenta e cinco euros) no ano de 2011, 2012 e 2013 de prestação suplementar por não poder dispensar a assistência de terceira pessoa; a quantia de € 5.533,70 (cinco mil, quinhentos e trinta e três euros e setenta cêntimos), a título de subsídio por situação de elevada incapacidade permanente; da quantia de € 5.533,70 (cinco mil, quinhentos e trinta e três euros e setenta cêntimos), a título de subsídio para readaptação de habitação do sinistrado; as importâncias de € 145,10 (cento e quarenta e cinco euros e dez cêntimos) de despesas com taxas moderadoras, € 50,00 (cinquenta euros) de despesas efetuadas com junta médica, € 61,60 (sessenta e um euros e sessenta cêntimos) de despesas com sessões de medicina física e reabilitação, € 62,96 (sessenta e dois euros e noventa e seis cêntimos) de despesas efetuadas com sonda de esvaziamento com coletor, € 645,67 (seiscentos e quarenta e cinco euros e sessenta e sete cêntimos) respeitante a despesas efetuadas com medicamentos, e o montante de € 179,90 (cento e setenta e nove euros e noventa cêntimos) de despesas de deslocação ao tribunal, tudo acrescido de juros à taxa legal, desde o respetivo vencimento até pagamento.
c) Fornecer uma cadeira de rodas elétrica ou o seu valor equivalente para maior autonomia do A.; o ressarcimento das despesas vencidas, caso as haja entretanto, a liquidar no incidente, e vincendas com apoio de fisioterapia regular, material de apoio para treino esfincteriano e medicação crónica ao longo da sua vida.
2.º - Absolver a R. empregadora da totalidade do pedido e a seguradora do mais que é pedido.
3.º - Confirmar quanto ao mais a sentença recorrida.»

É contra esta deliberação que a ré seguradora, agora, se insurge, mediante recurso de revista, em que formulou as seguintes conclusões:

«1.   O princípio da apreciação de todos os meios probatórios carreados para os autos funda-‑se na livre e consciente, segundo as regras da experiência comum, convicção da entidade competente, princípio este que resulta dos comandos legais, mormente, o preceituado no artigo 607.º do C.P.C.;
2. As declarações prestadas pelo próprio sinistrado no auto de fls. 320: “que se encontrava a descansar no interior de um dos apartamentos, pretendeu deslocar-se a casa de banho, para isto decidiu saltar da janela do apartamento, para o muro que dá acesso a cave do prédios, tendo ido cair na rampa de acesos à cave”, têm o valor de confissão;
3. Relativamente à valoração do documento de fls. 320 atente-se no predito no n.º 1 do art. 371.º do Código Civil, “Os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respetivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas perceções da entidade documentadora (...)”;
4. Não foi arguida a falsidade do auto de declarações constante de fls. 320;
5. Decorre do estatuído no art. 674.º do CPC que está fora dos poderes de cognição do STJ a valoração das provas, sua apreciação e alteração da matéria de facto, exceto nos casos excecionais previstos no n.º 3 do citado artigo, nos termos e para efeitos do disposto no n.º 2 do art. 682.º do CPC;
6. Ao ser reconhecida a autenticidade do documento a fls. 320, “(...) a materialidade das declarações vertidas no documento ou dos factos nele referidos têm-se como plenamente provados, vinculando o seu autor na medida em que foram contrárias ao seu interesse. Acolhem-se aqui, de pleno, os princípios da confissão como declaração de reconhecimento da realidade de factos desfavoráveis ao declarante e favoráveis à parte contrária, mas indivisível”, tal como foi decidido no Acórdão do STJ de 02/05/2012 do Proc. N.º 44768/09.9YIPRT.P1.S1;
7. Fixada a força formal do auto constante de fls. 320, nada mais pode resultar que as declarações aí apostas têm de ser dadas como plenamente provadas, valendo como confissão do autor, vigorando o princípio da prova legal e não o da livre apreciação da prova;
8. O processo deverá ser remetido ao tribunal recorrido, para saneamento da contradição na decisão sobre a matéria de facto e que inviabilizam a decisão jurídica do pleito, nos termos do disposto no art. 682.º, n.º 3 do CPC, alterando a matéria constante dos quesitos 5.º e 6.º da BI, passando os mesmos a constar como provados;
9. O acidente de trabalho dos presentes autos não ocorreu no tempo de trabalho, nem no exercício da profissão do sinistrado, mas sim durante o seu período de descanso;
10. Estatui o art. 8.º, n.º 1, da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro que: “É acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza direta ou indiretamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte”;
11. O A. não se encontrava no período normal de trabalho, pois já tinha terminado o seu serviço. Também não se trata de qualquer ato relacionado com o trabalho, pois o A. já se encontrava no apartamento para descansar;
12. Por outro lado, sempre se dirá, sem contudo conceder, que caso se considere que o acidente dos presentes autos ocorreu no tempo de trabalho, e portanto seja o mesmo configurado como acidente de trabalho, que o mesmo está descaracterizado, nos termos do art. 14.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 98/2009;
13. Nos termos do disposto no art. 14.º, n.º 3, da Lei n.º 98/2009: “Entende-se por negligência grosseira o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em ato ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão”;
14. O A., ao optar por saltar de uma janela de uma altura de cerca de 5 metros, quando existia uma porta que lhe dava acesso ao exterior, para um muro existente no solo, colocou em perigo a sua vida e a sua integridade física e agiu o mesmo com negligência grosseira, pois a sua conduta, em concreto, foi grave e não seria praticada pelo bonus pater familias

A final pede a alteração do acórdão recorrido e a sua absolvição do pedido.

O autor contra-alegou, defendendo a confirmação do julgado, e requereu a ampliação do âmbito do presente recurso, tendo a este propósito, na conclusão 13.ª da respetiva contra-alegação, exarado a seguinte proposição: «Requer, por último, a concessão do pleito constante do n.º 6 do pedido dirigido à entidade seguradora: “a importância de € 16.601,10 (14 IAS x 36) respeitante a subsídio para frequência de ações no âmbito da reabilitação profissional”, nos termos do artigo 684.º-A.»

A seguradora não respondeu à matéria da ampliação do âmbito do recurso.

Neste Supremo Tribunal, a Ex.ma Procuradora-Geral-Adjunta concluiu que se devia negar a revista, parecer que, notificado às partes, suscitou resposta do autor, o qual veio reiterar o entendimento já explicitado na respetiva contra-alegação.

3. No caso vertente, as questões suscitadas são as que se passam a enunciar:

–   Se ocorreu erro na apreciação das provas e na fixação da matéria de facto (conclusões 1.ª a 8.ª da alegação do recurso de revista);
  Se o acidente deve ser qualificado como de trabalho (conclusões 9.ª a 11.ª da alegação do recurso de revista);
  Se está excluído o direito à reparação dos danos emergentes do acidente, por o mesmo resultar de negligência grosseira do sinistrado (conclusões 12.ª a 14.ª da alegação do recurso de revista);
–   Se deve julgar-se procedente o n.º 6 do pedido dirigido à ré seguradora, na importância de € 16.601,10 (14 IAS x 36), respeitante ao subsídio para frequência de ações no âmbito da reabilitação profissional (conclusão 13.ª da contra-alegação do recorrido).

Preparada a decisão, cumpre julgar o objeto do recurso interposto.

                                              II

1. O tribunal recorrido deu como provados os factos seguintes:
A) O autor AA nasceu no dia 13 de fevereiro de 1985;
B) Entre o autor AA e a ré BB, Lda., foi celebrado acordo denominado «contrato de trabalho», mediante o qual o autor/sinistrado foi admitido ao serviço da ré para, sob as suas ordens, direção e fiscalização, desempenhar as funções atinentes à categoria profissional de pintor de edifícios, auferindo uma contrapartida monetária;
C) No dia 11 de dezembro de 2010, o autor, juntamente com outros trabalhadores da ré BB, Lda., prestou trabalho por conta e sob as ordens da ré numa obra de construção civil, no empreendimento …., na Rua …., em …, prolongando-se a jornada de trabalho pela noite dentro até ao dia 12 de dezembro de 2010;
D) Quando se encontrava na referida obra, o autor caiu, de uma altura de pelo menos quatro metros, na rampa de acesso à cave, sendo transportado pela viatura do INEM – Instituto de Emergência Médica para o Serviço de Urgência do Hospital Distrital de …, onde foi admitido no dia 12 de dezembro de 2010 pelas 5 horas e 21 minutos, sendo transferido ainda nesse dia para o Hospital de … em … — facto alterado pelo Tribunal da Relação;
E) No Hospital Distrital de …, o autor foi submetido a análises ao sangue as quais, além do mais, revelaram que o mesmo estava com uma taxa de álcool no sangue de 0,59 g/l;
F) O espaço aberto na parede do rés-do-chão, destinado a uma janela, encontra-se a 1 metro de altura do solo do quarto com uma largura de aproximadamente 1,70 m e a cerca de 4 metros de altura do chão da cave — facto alterado pelo Tribunal da Relação;
G) Em 12 de dezembro de 2010, a ré BB, Lda., tinha a sua responsabilidade emergente de acidente de trabalho transferida para a ré SEGUROS CC, S. A., mediante contrato de seguro titulado pela apólice n.º …/…556/…, com base, no que respeita ao autor, na retribuição anual no valor de € 7.618,00  (sete mil seiscentos e dezoito euros), sendo a retribuição mensal base de € 475,00 (quatrocentos e setenta e cinco euros) por 14 meses e o subsídio de alimentação no montante de € 88,00  (oitenta e oito euros) por 11 meses;
H) DD nasceu no dia 01 de março de 2005, é filha do autor AA e de EE;
I) Na tentativa de conciliação realizada no dia 17 de maio de 2012, na qual estiveram presentes o sinistrado e a ré SEGUROS CC, S. A., a ré não reconheceu a existência e caraterização do acidente como de trabalho, não aceitou a causalidade entre o acidente e as lesões, não aceitou o resultado do exame médico efetuado pelo senhor perito médico nomeado pelo tribunal, aceitando o salário mensal de € 106,65, não assumindo a responsabilidade pelo acidente nem pelo pagamento de quaisquer pensões, indemnizações ou despesas;
J) Após participação efetuada pela ré BB, Lda., em 14 de dezembro de 2010, a Autoridade Para As Condições do Trabalho elaborou o escrito de fls. 119 a 127 dos autos, no essencial com o seguinte teor: «Inquérito sumário e urgente de acidente de trabalho n.º …024, de 17 de junho de 2011. 1. Identificação do Empregador. 1.1 Designação Social – BB, Lda. (…) 1.3 Local de Trabalho – …, … (…) 3 Identificação do Acidentado. 3.1 Nome – AA (…) 3.6 Categoria Profissional/Atividade desenvolvida – Pintor (…) 3.9 Local do Acidente – …, … 4. Do Acidente. 4.1 Data – 12 de dezembro de 2010. Hora – 1h30m-2h00. Dia da semana – Domingo (…) 4.5 N.º total trabalhadores no local – 6 (…) 4.8 Entidade Participante – BB, Lda. 4.9 Data da Participação à ACT – 14/12/2010 (…) 4.11 Descrição sumária do acidente – O acidente consistiu na queda de trabalhador de uma janela de um apartamento situado do R/C para a rampa de acesso à cave do lote M (cerca de 4 metros de altura) causando lesões muito graves no trabalhador (…) 7.5 Conclusão. O local onde ocorreu o acidente é um estaleiro de construção civil, sendo por isso aplicável o DL n.º 273/2003, de 29/10, conjugado com o Decreto n.º 41821/1958, de 11/08, a qual estabelece as normas de segurança no trabalho da Construção Civil. Assim, à luz dos referidos diplomas legais e de acordo com os factos apurados foi possível concluir que o estaleiro cumpria as normas de segurança dispostas no referido diploma. A entidade empregadora demonstrou ter promovido a realização de ações de formação em Segurança e Saúde no Trabalho, nas quais participou o trabalhador sinistrado e de ter organizado Serviços de Segurança e saúde no Trabalho. Das averiguações realizadas e face às declarações do trabalhador não é possível apurar as razões de ocorrência do sinistro (…) O/A Inspetor/a do Trabalho (…)» — na enunciação da matéria de facto repete-se a alínea J);
J) O autor foi submetido a exame médico direto realizado pelo senhor perito médico nomeado pelo tribunal, em 19 de março de 2012, o qual concluiu que o autor/sinistrado esteve afetado de Incapacidade Temporária Absoluta para o Trabalho (ITA) por um período de 279 dias, entre 12 de dezembro de 2010 e 18 de setembro de 2011, e desde então está afetado de Incapacidade Permanente Parcial para o Trabalho (IPP) de 91% com Incapacidade Permanente Absoluta (IPA), necessitando de apoio permanente de terceira pessoa nas atividades da vida diária, necessitando de fisioterapia regular no domicílio e de cadeira de rodas e de adaptação do domicílio e material de apoio para treino esfincteriano;
L) (2.º da base instrutória) – Provado apenas que, a hora não apurada do dia 12 de dezembro de 2010, o autor subiu da cave para o rés-do-chão — facto alterado pelo Tribunal da Relação;
M) (8.º da base instrutória) – O edifício onde o autor estava a prestar a sua atividade tinha uma porta principal que dava acesso direto ao exterior, a qual tinha sido utilizada pelo A. para aceder ao interior do edifício — facto alterado pelo Tribunal da Relação;
N) (14.º da BI) – O autor despendeu em taxas moderadoras o montante de 145,10 € (cento e quarenta e cinco euros e dez cêntimos) — facto aditado pelo Tribunal da Relação;
O) (15.º da BI) – Despendeu € 50,00 (cinquenta euros) com a realização de uma junta médica — facto aditado pelo Tribunal da Relação;
P) (16.º da BI) – Despendeu € 61,60 (sessenta e um euros e sessenta cêntimos) com sessões de medicina física e reabilitação — facto aditado pelo Tribunal da Relação;
Q) (17.º da BI) - Despendeu € 62,96 (sessenta e dois euros e noventa e seis cêntimos) com sonda para esvaziamento com coletor — facto aditado pelo Tribunal da Relação;
R) (18.º da BI) – Despendeu € 645,67 (seiscentos e quarenta e cinco euros e sessenta e sete cêntimos) em fármacos — facto aditado pelo Tribunal da Relação;
S) (20.º da BI) - O autor despendeu com deslocações obrigatórias a este tribunal, Centro de Saúde de … e Segurança Social de … o montante de € 179,90 (cento e setenta e nove euros e noventa cêntimos) — facto aditado pelo Tribunal da Relação;
T) Em consequência direta e necessária da queda o autor sofreu traumatismo da coluna cervical com fratura luxação anterior C4-C5 com lesão vertebro medular de que resultou tetraplegia e apresenta atualmente um quadro de tetraplegia completa com nível motor sensitivo C4 bilateral, sem movimentos ativos ou de contração muscular visível ou palpável em qualquer grupo muscular dos quatro membros;
U) O autor necessita de apoio total para as atividades da vida diária;
V) As lesões sofridas pelo autor determinaram-lhe um período de Incapacidade Temporária Absoluta para o trabalho (ITA) de 279 dias, a partir da data do acidente 12 de dezembro de 2010 e a data da alta em 18 de setembro de 2011;
X) Em consequência da queda o autor ficou afetado de Incapacidade Permanente Parcial para o trabalho (IPP) de 91%, com Incapacidade Permanente Absoluta para o Trabalho (IPA) desde o dia seguinte ao da alta que lhe foi dada em 18 de setembro de 2011.

A ré/recorrente sustenta, no entanto, que «[a]s declarações prestadas pelo próprio sinistrado no auto de fls. 320 — “que se encontrava a descansar no interior de um dos apartamentos, pretendeu deslocar-se a casa de banho, para isto decidiu saltar da janela do apartamento, para o muro que dá acesso a cave do prédios, tendo ido cair na rampa de acesos à cave” — têm o valor de confissão, que o documento de fls. 320 deve ser valorado conforme o estabelecido no n.º 1 do art. 371.º do Código Civil e que, «[a]o ser reconhecida a autenticidade do documento a fls. 320, “(...) a materialidade das declarações vertidas no documento ou dos factos nele referidos têm-se como plenamente provados, vinculando o seu autor na medida em que foram contrárias ao seu interesse».

Mais aduz que, «[f]ixada a força formal do auto constante de fls. 320, nada mais pode resultar que as declarações aí apostas têm de ser dadas como plenamente provadas, valendo como confissão do autor, vigorando o princípio da prova legal e não o da livre apreciação da prova», pelo que «[o] processo deverá ser remetido ao tribunal recorrido, para saneamento da contradição na decisão sobre a matéria de facto e que inviabilizam a decisão jurídica do pleito, nos termos do disposto no art. 682.º, n.º 3 do CPC, alterando a matéria constante dos quesitos 5.º e 6.º da BI, passando os mesmos a constar como provados».

Tais questões prendem-se com a fixação dos factos materiais da causa.

O certo é que, em sede de recurso de revista, a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito do apuramento da matéria de facto, é residual e visa, exclusivamente, apreciar a observância das regras de direito material probatório, previstas nos conjugados artigos 674.º, n.º 3, e 682.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Civil, ou a mandar ampliar a decisão sobre a matéria de facto, nos termos do n.º 3 do artigo 682.º do mesmo diploma legal.

Especificamente, o n.º 3 do artigo 674.º citado estabelece que «[o] erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova», e o n.º 2 do artigo 682.º referido determina que «[a] decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excecional previsto no n.º 3 do artigo 674.º».

Assim, no respeitante à modificabilidade da decisão de facto, a intervenção deste Supremo Tribunal reconduz-se à verificação da conformidade da decisão de facto com o direito probatório material, nos estritos termos dos normativos citados.

No caso, a recorrente funda a pretensão de alteração da decisão sobre a matéria de facto provada na força probatória das declarações reportadas ao autor, sinistrado, no auto de ocorrência de fls. 320, elaborado por um elemento da Guarda Nacional Republicana, que reputa como confissão, e na força probatória do próprio auto de ocorrência, à luz do disposto no n.º 1 do art. 371.º do Código Civil.

Ora, saber se determinada declaração feita a terceiro e que foi exarada num auto de ocorrência tem natureza confessória é matéria da competência exclusiva das instâncias, sobre a qual o Supremo Tribunal de Justiça não pode exercer o seu poder cognitivo, porquanto, conforme estabelece o n.º 4 do artigo 358.º do Código Civil, a confissão extrajudicial feita a terceiro é apreciada livremente pelo tribunal, sendo que, por outro lado, o reconhecimento de factos desfavoráveis, que não possam valer como confissão, vale como elemento probatório que o tribunal apreciará livremente, nos termos estabelecidos no artigo 361.º do Código Civil.

Os recorrentes convocam, ainda, a força probatória do documento intitulado «Auto de Ocorrência», lavrado pelo Guarda FF do Posto de … da Guarda Nacional Republicana, que, tratando-se de um documento autêntico, só faz prova plena «dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respetivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas perceções da entidade documentadora» (artigo 371.º, n.º 1, do Código Civil).

Portanto, as declarações verbais que aí são imputadas ao autor sobre o modo como terá ocorrido o acidente, porque não se trata de factos atestados com base nas perceções da entidade documentadora, apenas valem como elemento sujeito à livre apreciação do julgador de facto, pelo que este Supremo Tribunal não pode, com base naquele documento, alterar a matéria de facto dada como assente nas instâncias.

Não há, pois, fundamento para que este Supremo Tribunal exerça censura sobre a matéria de facto fixada pelas instâncias (artigos 674.º, n.º 3, e 682.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), pelo que improcedem as conclusões 1.ª a 8.ª da alegação do recurso de revista.

Será, pois, com base no acervo factual anteriormente enunciado que hão de ser resolvidas as questões suscitadas no presente recurso.

2. A ré/recorrente sustenta que «[o] acidente de trabalho dos presentes autos não ocorreu no tempo de trabalho, nem no exercício da profissão do sinistrado, mas sim durante o seu período de descanso», quando o autor já tinha terminado o serviço, não se tratando de «ato relacionado com o trabalho, pois o A. já se encontrava no apartamento para descansar».

O direito dos trabalhadores à prestação do trabalho em condições de higiene, segurança e saúde recebeu expresso reconhecimento constitucional na alínea c) do n.º 1 do artigo 59.º da Lei Fundamental, prevendo a alínea f) do n.º 1 do mesmo preceito constitucional, o direito dos trabalhadores à assistência e justa reparação, quando vítimas de acidente de trabalho ou doenças profissionais.

O acidente dos autos verificou-se em 12 de dezembro de 2010, donde, no plano infraconstitucional aplica-se o regime jurídico da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, que entrou em vigor em 1 de Janeiro de 2010 (artigo 188.º) e regulamenta o regime de reparação de acidentes de trabalho e de doenças profissionais, incluindo a reabilitação e reintegração profissionais.

O artigo 2.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, diploma a que pertencem os demais preceitos a citar neste ponto, sem menção da origem, estabelece que o trabalhador e os seus familiares têm direito à reparação dos danos emergentes dos acidentes de trabalho e doenças profissionais nos termos previstos naquela lei.

E o artigo 8.º, intitulado «Conceito», prevê que é acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza direta ou indiretamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte (n.º 1), explicitando o seu n.º 2 que se entende por «Local de trabalho», todo o lugar em que o trabalhador se encontra ou deva dirigir-se em virtude do seu trabalho e em que esteja, direta ou indiretamente, sujeito ao controlo do empregador [alínea a)] e por «Tempo de trabalho além do período normal de trabalho» o que precede o seu início, em atos de preparação ou com ele relacionados, e o que se lhe segue, em atos também com ele relacionados, e ainda as interrupções normais ou forçosas de trabalho [alínea b)].

Por seu lado, o n.º 1 do artigo 9.º dispõe que também se considera acidente de trabalho o ocorrido na execução de serviços espontaneamente prestados e de que possa resultar proveito económico para o empregador [alínea b)].

Ora, atenta a matéria de facto provada, concretamente aquela enunciada nas alíneas B), C), D), F), J), L) e M) há que acompanhar o aresto recorrido, na parte em que afirma que «o acidente ocorreu no local onde o trabalhador devia prestar a sua atividade por ordem da empregadora e onde devia permanecer até que esta o viesse buscar para o levar para o local onde iria dormir, e durante o tempo de trabalho.

Tal como se ponderou, sobre a apontada temática, no acórdão recorrido:
«Não se apurou qual foi a causa que levou à queda do trabalhador. Mas está provado que este caiu durante o seu tempo de trabalho e no local onde o devia prestar por ordem da empregadora.
Resulta dos factos assentes que existe um contrato de trabalho e que foi no âmbito do cumprimento desse contrato de trabalho que o trabalhador sofreu o acidente dos autos. 
Assim, concluímos que o acidente sofrido pelo trabalhador constitui um acidente de trabalho, de acordo com os parâmetros legais acima referidos.»

Nesta conformidade, não há motivo para alterar o julgado, termos em que improcedem as conclusões 9.ª a 11.ª da alegação do recurso de revista.

3. Resta, então, indagar se está excluído o direito à reparação do acidente por este ter resultado, alegadamente, de negligência grosseira do sinistrado.

A recorrente defende que o acidente «está descaracterizado, nos termos do art. 14.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 98/2009», considerando que o autor, «ao optar por saltar de uma janela de uma altura de cerca de 5 metros, quando existia uma porta que lhe dava acesso ao exterior, para um muro existente no solo, colocou em perigo a sua vida e a sua integridade física e agiu o mesmo com negligência grosseira, pois a sua conduta, em concreto, foi grave e não seria praticada pelo bonus pater familias».

O n.º 1 do artigo 14.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, com a epígrafe «Descaracterização do acidente», estabelece que o empregador não tem de reparar os danos emergentes do acidente «[q]ue provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado», resultando do n.º 3 que entende-se por negligência grosseira «o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em ato ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos e costumes da profissão».

Ora, conforme é pacífico na doutrina e na jurisprudência, para que ocorra negligência grosseira, não basta a culpa leve, como negligência, imprudência, distração, imprevidência ou comportamentos semelhantes, exigindo-se um comportamento temerário, reprovado por um elementar sentido de prudência.

Como é sabido, a mera culpa ou negligência traduz-se na violação de um dever objetivo de cuidado, sendo comum distinguir os casos em que o agente prevê a produção do resultado lesivo como possível, mas por leviandade, precipitação, desleixo ou incúria crê na sua não verificação (representa um puro vício de vontade), daqueles que, por inconsideração, descuido, imperícia ou ineptidão, o agente não concebe a possibilidade do resultado lesivo se verificar, podendo e devendo prevê-lo e evitar a sua verificação (representa um vício de representação e de vontade).

No primeiro caso fala-se de negligência consciente, no segundo de negligência inconsciente.

A par das apontadas modalidades de negligência, é tradicional a distinção entre negligência grave, leve e levíssima, em função da intensidade ou grau da ilicitude (a violação do cuidado objetivamente devido) e da culpa (a violação do cuidado que o agente é capaz de prestar segundo os seus conhecimentos e capacidades pessoais).

Neste plano de consideração, a lei acolheu a figura da negligência grosseira que corresponde a uma negligência particularmente grave, qualificada, atento, designadamente, o elevado grau de inobservância do dever objetivo de cuidado e de previsibilidade da verificação do dano ou do perigo.

Trata-se de uma negligência temerária, configurando uma omissão fortemente indesculpável das precauções ou cautelas mais elementares, que deve ser apreciada em concreto, em face das condições da própria vítima e não em função de um padrão geral, abstrato, de conduta.

Assim, para que se verifique a apontada exclusão da responsabilidade emergente de acidente de trabalho é necessária a prova de que ocorreu um ato ou omissão temerários em alto e relevante grau por parte do sinistrado, injustificados pela habitualidade ao perigo do trabalho executado, pela confiança na experiência profissional ou pelos usos e costumes da profissão, e, além disso, que o acidente tenha resultado exclusivamente desse comportamento.

No caso, apenas se apurou que, no dia 11 de dezembro de 2010, o autor, juntamente com outros trabalhadores da ré empregadora, prestou trabalho por conta e sob as ordens daquela ré numa obra de construção civil, prolongando-se a jornada de trabalho pela noite dentro, que, quando se encontrava na referida obra, o autor caiu, de uma altura de, pelo menos, quatro metros, na rampa de acesso à cave, que «a hora não apurada do dia 12 de dezembro de 2010, o autor subiu da cave para o rés-do-‑chão» e que o edifício onde o autor prestava atividade «tinha uma porta principal que dava acesso direto ao exterior, a qual tinha sido utilizada pelo A. para aceder ao interior do edifício» [factos provados C), D), L) e M)], ignorando-se a razão da dita queda, termos em que carece de fundamento legal a pretendida descaracterização.

É certo que se provou que o autor, na sequência do acidente, foi submetido, no Hospital Distrital de …, a análises ao sangue as quais revelaram que o mesmo estava com uma taxa de álcool no sangue de 0,59 g/l [facto provado E)]; todavia, tal como se fez consignar no aresto recorrido, «[e]mbora o trabalhador tivesse uma taxa de álcool no sangue de 0,59 g/litro, não se provou que o acidente ocorreu em consequência deste estado alcoólico», isto é, não ficou demonstrada a existência de nexo de causalidade entre aquela taxa de álcool no sangue e a eclosão do acidente.

Ora, competia à seguradora, como responsável pela reparação do acidente, o ónus da prova dos factos conducentes à descaracterização do acidente de trabalho, já que tais factos são impeditivos do direito invocado pelo autor (artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil), ónus que, no caso concreto, não se mostra cumprido.
Improcedem, pois, as conclusões 12.ª a 14.ª da alegação do presente recurso.

4. Na conclusão 13.ª da contra-alegação, o autor aduz que se deve julgar procedente o n.º 6 do pedido dirigido à ré seguradora, de € 16.601,10 (14 IAS x 36), a título de subsídio para frequência de ações no âmbito da reabilitação profissional, sendo verdade que, no apontado segmento do pedido deduzido na petição inicial, o autor impetrou a condenação da ré seguradora no sobredito subsídio, pese embora não tenha explicitado os factos em que alicerçava esse mesmo pedido.

Ora, o tribunal recorrido não apreciou o dito pedido, não tendo sido arguida nulidade por omissão de pronúncia; por outro lado, o quadro fáctico resultante dos articulados e da materialidade tida por demonstrada é totalmente omisso quanto à concreta necessidade do sinistrado relativamente àquele subsídio, pelo que não se pode conhecer dessa matéria na presente instância recursiva.

                                              III

Pelo exposto, decide-se negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.

Custas da revista, a cargo da ré seguradora.

Anexa-se o sumário do acórdão.


Lisboa, 16 de junho de 2016


Pinto Hespanhol (Relator)

Gonçalves Rocha

Ana Luísa Geraldes