Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07S1266
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: MARIA LAURA LEONARDO
Descritores: USOS DA EMPRESA
REMUNERAÇÃO
ACTUALIZAÇÃO
Nº do Documento: SJ200709260012664
Data do Acordão: 09/26/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : I - os usos da empresa constituem fonte de direito, não podendo, contudo, prevalecer sobre normas legais de regulamentação do trabalho, instrumentos de regulamentação colectiva, ou princípios da boa fé.

II - Prevendo-se, em deliberações anuais da ré, um propósito de actualização salarial dos seus trabalhadores nos mesmos termos da Função Pública (equiparação remuneratória à Função Pública), mas dependente das condições financeiras da (mesma) ré, o facto de esta ter efectuado tal actualização salarial durante alguns anos apenas pode significar a concretização desse propósito, não consubstanciando uma prática uniforme e constante, constitutiva de um uso relevante para efeitos do disposto nos art.s 82.º, n.º 1 da LCT e art. 12.º, n.º 2, da LCT (ou do art. 1.º do CT).
Decisão Texto Integral: Acordam, na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:


I - "AA", residente no Largo Cristóvão da Gama, nº .., ..., na Amadora, intentou a presente acção emergente de contrato individual de trabalho, sob a forma comum, contra Instituto Português de Reumatologia, Instituição Particular de Solidariedade Social, com sede na Rua D. Estefânia, nºs ..-..., em Lisboa, pedindo que a ré seja condenada a pagar-lhe:
- a quantia de € 8.539,56, a título de diferenças salariais, acrescida de juros vencidos desde a data do respectivo vencimento e vincendos à taxa legal;
- uma remuneração base mensal correspondente ao índice e escalão da carreira/categoria de técnica superior principal, equivalente ao vencimento actualizado de chefe de divisão.
Alega, em síntese, o seguinte:
- em 6 de Junho de 1973, foi admitida ao serviço da ré;
- esta, desde sempre, tem pago aos funcionários os vencimentos das tabelas da função pública e do Regulamento Interno com efeitos reportados ao mês de Janeiro de cada ano;
- a partir de Janeiro de 1999 deixou de pagar à autora o vencimento em conformidade com essas tabelas;
- de acordo com o disposto nas Portarias para o Pessoal Dirigente da Função Pública (DL nº 383-A/87, de 23 de Dezembro) o chefe de divisão aufere 70% do vencimento mensal ilíquido do Director-Geral;
- o comportamento da ré viola o disposto nos artºs 4º-1 do DL nº 353-A/89, de 16 de Outubro, e 17º-1 do DL nº 184/89, de 2 de Junho, e, ainda, o Regulamento Interno, em vigor desde 29/07/1963.

A ré contestou alegando, em resumo, que a autora foi admitida ao seu serviço, como auxiliar social/visitadora, e que só agora é chefe de divisão. Admite que uma sua Direcção estabeleceu como meta desejável para a sua política de remunerações o pagamento de quantitativo idêntico ao da função pública. Todavia tratou-se de um propósito, que já foi abandonado, sendo que aquela meta foi formulada, pela última vez, em 1989.
Alega, ainda, que vive de receitas próprias e subsídios estatais; que estes diminuíram drasticamente nos últimos anos, de tal modo que não poderia, mesmo que quisesse, equiparar a remuneração dos seus trabalhadores aos da função pública; é uma Instituição Particular de Solidariedade Social, estando obrigada, em matéria laboral, pelos CCT entre a União das IPSS, a FNE e a FENPROF alargados por Portarias de Extensão a todos os trabalhadores do sector das IPSS; o facto de a autora estar filiada no Sindicato dos Trabalhadores da Função Pública não lhe confere o estatuto de funcionária pública nem o direito a ser-lhe aplicada a legislação laboral dos Funcionários Públicos e, muito menos, o estatuto remuneratório da Função Pública; à autora aplica-se o regime do contrato individual de trabalho e o contrato colectivo de trabalho previsto para o sector em que se insere, o das IPSS; o facto de ter pago, em alguns anos transactos à autora, como a outros trabalhadores, remuneração equiparável à da tabela de vencimentos da função pública, não implica que a mesma tenha adquirido o direito de continuar (para sempre) a ser remunerada segundo esse regime de vencimentos.
Termina requerendo que a acção seja julgada improcedente com a sua absolvição do pedido.

Após audiência de julgamento foi proferida sentença que julgou improcedente por não provada a acção e em consequência absolveu a ré do pedido.

A autora apelou da sentença, mas sem sucesso pois o Tribunal da Relação confirmou a decisão.
De novo inconformada vem pedir revista do acórdão, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:
1ª) - A relação jurídica contratual entre as partes é de natureza civilística e não administrativa;
2ª) - A entidade recorrida ao longo dos anos sempre processou os vencimentos dos trabalhadores pelo regime da função pública;
3ª) - O referido direito consubstanciou-se na esfera jurídica da recorrente, não podendo ser retirado unilateralmente;
4ª) - A materialidade assente firma o procedimento da recorrida até nos concursos e nas categoria profissionais para o processamento dos vencimentos pelas tabelas da função pública;
5ª) - Foram violadas as normas dos artºs 82° e 12º-2 do DL nº 49 408 de 24.11.1969 e o artº 4º-1)-2) do DL nº 353-A/89, de 16/10, e o artº 17º-1 do DL nº 184/89, de 2/06;
6ª) - As normas indicadas deviam ter sido aplicadas no sentido do processamento do vencimento da recorrente pelas tabelas da função pública, que integram o contrato de trabalho existente entre as partes;
7ª) - O acórdão recorrido fez errada aplicação da lei, devendo ser revogado.

Nas contra-alegações, a ré pugna pela improcedência do recurso.

O Exmº Procurador-Geral Adjunto suscita a questão prévia da inadmissibilidade do recurso, por entender que o pedido não atinge o valor da alçada da Relação, irrelevando para tanto o valor dos juros, que não se encontram quantificados.

Ao parecer respondeu a recorrente, sustentando a admissibilidade do recurso, tanto com base no valor da acção (€ 15.000,00), superior ao da alçada da Relação, como no da sucumbência (€ 8.539,56), superior a metade desta alçada.

II – Questões
A – Saber se é, ou não, de conhecer o objecto do recurso (questão prévia);
B – Sendo a resposta afirmativa, importará determinar se, na esfera jurídica da recorrente, nasceu (ou não), por força do uso, o direito a ver processado o seu vencimento de acordo com as tabelas da função pública.

III - Factos
1. Em Junho de 1973, a autora foi admitida a trabalhar sob a direcção, autoridade e fiscalização da ré (alínea A dos factos assentes).
2. A autora aufere o vencimento de € 2.169,27, acrescido dos subsídios de férias e de Natal e do subsídio de refeição (alínea B dos factos assentes).
3. A autora exerce as suas funções nas instalações da ré sitas na Rua D. Estefânia, nº ...-..., em Lisboa (alínea C dos factos assentes).
4. A autora é sócia do Sindicato dos Trabalhadores da Função Pública do Sul e Açores (alínea D dos factos assentes).
5. Actualmente a autora exerce as funções de chefe de divisão (alínea E dos factos assentes).
6. A ré é uma Instituição Particular de Solidariedade Social (alínea F dos factos assentes).
7. A autora foi admitida ao serviço do réu como auxiliar social (resposta ao ponto nº 1 da base instrutória).
8. A partir de data que não foi possível determinar, mas pelo menos desde 1986, os trabalhadores da ré de uma forma genérica eram aumentados em termos similares aos praticados na função pública. A Direcção da ré adoptou deliberações anuais no sentido do aumento das remunerações dos seus trabalhadores em termos similares aos praticados na função pública (resposta aos pontos nºs 2 e 4).
9. Desde data que não foi possível determinar, da década de 90 (1990), os salários dos trabalhadores do réu deixaram de ser alvo de forma genérica de aumentos em termos similares aos da função pública (resposta ao ponto nº 3).
10. Em 16 de Janeiro de 1989, a Direcção da ré emitiu o comunicado nº 66 com o teor constante de fls. 146 dos autos, que aqui se dá por integralmente transcrita. [E] em 19 de Julho de 1989, a Direcção da ré emitiu o comunicado nº 79 com o teor constante de fls. 147 e 148 dos autos que aqui se dão por integralmente transcritas (resposta ao ponto nº 5).
11. O réu vive de receitas próprias e de subsídios estatais (resposta ao ponto nº 6).
12. Os trabalhadores do Instituto Português de Reumatologia sabiam que os seus aumentos estavam dependentes dos subsídios que o Estado concedesse à ré (resposta ao ponto nº 7).
13. A ré beneficia de subsídios provenientes do Estado (resposta ao ponto nº 8).

IV - Apreciação
1. Como se referiu, importa, antes de mais, decidir a questão prévia colocada pelo MºPº - a da inadmissibilidade do recurso.

Para tanto, importa ter presente o seguinte:
- a acção foi proposta em 12.05.05;
- embora a autora tenha pedido a condenação da ré na quantia líquida de € 8.539,56, atribuiu à acção o valor de € 15.000,00;
- este valor não foi impugnado pela ré, nem alterado pelo tribunal;
- tanto na 1ª instância como na Relação, a acção foi julgada totalmente improcedente.

Segundo preceitua o artº 678º-1 do CPC, ex vi do artº 1º-2-a) do CPT/99,só é admissível recurso ordinário nas causas de valor superior à alçada do tribunal de que se recorre desde que as decisões impugnadas sejam desfavoráveis para o recorrente em valor também superior a metade da alçada desse tribunal (…).
A alçada dos Tribunais da Relação em matéria civil é de € 14.963,94 (artº 24º-1 da Lei nº 3/99, de 13.01, sendo a correspondência em euros fixada pelo artº 3º do DL nº 323/2001, de 14-12).
Por seu turno, o nº 1 do artº 315º do CPC estabelece que “o valor da causa é aquele que as partes tiverem acordado, expressa ou tacitamente, salvo se o juiz, findos os articulados, entender que o acordo está em flagrante oposição com a realidade, porque neste caso fixará à causa o valor que considere adequado”. E o nº 2: “Se o juiz não tiver usado desse poder, o valor considera-se definitivamente fixado, na quantia acordada, logo que seja proferido despacho saneador”.

Face a estes preceitos, tem que concluir-se que o valor da acção corresponde ao valor atribuído pela autora na petição (€ 15.000,00) – valor não impugnado pela ré nem alterado pelo tribunal.
Uma vez que tal valor é superior à alçada da Relação e o da sucumbência (€ 8.539,56) é superior a metade desse valor, não se vê obstáculo à admissibilidade do recurso (artº 678º-1 do CPC).
Improcede, assim, a invocada questão prévia.

2. Passando à questão colocada pela autora: se tem direito a que o seu vencimento seja processado (actualizado) de acordo com as tabelas da função pública.
Alicerçando-se no facto de a autora não ser trabalhadora da função pública – em virtude de a ré ser uma instituição particular de solidariedade social - e o instrumento de regulamentação colectiva aplicável não prever actualizações nos moldes pretendidos, o tribunal da 1ª instância considerou que a pretensão da autora só poderia ter sucesso se se verificasse uma destas situações: decorrer dum regulamento interno da ré; ou resultar dum uso laboral.
Fazendo uma análise aprofundada da situação, nas duas vertentes, acabou por concluir não se ter provado – nem ter sido alegada - a existência de qualquer regulamento interno da ré que desse cobertura à pretensão da autora, nem poder inferir-se dos factos provados que a ré e os seus trabalhadores tivessem querido estabelecer um uso com a fórmula de aumentos constante das respostas restritivas aos pontos nº 2 e 4 da base instrutória (nº 8 dos factos em III.).
Por seu turno, o Tribunal da Relação, considerando que a primeira conclusão constante da sentença da 1ª instância - inexistência de qualquer regulamento interno da ré sobre aumentos salariais – não fora posta em causa na apelação e que o objecto do recurso se cingia à questão da “existência de um uso” que, segundo a recorrente, teria criado o direito um certo estatuto remuneratório (actualizações, com efeitos ao mês de Janeiro de cada ano, de acordo com as tabelas da função pública), direito que teria passado a integrar o seu contrato de trabalho e que, por isso, não podia ser unilateralmente afastado, acabou por concluir, tal como o tribunal da 1ª instância, que a prática (que resultou provada) de proceder, anualmente, a aumentos salariais em termos similares aos da função pública, não consubstanciava um uso de empresa ou uso laboral, para efeitos do disposto nos citados artºs 82º-1 e artº 12º-2 da LCT.

A autora discorda, insistindo em que o invocado direito decorre do facto de a entidade recorrida, ao longo dos anos, sempre ter processado os vencimentos dos trabalhadores pelo regime da função pública.

(a) Começamos por relembrar que a autora (pelo menos, enquanto trabalhadora da ré) não é funcionária nem agente da administração pública e que, por isso, não está (directamente) abrangida pelo regime que decorre do DL nº 184/89, de 2.06 (veja-se o seu artº 3º, que define o seu âmbito pessoal) e do DL nº 353-A/89, de 16 de Outubro (cujo objecto e âmbito de aplicação estão definidos, respectivamente, nos seus artºs 1º e 2º).
Por outro lado, conforme ficou decidido nas instâncias, a actualização do vencimento da autora nos termos pretendidos, ou seja, de acordo com as tabelas da função pública (com efeitos ao mês de Janeiro de cada ano), não decorre da regulamentação colectiva aplicável à relação laboral em análise (CCT(s) entre a União das IPSS e a FNE e FENPROF publicadas nos BTE(s) nº 2, de 15.01.99, pg. 42, e nº 6, de 15.02.2001, pg 258, cujo âmbito foi alargado pelas Portarias de Extensão publicadas nos BTE(s) nº 24, de 29.06.99, pg 1656, e nº 6, de 15.02.2002, pg 282).

Há, ainda, que ter presente as normas invocadas pela recorrente.
Preceitua o artº 82º da LCT (aprovada pelo DL nº 49 408, de 24.11.69) que “só se considera retribuição aquilo a que, nos termos do contrato, das normas que o regem ou dos usos, o trabalhador tem direito como contrapartida do seu trabalho”.
Por seu turno, decorre do disposto no nº 1 do artº 12º da LCT que os contratos de trabalho estão sujeitos, em especial, às normas legais de regulamentação do trabalho e às convenções colectivas de trabalho, acrescentando o nº 2, que, desde que não contrariam essas disposições expressas e não sejam contrárias aos princípios da boa fé, «serão atendíveis os usos da profissão do trabalhador e das empresas, salvo se outra coisa for convencionado por escrito».
Idêntico preceito consta do Código de Trabalho, cujo artº 1º, sob a epígrafe «Fontes específicas», estipula que o contrato de trabalho está sujeito, em especial, aos instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho, assim como aos usos laborais que não contrariem o princípio da boa fé.

Sobre os usos, assinalou-se no acórdão deste tribunal de 29.11.2005 (proc. n.º 2556/05): «…os usos da empresa constituem uma fonte de direito, que, em determinado condicionalismo, poderá ser aplicada na resolução dos litígios referentes à contratação individual, e que, como tal, se encontra ressalvada pelo artigo 3º do Código Civil, que reconhece relevância jurídica aos usos sempre que a lei especialmente o determine».
Também o recente acórdão deste tribunal de 05.07.2007 (proc. nº 2576/06) analisou a relevância dos usos na LCT e no Código do Trabalho.

De acordo com Monteiro Fernandes (Direito do Trabalho, Almedina, 13.ª edição, pág. 118-119), «…os usos laborais, independentemente dos termos em que têm sido referenciados pela lei, podem surgir em diversas vestes e com distintas funções jurídicas.
Assim, e em primeiro lugar, temos os usos interpretativos, a que aludia expressamente o art. 12.º da LCT, mas que, em rigor, não necessitariam de menção expressa para serem “atendíveis”: sendo práticas normais, tradicionais ou correntes, e reflectindo soluções reveladas pela realidade social, são naturalmente utilizáveis para ultrapassar a dificuldade de interpretação e as omissões que os contratos revelem.
(…)
Em segundo lugar, surgem os usos integradores da lei, apontados pelo art. 3.º CCiv., e que, constituindo também soluções de normalidade, assumem o aspecto particular de que a lei os incorpora como instrumento de valoração da realidade.
(…)
Finalmente, há que referir os usos laborais autónomos, que são vinculantes para si mesmos ou em função das características que certas práticas assumem. A repetição, a uniformidade e a continuidade dessas práticas, aliadas à sua licitude e à razoabilidade da expectativa de que se mantenham, transformam-nas em padrões de comportamento exigíveis. O carácter vinculante destas práticas é-lhes intrínseco, e pode ser, ou não, explicitamente reconhecido pela lei. Parece ser este o alvo principal da menção constante do art. 1.º CT».

Para Menezes Cordeiro (Manual de Direito do Trabalho, Almedina, pág. 165) «O uso é uma prática reiterada. Distingue-se do costume por, nele, não surgir – ou não surgir suficientemente caracterizada – a convicção da obrigatoriedade.
Por isso, para este autor, o uso não pode ser fonte imediata de direito, mas sim fonte mediata do direito, porquanto (o uso) só revela normas jurídicas quando, para ele, remete uma fonte imediata, no caso, a lei.

(b) Como se referiu, a questão que importa resolver resume-se a saber se, por virtude dos usos, a ré se vinculou ao referido aumento salarial nos termos alegados pela autora.
No que ao caso em apreço diz respeito, verifica-se que:
- a ré é uma Instituição Particular de Solidariedade Social;
- beneficia de subsídios provenientes do Estado;
- num período que não foi possível determinar, mas pelo menos desde 1986, os trabalhadores da ré de uma forma genérica foram aumentados em termos similares aos praticados na Função Pública, adoptando a Direcção da ré deliberações anuais nesse sentido;
- de acordo com o comunicado da ré (nº 66), datado de 16 de Janeiro de 1989 (fls. 146 – nº 5 da matéria de facto), a Direcção da ré na reunião de 12 de Janeiro desse ano deliberou «Proceder ao pagamento da remuneração extraordinária concedida ao funcionalismo público, nos termos do Dec.-Lei n.º 450-A/88, de 12 de Dezembro (…) remuneração …[que] representa mais um esforço financeiro do IPR para procurar equiparar as remunerações dos seus funcionários às da função pública»;
- de acordo com o comunicado da ré (nº 79), datado de 19 de Julho de 1989 (fls. 147 e 148 – nº 6 da matéria de facto), a Direcção da ré, na reunião de 13 de Julho desse ano, deliberou o seguinte: «Tendo em conta a comunicação feita pelo Departamento de Gestão Financeira dos Serviços de Saúde de que o subsídio de cooperação concedido ao IPR para 1989 fora aumentado em valor que corresponde a grande parte do que fora reclamado pela Direcção do IPR, em exposições e diligências feitas junto daquele Departamento e doutras entidades – como sendo o necessário para fazer face à recuperação do paralelismo entre as remunerações praticadas no IPR e as actualmente em vigor na função pública, foi decidido proceder-se ao processamento, com efeitos retroactivos a Janeiro de 1989, de grande parte das diferenças verificadas entre aquelas remunerações»;
- os trabalhadores do Instituto Português de Reumatologia sabiam que os seus aumentos estavam dependentes dos subsídios que o Estado concedia à ré;
- desde data não determinada da década de 90, as remunerações dos trabalhadores da ré deixaram de ser alvo de forma genérica de aumentos em termos similares aos da Função Pública.

Perante estes factos, o tribunal recorrido - sem deixar de assinalar a existência de uma vontade, um propósito da Direcção da ré, pelo menos na década de 80, de equiparar a remuneração dos seus funcionários à remuneração da Função Pública – acaba por ponderar - e bem - que «…o facto de[a ré] adoptar deliberações anuais mostra que a realização de tal propósito não era, de forma alguma, um dado assente e adquirido, dependendo de factores externos, como por exemplo, a atribuição de determinados subsídios estatais».
Com efeito, embora se tenha provado que, pelo menos desde 1986, os trabalhadores da ré de forma genérica foram aumentados em termos idênticos aos da Função Pública e que tal aumento deixou de ocorrer na década de 90, não podem tais aumentos/actualizações, no circunstancialismo em que ocorreram – dependentes de deliberação (anual) da ré, condicionados por factores externos (subsídios), sendo tais factos do conhecimento dos trabalhadores - consubstanciar uma prática uniforme e constante da ré, constitutiva de um uso relevante para efeitos do disposto no artº 82º-1 e 12º-2 da LCT (ou do artº 1º do CT).
Os próprios comunicados desta (designadamente o nº 79) embora denotem existir (da parte da ré) uma vontade de actualização salarial dos seus trabalhadores nos mesmos termos da Função Pública, também evidenciam que tal actualização (equiparação remuneratória à função pública) estava dependente das suas condições financeiras (dela, ré).
Ou seja, as declarações negociais da ré, no que diz respeito aos referidos aumentos salariais (com efeitos reportados a Janeiro de cada ano, de acordo com as tabelas da função pública), interpretadas por um declaratário normal, teriam o sentido de que tais aumentos, embora correspondessem à vontade da ré (constituíssem um objectivo), estavam dependentes de decisão (deliberação anual) tomada caso a caso e de acordo com as suas possibilidades financeiras (cf. artº 236º-2 e 238º do CC), designadamente em função do montante dos subsídios estatais.
Como se refere no acórdão recorrido, “perante estes dados … os trabalhadores não podiam esperar, face ao princípio da boa fé, que a referida prática de proceder, anualmente, a aumentos salariais em termos semelhantes à função pública, fosse irreversível e constituísse um direito que integrasse os respectivos contratos, apesar de tal prática não contrariar, em princípio, quaisquer normas legais ou de instrumentos de regulamentação colectiva. Ou seja, não podemos considerar que tal prática tivesse constituído um uso da empresa ou uso laboral.

No corpo das suas alegações, a autora afirma que “ao longo de três décadas, [concretamente] desde 1973, a carreira da recorrente e dos outros trabalhadores foi sempre de acordo com o regime da administração pública” e que a ré “sempre aplicou o regime remuneratório da função pública ….”
Esta matéria corresponde no essencial à matéria alegada nos nºs 6 e 7 da petição inicial (concretamente do seguinte teor: “a autora, desde sempre tem pago aos funcionários os vencimentos das tabelas da função pública e do Regulamento Interno com efeitos ao mês de Janeiro de cada ano”; “desde Janeiro de 1999, a ré não tem pago à A. o vencimento das tabelas da função pública, publicados ao longo dos anos, congelando-os).
Como se verifica, tal matéria foi levada aos pontos nºs 2 e 3 da base instrutória e estes mereceram respostas restritivas (provado apenas que “a partir de data que não foi possível determinar, mas pelo menos desde 1986, os trabalhadores da ré de uma forma genérica eram aumentados em termos similares aos praticados na função pública”, havendo deliberações anuais da Direcção nesse sentido, mas que “desde data que não foi possível determinar, da década de 90 …, os salários dos trabalhadores [da ré] deixaram de ser alvo de forma genérica de aumentos em termos similares aos da função pública”).

Assim, face ao exposto, não se pode concluir dos factos provados que, por força dos usos, a ré esteja vinculada a proceder à actualização da remuneração dos seus trabalhadores de acordo com as tabelas da Função Pública.
Contrariamente ao que a recorrente afirma, não se mostram violadas as normas contidas nos artºs 82º e 12º-2 da LCT. Muito menos, o artº 4º-1 do DL nº 353-A/89, de 16.10, ou o artº 17º-1 do DL nº 184/89, de 2.06, preceitos que incidem, respectivamente, sobre a estrutura remuneratória e a fixação da remuneração base dos funcionários e agentes da função pública (vide artºs 1º e 2º daquele diploma e artºs 1º-3º deste).

V - Decidindo
Nestes termos acordam em negar a revista e em confirmar o acórdão recorrido.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 26 de Setembro de 2007

Maria Laura Leonardo (Relator)
Sousa Peixoto
Sousa Grandão
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(1) Nº 191-7; Relª Maria Laura C. S. Maia (Leonardo); Adjºs: Conselheiros Sousa Peixoto e Sousa Grandão