Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05B1782
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: ARAÚJO BARROS
Descritores: APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
SENTENÇA ESTRANGEIRA
DECLARAÇÃO DE EXECUTORIEDADE
REVISÃO DE MÉRITO
COMPETÊNCIA
ORDEM PÚBLICA
Nº do Documento: SJ200509220017827
Data do Acordão: 09/22/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 5150/04
Data: 11/30/2004
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : 1. O Regulamento (CE) nº 44/2001, do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, que entrou em vigor em 1 de Março de 2002, é aplicável às acções judiciais intentadas anteriormente à sua entrada em vigor desde que a decisão seja já proferida no decurso da sua vigência, e as acções no Estado-Membro de origem tiverem sido intentadas após a entrada em vigor das Convenções de Bruxelas ou de Lugano quer no Estado-Membro de origem quer no Estado-Membro requerido.

2. A decisão proferida num Estado-Membro e que nesse Estado tenha força executiva será imediatamente declarada executória no Estado-Membro requerido, sem qualquer revisão de mérito, quando estiverem cumpridos os trâmites previstos no artigo 53º, sem verificação dos motivos referidos nos artigos 34º e 35º, daquele Regulamento.

3. Para obstar à declaração de executoriedade tem de haver manifesta contrariedade com a ordem pública local, que pode ser de natureza processual (lesão grave do contraditório, da imparcialidade do juiz, falta de fundamentação da decisão) ou de ordem pública material (lesão grave de regras de concorrência).

4. As regras relativas à competência não dizem respeito à ordem pública do Estado-Membro requerido, pelo que a regra é de que o juiz requerido não pode verificar a competência do juiz de origem, salvo nos casos expressamente prevenidos nas secções 3ª (competência em matéria de seguros - artigos 8º a 12º); 4ª (competência em matéria de contratos celebrados por consumidores - artigos 15º a 17º); e 6ª (em matéria de competências exclusivas) do Regulamento nº 44/2001.

Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

"A" veio requerer, na 5ª Vara Cível do Porto, a declaração de executoriedade da sentença proferida pelo Tribunal de Comércio de Nivelles, da Bélgica, de 28 de Março de 2002, contra "B - Máquinas de Costura Industriais, L.da".

Alegou, para o efeito, em síntese, que:

- a requerida foi condenada por sentença do Tribunal de Comércio de Nivelles, da Bélgica, de 28 de Março de 2002, a pagar-lhe a quantia de 14.186,97 Euros e juros de mora convencionais vencidos no montante de 5.279,88 Euros, 2.837,49 Euros de indemnização, impostos judiciários no valor de 510,73 Euros, custos judiciais no valor de 575,14 Euros e ainda juros de mora vencidos desde a citação e vincendos até integral pagamento;

- a requerida, notificada dessa sentença, em 12 de Junho de 2002, nada pagou.

- deve ser declarada a executoriedade da referida sentença, nos termos do artigo 38º do Regulamento (CE) nº 44/2001, do Conselho, de 22/12/2000 e o arresto dos bens que compõem o recheio da sede da requerida.

Foi proferida sentença em que se declarou a imediata executoriedade da decisão proferida pelo Tribunal de Comércio de Nivelles na Bélgica, datada de 28 de Março de 2002, contra "B - Máquinas de Costura Industriais, L.da" e que se mostra junta ao requerimento inicial.

Inconformada apelou a ré, sem êxito, porquanto o Tribunal da Relação do Porto, em acórdão de 30 de Novembro de 2004, decidiu julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.

Interpôs, agora, a ré recurso de revista, pretendendo a revogação do acórdão recorrido, com a negação da pretensão da requerente de ver confirmada aquela decisão do Tribunal de Comércio de Nivelles.

Em contra-alegações defendeu a recorrida a bondade do julgado.
Verificados os pressupostos de validade e de regularidade da instância, corridos os vistos, cumpre decidir.
Nas alegações do recurso a recorrente formulou as conclusões seguintes (sendo, em princípio, pelo seu teor que se delimitam as questões a apreciar - arts. 690º, nº 1 e 684º, nº 3, do C.Proc.Civil):

1. Apesar da sentença do Tribunal de Comércio de Nivelles ter sido proferida posteriormente à entrada em vigor do Regulamento CE a sua aplicação não é imediata tendo necessariamente que obedecer aos requisitos previstos na al. a) do n° 2 do art. 66º deste regulamento.

2. O Tribunal de Nivelles na sua douta sentença nada refere quanto ao preenchimento desses requisitos, e a recorrida, a esse propósito, no seu requerimento inicial apresentado no tribunal a quo nada veio alegar, apesar de ser a ela que incumbiria alegar factos que pudessem conduzir o tribunal à aplicação do Regulamento CE.

3. A recorrida, nos termos do disposto no n° 2 do art. 46º da Convenção de Bruxelas, deveria ter apresentado e não apresentou, como lhe competia, o original ou uma cópia autenticada do documento que certifique que o acto que determinou o início da instância ou um acto equivalente foi comunicado ou notificado à parte revel.

4. Como as máquinas alegadamente vendidas à recorrente teriam de ser entregues na sua sede, em Portugal, a respectiva acção judicial deveria ter sido intentada em Portugal e não em Nivelles por este tribunal ser incompetente em razão da matéria - vide gratiae als. a) e b) do n° 1 do art. 5° da secção 2 do capitulo II e ainda arts. 26° e 24º do supra identificado Regulamento.

5. A recorrente que pela primeira vez foi demandada num Tribunal Belga não conhece nem tem obrigação de conhecer a sua legislação, desconhecendo se tal sentença seria recorrível, em que termos e qual o prazo de que dispunha para interpor o mesmo, já que a referida sentença do tribunal de Nivelles não faz nenhuma referência à possibilidade de interposição de recurso.

6. Não tendo sido a recorrente citada pessoalmente para tal acção nem tendo sido notificada da possibilidade de interpor recurso da sentença proferida no Tribunal de Nivelles viu-se a mesma impedida de realizar o seu direito constitucional de defesa.

7. Tais omissões, agravadas pelo facto de nessa acção a recorrente não ter constituído mandatário forense são contrárias à ordem pública do Estado-Membro requerido - Portugal - por violar o principio constitucional do acesso ao direito e due process in law - art. 20° da C.R.P.

8. Não podendo nem devendo ser reconhecida a decisão proferida no tribunal estrangeiro, por se verificar a hipótese prevista quer no n° 1 quer no n° 2 do art. 34º do supra identificado Regulamento.

9. A recorrente tem direito, nos termos do n° 2 do art. 110º do C.P.Civil, e do art. 20° da Constituição de invocar tais factos no âmbito do Presente Processo Especial de Revisão de Sentença, por forma a poder exercer ainda o seu direito de defesa, tal como visando o conhecimento e declaração das supra referidas irregularidades formais.

10. O acórdão recorrido violou e, ou, interpretou erradamente o conjugadamente disposto nos arts. 5º da secção II do capítulo II, art. 26°, art. 34° n°s 1 e 2 e art. 66º, n°s 1 e 2, do Regulamento (C.E.) n° 44/2001 do Conselho de 22 de Dezembro de 2000 e art. 20° da Constituição da República Portuguesa.

No acórdão recorrido foi tido por assente (de relevo para o conhecimento do recurso) que:

i) - por sentença proferida pelo Tribunal de Comércio de Nivelles (Bélgica) foi a recorrente condenada a pagar a "A" a quantia de 14.186,97 Euros, acrescida de juros de mora, à taxa anual de 12%, contados desde 1 de Janeiro de 1999 até à data da citação, no montante de 5.279,88 Euros e da indemnização de 2.837,49 Euros, tudo no montante de 22.304,34 Euros;

ii) - a sentença foi proferida em 28 de Março de 2002;

iii) - consta da sentença que a ré, aqui recorrente, foi regularmente citada (em 6 de Fevereiro de 2002) e não compareceu, nem ninguém a representá-la;

iv) - a sentença foi notificada à ré e dela não foi interposto recurso.

Não obstante a argumentação utilizada pela recorrente, bem como a ampla indicação de normas tidas por violadas, certo é que o acórdão recorrido se limitou a aplicar, concreta e adequadamente, o direito, não merecendo, por isso, qualquer censura.

Estabelece o nº 1 do artigo 38º do Regulamento 44/2001, do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000 (1), que as decisões proferidas num Estado-Membro e que nesse Estado tenham força executiva podem ser executadas noutro Estado-Membro depois de nele terem sido declaradas executórias, a requerimento de qualquer parte interessada.

E acrescenta o artigo 41º do mesmo regulamento que "a decisão será imediatamente declarada executória quando estiverem cumpridos os trâmites previstos no artigo 53º, sem verificação dos motivos referidos nos artigos 34º e 35º".

O Regulamento nº 44/2001 entrou em vigor em 1 de Março de 2002 (art. 76º) e as suas disposições apenas são aplicáveis às acções judiciais intentadas posteriormente à sua entrada em vigor (art. 66º, nº 1). "Todavia, se as acções no Estado-Membro de origem tiverem sido intentadas antes da entrada em vigor do presente regulamento, as decisões proferidas após essa data são reconhecidas e executadas, em conformidade com o disposto no capítulo III", desde que as acções no Estado-Membro tiverem sido intentadas após a entrada em vigor das Convenções de Bruxelas ou de Lugano quer no Estado-Membro de origem quer no Estado-Membro requerido (nº 2 e al. a) do citado art. 66º).

Ora, tendo a Convenção de Bruxelas começado a vigorar em Portugal em 1 de Julho de 1992 e uma vez que a acção foi intentada depois dessa data, embora antes do início de vigência do Regulamento nº 44/2001, é indubitável reger-se a sua tramitação e força executória pelas disposições deste Regulamento.

E a verdade é que à face do Regulamento nº 44/2001 nenhum obstáculo se coloca à requerida declaração de executoriedade da sentença proferida contra a recorrente.

Desde logo, na acção em que a sentença belga foi proferida a recorrente foi citada em 6 de Fevereiro de 2002, pelo que se não compareceu ou não se fez representar tal facto tão só a si própria diz respeito.

Acresce que a recorrente foi notificada da sentença proferida, dela não tendo recorrido nem a ela se opondo por qualquer outra forma.

Ora, parece-nos claro o preceituado no artigo 34º do Regulamento nº 44/2001, quando estabelece que uma decisão não será reconhecida: 1) se o reconhecimento for manifestamente contrário à ordem pública do Estado-Membro requerido; 2) se o acto que iniciou a instância, ou acto equivalente, não tiver sido comunicado ou notificado ao requerido revel, em tempo útil e de modo a permitir-lhe a defesa, a menos que o requerido não tenha interposto recurso contra a decisão embora tendo a possibilidade de o fazer (...).

Desde logo, para obstar à declaração de executoriedade, "tem de ser manifesta a contrariedade com a ordem pública local, ideia que se foi buscar ao artigo 16º da Convenção de Roma relativa à lei aplicável às obrigações contratuais e se repetiu no artigo 26º do Regulamento nº 1346. A ordem pública pode ser de natureza processual (lesão grave do contraditório, da imparcialidade do juiz, falta de fundamentação da decisão) ou de ordem pública material (lesão grave de regras de concorrência)." E, doutro passo, "a violação dos direitos de defesa é a preocupação do nº 2, embora ressalvando a hipótese do réu revel, não ter recorrido, tendo tido a possibilidade de o fazer, deixou perder o prazo do recurso, desistiu dele...". (2)

Não ocorre, in casu, qualquer violação dos princípios da ordem pública portuguesa - nos aspectos acima considerados - bem como parece evidente que à recorrente não foi ilegitimamente coarctado o direito do contraditório ou da defesa.

Dir-se-á, ainda - como pretende a recorrente - que ocorre a situação prevista no artigo 35º do Regulamento nº 44/2001, segundo o qual:

"1. As decisões não serão igualmente reconhecidas se tiverem desrespeitado o disposto nas secções 3, 4 e 6 do capítulo II, ou no caso previsto no artigo 72º.

2. Na apreciação das competências referidas no parágrafo anterior, a autoridade requerida estará vinculada às decisões sobre a matéria de facto com base nas quais o tribunal do Estado-Membro de origem tiver fundamentado a sua competência.

3. Sem prejuízo do disposto nos primeiro e segundo parágrafos, não pode proceder-se ao controlo da competência dos tribunais do Estado-Membro de origem. As regras relativas à competência não dizem respeito à ordem pública a que se refere o ponto 1 do artigo 34º".

Neste caso - e há, antes de mais, que destacar que as regras relativas à competência não dizem respeito à ordem pública do Estado-Membro requerido - "a regra é a de o juiz requerido não poder verificar a competência do juiz de origem, como decorre do nº 3 (...) Sucede, porém, que o nº 1 previne que sejam respeitadas as normas relativas à competência judiciária prevista nas secções 3ª, ou seja, competência em matéria de seguros (artigos 8º a 12º); na secção 4ª, competência em matéria de contratos celebrados por consumidores (artigos 15º a 17º); na secção 6ª, em matéria de competências exclusivas". (3)

Acresce, em boa verdade, que nem dos autos emerge - e competiria à recorrente introduzi-la na oposição ou em recurso - matéria de facto que permita descortinar, à face da lei interna portuguesa, qual seria o tribunal competente para o julgamento da acção em que a sentença foi proferida (tratar-se-ia, em todo o caso, a priori, de uma acção de dívida passível de ser instaurada no domicílio do credor).

Finalmente, se é certo que o artigo 72º se reporta apenas à ressalva de anteriores acordos entre as partes - Estados-Membros envolvidos - que, no que a Portugal e Bélgica concerne, não existem, encontram-se verificados todos os pressupostos da declaração de executoriedade da sentença do Tribunal de Comércio de Nivelles, tanto mais quanto é apodíctico que tal decisão não pode, em caso algum, ser objecto de revisão de mérito (artigo 36º do Regulamento nº 44/2001).

Improcede, deste modo, a pretensão da recorrente, havendo que confirmar o acórdão impugnado.

Pelo exposto, decide-se:

a) julgar improcedente o recurso de revista interposto pela requerida "B - Máquinas de Costura Industriais, L.da;

b) - confirmar o acórdão recorrido;

c) - condenar a recorrente nas custas da revista.

Lisboa, 22 de Setembro de 2005
Araújo Barros,
Oliveira Barros,
Salvador da Costa.
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(1) Relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, publicado no Jornal Oficial nº L 12, de 16 de Janeiro de 2001.
(2) António da Costa Neves Ribeiro, "Processo Civil da União Europeia", Coimbra, 2002, pags. 107 e 108.
(3) António da Costa Neves Ribeiro, obra citada, pag. 110.