Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
028590
Nº Convencional: JSTJ00004335
Relator: PIEDADE REBELO
Descritores: BURLA
TITULO
INTERPRETAÇÃO DA LEI
FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Nº do Documento: SJ195407060285903
Data do Acordão: 07/06/1954
Votação: MAIORIA COM 2 VOT VENC
Referência de Publicação: DG IªS 20-07-1954; BMJ 44, 77
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PARA O PLENO
Decisão: FIXADA JURISPRUDÊNCIA
Indicações Eventuais: ASSENTO 7/1954
Área Temática: DIR CRIM - CRIM C/PATRIMONIO.
Legislação Nacional: CP886 ARTIGO 5 ARTIGO 18 ARTIGO 421 N4 ARTIGO 450 ARTIGO 451 N3 ARTIGO 452 PAR2.
CCOM888 ARTIGO 362.
CPC39 ARTIGO 763.
Legislação Estrangeira: CP DE FRANÇA ART405.
CP DO BRASIL ART171.
CP DE ESPANHA ART529.
CP DE ITALIA ART640.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1930/01/17 IN BOL OF ANO29 PAG17.
Sumário :
A expressão "quaisquer... titulos", empregada no artigo 451 do Codigo Penal, abrange todos os documentos comprovativos de direito de caracter patrimonial, quer respeitantes a bens moveis, quer a bens imoveis.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferencia, no Supremo Tribunal de Justiça:

Do acordão de folhas 235 que, confirmando o acordão da Relação de folhas 187, manteve a pronuncia do Padre A e sua irmã B, como autores do crime de burla previsto e punido no artigo 451, n. 3, com referencia ao artigo 421, n. 4, ambos do Codigo Penal, recorre o primeiro para o Tribunal Pleno com o fundamento de estar em oposição com o acordão deste tribunal, de 17 de Janeiro de 1930, publicado na Colecção Oficial, ano 29, pagina 17.
Admitido o recurso e julgada provisoriamente a existencia da invocada oposição, alega o recorrente o seguinte:
A palavra titulo, empregada no citado artigo 451, deve ser interpretada restritivamente, isto e, no sentido de que o legislador não quis tutelar com a figura juridica do crime de burla a propriedade imobiliaria, mas apenas a mobiliaria, sendo as sanções civis inteiramente eficientes para a tutela daquela. Em França, não obstante o seu Codigo Penal no artigo 405, fonte do nosso citado artigo 451, se referir a dispositions, palavra esta omitida no nosso Codigo, e poder, portanto, abranger a venda, não se admite, salvo rarissimos autores, a burla sobre imobiliarios. Na Inglaterra, ha norma expressa não admitindo o crime de burla sobre esses bens. A outorga numa escritura representa a criação de um titulo e não a sua entrega, e sem esta entrega não se pode verificar o mesmo crime. A doutrina do acordão recorrido e inadmissivel por se fundar na analogia e na interpretação extensiva, o que e proibido pelo artigo 18 do Codigo Penal.
O excelentissimo Ajudante do Procurador-Geral da Republica junto da Secção Criminal sustenta douta e proficientemente que o recurso não merece provimento.
Tudo visto:
O acordão recorrido qualificou de crime de burla descrito no artigo 451, n. 3, do Codigo Penal os seguintes factos: o recorrente e a sua irmã B, empregando um processo fraudulento, determinaram C a vender, por escritura de 30 de Maio de 1951, a mesma B um predio urbano e a declarar falsamente que tinha recebido o preço de 100000 escudos.
E, para tanto, julgou que a expressão "quaisquer titulos", empregada no referido artigo, respeitava tanto a bens moveis como a imoveis.
Contrariamente decidiu o acordão invocado pelo recorrente que os fundos e titulos referidos nesse artigo são os que o artigo 362 do Codigo Comercial capitula de negociaveis.
A oposição entre os dois acordãos e, assim, manifesta.
E como foram proferidos em processo diferentes e no dominio da mesma legislação, e e de presumir o transito do acordão oposto, verificam-se os requisitos substanciais e formais exigidos pelo artigo 763 do Codigo de Processo Civil para a unificação da jurisprudencia.
Doutrinalmente, a burla e um crime contra a propriedade, visando atraves de uma manobra fraudulenta, o patrimonio alheio.
Legislações ha, como a brasileira (Codigo Penal, artigo 171), a espanhola (Codigo Penal, artigo 529) e a italiana (Codigo Penal, artigo 640), que se limitam, quanto ao objecto do mesmo crime, a uma formula abstracta e geral, admitindo, assim, a incidencia da burla tanto sobre bens moveis, como sobre imoveis.
No nosso Codigo ha modalidades de burla em que a lei mostra de uma forma clara que não quis excluir dela bens imoveis (artigos 450 e 452 e seu paragrafo 2) e tanto basta para se repelir a afirmação de que as sanções civis são suficientes para a tutela da propriedade imobiliaria.
Mas no caso vertente o problema circunscreve-se a interpretação do artigo 451, que teve por fonte o artigo 405 do Codigo Penal frances.
Segundo este artigo, podem ser objecto do referido crime des fonds, des meubles os des obligations, dispositions, billets, promesses, quitances ou decharges.
Esta enumeração, na opinião de Garraud, tem o caracter meramente demonstrativo. A lei não fala, e certo, senão em moveis, escreve o mesmo autor. Mas nada poderia justificar a limitação de burla aos efeitos exclusivamente mobiliarios. Não se podem furtar senão moveis, porque a subtracção supõe o deslocamento. Mas pode-se obter pela burla, acrescenta, um imovel, porque a burla outra coisa não e do que a apropriação de bens de outrem por manobras fraudulentas (Traite Theorique et Pratique du Droit Penal Français, edição de 1935, tomo 6, pagina 364).
Discordam dessa opinião a maioria dos escritores e a jurisprudencia, mas, apesar disso, admitem que a burla possa ter por objecto indirectamente imoveis (citada obra e lugar).
Chauveau e Helie, depois de escreverem que a burla, do memso modo que o furto, não incide directamente senão sobre coisas mobiliarias, ensinam: mas dai não resulta que não possa indirectamente ter por objecto imoveis, procurando o agente a entrega, pelas suas manobras, quer de somas de dinheiro que constituam o preço quer do titulo que represente a propriedade (Theorie du Code Penal, 6 edição, tomo 5, pagina 417).
Da mesma forma Garçon, não obstante entender que a referida enumeração e, em principio, limitativa, acompanhando a forte corrente jurisprudencial, aceita que indirectamente a burla pode incidir sobre imoveis, quer recebendo o agente o preço ou os titulos, quer abtendo um acto em que se comprove a transferencia como a venda, a troca, a doação, ou que crie uma hipoteca, uma servidão, etc. (Code Penal Anote, tomo 1, pagina 1299).
Nenhuma duvida pode, assim, haver de que, ao contrario do que afirma o recorrente, em França tanto a doutrina como a jurisprudencia admitem que a burla pode ter por objecto, embora indirectamente, bens imoveis.
Para tanto, interpretam as expressões obligations, promesses, quittances ou decharges como abrangendo todos e quaisquer factos juridicos que criem um vinculo ou que o extingam, isto e, todos os actos de que possa resultar um vinculo juridico que possa prejudicar o patrimonio alheio.
O artigo 451 afastou-se na redacção do artigo 405.
Aproveitou as expressões fonds que, segundo Garçon, significa especies amoedadas, e meubles, as quais traduziu por fundos, dinheiro e moveis e substituiu as restantes por titulos, sem fazer qualquer restrição.
Mas permaneceu fiel a doutrina, admitindo, como em França, que a burla pode incidir sobre as coisas (res) ou sobre os actos (instrumenta), sem quaisquer limitações, pois a expressão "titulo" significa documento comprovativo de qualquer direito.
Ensina por isso o Professor Beleza dos Santos que a referida expressão compreende todos os documentos cuja entrega possa ter uma repercussão no patrimonio do ofendido (Revista de Legislação e de Jurisprudencia, ano 76, pagina 326). E escreve Luis Osorio que se o artigo 451 não falta em imoveis nem nos direitos a ele relativos, e porque estas coisas so podem ser tansmitidas pelos titulos (Notas ao Codigo Penal, volume 4, pagina 210).
O argumento do recorrente de que não houve entrega do titulo não e de ser revisto no presente recurso, pelo simples motivo de que nenhum acordão invocou em que se tivesse doutrinado que a outorga numa escritura de compra e venda não importa a entrega ao comprador do titulo da propriedade da coisa vendida.
Não ha conflito de jurisprudencia quanto ao significado da expressão "fazendo com que se lhe entregue", empregada no citado artigo 451, ou melhor, não se mostra nos presentes autos que o haja.
Por estes fundamentos, negando provimento ao recurso, confirmam o acordão recorrido e formulam o seguinte assento:
A expressão "quaisquer... titulos", empregada no artigo 451 do Codigo Penal, abrange todos os documentos comprovativos de direito de caracter patrimonial, quer respeitantes a bens moveis, quer a bens imoveis.
Fixam em 1000 escudos o imposto a pagar pelo recorrente.


Lisboa, 06 de Julho de 1954

Piedade Rebelo (Relator) - Campelo de Andrade - Beça de Aragão - Filipe Sequeira - Jaime Tome - A. Bartolo - Roberto Martins - Jaime de Almeida Ribeiro - Manuel Malgueiro - Sousa Carvalho - Jose de Abreu Coutinho (Vencido porque entendo que, sem ofensa do disposto nos artigos 5 e 18 do Codigo Penal, não e possivel entender que o seu artigo 451 abrange bens imoveis.
Quando o legislador quis abrange-los disse-o expressamente, como por exemplo no artigo 450.
Nos casos como o do acordão recorrido não ha entrega aos acusados de coisa alguma. E o facto material da entrega e elemento essencial do crime do artigo 451.
Admitindo que a celebração de uma escritura de venda de um predio importa a entrega desse predio ao comprador, ha que ter em consideração que esse artigo 451 não alude a entrega de imoveis).
Julio M. de Lemos (Vencido pelos mesmos fundamentos).