Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4255/15.8T8VCT-A.G1.S1
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: CHAMBEL MOURISCO
Descritores: FIXAÇÃO DO VALOR DA CAUSA
Data do Acordão: 03/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECLAMAÇÃO - ARTº 643 CPC
Decisão: INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO EM GERAL / INCIDENTES DA INSTÂNCIA / VERIFICAÇÃO DO VALOR DA CAUSA.
Doutrina:
-Abílio Neto, Novo Código de Processo Civil, Anotado, 3.ª Edição revista e ampliada, 2015, p. 369 a 370;
-Salvador da Costa, Os Incidentes da Instância, 2016, 8.ª Edição, p. 60 e ss..
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 306.º.
Jurisprudência Internacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 29-10-1992, PROCESSO N.º 082808;
- DE 12-02-2003, PROCESSO N.º 4540, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 13-01-2005, PROCESSO N.º 04B3696;
- DE 12-01-2006, PROCESSO N.º 2132/05, IN WWW.DGSI.PT:
- DE 19-02-2008, PROCESSO N.º 08A280;
- DE 16-06-2015, PROCESSO N.º 962/05.1TTLSB.L1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 18/09/2015, PROCESSO N.º 158/13.9TTBRR.L1.
Sumário :

I. Cabe ao tribunal de primeira instância fixar o valor da causa, estando vedado aos tribunais de recurso usarem as faculdades previstas no art.º 306.º do Código de Processo Civil.

II. Caso o valor da causa não seja fixado no despacho saneador, na sentença, ou em despacho proferido incidentalmente sobre o requerimento de interposição de recurso, deve a parte interessada arguir a nulidade, provocando despacho recorrível.

III. Se a parte interessada não concordar com o valor fixado pelo juiz à causa deve suscitar o respetivo incidente.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

  1. AA, LDA., recorrente nos autos de recurso de apelação em processo comum veio interpor recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, do acórdão do Tribunal da Relação que não admitiu o recurso de apelação por si interposto com o fundamento na inadmissibilidade em razão do valor fixado à ação.

2. Por despacho proferido pelo relator o recurso de revista não foi admitido com o fundamento na inadmissibilidade em razão do valor fixado à ação.

3. Inconformada com essa decisão a recorrente apresentou a presente reclamação, nos termos do art.º 643.º do CPC, tendo concluído:

1 - O valor da causa tem de corresponder à utilidade económica de todos os interesses que se discutem no processo (art.º 296.º, n.º 1, do C.P.C.);

2 - Nos autos há reconvenção no valor de € 68.348,77 que foi, automaticamente e de imediato, adicionado aos € 3.738,90 da ação, passando a ser € 72.087,67 o valor da causa (art.º 299.º, n.º 3, do C.P.C);

3 - O aumento do valor da causa produz efeitos “ope legis” quanto aos atos e termos posteriores à reconvenção, pelo que na resposta a esta teve que se juntar “DUC suplementar e comprovativo do seu pagamento” e as taxas de justiça pagas pelas partes são as correspondentes ao valor da causa de € 72.087,67;

4 - A ampliação do valor da causa decorre da Lei, não tem que haver despacho de admissão da reconvenção, nem despacho a fixar o valor da causa, para ser corrigido para € 72.087,67;

5 - O despacho a indicar diverso valor à causa torna-se inócuo, ineficaz, sendo insuscetível de formar caso julgado uma vez que decorre da Lei que a partir da dedução do pedido reconvencional se considerou aumentado “ope legis” o valor da causa quanto aos atos e termos posteriores à reconvenção para € 72.087,676, com as inerentes obrigações que desse facto resultaram para as partes, nomeadamente os montantes de taxas de justiça pagas (artigo 299.º do C.P.C.);

6 - A interpretar-se o regime jurídico relativo ao valor da causa no caso de reconvenção como o é no despacho reclamado, veda-se o acesso aos graus de jurisdição superiores, impedindo o conhecimento do recurso num processo em que a partir da dedução do pedido reconvencional e “ope legis”, está em causa o valor de € 72.087,67, o que viola o direito de acesso aos tribunais, o qual implica que prevaleça a decisão de fundo sobre a mera decisão de forma (artigo 2.º do Código de Processo Civil);

7 - E o que é inconstitucional, por violação dos princípios do acesso ao direito e da tutela jurisdicional efetiva conjugado com o princípio da proporcionalidade (artigos 2.º, 18.º, n.º 2, 2.ª parte, 20.º da CRP);

8 - A decisão de não admissão do recurso por ser inferior à alçada do tribunal da 1.ª instância respeita ao valor da ação, na medida em que considera que este é o referido em despacho judicial, e não o que, em momento anterior, resultou dos efeitos “ope legis” derivados de existir reconvenção, sendo aplicável o disposto no artigo 629.º, n.º 2, al. b), do C.P.C.;

9 - O despacho reclamado deve ser revogado e deve ser admitido o recurso de revista interposto pela reclamante.

4. O Exmo. Juiz Desembargador Relator manteve o despacho de não admissão do recurso de revista e determinou a remessa dos autos a este Supremo Tribunal de Justiça.

5. Cumpre apreciar e decidir a presente reclamação:

 Atendendo que a ação deu entrada no ano de 2015 o regime processual aplicável é o seguinte:

- O Código de Processo do Trabalho (CPT), na versão operada pela Lei n.º 63/2013, de 27 de agosto;

- O Código de Processo Civil (CPC), na versão conferida pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho.

6. Neste Supremo Tribunal de Justiça, foi proferida decisão singular pelo relator, no sentido de julgar inadmissível a reclamação e, em consequência, não tomar conhecimento da mesma, tendo como pressuposto que o seu objeto era uma decisão de um tribunal colegial, o que afastaria a aplicação da figura contemplada no n.º 1 do artigo 643.º do Código de Processo Civil.

7. A recorrente veio requerer que sobre a matéria do despacho recaia um acórdão, nos termos do art.º 652.º n.º 3 do Código de Processo Civil, esclarecendo que apresentou reclamação do despacho de 2 de novembro de 2017, que não admitiu o recurso de revista, pelo que se trata de uma decisão singular.

8. A parte contrária não apresentou resposta.

Cumpre apreciar e decidir a presente reclamação:

Antes de mais, importa referir que o despacho reclamado, proferido pelo relator, considerou indevidamente que tinha havido uma decisão colegial em relação à não admissão do recurso de revista, quando isso, efetivamente, aconteceu com o recurso de apelação (Acórdão de 11/7/2017).

Na verdade, a recorrente interpôs recurso de revista deste acórdão de 11/7/2017, recurso esse que não foi admitido pelo Juiz Desembargador relator, por despacho de 2/11/2017.

É pois deste último despacho que a recorrente reclama, pelo que neste particular lhe assiste razão.

Vejamos então a questão:

O Juiz Desembargador relator, no despacho que não admitiu o recurso, referiu o seguinte:

“No que respeita à admissibilidade do recurso de revista, pelas mesmas razões pelas quais se decidiu não admitir o recurso de apelação para este Tribunal, em razão do valor atribuído à presente ação (€ 3.738,70) e que constam quer da decisão singular, quer do acórdão, as quais se dão aqui por reproduzidas e tendo ainda presente o valor da alçada deste Tribunal não é de admitir o recurso de revista interposto.

Acresce ainda dizer que o caso em apreço não se insere na situação prevista na al. b) do n.º 2 do artigo 629.º do CPC, pois não se pretende recorrer de qualquer decisão respeitante ao valor da causa (esta transitou em julgado) ou dos seus incidentes (inexistentes nos autos), mas sim pretende-se recorrer da decisão que não admitiu o recurso de apelação, por o valor fixado à presente ação ser inferior ao da alçada do tribunal da 1.ª instância.”

Antes dos autos subirem a este Supremo Tribunal de Justiça, ao manter o despacho reclamado, o Senhor Juiz Desembargador consignou o seguinte:

“Entendo manter no caso concreto o despacho objeto de reclamação pelos motivos nele explanado, a que acresce dizer que, encontrando-se o valor da causa definitivamente fixado pela 1.ª instância (€ 3.783,70), sem possibilidade de posterior alteração no tribunal de recurso, ainda que tal decisão tenha subjacente um erro de julgamento, este é o valor que imodificavelmente releva, para efeitos de recurso e não o da utilidade económica do objeto do recurso ou o valor tributário.”

Quanto às decisões que admitem recurso temos a disposição especial do Código de Processo do Trabalho, constante do art.º 79.º, que refere o seguinte:

Sem prejuízo do disposto no artigo 678.º do Código de Processo Civil (atual 629.º) e independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso para a Relação:

a) Nas ações em que esteja em causa a determinação da categoria profissional, o despedimento do trabalhador, a sua reintegração na empresa e a validade ou subsistência do contrato de trabalho;

b) Nos processos emergentes de acidente de trabalho ou de doença profissional;

c) Nos processos do contencioso das instituições de previdência, abono de família e associações sindicais.

Por seu turno, o art.º 629.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, dispõe:

1 - O recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal, atendendo-se, em caso de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência, somente ao valor da causa.

2 - Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso:

b) Das decisões respeitantes ao valor da causa ou dos incidentes, com o fundamento de que o seu valor excede a alçada do tribunal de que se recorre.

Finalmente, quanto ao recurso de revista, o art.º 671.º, do Código de Processo Civil, prescreve:

1 - Cabe revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1.ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos.

2 - Os acórdãos da Relação que apreciem decisões interlocutórias que recaiam unicamente sobre a relação processual só podem ser objeto de revista:

a) Nos casos em que o recurso é sempre admissível;

b) Quando estejam em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.

3 - Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte.

4 - Se não houver ou não for admissível recurso de revista das decisões previstas no n.º 1, os acórdãos proferidos na pendência do processo na Relação podem ser impugnados, caso tenham interesse para o recorrente independentemente daquela decisão, num recurso único, a interpor após o trânsito daquela decisão, no prazo de 15 dias após o referido trânsito.

Vejamos então, se é, ou não, de manter o despacho reclamado que não admitiu o recurso, com o fundamento de que o valor da causa é inferior à alçada do Tribunal da Relação.

 O art.º 306.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, estipula que compete ao juiz fixar o valor da causa, sem prejuízo do dever de indicação que impende sobre as partes.

A propósito desta disposição legal, o Juiz Conselheiro Salvador da Costa[1] escreveu:

O n.º 1 estabelece competir ao juiz a fixação do valor da causa, sem prejuízo do dever de indicação que impende sobre as partes. É uma solução inspirada no relevo do valor processual da causa, quanto à forma do processo comum executivo para pagamento de quantia certa, à sua relação com a alçada do tribunal e à competência das secções de competência cível.

No regime pretérito, o valor da causa era suscetível de ser relevantemente acordado, expressa ou tacitamente, pelas partes, salvo se o juiz, findos os articulados, entendendo que o acordo estava em flagrante oposição com a realidade, fixasse à causa o valor que considerasse adequado.

Mas se o juiz, por qualquer motivo, não usasse esse poder, o valor processual da causa, proferido que fosse o despacho saneador ou a sentença, conforme os casos, considerava-se definitivamente fixado na quantia acordada.

As partes indicavam frequentemente para a causa valor desconforme com a utilidade económica do pedido e a lei e, não raro, o juiz não proferia o respetivo despacho de fixação do valor da causa, desvirtuando-se, por via disso, o regime de admissibilidade dos recursos e a própria obrigação de pagamento da taxa de justiça.

A referida alteração visou obstar, além do mais, às mencionadas consequências. Agora, independentemente da posição das partes relativamente ao valor da causa, o juiz tem de o fixar, podendo, para o efeito, nos termos dos artigos 308.º e 309.º, ordenar diligências.

Assim, o acordo expresso ou tácito das partes quanto ao valor processual da causa já não releva com vista à sua fixação, impondo-se ao juiz a verificação da sua conformidade com os factos e a lei.

Em suma, o juiz tem que ajuizar sobre a objetividade do acordo a que as partes chegaram sobre o valor da causa. (…)

Também, em anotação ao art.º 306.º, do Código de Processo Civil, Abílio Neto[2] escreve:

 Embora as partes continuem obrigadas a indicar o valor da causa na petição inicial (art.º 552.º-1-f), sob pena de recusa do articulado (art.º 658.º-e), após o DL n.º 303/2007 o juiz passou a ter uma intervenção ativa muito mais acentuada na fixação desse valor, sobrepondo-se ao acordo das partes, o que fará, em regra, no despacho saneador, ou antes (se houver a admissão de recursos interpostos de decisões anteriores), ou na sentença, ou ainda no despacho de admissão do recurso (art. os 306.º e 641.º).

O poder-dever atribuído ao juiz de fixar o valor da causa, mesmo quando o valor aceite pelas partes, tácita ou expressamente, não esteja “em flagrante oposição com a realidade” (anterior n.º 1 deste artigo), teve por objetivo declarado dificultar a interposição (artificial) de recursos.

É nesta perspetiva que se compreende e explica a regra enunciada no nº 3 deste preceito.

Assim, cabendo ao juiz do tribunal de primeira instância fixar o valor da causa está vedado aos tribunais de recurso usarem as faculdades previstas no art.º 306.º do Código de Processo Civil.

Se o valor da causa não for fixado no despacho saneador, na sentença, ou em despacho proferido incidentalmente sobre o requerimento de interposição de recurso, deve a parte interessada arguir a nulidade, provocando despacho recorrível.

Por outro lado, se a parte interessada não concordar com o valor fixado pelo juiz à causa deve suscitar o respetivo incidente.

O Supremo Tribunal de Justiça tem, reiteradamente, firmado, quanto a esta matéria, as seguintes linhas orientadoras, assinaladas na decisão sumária, proferida em 18/09/2015, no processo n.º 158/13.9TTBRR.L1[3]:

- O valor da causa é fixado definitivamente na 1ª instância, sem possibilidade de posterior alteração no tribunal de recurso, pelo que, mesmo que haja condenação acima do valor da causa ali fixado, o valor que releva para efeitos de alçada e de recurso é apenas aquele, e não o da utilidade económica do objeto (material) do recurso, nem o valor tributário.[4]

- Ainda que a decisão (implícita ou explícita) sobre o valor da causa tenha subjacente um erro de julgamento, resultante da circunstância de tal valor se encontrar em flagrante oposição com os critérios consagrados na lei para o determinar, tal decisão, na medida em que transite em julgado, tem força obrigatória dentro do processo, não se configurando qualquer nulidade. O valor assim fixado é, imodificavelmente, o que releva para efeitos de recurso, ainda que a condenação sentenciada lhe seja superior.[5]

- Uma vez que a competência para a fixação do valor de uma causa cabe à 1ª instância e não aos Tribunais Superiores (ressalvando a situação de conhecimento de recurso da decisão proferida na 1.ª instância), a decisão do Tribunal da Relação que infrinja esta regra terá mesmo de ser considerada inexistente.[6]

No caso concreto dos autos, na primeira instância, foi fixado à causa o valor de € 3.783,70, por decisão transitada em julgado.

Sendo assim, a questão do valor da causa não é objeto do recurso de revista, pelo que temos de considerar como definitivo o fixado pela 1ª instância.

Como já se referiu, o art.º 629.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, dispõe que o recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal.

No caso concreto dos autos, não se encontra preenchido, logo, o primeiro requisito, pois o valor fixado à causa pelo tribunal de 1ª instância é inferior à alçada do tribunal da relação, pelo que o recurso de revista é inadmissível.

  O reclamante defende que a interpretação feita no despacho reclamado, quanto ao valor da causa, veda o acesso aos graus de jurisdição superiores, violando assim os princípios do acesso ao direito e da tutela jurisdicional efetiva conjugado com o princípio da proporcionalidade, consagrados nos artigos 2.º, 18.º, n.º 2, 2.ª parte, e 20.º da Constituição da República Portuguesa.

            O artigo 20.º da Constituição, intitulado “Acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva” estatui no seu n.º 1 que a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.

            O n.º 5 da citada disposição constitucional garante que para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efetiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos.

No caso concreto dos autos, suscita-se a questão de saber se a interpretação normativa adotada no despacho reclamado viola o direito de acesso aos tribunais.

O Tribunal Constitucional já firmou jurisprudência no sentido de que não resulta da Constituição nenhuma garantia genérica de direito ao recurso de decisões judiciais; nem tal direito faz parte integrante e necessária do princípio constitucional do acesso ao direito e à justiça, consagrado no citado artigo 20.º da Constituição.

Na verdade, a Constituição não contém preceito expresso que consagre o direito ao recurso para um outro tribunal, nem em processo administrativo, nem em processo civil, apenas o contendo no âmbito do processo penal.

Prevendo a Lei Fundamental a existência de tribunais de recurso, há que concluir que o legislador está impedido de eliminar pura e simplesmente a faculdade de recorrer em todo e qualquer caso, ou de a inviabilizar na prática, não estando, no entanto, impedido de regular, com larga margem de liberdade, a existência dos recursos e a recorribilidade das decisões.

Sendo certo que, a plenitude do acesso à jurisdição postula um sistema que proteja os interessados contra os próprios atos jurisdicionais, incluindo o direito de recurso, o direito de acesso aos tribunais não impõe ao legislador ordinário que garanta sempre aos interessados o acesso a diferentes graus de jurisdição para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos.

Neste conspecto, não se vislumbra que a interpretação normativa efetivada no despacho reclamado ofenda aquele preceito constitucional.

O mesmo se diga em relação à invocada violação do artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa, preceito que rege sobre a “força jurídica” dos preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias e cujo conteúdo essencial se mostra inteiramente salvaguardado na questionada dimensão normativa.

Por fim, sublinhe-se que o entendimento perfilhado, no despacho reclamado, é consonante com o sistema no seu todo, em que está subjacente o princípio da proporcionalidade, encontrando-se garantida a efetivação dos direitos e liberdades fundamentais, ínsitos ao Estado de Direito Democrático, como é afirmado no art.º 2.º da Constituição da República Portuguesa.

Pelos fundamentos expostos acorda-se em indeferir a presente reclamação.

Custas pela R. /reclamante, fixando-se a taxa de justiça no mínimo.

Lisboa, 8/03/2018

Chambel Mourisco (Relator)

Pinto Hespanhol

Gonçalves Rocha

______________
[1] Os Incidentes da instância, 2016, 8ª edição, pág. 60 e seguintes.
[2] Novo Código de Processo Civil, Anotado, 3.ª edição revista e ampliada, maio/2015, pág. 369-370.
[3] Decisão da autoria do Conselheiro Mário Belo Morgado.
[4] Cfr. Acórdãos de 16/06/2015, Recurso n.º 962/05.1TTLSB.L1.S1, de 12/01/2006, Recurso n.º 2132/05, e de 12/02/2003, Revista n.º 4540, todos da 4.ª Secção do STJ, disponíveis em www.dgsi.pt.
[5] Cfr. Acórdãos de 29/10/1992 (doc. n.º SJ199210290828082, Processo 082808) e de 13/01/05 (doc. n.º SJ200501130036962, Processo 04B3696).
[6] Ac. de 19.02.2008 (doc. n.º SJ2008021902801, Processo 08A280).