Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
125/06.9TBLGS.E1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: JOÃO BERNARDO
Descritores: CONDENAÇÃO SOLIDÁRIA
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
RESPONSABILIDADE CIVIL
DANOS CAUSADOS POR COISAS OU ANIMAIS
PRESUNÇÃO DE CULPA
AUTORIA
CONTRATO TURISTICO DE HOSPEDAGEM OU ALOJAMENTO
LIMITAÇÃO DA INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 01/22/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA EM PARTE A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CONSTITUCIONAL - DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS PESSOAIS - TRIBUNAIS.
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL.
Doutrina:
- Almeida Costa, Direito das Obrigações, 6.ª edição, p.492.
- Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 9.ª ed., I, p.615.
- J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, “Constituição da República Portuguesa” Anotada, volume I, Coimbra Editora 2007, p. 339.
- Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra Editora, 2005, p. 121.
- José Alberto Gonzalez, Responsabilidade Civil, p.50.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 483.º, N.º1, 490.º, 493.º, N.º1, 494.º, 497.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 13.º, 204.º.
LEI SOBRE A ORGANIZAÇÃO, FUNCIONAMENTO E PROCESSO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL: - ARTIGOS 6.º E 277.º A 283.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:
-DE 21-03-2006, PROCESSO N.º 299/06, IN WWW.DGSI.PT .

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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:
-Nº 319/00, DIÁRIO DA REPÚBLICA, II SÉRIE, DE 18/10/2000, PP. 16785/16786, E EM WWW.DGSI.PT .

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ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 19.1.2011, PROCESSO N.º 6034/08.0TDPRT.P1.S1;
-DE 5.7.2012, PROCESSO N.º 1451/07.5TBGRD.C1.S1; AMBOS COM TEXTO DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
1 . A condenação de dois réus em regime de solidariedade, ainda que cada um tenha contribuído diferenciadamente para o ato ilícito e respectivas consequências, não viola o princípio constitucional da igualdade.

2 . O artigo 493.º, n.º 1 do Código Civil abrange os danos provocados pelas coisas ou animais e não os provocados com o emprego de coisas ou animais.

3 . Assim, não cabe no preceito o afogamento duma pessoa em virtude de adornamento duma gaivota em que passeava e que estava deficientemente vedada dum dos lados.

4 . No domínio da responsabilização ou não duma pessoa relativamente a tal afogamento vale também em direito civil a teoria do domínio da ação.

5 . Deve ser considerado responsável o hospedeiro que faz anunciar em site da internet a possibilidade de atividade náutica de canoagem e que sugeriu e convidou a pessoa hospedada, que veio a falecer e família, para que usassem diversas as diversas embarcações – ainda que pertencentes a outrem – que se encontravam em frente à casa de hospedagem, na praia da barragem contígua, a que os hóspedes tinham acesso direto e fácil.

6 . Emergindo tal responsabilidade também das obrigações, quanto a segurança, integrantes do contrato turístico de hospedagem/alojamento celebrado.

7 . Pertencendo a outro réu a gaivota, o qual a colocou ali sabendo poder ser utilizada por outras pessoas, com o buraco dum dos lados tapado apenas com uma rolha, concorreu este para o evento fatídico.

8 . Não obstante o regime de solidariedade estatuído no artigo 497.º do Código Civil, justifica-se, visto todo o quadro descrito, que o hospedeiro veja a indemnização a seu cargo limitada a apenas 50% do valor global, nos termos do artigo 494.º.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


1 . No Tribunal Judicial da Comarca de Lagos, AA e seus filhos menores, BB, CC, e DD, por si representados, intentaram esta ação declarativa contra:

 EE, e

FF.


Alegaram, em síntese, que:


No dia 10 de Agosto de 2004, a mulher dele, AA, e mãe dos demais, GG, quando passeava de gaivota, junto à Barragem da Bravura, Lagos, aquela adornou porque os flutuadores se encontravam deficientemente vedados com tampões de cortiça, o que permitiu a intrusão de água no do lado esquerdo;

Por isso, caiu e morreu afogada.

A responsabilidade do adornamento e do falecimento da vítima cabe aos réus, solidariamente; ao primeiro por permitir a permanência e o uso da referida embarcação naquele local, sem condições de segurança e ao segundo por permitir aos seus hóspedes (qualidade que a vítima tinha) o uso da referida embarcação, no âmbito das “facilidades” disponíveis, que anunciava no site publicitário da sua propriedade, designadamente, canoagem e similares, na praia privativa da barragem, que explorava em regime de concessão.


Pediram, em conformidade, a condenação dos réus a pagarem-lhes:

€ 85.382,99 a título de dano morte e de lucros cessantes;

A ele, primeiro autor, € 20.000,00 a título de danos não patrimoniais;

A cada um dos filhos € 30.000,00, tudo no valor global de € 195.382,99;

Juros legais desde citação sobre este montante.



2 . Contestaram os réus.


O 1.º sustentou, em resumo, que:


A gaivota, sendo sua propriedade, foi utilizada pela ora falecida abusivamente, uma vez que se encontrava fora de água, a cerca de 40 metros da borda, voltada e assente sobre barrotes de madeira e presa por um cabo a um barrote vertical, sendo de uso privado e reservado a ele, réu, e à sua família;

O que seria inteligível a qualquer pessoa dotada de senso comum, sendo a rolha de cortiça meio suficiente para permitir a navegação em segurança desde que não fosse retirada, o que só pode ser feito por ação do homem;

Ele próprio, no dia anterior, tendo encontrado a gaivota junto à água, colocou-a nas condições referidas, não sendo fácil o trajeto até à água, sobre o cascalho, exigindo mais do que uma pessoa para a pôr na água sem a arrastar e danificar;

Sendo totalmente alheio às condições das férias oferecidas pelo 2º Réu, sabe que apenas fora permitido ao grupo da ora falecida o uso de um barco a remos que se encontrava na praia equipado com coletes salva-vidas;

Ao usar a gaivota sem autorização, e sem equipar as crianças com os coletes, a seguir ao pequeno-almoço e a uma hora de calor intenso, a ora falecida assumiu, voluntaria e conscientemente, um risco da sua exclusiva responsabilidade;

O buraco do lado esquerdo da gaivota só poderia ter sido aberto intencionalmente pela ora falecida, que, aliás, sendo pintora, era uma mulher estranha, de quem um crítico de arte refere que deixou obra estranha e forte, com séries realizadas em “morgues”.


O 2º réu, por sua vez, invocou, em síntese:


Sendo sua a residência em questão, a responsabilidade do anúncio e das informações publicadas no site referido pelos Autores era do mediador imobiliário, que não sua;

À chegada do grupo integrado pela ora falecida, ele próprio os informou de que, caso quisessem entrar na água, fosse para nadar, fosse para qualquer outra atividade, o fariam por sua exclusiva conta e risco;

Existindo avisos com essa advertência, escritos em língua inglesa e alemã, colocados pela casa, tendo-os informado de que para poderem usufruir mais plenamente da barragem poderiam usar um barco a remos de cor amarela, sua propriedade, que estava devidamente equipado, com boia de salvação e dois coletes salva-vidas para adultos e outros dois para crianças, sem os quais não deveriam utilizá-lo;

A praia em questão não é do uso nem acesso privativo da sua residência, sendo frequentada por outros moradores de casas nas margens da barragem, e por quem mais o entenda, designadamente, pelo 1º Réu, dono da gaivota em questão, que não reside ali, não lhe cabendo qualquer dever de vigilância sobre os perigos da praia da barragem onde estava depositada a gaivota, que está sob o domínio público hídrico, nos termos do DL 468/71 de 5/11, e da qual não é concessionário, sendo o arrendamento da sua residência celebrado sob o regime de “self catering”, no âmbito do qual o proprietário da casa se limita a proporcionar o gozo da mesma, não podendo ser responsabilizado pelo uso da mesma;

Não lhe pertencendo a gaivota, nem sendo o autor da troca dos tampões originais pelas rolhas de cortiça, não procede a morte da vítima de culpa sua, pois que, ao utilizar uma gaivota que estava na praia com duas crianças de quatro e seis anos de idade, das quais apenas uma aprendera a nadar há muito pouco tempo, e a outra não sabia, de todo, apenas uma das crianças levando colete de salvação;

Foi a vítima que optou por não utilizar todos os meios ao seu dispor para garantir a sua segurança e das crianças que a acompanhavam, pelo que, a morte da referida senhora ocorreu por culpa exclusiva dela, não podendo ele ser responsabilizado pela produção do evento;

A senhora em questão era uma pintora de renome, reconhecidamente fascinada com a morte, conforme é retratada após o seu falecimento por um admirador em livro que publicou sobre a personalidade e obra da falecida, onde são reproduzidos quadros da sua autoria quase todos de uma morbidez total e impressionante.



3 . Responderam os autores, concluindo como na petição inicial.



4 . A ação prosseguiu e, na devida oportunidade, foi proferida sentença, cuja parte decisória é do seguinte teor:


“Pelo exposto, julgo a ação parcialmente improcedente, por parcialmente provada e, em consequência, decido:

- condenar o 1º e o 2º Réus, solidariamente, a pagarem a AA, 1º Autor, na qualidade de representante legal dos filhos menores, as seguintes quantias:

a) – ao 2º Autor BB - a quantia global de € 62.000,00 (sessenta e dois mil euros) dos quais € 12.000,00 (doze mil euros) a título de danos patrimoniais por lucros cessantes, € 20.000,00 (vinte mil euros) a título de danos não patrimoniais pelo dano perda da vida da vítima, e € 30.000,00 (trinta mil euros) a título de danos não patrimoniais pelo dano desgosto pela perda da vítima;

b) – à 3ª Autora CC - a quantia global de € 63.000,00 (sessenta e três mil euros) dos quais € 13.000,00 (treze mil euros) a título de danos patrimoniais por lucros cessantes, € 20.000,00 (vinte mil euros) a título de danos não patrimoniais pelo dano perda da vida da vítima, e €30.000,00 (trinta mil euros) a título de danos não patrimoniais pelo dano desgosto pela perda da vítima; e,

c) – à 4ª Autora DD - a quantia global de € 64.000,00 (sessenta e quatro mil euros) dos quais € 14.000,00 (catorze mil euros ) a título de danos patrimoniais por lucros cessantes, €20.000,00 (vinte mil euros) a título de danos não patrimoniais pelo dano perda da vida da vítima, e € 30.000,00 (trinta mil euros) a título de danos não patrimoniais pelo dano desgosto pela perda da vítima, quantias a que acrescerão juros vincendos, desde a presente data até integral pagamento, às taxas legais aplicáveis dos juros civis, no mais que vem peticionado pelos 2º, 3º e 4º autores, se  absolvendo os Réus;

- absolver os Réus dos pedidos formulados pelo 1º Autor em seu nome próprio;

Custas pelos Réus, solidariamente, e pelo 1º Autor, na proporção dos respetivos decaimentos – art. 446º do CPC.”



5 . Apelaram:

O autor AA e

O réu FF (o recurso do réu EE foi julgado deserto por não apresentação de alegações).



Mas ambos sem êxito, porquanto o Tribunal da Relação de Évora confirmou a sentença.



6 . Pede revista o réu FF.

Que, atenta a dada da instauração da ação, foi admitida, não obstante a dupla conforme.



Conclui ele as alegações do seguinte modo:


a) O Recorrente vem interpor recurso da decisão que julga improcedente a sua apelação e confirma a sentença do Tribunal Judicial de Lagos e vem interpô-lo por entender que a decisão proferida é, no que a si diz respeito, injusta e violadora do direito aplicável aos factos, como a seguir se exporá.

b) O caso dos autos prende-se com a eventual responsabilidade do ora Recorrente pelo pagamento de indemnização consequência do falecimento da senhora Da GG, pintora, que, em determinado ano passou férias na zona de Lagos, em casa propriedade do ora Recorrente e que este arrendou - a um grupo de pessoas de onde se contava a vítima. A casa em questão tinha perto uma praia fluvial, pública, à qual podia aceder quem entendesse e, nessa praia, estava existia uma embarcação a que vulgarmente se chama "gaivota", que consiste num barco com dois flutuadores e em que o avanço se faz através da operação de pedais.

c) Em passeio que a vítima resolveu efectuar por sua conta e risco, a gaivota adornou e a vítima morreu afogada.

d) Em vista de tal trágico evento os filhos da mesma vieram demandar o ora Recorrente e o seu co réu na presente acção, com o desiderato de lhes ser paga indemnização pelos danos sofridos com a morte da mãe, tendo o Recorrente acabado por ser condenado solidariamente com o seu co-réu na presente acção por "omissão do dever de vigilância e, ---"pelo menos, enquanto detentor da mesma, por ter permitido o uso dela aos hóspedes,"

e) Tal condenação é efectuada na sequência de uma interpretação extensíssima do disposto no artigo 493.º, n.º 1 do Código Civil, interpretação essa tão extensa que aplica o dispositivo legal em questão a situação que, claramente, não cai debaixo da sua previsão, sendo que por isso, a decisão que ora se impugna é claramente violadora do artigo 493°, n.º 1 do código Civil, como a seguir se demonstrará.

f) Verificou o Recorrente que o recurso do seu co-réu EE, veio a ser julgado deserto, após apresentar as suas alegações de apelação.

g) O 1° R., ora Recorrido, ao não apresentar a sua alegação, aceitou, claramente, a responsabilidade pelos factos que foram apurados no presente processo.

h) Ao determinar que o Recorrente é responsável pelo acidente por omissão, solidariamente com o seu co-réu acima mencionado, a douta sentença está a violar o artigo 493.º n.º 1 Código Civil e deve ser revogada, absolvendo-se o Recorrente, com as legais consequências, o que se requer.

i) O douto acórdão do Tribunal da Relação de Évora julgou os co-réus solidariamente responsáveis pelo funesto acidente e condenados a pagar o mesmo montante indemnizatório, quando temos um R., ora Recorrido, que se conformou com a sentença de lª instância e outro R., o ora Recorrente, inconformado, a apresentar o segundo recurso da decisão.

j) O princípio constitucional da igualdade tem de ser interpretado no sentido que os cidadãos são iguais perante a lei, porém tem de ser tratado como igual o que é igual, e nessa sequência, o que não é igual tem de ter tratado de forma desigual, não se tratando de uma igualdade absoluta, meramente formal.

k) Ao tratar de forma igual aquilo que é diferente, o douto acórdão viola igualmente o artigo 13° n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, estando ferido de inconstitucionalidade, e deve ser revogado, absolvendo-se o Recorrente, com as legais consequências, o que se requer.

I) O douto acórdão validou o entendimento expresso na sentença proferida pelo Tribunal de Primeira Instância que considerou que o Recorrente omitiu o dever de vigilância sobre a embarcação onde ocorreu o acidente, dever de vigilância esse a que estava adstrito por ser detentor da mesma.

m) Efectivamente, o n.º 1 do artigo 493.º do Código Civil exige, para que ocorra responsabilidade, que o eventual responsável tenha ,.,"em seu poder ... " a coisa e só se for possível considerar que o ora Recorrente tinha a coisa em seu poder, é que poderá defender-se que aquele tinha um dever de vigilância sobre a mesma e, mais, que tendo incumprido tal dever de vigilância, deverá ser considerado responsável pelos factos.

n) O Recorrente não era detentor da embarcação dos autos nem nunca a teve em seu poder.

o) Ora, no Recorrente não se verifica a existência do corpus da posse que consubstancia a detenção da embarcação, ou seja, não tinha a detenção e uso da embarcação que estava depositada numa praia pública e frequentada por quem entendesse.

p) A detenção exige que haja um exercício de poderes de facto pelo detentor sobre a coisa, isto é, e no caso concreto, que o ora Recorrente se servisse da mesma ou permitisse a algum dos seus hóspedes, expressa ou implicitamente, a utilização da embarcação em questão.

q) Quis a sentença recorrida ver a ocorrência desse exercício de poder sobre a coisa, ainda que como mero detentor, no facto de o ora Recorrente ter sugerido e convidado os seus hóspedes a usarem as embarcações que estavam em frente da casa que lhes arrendou.

r) Não ficou provado que a "gaivota" em questão estivesse colocada em frente da casa do ora Recorrente - apenas se considerou como provado que a gaivota estava numa praia a que os hóspedes do ora Recorrente tinham fácil acesso e, ainda, que a casa deste último tinha em frente o lago da barragem - nada se dizendo sobre a situação geográfica da praia relativamente à casa.

s) Não ficou, igualmente, provado que o ora Recorrente tivesse, expressamente, dito aos seus hóspedes que podiam usar a "gaivota" dos autos, indicação expressa que era claramente necessária para que se pudesse defender que o ora Recorrente tinha " ... em seu poder ... " - ainda como mero detentor, a embarcação em questão.

t) Deste modo, não podia ter-se considerado como certo que ora Recorrente tivesse" ... em seu poder ... " - ainda como mero detentor - a gaivota dos autos.

u) Não tendo ficado provado que o Recorrente tinha ... "em seu poder ... " - ainda como mero detentor-, a embarcação dos autos, não pode deixar de cair pela base a sua responsabilização com base no artigo 493.° n.º 1 do Código Civil.

v) A aplicação deste artigo e consequente responsabilização nos seus termos do ora Recorrente exigirá, como em cima se disse, que este fosse detentor da coisa - que a tivesse ... " em seu poder ... " - facto que a verificar-se faria nascer na esfera jurídica do ora Recorrente o dever de vigilância sobre a coisa, dever esse que este, alegadamente, incumpriu.

w) Ficou demonstrado à saciedade que não foram provados factos que possam estribar a afirmação de que o ora Recorrente tinha a coisa em seu poder, ainda como mero detentor.

x) Tratava-se da coisa propriedade de outra pessoa, depositada em local público e de acesso a todos, depositada numa praia cuja situação geográfica relativamente à casa do ora Recorrente não ficou provada, sendo que não ficou, igualmente, provado que o ora Recorrente tivesse sugerido e convidado os seus hóspedes a utilizar a embarcação em questão.

y) Não sendo o Recorrente detentor da coisa, não estava adstrito ao cumprimento de nenhum dever de vigilância cujo eventual incumprimento acarretasse, para si, a responsabilidade de ressarcir os danos provocados pelo funesto acontecimento dos autos.

z) Não competia ao Recorrente vigiar embarcação alheia em propriedade pública, nem actividade que não explorava com embarcação que não lhe pertencia e da qual não tinha nem a posse, nem a detenção.

aa) A detenção e o correlativo dever de vigilância eram essenciais para que se verificasse a possibilidade de considerar a actuação do ora Recorrente - ou a sua omissão- como subsumíveis na previsão existente no artigo 493.º n.º1 do Código Civil.

bb) Atendendo ao que acima fica dito, apenas se pode concluir pela não responsabilidade do Recorrente nos factos, não tendo incorrido o Recorrente em nenhuma omissão censurável e punível por lei.

cc) Ao determinar que o Recorrente é responsável pelo dano, por omitir o dever de vigilância de coisa relativamente à qual não exercia poderes de facto, e consequentemente, que não tinha a detenção ou posse, a douta decisão que se impugna violou o disposto no artigo 493.º n.º 1 do Código Civil, pois aplicou-o a realidade que está fora da sua previsão.

Nestes termos, e nos mais de direito aplicável, deve ser revogada a decisão do douto tribunal a quo, sendo absolvido o Recorrente, com as legais consequências.



Contra-alegou o autor.

Levantou uma questão prévia, já conhecida pelo relator, sobre a tempestividade da apresentação das alegações e rebateu, longamente, a argumentação da contraparte.



7 . Ante as conclusões das alegações, há que tomar posição sobre se:

A decisão recorrida violou o artigo 13.º da CRP, ao tratar igualmente os dois réus, quando é manifesta a diversidade entre eles;

O recorrente não deve ser considerado abrangido pela expressão “Quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel com o dever de a vigiar” do n.º1 do artigo 493.º do Código Civil;

Não sendo responsável pelas consequências da morte ocorrida.



8 . Vem provada a seguinte matéria de facto:


1. A Senhora HH reservou por intermédio de um portal ou página da internet umas férias para a época balnear do Verão de 2004 para a sua família, ou seja o seu filho, a sua irmã GG e respetivos filhos e 1º autor, a ter lugar numa casa de férias na Quinta Beira do Lago, Barragem da Bravura, Odeáxere, em Lagos;

2. Foi no dia 10 de Agosto de 2004, numa bela manhã, entre as 10.30 horas e as 11.00 horas, que a senhora GG, com o seu filho BB, 2º Autor, e o seu sobrinho II, saíram da sua casa de férias, para dar um pequeno passeio numa gaivota pela barragem;

3. No dia 10 de Agosto de 2004 a mãe dos três menores, agora últimos Autores, faleceu por afogamento, provocado pelo adorno da gaivota em que passeava com o 2º Autor e o seu sobrinho.

4. A dita senhora foi somente encontrada já no dia 28 de Agosto de 2004, pelas autoridades na Barragem da Bravura.

5. Tal casa de férias é administrada, gerida e explorada com fins turísticos pelo 2º Réu, sendo também dono da propriedade.

6. A página colocada na WEB – de natureza, características e fins turísticos – é gerida e propriedade da sociedade comercial “JJ – Consultoria Informática, Unipessoal, Lda., matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Portimão sob a matrícula 4044/020418, pessoa coletiva número …, com o capital de €50.000,00 e sede em Vale do Arão, Vale Corvos de Baixo, Mexilhoeira Grande, Portimão;

7. O site pertencia ao Sr. KK e a sua construção havia sido da JJ;

8. As informações, recomendações e conselhos que constam do referido site da tal sociedade relativamente à casa de férias mencionada tiveram por fonte indicações, sugestões e instruções do 2º Réu;

9. As férias dos AA e restantes membros da família foram reservadas com antecedência de quase um ano;

10. A casa de férias está sita na Quinta Beira do Lago, Barragem da Bravura, Odeáxere, Lagos;

11. O preço acordado e pago foi de € 3.900,00;

12. No referido site da “JJ” mencionava-se atividade náutica de canoagem;

13. O lago da barragem situa-se mesmo em frente, não muito mais do que 50 metros, da casa de férias, propriedade do 2º Réu.

14. A gaivota encontrava-se estacionada na praia da barragem, a que os hóspedes do 2º Réu têm acesso direto e fácil;

15. A gaivota encontrava-se fora de água;

16. As gaivotas são embarcações movidas a pedais;

17. As gaivotas são embarcações cujo equilíbrio e estabilidade de flutuação no mar assenta entre outras, na segurança e fiabilidade de dois flutuadores, um do lado esquerdo, o outro do lado direito;

18. As gaivotas são simples embarcações de recreio, de fácil manejo, que não requerem qualquer tipo de habilidade especial, conhecimentos náuticos ou qualquer tipo de licença para o seu uso;

19. Os flutuadores da referida gaivota, onde a Senhora GG, mais as duas crianças seguiam, que supostamente deveriam conter os usuais e adequados tampões nos devidos orifícios, para o eficaz controlo da intrusão de água dentro da embarcação, estavam armados com simples rolhas de cortiça;

20. A gaivota adornou;

21. O flutuador do lado esquerdo da gaivota estava sem “bujão” (doc. de fls. 54 e admissão por acordo em 25., 30. e 32. da Contestação do 1º Réu e 52º da contestação do 2º Réu).

22. Mais tarde, no mesmo dia, por volta das 12.30 horas, como a mulher e as crianças não regressassem do passeio o 1º Autor foi à sua procura;

23. Tendo o 1º Autor depois avistado com choque a gaivota adornada e todos os membros da sua família que nela iam estavam desaparecidos;

24. O 1º Autor pediu ajuda a alguém que pela barragem andava, que por sua vez chamou as autoridades, que providenciaram pelas devidas buscas de socorro e de resgate que duraram 14 dias até finalmente encontrarem a infeliz, falecida, que andou morta e à deriva pelo mar fora;

25. As duas crianças atrás mencionadas que seguiam na gaivota afundada conseguiram chegar à costa sãs e salvas;

26. O uso de rolhas de cortiça é inadequado para impedir a entrada de água de rio ou mar numa embarcação tipo gaivota;

27. O 1º Réu proprietário da dita gaivota devia ter conhecimento disso e deixou a gaivota na praia sem aviso de que a mesma não era para ser usada ou que estava em más condições de navegabilidade;

28. A casa de férias situa-se numa enseada com acesso próprio para os hóspedes e convidados;

29. O 2º Réu foi receber os Autores e restantes membros familiares à sua chegada;

30. Uma das crianças não sabia nadar;

31. E a outra tinha acabado de aprender a nadar;

32. E apenas uma levava colocado o colete salva-vidas;

33. A praia é frequentada tanto pelos proprietários das casas nas margens da Barragem, como por proprietários de casas nos arredores da barragem, ou ainda, por qualquer um que assim o entenda;

34. Não existe qualquer cerca ou vedação que restrinja o seu acesso por terceiros;

35. O 2º Réu, dono da casa, sugeriu e convidou os membros da família dos AA para que usassem as diversas embarcações que se encontravam em frente à casa de férias onde veraneavam;

36. Não foi o R. FF quem depositou a gaivota na praia. Nem quem trocou os tampões da gaivota pelas rolhas de cortiça;

37. A falecida era pintora de renome;

38. BB, nasceu a 21/1/1998, filho de AA e de GG – doc. de fls. 69;

39. CC, nasceu a 15/5/2000, filha de AA e de GG; doc. de fls. 70;

40. DD, nasceu a 12/10/2001, filha de AA e de GG; - doc. de fls. 70;

41. GG nasceu a 8/4/1962; - doc de fls. 61;

42. A morte de GG foi devida a afogamento – doc. de fls. 72;

43. No ano de 2002 GG auferiu o salário bruto global de 5306 euros - doc. de fls. 96;

44. No ano de 2003 GG auferiu o salário bruto global de 6508 euros - doc. de fls. 102;

45. No ano de 2004 GG auferiu o salário bruto global de 3525 euros - doc. de fls. 108.



9 . A primeira das questões enumeradas em 7 diz respeito à invocação da violação do artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa por, no acórdão recorrido, se ter tratado os réus em plano de igualdade, quando as suas situações são diferentes.

Refere o recorrente, em síntese, que a decisão recorrida é inconstitucional por violação do princípio da igualdade, na medida em que condenou, em regime de solidariedade, ambos os réus, a pagar o mesmo montante indemnizatório, quando um deles se conformou com a sentença da 1.ª instância e não recorreu e o ora recorrente, inconformado, apresenta o segundo recurso da decisão, impondo-se interpretar o referido princípio constitucional no sentido de que o que não é igual tem de ser tratado de forma desigual, preterindo-se o seu comando sempre que se trata de forma igual o que é diferente.

Sob a epígrafe “Apreciação da inconstitucionalidade”, preceitua o art. 204.º da Lei Fundamental que:

“Nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados”.

Com efeito, sem prejuízo das competências próprias do Tribunal Constitucional nesta matéria (vide os arts. 6.º e 277.º a 283.º da Lei sobre a Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional), a fiscalização da inconstitucionalidade normativa surge integrada num sistema difuso em que a competência para tal cabe a todos os tribunais no ato de julgar, impondo-se-lhe afastar a aplicação daquela ou daquelas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados.

Não olvidando a circunstância de não ter sido indicada, pelo recorrente, nenhuma norma ou interpretação normativa contendora com os ditames constitucionais – a relevante na apreciação da inconstitucionalidade, certo que esta se aferirá não em função do teor da decisão propriamente dita, mas antes na interpretação dada à norma aplicada –, temos que a norma constitucional envolvida é o art. 13.º da CRP que, sob a epígrafe “Princípio da igualdade”, estabelece:

“1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.

2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.”

Está redigida na perspectiva de proibição das desigualdades, isto é, contém um sentido primário negativo, que consiste na vedação de privilégios e de discriminações, mas também, nele se encerra um sentido positivo, mais rico e exigente, que se traduz numa imposição de tratamento igual de situações iguais (ou tratamento semelhante de situações semelhantes) e de tratamento desigual de situações desiguais (neste sentido, vide numa abordagem mais aprofundada, Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra Editora, 2005, pág. 121).

A igualdade aqui proclamada é a igualdade perante a lei, uma igualdade jurídico-formal, que abrange, quaisquer direitos e deveres existentes na ordem jurídica portuguesa e o seu âmbito de proteção comporta, no essencial, três dimensões: (i) proibição do arbítrio, no sentido em que são inadmissíveis, quer diferenciações de tratamento sem qualquer justificação razoável, de acordo com critérios de valor objetivos, constitucionalmente relevantes, quer a identidade de tratamento para situações manifestamente desiguais; (ii) proibição de discriminação, não sendo legítimas quaisquer diferenciações de tratamento entre os cidadãos baseadas em categorias meramente subjetivas ou em razão dessas categorias; e (iii) obrigação de diferenciação, como forma de compensar a desigualdade de oportunidades, o que pressupõe a eliminação, pelos poderes públicos, de desigualdades fácticas de natureza social, económica e cultural (J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I, Coimbra Editora 2007, pág. 339).

O princípio constitucional da igualdade caracteriza-se, pois, como proibição do arbítrio, permitindo apenas que se possam estabelecer diferenciações de tratamento, razoável, racional e objectivamente fundadas, sem as quais se incorrerá nesse arbítrio, por preterição do acatamento de soluções objectivamente justificadas por valores constitucionalmente relevantes. É essencial que haja fundamento material suficiente que neutralize o arbítrio e afaste a discriminação infundada – cfr. Ac. TC nº 319/00, Diário da República, II série, de 18/10/2000, pág. 16785/16786.


No aresto em crise não se igualizaram ambos os réus. O tratamento jurídico dado na aferição da responsabilidade de cada um foi fundamentadamente diferenciado, pese embora a decisão final se evidencie como idêntica, para um e outro. Aferiu-se a relevância jurídica dos factos imputados ao réu recorrente e concluiu-se ser ele responsável, ou também responsável, não querendo com isso, dizer-se que relativamente a ambos fosse de recorrer à ideia de igualização para almejar essa responsabilidade. Cada um teve o seu papel nos factos provados, algo diferente. Só que, dos factos, em geral e relativos a cada um, entendeu-se concluir pela responsabilização solidária do recorrente.



10 . Insurge-se ainda o recorrente contra a aplicação do artigo 493.º, n.º1 do Código Civil.

Este artigo tem a epígrafe de “Danos causados por coisas, animais ou actividades”

E o n.º1 reporta-se, no que agora importa, àquele que tiver em seu poder coisa móvel, com o dever de a vigiar.

Conforme refere A. Varela (Das Obrigações em Geral, 9.ª ed., I, 615) “Trata-se, é bom advertir, dos danos provocados pelas coisas ou pelos animais e não dos danos causados pelo agente com o emprego das coisas ou dos animais, visto nenhuma razão haver para excluir estes do regime geral da responsabilidade civil.” Entendimento que também é acentuado por Almeida Costa (Direito das Obrigações, 6.ª edição, 492). Assente já no artigo 2394.º do Código de Seabra (“Aquele, cujos animais ou outras cousas suas, prejudicarem a outrem…”), cuja orientação se não quis alterar com a lei nova.


No caso presente, o dano não foi provocado pela gaivota, antes se radicando na utilização feita por esta.

Estamos fora do âmbito do preceito. 



11 . Mas isso não significa que o recurso proceda.


O n.º1 do artigo 483.º refere-se àquele “que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem…”


Uma vez que o recorrente sustenta ser alheio ao evento fatídico, por não ser proprietário nem ter em seu poder a gaivota, levanta-se a questão de saber se ele deve ou não ser considerado abrangido pelo artigo 490.º do Código Civil e, consequentemente, pela expressão acabada de transcrever.


Ficou provado que:

As informações, recomendações e conselhos que constavam do site, através do qual foi feita a reserva, tiveram por fonte indicações, sugestões e instruções do ora recorrente;

Em tal site mencionava-se a atividade náutica de canoagem;

Foi ele que sugeriu e convidou os membros da família dos autores para que usassem as diversas embarcações que se encontravam em frente à casa de férias onde veraneavam, sendo certo que a gaivota se encontrava estacionada na praia da barragem, a que os hóspedes dele tinham acesso direto e fácil.


O referido artigo 490.º do Código Civil traça um âmbito particularmente vasto, incluindo os autores, os instigadores e os auxiliares do ato ilícito.


Com a sugerência e convite referidos no ponto 35 do elenco factual, poder-se-ia logo sustentar que o ora recorrente foi instigador do uso da gaivota.


Independentemente desta consideração, cremos mesmo que ele foi autor do conjunto de atos que estiveram na base da morte da GG.

Como escrevemos no Acórdão deste Tribunal de 5.7.2012, processo n.º 1451/07.STBGRD.C1.S1, com texto disponível em www.dgsi.pt:

 

 “A teoria penal da autoria e da participação é transponível mutatis mutandis para a responsabilidade civil. Por inteiro ou quase, para a responsabilidade extracontratual, dada a forte analogia…” – José Alberto Gonzalez, Responsabilidade Civil, 50.


Em direito penal, tende-se claramente para a consideração do autor como aquele que domine funcionalmente o facto, a consagração da chamada “Tatherrschaft” – por todos, veja-se a síntese desta posição no Ac. deste Tribunal de 19.1.2011, processo n.º 6034/08.OTDPRT.P1.S1, nota 4 de pé de página, disponível no referido sítio – e não vemos que tal entendimento, para a responsabilidade civil, possa ser afastado pelo artigo 490.º ou por qualquer outro preceito.”


Ora, considerando que a atividade de passeio na gaivota estava intimamente ligada à estadia na casa de veraneio – o que emerge dos factos referidos – impõe-se-nos a conclusão de que o ora recorrente “teve nas mãos”, até ao início do passeio fatídico, a possibilidade de evitar este, ou mesmo de o modificar: A “Tatherrschaft”.



12 . Ainda que assim não se entendesse, sempre poderíamos acrescentar o seguinte no sentido da afirmação da responsabilidade do réu recorrente:

No que a si concerne, a factualidade provada evidencia a existência de um contrato turístico, mais concretamente, de um contrato de hospedagem/alojamento turístico ou local, tendo por objeto uma moradia (turística), destinada a proporcionar, aos hóspedes turistas, mediante remuneração, alojamento e outros serviços complementares e de apoio (atente-se nos factos provados sob os pontos 1, 5, 6, 8, 9, 11, 12 e 35).

Trata-se de contrato nominado (pela prática), atípico (sem previsão legal) e misto, que integra prestações dos contratos de locação e de prestação de serviços, obrigando-se a entidade hospedeira a ceder o gozo de um determinado espaço, durante um determinado período, e a prestar um determinado número de serviços, contra o pagamento de uma retribuição (Ac. Relação de Coimbra, de 21-03-2006, processo n.º 299/06, in www.dgsi.pt).

Neste contexto, as obrigações do “hospedeiro” consistem em alojar o cliente no local destinado, permitindo-lhe o acesso aos serviços normais e aos locais comuns, impondo-se-lhe proporcionar, do mesmo passo, um mínimo de segurança, higiene e sossego, sendo que o hóspede, durante o período em que usufrui da hospedagem, confia a sua pessoa à organização do albergueiro (Rafael Augusto de Moura Paiva, Direito, Turismo e Consumo, Renovar, Rio de Janeiro, 2012, págs. 110, 111).

Por seu turno, incumbirá ao hóspede pagar a remuneração devida pela hospedagem, utilizando os serviços que lhe são facultados como um bom pai de família, de acordo com a lei, a moral e os bons costumes (mesmo autor, no loc. cit.).

Numa lógica de proteção, conferida pelo Direito, ao consumidor de bens e serviços turísticos (que, no ordenamento jurídico português, encontra expressão, nomeadamente, na Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 60.º (“Direitos dos consumidores”) e na Lei de Defesa do Consumidor, aprovada pela Lei n.º 24/96, de 31-07, com versão recente dada pela Lei n.º 47/2014, de 28-07), vários estudos doutrinários, de origem estrangeira (italiana e brasileira), partindo da premissa de que o estado de espírito típico do viajante é a despreocupação, que importa a transferência de responsabilidades para o operador, têm vindo a encontrar no conceito da “finalidade turística” ou da “finalidade da viagem de turismo” a causa do contrato turístico em geral, e do contrato de viagem organizada, em especial, impondo-se a ativação – temperada com o princípio da boa fé – dos mecanismos de resolução e de responsabilidade contratual sempre que tal finalidade venha a ser desrespeitada (com eventual perda de utilidade da viagem).

Dada a pertinência destes conceitos para o reequilíbrio da relação de consumo turístico, que é, em última análise, também do que se trata no caso dos autos, transpondo-os, tendo-se provado que, no âmbito do alojamento, poderiam os hóspedes utilizar facilidades no meio aquático, o que foi, inclusivamente, incentivado pelo réu recorrente, resultando tal utilização num malogro fatídico, torna-se evidente a responsabilidade do réu recorrente, igualmente nesta perspectiva.



13 . Dos factos provados resulta ainda, claramente, o porquê do acidente e o modo como se deu. O uso de rolhas de cortiça é inadequado para impedir a entrada de água. Foi a entrada desta que provocou o adornamento e consequente naufrágio.

Tendo a gaivota ali sido deixada sem aviso proibitivo de navegabilidade (pelo contrário, o recorrente sugeriu e convidou os membros da família dos autores para que usassem as diversas embarcações que se encontravam em frente da casa) existe, por aqui, culpa efetiva.

Não há que recorrer a qualquer presunção de culpa.



14 . Do que vem sendo exposto resulta uma concorrência de culpas: por um lado o dono da gaivota que ali a colocou sem aviso, com um buraco tapado indevidamente com cortiça e, por outro, o recorrente que poderia ter visto o estado desta e, consequentemente, avisado os hóspedes para, ao contrário do que emergia do teor do site, nela se não deslocarem.


Não se tratou duma atuação concertada ou cooperante, mas isso não afasta o regime de solidariedade do artigo 497.º.


Só que, entendemos estar desenhado uma situação em que o grau de culpabilidade do recorrente, em todo o quadro circunstancial descrito, justifica o recurso ao regime do artigo 494.º, ainda do Código Civil. A atividade lucrativa dele não se situava fulcralmente nos passeios de gaivota ou mesmo de outras embarcações. Eram estes um complemento relativamente à estadia. A gaivota não lhe pertencia, não estava “centrada” nela a sua atenção para bem cumprir o essencial da sua contrapartida relativamente ao que os hóspedes pagavam. Num quadro de alguma vulgaridade, a gaivota estava em bom estado e, mesmo que não estivesse, a sua utilização não daria aso a que ocorresse a tragédia que ocorreu.

Numa graduação da concorrência de culpas nunca seria de lhe atribuir mais de 50%.

Entendemos, então, que se justifica a fixação da indemnização, não nos 100% que resultariam do regime de solidariedade reportada ao montante total, mas em 50% do valor global, mantendo-se, nesta parte, o regime de solidariedade.



15 . Face a todo o exposto, em provimento parcial da revista, fica a responsabilidade solidaria do recorrente limitada apenas ao pagamento de 50% das quantias fixadas.


Custas por ele e recorridos, na proporção de ½ por cada.


Lisboa, 22.1.2015

João Bernardo

Oliveira Vasconcelos

Serra Baptista (votei a decisão)