Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4247/11.6TBBRG-B.G1-A.S3
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: HENRIQUE DE ARAÚJO
Descritores: LISTA DE CRÉDITOS RECONHECIDOS E NÃO RECONHECIDOS
DIREITO DE RETENÇÃO
CONSUMIDOR
PESSOA COLECTIVA
PESSOA COLETIVA
ACÓRDÃO PARA UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Data do Acordão: 04/17/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO FALIMENTAR – VERIFICAÇÃO DOS CRÉDITOS, RESTITUIÇÃO E SEPARAÇÃO DE BENS / VERIFICAÇÃO DE CRÉDITOS / IMPUGNAÇÃO DA LISTA DE CREDORES RECONHECIDOS.
Doutrina:
-Alexandre de Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, 2017, p. 293;
-Carvalho Fernandes, João Labareda, Código de Insolvência e de Recuperação de Empresas, Anotado, 2.ª Edição, 2013, p. 555;
-Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 2016, p. 20;
-Mariana França Gouveia, Verificação do Passivo, Revista Themis, Edição especial de 2005, p. 156.
Legislação Nacional:

CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGO 130.º, N.º 3.

Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 20-03-2004, AUJ DO STJ N.º 4/2004;
-DE 25-11-2008, PROCESSO N.º 08A3102;
-DE 29-05-2014, RELATOR JOÃO BERNARDO;
-DE 30-09-2014, PROCESSO N.º 3045/12.4TBVLG-B.P1.S1;
-DE 13-07-2017, PROCESSO N.º 1594/14.9TJVNF.2.G1.S2;
-DE 03-10-2017, PROCESSO N.º 212/11.1T2AVR-B.P1.S1;
-DE 31-10-2017, PROCESSO N.º 353/14.3T8AMT-E.P1.S1, TODOS IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I - O “erro manifesto” constante do n.º 3 do art. 130.º do CIRE abrange o erro formal e o erro substancial.

II - A falta de impugnação da lista de credores não preclude o dever de o juiz sindicar a sua legalidade e o direito de qualquer interessado impugnar a qualificação e graduação dos créditos em recurso de apelação.

III - A recorrente, pessoa colectiva do ramo imobiliário que confessadamente, em relação à fracção predial apreendida, havia promovido “a venda a terceiros, potenciais clientes, na prossecução do seu objectivo comercial”, não tem a qualidade de consumidora, pelo que não se pode qualificar de garantido o seu crédito – AUJ do STJ n.º 4/2004, de 20-03-2004.
Decisão Texto Integral:

PROC. N.º 4247/11.6TBBRG-B.G1-A.S2

REL. 22[1]

                                                             *

              ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


I.   RELATÓRIO

Nos autos de Reclamação de Créditos apensos à Insolvência de “AA, S.A.”, foi proferida sentença, nos termos do disposto no art.º 140.º do Código da Insolvência e de Recuperação de Empresas (CIRE), a qual, no segmento do reconhecimento dos créditos, decidiu nestes termos:

 “A lista a que alude o art. 129º do CIRE junta aos autos a fls. 1531 a 1541 inclui já as alterações resultantes das decisões proferidas nos incidentes das impugnações oportunamente apresentadas, sejam sentenças ou sentenças homologatórias …

Nestes termos, e para além dos créditos reconhecidos nos apensos F) e G) e da rectificação antes determinada, homologo a lista de credores reconhecidos apresentados pelo Sr. AI que faz fls. 1531 a 1541 do presente apenso B) nos montantes e com as características aí referidas”.

Na parte atinente à graduação de créditos, graduou como “crédito garantido” por direito de retenção: i) o crédito de BB e CC, “sob condição do cumprimento do contrato-promessa”, relativamente ao bem imóvel descrito no auto de apreensão e arrolamento sob a verba n.º 14; ii) e o crédito da “DD, Ld.ª”, relativamente ao bem imóvel descrito no mesmo auto sob a verba n.º 18.

Relativamente ao crédito da sociedade “EE, Lda.”, graduou-o como crédito comum, relativamente ao bem imóvel descrito sob a verba n.º 16.      

Notificados os Credores, veio a “FF” interpor recurso daquela decisão, pedindo a sua revogação e que o seu crédito seja graduado em primeiro lugar no que respeita aos bens imóveis descritos nas verbas n.º 14 (fracção autónoma designada pela letra “…”, descrita na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ..., e inscrita na matriz no artigo ...) e n.º 18 (fracção autónoma designada pela letra “…”, descrita na mesma Conservatória sob o n.º … e inscrita na matriz no artigo ...), quanto à primeira por estar já extinto o direito de retenção do qual eram beneficiários os promitentes-compradores BB e CC, uma vez que o Sr. GG já cumpriu a promessa de venda e, quanto à segunda, por não assistir o direito de retenção à promitente-compradora, sociedade comercial “DD, Ld.ª”, visto não caber no conceito de “consumidor”, atenta a interpretação que foi acolhida pelo Acórdão Uniformizador de Jurisprudência (AUJ) do S.T.J. n.º 4/2014, de 22 de Maio de 2013.

A Credora “DD, Lda.” contra-alegou, pugnando pela confirmação da decisão, na parte em que reconheceu e graduou o seu crédito como garantido, por gozar do direito de retenção sobre o imóvel. 

Subsequentemente à notificação do Sr. GG, foi junta aos autos a escritura pública de compra e venda da fracção autónoma prometida vender aos Credores BB e esposa, informando aquele que “inexiste nos autos crédito a favor” destes uma vez que ele, GG, “optou pelo cumprimento do contrato-promessa de compra e venda”. 

No mesmo processo a Credora “EE, Lda.”, notificada da sentença referida, veio aos autos requerer a sua reforma, corrigindo-se o que considera ter sido um “lapso manifesto” por o seu crédito não ter sido graduado, nos termos em que foi reconhecido, como crédito garantido face ao seu direito de retenção sobre a Fracção Autónoma designada pela letra “…”.

Opôs-se a credora “FF” e a Meritíssima Juiz indeferiu o pedido de reforma entendendo que o seu fundamento não se enquadra na previsão legal, sendo a decisão apenas sindicável pela via do recurso, por se encontrar esgotado o seu poder jurisdicional.

Inconformada, a referida credora recorreu desse despacho, pedindo que fosse declarada a sua nulidade e se ordenasse a sanação do vício de omissão de pronúncia de que enferma a sentença.

O Tribunal da Relação de ... julgou improcedente a apelação da recorrente “EE, Lda.” e procedente a apelação da FF, decidindo:

“1.         Eliminar da lista de credores os nomes de BB e esposa CC.

2.        Graduar os créditos que incidiam sobre o bem imóvel descrito na verba n.º … – Fracção “…” - do seguinte modo:
1º - crédito privilegiado do Estado relativo ao IMI de 2010;
2º - os créditos da “FF (credora n.º 26) garantidos por hipoteca registada a favor do “HH, S.A.”;
3º - do remanescente dar-se-á pagamento aos créditos comuns (incluindo os créditos laborais);
4º - se sobras houver pagar-se-ão os créditos subordinados, graduados pela ordem prevista no art.º 48.º do CIRE.

3.          Graduam-se os créditos que incidem sobre o bem imóvel descrito na verba nº 18 – Fracção “…” – pela ordem seguinte:
1º - o crédito privilegiado do Estado - IMI, 2010;
2º os créditos da “FF” (credora n.° 26), garantidos por hipoteca registada a favor do “HH, S.A.”;
3º do remanescente dar-se-á pagamento aos créditos comuns (incluindo aqui os créditos laborais - artigo 47.°, n.º 4, al. c), do CIRE e incluindo o crédito do credor n.º 157, “DD, Ld.ª”).
4º do remanescente dar-se-á pagamento aos créditos subordinados, graduados pela ordem prevista no art. 48° do CIRE. 

No mais mantém-se a decisão proferida.

Custas da apelação pela Apelada “DD, Ld.ª”, mas apenas na proporção do seu crédito (parte em que saiu vencida)”.

As credoras reclamantes “DD, Lda.” e “EE, Lda.” interpuseram recursos de revista excepcional, com fundamento na contradição de julgados, nos termos do artigo 672º, n.º 1, alínea c), do CPC.

A Formação, considerando não se verificar o requisito da dupla conformidade, rejeitou as revistas excepcionais, mas determinou que fosse apreciada a admissibilidade dos recursos como revistas normais.

A “DD” concluiu as suas alegações de recurso do seguinte modo:
1. Dispõe a al. c), n.º 1, art. 672º do CPC que “excepcionalmente, cabe recurso de revista do acórdão da Relação referido no n.º 3 do artigo anterior quando: (…) o acórdão da Relação esteja em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido por qualquer Relação ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme”.
2. O acórdão, ora em crise, está em contradição com um outro proferido pelo Tribunal da Relação de ..., no âmbito do processo n.º 1803/09.6TJVNF-D.G1, datado de 30.11.2010, publicado em www.dgsi.pt, pela relatora Maria Luísa Ramos, já transitado em julgado, cuja cópia, obtida no sítio da internet www.dgsi.pt, se junta.
3. Entendeu o Venerável Tribunal da Relação de ... que a lista de créditos reconhecidos apresentada pelo Administrador da Insolvência nomeado, homologada por sentença de verificação e graduação de créditos, nos termos nela constantes, não obstante não ter sido impugnada quanto a determinado crédito por qualquer dos demais credores, não tem efeito vinculativo para o juiz, nem efeito preclusivo para o credor que não impugnou o crédito controvertido.
4. Por sua vez, pugnou o mesmo Tribunal, no acórdão-fundamento, por tese oposta, designadamente no sentido de que não havendo impugnação da lista dos credores reconhecidos com fundamento na indevida qualificação, inclusão ou exclusão de créditos, ou na incorrecção dos respectivos montantes, é de imediato proferida sentença de verificação e graduação em que se homologa a lista de credores reconhecidos elaborada pelo administrador da insolvência e se graduam os créditos, sendo que, decorrido o prazo legal para a impugnação, precludiu o direito de reclamação em relação a ele, não havendo lugar à admissão de tal acto por via do recurso da sentença.
5. Os acórdãos em confronto foram prolatados no domínio da mesma legislação: Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, na redacção originária, constante do DL 53/2004, de 18 de Março.
6. Os acórdãos em análise versam sobre a mesma questão fundamental de direito: os efeitos da falta de impugnação da lista definitiva de créditos apresentada pelo administrador da insolvência nomeado, ou seja, se apresentada a lista dos créditos reconhecidos pelo administrador da insolvência nomeado e decorrido o prazo legal para a impugnação sem que sobre o crédito controvertido tenha recaído reclamação, precludiu tal direito em relação a ele pelo interessado, não havendo lugar à admissão de tal acto por via do recurso da sentença de verificação e graduação em que se homologa a lista dos credores reconhecidos, à luz do disposto no art. 130º, números 1 e 3 do CIRE.
7. Sobre a matéria controvertida inexiste acórdão de uniformização de jurisprudência conforme com o aresto recorrido.
8. Não havendo impugnação da lista dos credores reconhecidos com fundamento na indevida qualificação, inclusão ou exclusão de créditos, ou na incorrecção dos respetivos montantes, é de imediato proferida sentença de verificação e graduação em que se homologa a lista de credores reconhecidos, elaborada pelo administrador da insolvência e se graduam os créditos, sendo que, decorrido o prazo legal para a impugnação, precludiu o direito de reclamação em relação a ele, não havendo lugar à admissão de tal acto por via do recurso da sentença.

Por sua vez, a credora “EE” rematou as alegações de recurso com as seguintes conclusões:
I. Vem o presente recurso do douto acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de ... que julgou a apelação improcedente, confirmando a decisão recorrida que indeferiu a alteração da sentença de verificação e graduação de créditos, não reconhecendo à recorrente o direito de retenção e, consequentemente, a natureza de ‘garantido’ do seu crédito.
II. O acórdão recorrido faz uma errónea interpretação do direito aplicável, designadamente dos artigos 619º, 620º, n.º 1, 628º do CPC, 136º, nºs 3 e 7 do CIRE, arts. 595º, 596º e 599º do CPC, arts. 755º, n.º 1, al. f) e 442º do CC.
III. São questões a decidir (às quais se imputa erro de julgamento): violação do caso julgado; nulidade por preterição de formalidades essenciais; a aplicação do artigo 755º, n.º 1, al. f) não depende de o promitente-comprador ser ou não um consumidor.
IV. É entendimento unânime na jurisprudência e doutrina que tem força e autoridade de caso julgado material a decisão que versa sobre o fundo ou mérito da causa.
V. Acontece que, refere ainda o acórdão referido que: “Ora, o despacho de 06/03/2014, como acima se transcreveu, julgando procedente a impugnação da apelante, reconheceu o crédito por si reclamado. No entanto, não tomou posição sobre o direito de retenção”.
VI. Não se concebe tal entendimento, o referido despacho de 06/03/2014 decidiu “julgar procedente a impugnação da lista provisória de créditos reconhecidos”.
VII. Não consta do despacho que a julgou procedente, qualquer distinção/adenda/referência de que o mesmo não incidia também sobre a verificação do direito de retenção, pelo que a impugnação apresentada pela recorrente – factos e pedido – foi julgada totalmente procedente.
VIII. O acórdão e sentença recorrida que, quanto ao crédito da recorrente, “não fez constar” qualquer justificação/referência ao direito de retenção previamente reconhecido no despacho proferido sobre o imóvel descrito sob a verba 16 do auto de apreensão, graduando-o como comum, viola o caso julgado proferido no despacho de 06.03.2014.
IX. Tal violação encontra-se claramente em contradição com o acórdão fundamento proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, Processo n.º 127/10.0TTBJA.E1.S1, de 12.04.2012.
X. O acórdão fundamento aborda a situação de ter sido proferido despacho que decidiu a questão da caducidade, prosseguindo o processo os seus trâmites.
XI. No caso que ora nos ocupa, também foi proferido despacho que decidiu a impugnação da recorrente, prosseguindo o processo os seus trâmites.
XII. Tanto no acórdão recorrido, como no acórdão fundamento, após a decisão proferida no despacho, veio a sentença/acórdão recorrido retomar a questão já decidida no despacho saneador.
XIII. Entendeu-se no acórdão fundamento que, quando o despacho saneador decida sobre o mérito, ainda que não determine a extinção total da instância, a parte deve reagir imediatamente, sob pena de a decisão transitar em julgado, precludindo o direito de suscitar tais questões no recurso que eventualmente venha a interpor da decisão final.
XIV. Parece pois evidente que, para o caso que aqui nos ocupa, o entendimento tem de ser o mesmo, isto é, tendo o despacho transitado em julgado, não pode agora ser colocado em crise, por ter transitado em julgado.
XV. O caso julgado – aqui perspectivado na sua tríplice identidade (coincidência de sujeitos, de pedido e de causa de pedir), mas antes na vertente que se reporta à sua força e autoridade, como sobredito, decorrente de uma anterior decisão proferida já no âmbito do mesmo processo sobre a matéria em discussão – tem, pois, como finalidade evitar que a relação jurídica material, no que tange concretamente
à questão tratada, já definida por decisão anteriormente transitada, possa ser apreciada de modo diferente por decisão posterior, com ofensa dos valores referidos da segurança, certeza e economia processuais.

XVI. O alcance do despacho proferido e transitado em julgado, tem o valor de sentença quanto à verificação e graduação dos créditos, não apenas quanto à verificação, conforme é dito no acórdão proferido.
XVII. Temos pois que deve verificar-se a excepção de violação de caso julgado, alterando-se a decisão proferida por outra que reconheça os efeitos do despacho que julgou a impugnação apresentada pela recorrente totalmente procedente, designadamente quanto ao crédito e garantia do mesmo.
XVIII. Ainda que assim não se entenda, o que não se concede nem concebe, e aqui apenas se reproduz por mera cautela de patrocínio, sempre estaria inquinado de erro manifesto o presente processo, erro cominado com a nulidade de todo o processado.
XIX. Não se pode por um lado proferir um despacho com valor de sentença que julga a impugnação totalmente procedente e, por outro, proferir uma sentença (recorrida) que ignora esse despacho e um acórdão (recorrido) que refere que essa procedência afinal é apenas parcial – o mesmo apenas reconhece o crédito reclamado – e para a prova do direito de retenção (alegado e pedido na impugnação) com vista a integrar o conceito de ‘crédito garantido’, tal factualidade dependeria do julgamento que se fizesse sobre a existência e eficácia do direito de retenção.
XX. Se foi apresentada impugnação pela recorrente, com o intuito de verificar e graduar o seu crédito, era aí que cabia fazer prova do por si alegado.
XXI. Tendo a juiz de primeira instância julgado a mesma procedente, nada mais ficou por decidir.
XXII. Motivo pelo qual não foi marcado julgamento nem produzida prova para além da constante nos articulados e documentos juntos.
XXIII. Se é entendimento da Relação de que era necessário fazer prova, então, não tendo sido realizada audiência de discussão e julgamento, existe uma clara omissão de acto previsto na lei, que influiu, claramente, na decisão do presente processo.
XXIV. É que estamos perante uma acção de impugnação prevista no art. 130º e ss. Do CIRE.
XXV. Reclamado o crédito e tendo sobre o mesmo recaído a impugnação, abre-se no processo de insolvência um incidente processual de natureza declarativa que, nos presentes autos coube o presente apenso B, que teria de culminar na audiência de discussão e julgamento e na sentença.
XXVI. Sobre os fundamentos de facto invocados na impugnação teriam de ser integrados na base instrutória (artigos 595º e 596º do CPC, ex vi n.º 3 do artigo 136º do CIRE), seguindo-se a produção de prova em audiência de julgamento, com inquirição das testemunhas arroladas pela recorrente.
XXVII. Assim, não se considerando que o despacho que julgou procedente a impugnação tem efeito de caso julgado quanto ao direito de retenção, então, sempre teria de ser proferido despacho saneador e procedido à identificação do objecto do litígio e temas de prova, para se fazer o dito “julgamento … sobre a existência do direito de retenção”.

XXVIII.Ao não se proceder ao agendamento e realização de julgamento (provavelmente porque julgou a impugnação da recorrente procedente), ficou a recorrente impedida de fazer prova dos factos por si alegados, designadamente dos factos condizentes com o direito de retenção, omitindo-se a realização de uma formalidade prevista na lei – julgamento, violando-se designadamente os arts. 136º, nºs 3 e 7 do CIRE, arts. 595, 596º e 599º do CPC – o que conduz à nulidade nos termos do disposto no art. 195º, n.º 1, do CPC.
XXIX. O acórdão recorrido está pois em contradição com outro, proferido no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, designadamente o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, processo n.º 275/09.0TBNLS-D.C1.
XXX. Nesse acórdão entendeu-se que, na falta de acordo na tentativa de conciliação ou despacho que reconhece o crédito, face aos elementos constantes no processo, teria de ser aferido (o crédito e garantias do mesmo) através de julgamento, caso contrário, nunca poderia o recorrente fazer valer as suas pretensões.
XXXI. Assim, não sendo reconhecido à recorrente o direito que se arroga titular, de acordo com os elementos do processo, deverá ser fixada a base instrutória, nela se integrando os factos alegados pela reclamante como suporte da sua pretensão, com vista à realização da audiência de julgamento, após o que se proferirá sentença de verificação e graduação de créditos que inclua, ou não, consoante o que vier a ser decidido, o crédito da recorrente.
XXXII. In casu, segundo o acórdão recorrido, foi reconhecido o crédito, mas não a garantia da recorrente.

XXXIII.Então, tal como refere o acórdão fundamento, teria de se elaborar a base instrutória e o julgamento.

XXXIV.O acórdão e sentença recorridos violam o disposto no n.º 7 do artigo 136º do CIRE.

XXXV.            A situação sub judice integra claramente a previsão legal do normativo citado, dado tratar-se de um crédito controvertido que, imperativamente, tem que ser apreciado no processo de insolvência, pelo que os fundamentos de facto invocados na impugnação terão que ser integrados na base instrutória, seguindo-se a produção de prova em audiência de julgamento, com inquirição das testemunhas arroladas pela reclamante.

XXXVI. Deverá, pois, em conformidade com o que ficou dito, ser concedido provimento ao recurso, devendo em consequência ser revogada a decisão recorrida, determinando-se o prosseguimento dos autos com vista à selecção da matéria de facto, realização de diligências instrutórias e prolação de nova sentença de verificação e graduação de créditos, que inclua, ou não, consoante o que vier a ser decidido, o crédito da recorrente.

XXXVII.O não cumprimento destas formalidades é cominado com a nulidade, por omissão de actos que a lei prevê, nos termos do disposto no art. 195º do CPC.

XXXVIII.Quanto à ainda inaplicabilidade do direito de retenção às pessoas colectivas, entendeu o acórdão recorrido que “às pessoas colectivas não é reconhecido direito de retenção … ainda que sejam promitentes-compradoras retentoras”, entendendo que, no âmbito da reclamação de créditos na insolvência, o direito de retenção apenas se aplica ao devedor consumidor e não às pessoas colectivas.

XXXIX. Tal consideração é fundada na interpretação levada a cabo pelos Exºs Desembargadores do AUJ do STJ n.º 4/2014, de 22 de Maio, porquanto entendem que este acórdão uniformiza jurisprudência no sentido de que apenas pode ser reconhecido direito de retenção no âmbito da reclamação de créditos na insolvência ao consumidor e não às pessoas colectivas.

XL.      Concluindo o acórdão recorrido que, “deste modo, no âmbito da graduação de créditos não lhe pode (à recorrente) ser reconhecido o invocado direito, com o que o seu crédito não tem natureza de crédito garantido”.

XLI.     Ou seja, o acórdão recorrido, não obstante considerar que, de facto, existe retenção pelos promitentes compradores, entende que, face ao AUJ, as pessoas colectivas, in casu a recorrente, não pode beneficiar de tal direito de garantia.

XLII.   Tal entendimento está em contradição com outras decisões proferidas pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, conforme se extrai do acórdão do STJ no processo n.º 6193/13.0TBBRG-H.G1.S1.

XLIII.  A questão colocada no acórdão fundamento é a da qualificação de um credor como consumidor para efeitos da eventual aplicação do AUJ n.º 4/2014, em cujo segmento uniformizador se pode ler que “no âmbito da graduação de créditos em insolvência, o consumidor promitente comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído na alínea f) do n.º  1 do artigo 755º do Código Civil”.

XLIV.  Concluiu o acórdão fundamento que “se o contrato-promessa tiver sido resolvido ou, de qualquer modo, tiver entrado na fase do incumprimento definitivo, não há, pois, que aplicar o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 4/2014, devendo aplicar-se, estritamente, os preceitos do Código Civil, masi precisamente os artigos 755º, n.º 1, alínea f) e 442º do Código Civil”.

XLV.   A aplicação do artigo 755º, n.º 1, al. f) não depende de o promitente-comprador ser ou não um consumidor e a circunstância de o legislador se referir à tutela dos consumidores no preâmbulo do diploma que consagrou o direito de retenção não é decisiva e não justifica a interpretação restritiva constante no acórdão recorrido.

XLVI.  Qualquer situação de detenção pelo promitente-comprador, mesmo que este não seja consumidor, pode, pela sua frequência e importância ao nível da consciência social, servir de fundamento para o direito de retenção.

XLVII.          Ao contrário do entendimento perfilhado no acórdão recorrido, entende o acórdão fundamento que a aplicação do artigo 755º, n.º 1, al. f) não depende de o promitente-comprador ser ou não um consumidor, em qualquer situação de detenção pelo promitente-comprador, mesmo que este não seja consumidor, pode, pela sua frequência e importância ao nível da consciência social, servir de fundamento para o direito de retenção.

XLVIII. Só não será assim nas “situações em que o credor não obteve cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, ficando de fora os contratos que já estivessem integralmente cumpridos, resolvidos ou entrado na fase do incumprimento definitivo, à data da declaração de insolvência”.

XLIX.  In casu, a análise levada a cabo pelo acórdão recorrido prende-se apenas com com o conceito de consumidor e não aborda a questão do incumprimento dos contrato-promessa.

L.        De qualquer forma, estamos perante um contrato incumprido, porquanto foi reconhecido à recorrente o crédito de € 220.000,00, correspondente ao dobro do sinal (art. 442º do CC).

LI.       Assim, o acórdão recorrido está em clara contradição com o acórdão fundamento, sendo essencial que se defina esta questão.

LII.      Não pode a recorrente deixar de pugnar pelo reconhecimento do seu direito de retenção, acolhendo a tese sufragada no acórdão fundamento, até porque, atendendo ao AUJ e ao objecto/problemática lá constante: o AUJ apenas versa sobre aquelas situações em concreto e não sobre todas as outras. O AUJ apenas define que o consumidor goza do direito de retenção, não diz que só este goza desse direito.

LIII.   Assim, deve merecer provimento o presente recurso, revogando-se o acórdão recorrido, acolhendo-se o entendimento perfilhado no acórdão fundamento, de que se o contrato-promessa de compra e venda de imóvel, em que houve traditio, tiver sido resolvido ou, de qualquer modo, entrado na fase de incumprimento definitivo, não se aplica o AUJ n.º 4/2014, devendo aplicar-se, estritamente, os preceitos do Código Civil contidos nos artigos 755º, n.º 1, al. f), e 442º, reconhecendo-se assim o direito de retenção da aqui recorrente.

LIV.   Face à manifesta divergência da decisão e acórdão recorrido com os acórdãos fundamento e a letra da lei, imperioso se revela a apreciação dos Venerandos Conselheiros sobre as questões de direito aqui submetidas, para uma aplicação justa e equitativa da justiça, porquanto se trata de uma questão de particular relevância social.

           A credora FF contra-alegou nas duas revistas, batendo-se pela confirmação do acórdão recorrido e levantando, como questão prévia, a inadmissibilidade das revistas excepcionais, dado o disposto no artigo 14º, n.º 1, do CIRE.

            A referida questão prévia foi já apreciada e decidida no acórdão da Formação de fls. 456 e seguintes.

           Sendo o objecto das revistas delimitado pelas respectivas conclusões, as questões de que cabe conhecer são as seguintes:
1. No recurso da “DD, Lda.”:
- a falta de impugnação da lista dos credores apresentada pelo administrador da insolvência implica a sua homologação automática?
2. No recurso da “EE, Lda.”:
- foi violado o caso julgado formado pela decisão de 06.03.2014?
- foram preteridas formalidades essenciais?
- deve ser reconhecido à recorrente o direito de retenção?


*


II. FUNDAMENTAÇÃO

FACTOS PROVADOS

Das instâncias vêm provados os seguintes factos:

1. Quanto ao recurso da “DD”

a)        Tendo sido expressamente notificado para apresentar a lista actualizada dos credores, a que alude o art.º 129.º do CIRE, o Sr. GG, em 06/07/2016, apresentou a que constitui as folhas 1531 a 1541 dos autos, nela incluindo, sob o n.º 142, BB e CC, com um crédito “Privilegiado”, fundado em “Direito de retenção – Contrato Promessa de Compra e Venda datado de 30/05/2008 – Sinal e princípio de pagamento”, subordinado “ao cumprimento do contrato” – cfr. fls. 1539, v.º, que se dá aqui por reproduzida, quanto a esta parte.

b)        No “Auto de Arrolamento e do Balanço”, que o mesmo GG fez juntar aos autos, descreveu, sob a verba n.º 14, o “Prédio Urbano, fracção “…” destinada a habitação do tipo T-1”, com garagem, sito na Rua … n.º …, freguesia de ..., concelho de ..., descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial (C.R.P.) de ... sob o n.º ..., e inscrito na respectiva matriz sob o artigo ... – …”, fazendo ainda menção que este prédio se encontra onerado com uma Hipoteca e de um direito de retenção a favor dos acima referidos BB e CC, pelo valor de € 30,809,11”. Mais referiu que esta fracção foi vendida a estes em 17 de Outubro de 2014.

c)         Pela escritura pública celebrada na referida data de 17/10/2014, no Cartório Notarial da Notária II, o mencionado GG, JJ, outorgando “na qualidade de administrador de insolvência” declarou vender a Fracção Autónoma supra identificada aos BB, casado com CC, que a declararam comprar, ficando aí expresso que “sobre a referida fracção incidem vários ónus e encargos cujo cancelamento vai ser efectuado na sequência desta venda” - cfr. documento que antecede, cujo teor se dá aqui por reproduzido. 

d)        Na mesma lista referida em a), o Sr. GG incluiu, sob o n.º …, como credora a “DD, Ld.ª” com um crédito “Garantido”, com fundamento num “Contrato de Promessa Compra e Venda”, e “Sob condição de cumprimento do contrato”, sobre a “fracção AD da descrição predial 950 da 2ª CRP ...” – cfr. fls. 1540, ao fundo, que aqui se dá por reproduzido.  

e)         O prédio acima referido ficou a constar sob a verba n.º 18 do “Auto de Arrolamento e do Balanço”, já referido em b), aí constando a seguinte descrição: “fracção “AD” destinada a Habitação do tipo T-3”, com garagem, “sito na Rua …, …, freguesia de ..., concelho de ..., descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º …, e inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...-AD”. Mais ficou aí a constar que o prédio se encontrava onerado com uma Hipoteca e com “Direito de retenção a favor da DD – …, Lda., no valor de 72.896,08” – cfr. fls. 1527, que aqui se dá por reproduzido.

f)         Na sentença, na parte referente à verificação dos créditos, ficou assim decidido: “… homologo a lista de credores reconhecidos apresentados pelo Sr. GG que faz fls. 1531 a 1541 do presente apenso B) nos montantes e com as características aí referidas” (cfr. fls. 1630/1631).      

Relativamente ao bem imóvel identificado em e) ficaram graduados os seguintes créditos:

1º O crédito privilegiado da Fazenda (IMI, 2010);

2º o crédito garantido por direito de retenção (credor nº 157 DD – …, Lda.);

3º os créditos da FF (credora n° 26), garantidos por hipoteca registada a favor do HH, S.A.;

4° do remanescente dar-se-á pagamento aos créditos comuns (incluindo aqui os créditos laborais – artigo 47.º, n.º 4, al. C), do CIRE) e

5° do remanescente dar-se-á pagamento aos créditos subordinados, graduados pela ordem prevista no art. 48° do CIRE.”  


2. Quanto ao recurso das “EE, Lda.”:


a) Tendo sido expressamente notificado para apresentar a lista actualizada dos credores, a que alude o art.º 129.º do CIRE, o Sr. GG, em 06/07/2016, apresentou a que constitui as folhas 1531 a 1541 dos autos, nela incluindo, sob o n.º 48, “EE Unipessoal, Ldª”, com um crédito “Garantido”, com fundamento em “Devolução do dobro do sinal pelo incumprimento do contrato-promessa de compra e venda”, no valor de € 220.000,00, e sob a epígrafe “Garantias e Privilégios” ficou consignado: “Direito de retenção: Fracção autónoma designada pela letra “X” e encontra-se inscrita na matriz predial urbana sob o artigo nº …/...…”. 


b) O prédio acima referido ficou a constar sob a verba n.º 16 do “Auto de Arrolamento e do Balanço” que o mesmo Sr. GG fez juntar aos autos, aí constando a seguinte descrição: “fracção “X” destinada a Habitação do tipo T-3”, com garagem, “sito na Rua …, …, freguesia de ..., concelho de ..., descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º …, e inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...-X”. Mais ficou aí a constar que o prédio se encontrava onerado com uma “Hipoteca”, não havendo qualquer referência a um “direito de retenção” – cfr. fls. 1526 v.º, que aqui se dá por reproduzido.

c) Na sentença de reconhecimento e graduação de créditos, na parte em que ficou englobada a verba n.º 16 (alínea A de “I – Bens imóveis”), foram graduados os créditos por esta ordem: 

“1º O crédito privilegiado da Fazenda (IMI, 2010);

2° Os créditos da FF (credora n° 26), garantidos por hipoteca registada a favor do HH, S.A..

3° Do remanescente dar-se-á pagamento aos créditos comuns (incluindo aqui os créditos laborais - artigo 47.º, n.º 4, al. c), do ClRE) e

4º do remanescente dar-se-á pagamento aos créditos subordinados, graduados pela ordem prevista no art. 48° do CIRE”.

d)        Em 22/05/2013, a aqui Apelante apresentou um requerimento nos autos alegando ter apresentado uma “impugnação da lista de créditos reconhecidos” e nunca, até então, ter sido notificada “de qualquer ato processual”, arguindo a nulidade de omissão da prática de “um ato processual imposto pela lei” (cfr. fls. 764/765 (3.º vol.).

e)        Em 06/03/2014 foi proferido um despacho no qual se considerou não ter ocorrido qualquer irregularidade nem ter ocorrido a omissão da prática de actos relativamente à impugnação da lista provisória de créditos reconhecidos, decidindo: “1. Julgar improcedente a nulidade que foi invocada pela credora. 2. Julgar procedente a impugnação da lista provisória de créditos reconhecidos que foi apresentada pela credora” (cfr. fls. 974/975 – 4.º volume).  

f)         Tendo sido notificada da sentença de verificação e graduação de créditos, veio aos autos a Credora/Apelante, “EE, Ld.ª”, invocando o disposto no n.o 2, alíneas a) e b), do art.º 616.º do C.P.C., pedir a reforma da mesma alegando ter existido “lapso manifesto, ignorando os factos dados como provados e a aplicação do direito”, já que “por despacho proferido em 06.03.2014 pela Mm.ª Juiz”, transitado em julgado, “foi julgada procedente a impugnação da lista de créditos” por si apresentada. Assim, afirma, na sentença devia constar que ela, Apelante, é detentora de um crédito sobre a Insolvente, no valor de € 220.000, crédito esse que é garantido “em consequência do direito de retenção sobre a fracção autónoma designada pela letra “…” correspondente a um apartamento tipo T3, com garagem…”, identificada sob o n.º 16 do auto de apreensão (cfr. fls. 1658v.º/1659 – VI volume).

g)         Apreciando este pedido de reforma, o Tribunal a quo escreveu: “a matéria que invoca não se enquadra nos casos de reforma da sentença … e antes se quadram no juízo nela formulado pelo tribunal, sindicável apenas por via de recurso, tendo-se esgotado o poder jurisdicional (artº 613º, nº 1 do CPC). O art. 616, n.º 3  do CPC, por outro lado, exige que, cabendo recurso da decisão, o requerimento (da reforma) é feito na alegação (de recurso). Ora não foi interposto qualquer recurso. Assim, indefere-se o pedido de reforma” (cfr. fls. 1696 – VI volume).

O DIREITO


1. O recurso da “DD”

Conforme resulta da alínea d) dos factos provados, na lista de credores apresentada pelo administrador da insolvência consta como credora a “DD, Lda.” com um crédito “Garantido”, com fundamento num “Contrato de Promessa Compra e Venda”, e “Sob condição de cumprimento do contrato”, sobre a “fracção AD da descrição predial 950 da 2ª CRP ...”.

Apesar de descrito como crédito ‘garantido’, por efeito do direito de retenção (cfr. fls. 330, verso, in fine), o acórdão recorrido, na sequência da apelação interposta pela credora “FF”, qualificou esse crédito como comum e graduou-o em 3º lugar, um lugar abaixo do que o havia feito a sentença da 1ª instância.

Defende a credora recorrente que não podia a Relação de ... considerar que a descrição do crédito como ‘garantido’ não vincula o julgador nem tem efeito preclusivo para o credor que não impugnou o crédito controvertido.

Parece-nos, porém, que não lhe assiste razão.

Na 1ª instância, a Mmª Juíza homologou a lista de credores reconhecidos apresentada pelo administrador da insolvência, junta a fls. 1531 a 1541 do apenso B), “nos montantes e com as características aí referidas” [cfr. fls. 336 e verso e 1., alínea f) dos factos provados].

Ao graduar os créditos, a sentença graduou o crédito da “DD” em 2º lugar, a ele se referindo do seguinte modo: “crédito garantido por direito de retenção (credor n.º 157 DD –…, Lda.)” – cfr. fls. 339.

O artigo 129º, nºs 1 e 2, determina que o administrador da insolvência apresente, nos 15 dias subsequentes ao termo do prazo das reclamações, uma lista de todos os credores por si reconhecidos e uma outra dos não reconhecidos; da lista dos credores reconhecidos deve constar a identificação de cada credor, a natureza do crédito, o montante de capital e juros à data do termo do prazo das reclamações, as garantias pessoas e reais, os privilégios, a taxa de juros moratórios aplicável e as eventuais condições suspensivas ou resolutivas.

Qualquer interessado pode, nos 10 dias seguintes ao prazo ao referido prazo de 15 dias, impugnar a lista de credores reconhecidos em requerimento dirigido ao juiz, com fundamento na devida inclusão ou exclusão de créditos, ou na incorrecção do montante ou da qualificação dos créditos reconhecidos – artigo 130º, n.º 1, do CIRE.

Não havendo impugnações, é de imediato proferida sentença de verificação e graduação dos créditos, em que, salvo o caso de erro manifesto, se homologa a lista de credores reconhecidos elaborada pelo administrador da insolvência e se graduam os créditos em atenção ao que conste dessa lista – artigo 130º, n.º 3.

Temos como bom o entendimento segundo o qual se deve interpretar em termos amplos o conceito de erro manifesto constante da norma do n.º 3 do artigo 130º, não o limitando ao simples lapso material ou ao erro formal decorrente de qualquer incongruência que a lista de créditos apresente; constituirá também erro manifesto o que assumir natureza substancial, ou seja, aquele que respeitar à indevida inclusão/exclusão do crédito nessa lista, ao seu montante ou às suas qualidades.

Mesmo que não haja impugnação por banda de qualquer interessado, o juiz pode e deve filtrar a menção do crédito constante da lista apresentada pelo administrador da insolvência, apreciando as suas características, procedendo à sua qualificação jurídica e aferindo se as garantias referidas pelo administrador se mostram conformes com as regras de Direito aplicável.

É este, de facto, o entendimento que predomina na doutrina e na jurisprudência[2] e que rebate a ideia de um efeito cominatório pleno decorrente da falta de impugnação da lista apresentada pelo administrador da insolvência, impondo ao juiz, nesse caso, uma decisão meramente homologatória. Não é a inexistência de impugnações da lista que dita a inexistência de erros na sua elaboração.

Sobre este tema, referem Carvalho Fernandes e João Labareda[3]:

“A inexistência de impugnações não constitui garantia significativa da correcção das listas elaboradas pelo administrador da insolvência. Este reparo deve ser entendido em função dos curtos prazos concedidos pela lei, quer ao administrador da insolvência, para elaborar as listas, quer aos interessados para as impugnar. Nota tanto mais relevante quanto é certo serem, na grande maioria dos casos, em número significativo os créditos reclamados e volumosos os documentos que instruem as reclamações.

Por outro lado, impressiona, no que respeita às garantias, que a sua constituição esteja normalmente dependente do preenchimento de requisitos formais ad substantiam, cuja falta seja, afinal de contas, puramente ignorada ou desconsiderada por mero efeito da falta de impugnação.

Por isso, defendemos que deve interpretar-se em termos amplos o conceito de erro manifesto, não podendo o juiz abster-se de verificar a conformidade substancial e formal dos títulos dos créditos constantes da lista que vai homologar para o que pode solicitar ao administrador os elementos de que necessite.”

Aponta no mesmo sentido Mariana França Gouveia[4]:

“No lugar paralelo da sentença de homologação, desistência ou transacção (artigo 300.º do CPC), o juiz examina o objecto e a qualidade das pessoas para apurar a validade do negócio. E a sentença que profere é uma sentença de mérito, produzindo caso julgado material. Não deve pois interpretar-se a norma do artigo 130º, n.º 3 como uma imposição ao juiz, até porque ele é o autor da sentença. Deve antes entender-se a regra como uma possibilidade de simplificação processual à sua disposição.”.

Esta possibilidade – diríamos, mesmo, obrigação – de o juiz não se limitar a homologar a lista de créditos apresentada,  encontra a sua razão de ser nos poderes de fiscalização[5] que lhe são cometidos pelo artigo 58º do CIRE, nos quais se inclui o de averiguar se o administrador da insolvência elaborou a relação de créditos com observância de todas as determinações legais, sejam elas de ordem formal ou substancial. É que, competindo ao juiz proferir a sentença de verificação e graduação dos créditos, mormente em função das garantias invocáveis, não pode ele deixar de exercer o indispensável controlo da legalidade.

Aliás, se o juiz estivesse confinado, na sua actuação, a exclusivos poderes de homologação, ficaria vedada às partes eventualmente prejudicadas a possibilidade de recorrerem da sentença homologatória por quaisquer outras razões que não estivessem relacionadas com a verificação de meros erros formais, o que não se compagina com os princípios basilares que subjazem ao direito insolvencial.

Conclui-se, portanto, que a falta de impugnação da lista não fez precludir o direito de a interessada, e também credora reclamante, “FF” impugnar, em sede de recurso de apelação, a qualificação do crédito da recorrente “DD – …, Lda.”, pelo que, sendo esta a única questão suscitada pela recorrente, improcederá o recurso de revista por esta interposto.


2. O Recurso da “EE, Lda.”

São três as questões colocadas no recurso desta credora reclamante:

- violação do caso julgado;

- nulidade por preterição de formalidades essenciais;

- aplicação do artigo 755º, n.º 1, al. f) do CC.


a) violação do caso julgado

Segundo a recorrente (conclusões IV. A XVII), o acórdão recorrido, ao não reconhecer como garantido, por efeito do direito de retenção, o seu crédito, e ao não o graduar no devido lugar, violou o caso julgado formado pela decisão de 06.03.2014, referida na alínea e) do ponto 2., supra.

Tendo por base a certidão de fls. 294 e seguintes, vejamos com mais detalhe o que consta dessa decisão e o que esteve na sua origem.

Na lista de créditos junta pelo administrador da insolvência foi descrito o crédito da recorrente, com as seguintes menções: ‘garantido’; ‘devolução do dobro do sinal pelo incumprimento de contrato-promessa de compra e venda’; ‘direito de retenção: fracção autónoma designada pela letra X (…)’; e ‘220.000,00’ – fls. 325, verso.

Avisada por carta-registada nos termos do n.º 4 do artigo 129º do CIRE, veio a ora recorrente impugnar, de acordo com o artigo 130º, n.º 1, do mesmo diploma, os termos em que o seu crédito foi reconhecido “com fundamento na incorrecção do montante” – cfr. fls. 295, verso, a 299 – concluindo esse articulado do seguinte modo: “Termos em que deve a presente impugnação ser admitida e, em consequência, ser reconhecido à impugnante o crédito no valor de € 220.000,00, que goza da preferência concedida pelo direito de retenção sobre a fracção prometida comprar e vender (…), acrescido de juros moratórios vencidos e vincendos à taxa legal, desde a data do incumprimento do contrato promessa de compra e venda até ao efectivo pagamento”.

Fica bem evidente que o objectivo da reclamação era o de que se corrigisse o montante do crédito de modo a que nele se abrangessem os juros moratórios vencidos e vincendos, desde a data do incumprimento do contrato-promessa de compra e venda. O acto postulativo da parte tinha, portanto, uma finalidade concreta, a única, aliás, que dissentia da descrição do seu crédito pelo administrador da insolvência.

Não se estranha, por isso, que, na brevíssima decisão de 06.03.2014 (fls. 309, verso e 310) não tivesse havido o mínimo pronunciamento sobre a qualificação desse mesmo crédito, limitando-se a Mmª Juíza a julgar procedente a impugnação por falta de qualquer resposta, nos termos do artigo 131º, n.º 3, do CIRE. O que se estranha é que, como se diz no acórdão da Formação, a sentença de verificação e graduação de créditos tenha passado ao lado dessa questão, qualificando tal crédito como comum, sem qualquer fundamentação jurídica.

Diferentemente, o acórdão recorrido, justificou a natureza comum do crédito, asseverando que a decisão de 06.03.2014 não constitui caso julgado formal, na medida em que não apreciou e conheceu dessa concreta questão.

É, de facto, assim.

O caso julgado pretende obstar a decisões concretamente incompatíveis.

Pressupõe, por isso, que tenha havido pronúncia efectiva sobre determinada matéria, consistindo a sua violação na proibição de a mesma matéria poder ser decidida, futuramente, de forma diversa.

Como vimos, a decisão da 1ª instância de 06.03.2014 não se pronunciou sobre o eventual direito de retenção da recorrente, razão pela qual não faz sentido, salvo o devido respeito, falar-se de violação de caso julgado.


b) nulidade por preterição de formalidades essenciais

Este segundo argumento recursório, prevenindo a hipótese de não se reconhecer a existência de violação de caso julgado quanto ao direito de retenção, assenta na ideia de que deveria ter sido proferido despacho saneador, com subsequente identificação do objecto do litígio e indicação dos temas de prova, para, depois, se realizar o julgamento sobre os factos atinentes à existência do direito de retenção.

Diz a recorrente que, ao não se ter actuado dessa forma, houve preterição de formalidades essenciais com repercussão na decisão da causa.

Sucede que, a ser como a recorrente defende, a invocação da respectiva nulidade, prevista no n.º 1 do artigo 195º, n.º 1, in fine, teria de ser arguida no prazo de 10 dias, contados após a notificação da sentença da 1ª instância, conforme disposto, conjugadamente, nos artigos 199º, n.º 1, e 149º do CPC.

Como o não fez nesse prazo, precludiu o correspondente direito de arguição dessa nulidade.


c) a qualificação do crédito e o direito de retenção

Repetindo, por remissão, o que houvera decidido a propósito do crédito reclamado pela credora “DD”, o acórdão recorrido não qualificou como garantido, por direito de retenção, o crédito da recorrente “EE”, basicamente com o fundamento de que as pessoas colectivas, como é o caso da recorrente, não podem incluir-se no conceito de ‘consumidor’, para efeitos do artigo 755º, n.º 1, alínea f), do CC.

O conceito de consumidor, consagrado em diversos diplomas (nomeadamente nos que transpõem directivas europeias), não é um conceito unívoco. O seu alcance, mais amplo ou mais restrito, extrai-se do quadro normativo convocável em cada domínio tipológico-problemático específico.

Vai já longa a discussão que se tem travado sobre o que deve entender-se por ‘consumidor’ para efeitos de atribuição do direito de retenção, nomeadamente após o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência 4/2004, de 20.03.2014, cujo segmento uniformizador se reproduz:

“No âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-        -comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755º nº 1 alínea f) do Código Civil”.

A qualificação de ‘consumidor’ não é uma questão estritamente jurídica; ela envolve também uma componente factual que o pretenso beneficiário do direito de retenção deverá alegar e provar.

No acórdão que relatámos em 31.10.2017[6] tivemos oportunidade de nos referir a esta temática, nos seguintes termos:
“Como tem sido profusamente afirmado em várias decisões deste Tribunal, o segmento uniformizador do AUJ 4/2014, não incluiu o conceito de consumidor. Cabe, por isso, aos tribunais trabalhar esse conceito casuisticamente, a partir da indispensável componente factual, uma vez que não se trata de uma questão estritamente jurídica”.
E, trabalhando o conceito, escrevemos nessa ocasião:
O artigo 2º, n.º 1, considera consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios. Por sua vez, o DL 24/2014, de 14 de Fevereiro, que transpôs para o nosso ordenamento jurídico a Directiva 2011/83/EU do Parlamento e do Conselho, define como consumidor a pessoa singular que actue com fins que não se integrem no âmbito da sua actividade comercial, industrial, artesanal ou profissional – artigo 3º, alínea c).
Na fundamentação do acórdão uniformizador, tirado no domínio do direito insolvencial (como é, também, o caso dos autos) o conceito de consumidor corresponde à visão mais restrita, constante da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho, que é, também, a do DL 24/2014.
No entanto, há vários acórdãos do STJ que têm perfilhado visões mais amplas do conceito de consumidor, como nos dá conta, em importante e útil resenha, o acórdão de 16.02.2016. Deles se destaca, o acórdão de 29.05.2014, no qual se adoptou uma concepção mais ampla de consumidor. Aí se decidiu que deve ser considerado consumidor o promitente-comprador que, na fracção prometida comprar, tem um estabelecimento de venda ao público de artigos para o lar, que explora através duma sua sociedade com sede na mesma fracção.
Posteriormente, foram proferidos outros acórdãos no STJ em que a amplitude do conceito de consumidor tem variado, consoante as cambiantes factuais de cada caso, nomeadamente no que concerne à finalidade de uso do imóvel, que funciona como elemento teleológico do conceito.
Tem sido ponderada a possibilidade de estender o conceito de consumidor ao profissional que adquire um bem para uso profissional, sendo o bem é alheio à sua área de actuação, à sua especialidade, mas mostrando-se necessário para satisfazer as necessidades da sua actividade profissional, apresentando-se, portanto, como um consumidor normal.
Qualquer que seja a amplitude com que se aprecie a figura do consumidor, ela nunca poderá abarcar as situações em que uma entidade compra ou promete comprar imóveis para o mercado imobiliário de arrendamento ou de revenda, porque isso equivaleria, na prática, a colocar o legislador no ponto de partida, em 1980”.

Jogará sempre papel decisivo na definição da situação concreta o elemento teleológico do conceito de ‘consumidor’, ou seja, a finalidade a conferir ao bem adquirido ou que se pretende adquirir. Essa finalidade pode ser revelada de forma positiva (‘uso privado’) ou de forma negativa (‘uso não profissional’).

Segundo Jorge Morais Carvalho, o elemento teleológico exclui do conceito todas as pessoas físicas ou jurídicas que actuam no âmbito de uma actividade profissional, independentemente de terem ou não conhecimentos específicos no que respeita ao negócio em causa[7].

O Supremo Tribunal de Justiça não se tem desviado muito do conceito mais restrito de ‘consumidor’[8] resultante da lei,  embora em recente acórdão se tenha decidido que só será de excluir dessa categoria aquele que adquire o bem no exercício da sua actividade profissional de comerciante de imóveis[9].

No caso concreto, porém, não existe qualquer elemento de facto que permita integrar a credora reclamante “EE, Lda.” na qualidade de consumidora, para efeito de beneficiar do direito de retenção, sendo certo que, como resulta da própria denominação, a recorrente é uma empresa do ramo imobiliário. Acresce que, a fazer fé naquilo que a própria afirma no artigo 6º da impugnação (fls. 295, verso, e seguintes), em relação à fracção predial que prometera comprar à insolvente, já havia ela promovido “a venda junto de terceiros, potenciais clientes, na prossecução do seu objecto comercial”.

Assim, por não se reconhecer à recorrente a qualidade de consumidora, não poderá qualificar-se como garantido por direito de retenção o crédito por si reclamado, mantendo-se o decidido no acórdão recorrido quanto à graduação do seu crédito.

                                                             *


III. DECISÃO


Nos termos que ficaram expostos, nega-se provimento a ambas as revistas.

                                                             *

Custas pelas recorrentes.

                                                             *

Comunique à 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

                                                             *

                 LISBOA, 17 de Abril de 2018

Henrique Araújo (Relator)

Maria Olinda Garcia

Salreta Pereira

_________________
[1] Relator:        Henrique Araújo
  Adjuntos:     Maria Olinda Garcia
                        Salreta Pereira
[2] Na jurisprudência, vejam-se, por todos, os acórdãos deste STJ de 25.11.2008 (Cons. Silva Salazar), no processo n.º 08A3102, e de 30.09.2014 (Cons. Ana Paula Boularot), no processo n.º 3045/12.4TBVLG-B.P1.S1, ambos em www.dgsi.pt. Refira-se ainda que o acórdão da Relação de ..., de 30.11.2010 (Proc. n.º 1803/09.6TJVNF-D.G1), em que a recorrente encontra conforto para a sua tese, é quase tabelar na apreciação da matéria em debate, não apresentando argumentos que contrariem a posição que entendemos ser a melhor.
[3] “Código de Insolvência e de Recuperação de Empresas”, Anotado, 2.ª Edição, 2013, página 555.
[4] “Verificação do Passivo”, Revista ‘Themis”, edição especial de 2005, página 156. Veja-se, ainda, Alexandre de Soveral Martins, “Um Curso de Direito da Insolvência”, 2017, página 293.
[5] Ainda insuficientes, na nossa opinião, conforme temos denunciado noutras decisões.
[6] Processo n.º 353/14.3T8AMT-E.P1.S1, em www.dgsi.pt.
[7] Jorge Morais Carvalho, “Manual de Direito do Consumo”, 2016, página 20.
[8] Veja-se, por exemplo, a formulação constante do acórdão de 13.07.2017, no processo n.º 1594/14.9TJVNF.2.G1.S2 (Conselheiro Pinto de Almeida), no qual se considera consumidor, para efeitos de direito de retenção, aquele que adquirir bens ou serviços para satisfação de necessidades pessoais e familiares (uso privado) e para outros fins que não se integrem numa actividade económica levada a cabo de forma continuada, regular e estável.
[9] Cfr. acórdão 03.10.2017, (Conselheiro Júlio Gomes), no processo n.º 212/11.1T2AVR-B.P1.S1, com respaldo no acórdão de 29.05.2014 (Conselheiro João Bernardo).