Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2153/08.0TVLSB.L1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: INSOLVÊNCIA
DIREITO COMUNITÁRIO
REENVIO PREJUDICIAL
DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA
EFEITOS DA SENTENÇA
ACÇÃO DECLARATIVA
AÇÃO DECLARATIVA
ACÇÃO EXECUTIVA
AÇÃO EXECUTIVA
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA
TRIBUNAL ESTRANGEIRO
DIREITO INTERNACIONAL
INCONSTITUCIONALIDADE
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
ACESSO AO DIREITO
Apenso:
Data do Acordão: 07/12/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / DELIMITAÇÃO SUBJECTIVA E OBJECTIVA DO RECURSO.
Doutrina:
- Luís Lima Pinheiro, Direito Internacional Privado, Vol. II, Almedina, Coimbra, 2015, p. 551 e ss. e 591 e ss.;
- Miguel Virgòs/Francisco Garcimartín, The European Insolvency Regulation: Law and Practice, Kluwer, 2004, p. 140.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 635.º, N.º 4.
Legislação Comunitária:
REGULAMENTO (CE) N.º 1346/2000, DE 29-05-2000: - ARTIGOS 4.º, N.º 2, ALÍNEA F), 5.º A 15.º E 43.º, 47.º,
REGULAMENTO (UE) N.º 848/2015, DE 20-05-2015: - ARTIGOS 84.º, N.ºS 1 E 2 E 92.º.
Legislação Estrangeira:
CÓDIGO DE COMÉRCIO LUXEMBURGUÊS: - ARTIGO 452.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA N.º 1/2014.
Jurisprudência Internacional:
JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA (TJUE):

- DE 06-06-2018, PROCESSO C-250/17;
- DE 09-11-2016, ENEFI, C‑212/15, EU:C:2016:841, N.°S 33, 34 E 35.
Sumário :
I - O Regulamento (CE) n.º 1346/2000, relativo aos processos de insolvência, que entrou em vigor em 31-05-2002 (art. 47.º), foi sujeito a um processo de revisão, em resultado do qual foi aprovado o Regulamento (UE) n.º 848/2015, de 20-05-2015. Porém, tendo este último entrado em vigor em 26-06-2017 (art. 92.º) e sendo apenas aplicável aos processos de insolvência abertos depois desta data (art. 84.º, n.os 1 e 2), aos processos de insolvência abertos em data anterior continua a ser aplicável o Regulamento (CE) n.º 1346/2000.
II - Os Regulamentos Comunitários referidos em I contêm, essencialmente, normas de Direito Internacional Privado, pelo que, não regulando os mesmos o processo de insolvência, os tribunais de cada Estado-membro continuam a aplicar o direito processual interno às insolvências internacionais.
III - Em regra, a lei aplicável ao processo de insolvência e aos seus efeitos sobre as acções individuais executivas é a lei do Estado-membro em cujo território é aberto o processo – lex fori concursus –, contudo, o Regulamento (CE) n.º 1346/2000 prevê excepções a essa regra geral (arts. 4.º e 5.º a 15.º); uma dessas excepções é a relativa aos efeitos do processo de insolvência nas acções declarativas pendentes relativas a um bem ou um direito de cuja administração ou disposição o devedor esteja inibido, os quais se regem exclusivamente pela lei do Estado-membro em que a referida acção se encontra pendente – lex fori processus (arts. 4.º, n.º 2, al. f), e 15.º).
IV - Em conformidade com o decidido pelo TJUE, em sede de reenvio prejudicial, suscitado no presente processo, “O artigo 15.º do Regulamento (CE) n.º 1346/2000 do Conselho, de 29 de Maio de 2000, relativo aos processos de insolvência, deve ser interpretado no sentido de que se aplica a uma ação pendente num órgão jurisdicional de um Estado-Membro que tenha por objeto a condenação de um devedor no pagamento de uma quantia pecuniária, devida por força de um contrato de prestação de serviços, e de uma indemnização pecuniária por incumprimento da mesma obrigação contratual, no caso de este devedor ter sido declarado insolvente num processo de insolvência aberto noutro Estado-Membro e de esta declaração de insolvência abranger todo o património do referido devedor.”
V - De acordo com o entendimento do TJUE apenas os processos de execução estão excluídos do âmbito de aplicação do citado art. 15.º, estando por ele abrangidas as acções declarativas que tenham por objecto o reconhecimento de um direito de crédito, sem implicarem a sua cobrança coerciva, posto que estas não são susceptíveis de pôr em causa o princípio da igualdade do tratamento dos credores, nem a resolução colectiva do processo.
VI - Estando em causa os efeitos da declaração de insolvência, decretada pelo Tribunal de um Estado-Membro estrangeiro (no caso, do Luxemburgo), sobre a presente acção, pendente aquando da declaração da insolvência, que tem por objecto o reconhecimento de um direito de crédito, é aplicável o direito português.
VII - Não tendo ficado provado que o regime jurídico luxemburguês da insolvência careça de garantias quanto à possibilidade de reclamação e à tutela do crédito do autor, valem aqui as razões justificativas do AUJ n.º 1/2014, pelo que, a declaração de insolvência da ré pelo Tribunal do Comércio do Luxemburgo tem como consequência a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, da acção que se encontrava pendente.
VIII - Em consequência de VII, a orientação do STJ expressa no AUJ n.º 1/2014 – quando aplicável quer a insolvência tenha sido decretada por um tribunal português, quer por um tribunal estrangeiro – não viola o princípio da igualdade, nem o do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, não padecendo, como tal, de inconstitucionalidade.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça




1. AA intentou, em 25/07/2008, a presente acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra BB, S.A.., que corre termos na Comarca de …, Instância Central, 1.ª secção Cível, pedindo:

a) Se declare que o A. tem direito a receber da R., nos termos da cláusula 3.ª do contrato de prestação de serviços de 03/09/2002, a título de remuneração variável pela operação de venda da totalidade do capital social da Companhia de Seguros CC, S.A.., pelo valor de € 950.000.000,00 (novecentos e cinquenta milhões de euros), e de metade do capital social da DD Companhia de Seguros, S.A., pelo valor de € 40.000.000,00 (quarenta milhões de euros), a quantia de 0,4 % (zero vírgula quatro por cento) sobre o valor agregado de € 990.000.000,00 (novecentos e noventa milhões de euros);

b) Se condene a R. a pagar ao A., a título da remuneração objecto do pedido da alínea anterior, as seguintes quantias: b)i) quantia de € 2.854.839,43 (dois milhões oitocentos e cinquenta e quatro mil oitocentos e trinta e nove euros e quarenta e três cêntimos), correspondente ao remanescente do pagamento parcial feito pela R. em 05/12/2007, após imputação nos termos do disposto no artigo 785.° do Código Civil; b)ii) a quantia de € 201.227,07 (duzentos e um mil duzentos e vinte e sete euros e sete cêntimos), correspondente aos juros vencidos sobre a quantia referida em b)ii), computados nos termos do Código Comercial, por via da remissão constante do DL n.º 32/2003, de 17/2 (juros comerciais), desde a data do pagamento parcial de 05/12/2007 até à presente data de 24/07/2008; b)iii) os juros que se vencerem sobre a quantia referida em b)i), desde a presente data e até integral pagamento, a computar nos termos do Código Comercial, por via da remissão constante do DL n.º 32/2003, de 17/2 (juros comerciais), tudo sem prejuízo de novo cálculo do valor em dívida, a efectuar em função da data efectiva da emissão da autorização por parte das autoridades de supervisão, informação essa que o A. não dispõe e é objecto do pedido infra, de junção de documentos por parte da R.

c) Se condene a R. a pagar ao A., nos termos do disposto na Clausula 7.ª n.º 3, 2.ª parte do contrato de prestação de serviços de 03/09/2002, uma indemnização pelo valor, a liquidar em execução de sentença, de todos os prejuízos sofridos pelo R. pelo facto de a R. o ter obrigado a recorrer à via judicial para cobrar a remuneração a que tem direito, incluindo custas judiciais, honorários de advogados e demais encargos que venha a ter de suportar em virtude do presente litígio.

A R. contestou a acção.

Seguiu-se a demais tramitação processual, com início da realização do julgamento.

Tendo vindo aos autos a informação de que a R. foi declarada insolvente, em 10/10/2014, no Tribunal Distrital do Luxemburgo, foi junta a respectiva decisão (fls. 4405 e 4406), traduzida a fls. 4203-4204.

Após ter sido facultado às partes o exercício do contraditório, foi proferido, em 01/06/2015, o despacho de fls. 4288-4290, que julgou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, nos termos do artigo 277º, alínea e), do Código do Processo Civil. Na fundamentação do decidido, considerou o tribunal aplicável o Regulamento (CE) nº 1346/2000, do Conselho, de 29 de Maio de 2000, mormente o seu artigo 15º, o artigo 128º, nº 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) e o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 1/2014, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 08/05/2013 (publicado no Diário da República, I Série, de 25/02/2004).

Inconformado, o A. interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa. Contra-alegou a Massa Insolvente da BB, S.A..

Por acórdão de fls. 4516-4536 a Relação apreciou o recurso nos termos que aqui se sintetizam:

- Não se verifica a alegada nulidade da sentença por falta de fundamentação;

- De acordo com o Regulamento (CE) nº 1346/2000, a regra geral é a de que a lei aplicável aos processos de insolvência é a lei do Estado-Membro onde o processo é aberto (artigo 4º), com as excepções constantes dos artigos 5º a 15º do mesmo Regulamento;

- É aplicável ao caso dos autos a regra especial do artigo 15º do Regulamento (CE) nº 1346/2000, que determina que “Os efeitos do processo de insolvência numa acção pendente relativa a um bem ou um direito de cuja administração ou disposição o devedor está inibido regem-se exclusivamente pela lei do Estado-Membro em que a referida acção se encontra pendente”, norma de conflitos que remete para o direito material do Estado-Membro no qual o processo se encontra pendente;

- Assim, os efeitos da declaração de insolvência da R. são regulados pela lei portuguesa;

- O CIRE não regula directamente o destino das acções pendentes que não reúnam os pressupostos para apensação ao processo, tendo-se colocado a questão da inutilidade superveniente da lide relativamente a tais acções, questão que – em consonância com o princípio da plenitude da instância falimentar – foi objecto de uniformização de jurisprudência através do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 1/2014, no seguinte sentido: “Transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do art. 287.º do C.P.C.”;

- Esta orientação deve ser respeitada, quer a insolvência tenha sido decretada por tribunal português, quer tenha sido decretada por tribunal de outro Estado-Membro, no caso dos autos por tribunal do …Luxemburgo;

- Acresce que, do regime de insolvência luxemburguês trazido aos autos, resultam semelhanças com o regime de insolvência português, no que concerne ao princípio da universalidade, da igualdade de tratamento dos credores, da obrigatoriedade de reclamação dos créditos no âmbito da insolvência e de as reclamações sobre as mesmas serem decididas no âmbito da insolvência, de forma urgente, com contraditório, sem que a existência de reconhecimento do crédito por decisão anterior, incluindo a proferida por um tribunal estrangeiro, influa de modo automático e definitivo na decisão que julgue a contestação oposta à reclamação do crédito, impondo, consequentemente, a produção de prova no âmbito do processo que julga aquela contestação;

- Reafirma-se a aplicação da orientação do AUJ nº 1/2014, que determina a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, sendo de refutar os argumentos adicionais aduzidos pelo Recorrente (entre os quais, relevância da cláusula de escolha de foro, continuação da lide no tribunal português como condição para ser possível executar os bens da falida em território português, inconstitucionalidade da aplicação ao caso dos autos do artigo 277º, alínea c), do CPC).

A final, julgou-se improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.


2. Veio o A. interpor recurso de revista, por via excepcional, para o Supremo Tribunal de Justiça, que foi admitido por acórdão da formação a que alude o nº 3, do artigo 672º, do Código de Processo Civil.


3. O Recorrente formula as seguintes conclusões de recurso:

“A. O presente recurso de revista excepcional vem interposto do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 7/7/2016, nos autos em referência, que indeferiu o recurso interposto pelo ora Recorrente da sentença proferida em 1/6/2015, em 1.ª instância, pelo Tribunal de Comarca de …, Instância Central de …, 1ª Secção Cível-Juiz ….

B. As questões que conformam o objecto do presente recurso, com referência ao acórdão recorrido, são:

i) A de saber qual o Direito nacional aplicável a uma declaração de insolvência decretada por Tribunal de [n]um Estado-Membro estrangeiro (in casu, do Luxemburgo), no que concerne à determinação dos seus efeitos sobre um processo judicial de condenação no cumprimento de obrigação pecuniária, instaurado em Portugal e pendente aquando daquela declaração de insolvência - nomeadamente, nos termos do Regulamento (CE) n.º 1346/2000, de 29/5; e, a título subsidiário,

ii) A de saber se, nos termos da Lei Portuguesa, a declaração de insolvência de uma pessoa [in casu, colectiva) por Tribunal estrangeiro acarreta o efeito da inutilidade superveniente de uma acção condenatória instaurada em Portugal em momento prévio, sobretudo uma que se encontra no final da fase de julgamento, concluída que esteja a instrução da causa.

[excluem-se as conclusões relativas à admissibilidade da revista excepcional]

Quanto à primeira questão sub judice:

D. O direito do Recorrente aqui em causa é de cariz pecuniário correspondendo-lhe, como tal, uma obrigação com um objecto genérico e não determinado - o que o exclui do âmbito de aplicação do artigo 15.º do Regulamento no que concerne à Lei que rege a eficácia da declaração de insolvência da R. quanto a acções pendentes, pois que aquele preceito se refere “um bem ou um direito de cuja administração ou disposição o devedor está inibido”, contemplando a[o] princípio geral de competência que privilegia o Tribunal do foro da situação dos bens (ou direitos).

E. Decorre da regra geral constante do artigo 4.º do Regulamento que a Lei aplicável aos efeitos da declaração de insolvência da R. “é a do Estado-Membro em cujo território é aberto o [respectivo] processo”, isto é, a Lei do Luxemburgo - pelo que a decisão recorrida incorreu num erro judiciário de interpretação ao considerar aplicável a Lei (e a jurisprudência) Portuguesa, e ao decidir com pretenso suporte nessa Lei, devendo a mesma ser revogada e por erro judiciário.

F. Não decorre do regime do processo de insolvência vigente do Luxemburgo qualquer efeito extintivo da declaração de insolvência sobre processos declarativos pendentes em que o devedor seja parte passiva, o que demonstra o erro de julgamento cometido pelo Tribunal a quo ao determinar a extinção dos autos por inutilidade superveniente – sendo que o Acórdão Recorrido faz considerações sobre esta questão, sem contudo desvirtuar a posição defendida pelo Recorrente e o seu suporte argumentativo.

Sem prejuízo das conclusões alcançadas, e admitindo por mera hipótese que não se entenda em conformidade, sempre se passa a expor, a título subsidiário, o seguinte:

Quanto à segunda questão sub judice:

G. A inutilidade superveniente da lide, enquanto causa de extinção da instância ao abrigo do disposto no artigo 277.º alínea e) do CPC, só se verifica em casos de absoluta ausência de benefícios da continuação do processo e do proferimento de uma decisão de mérito, não se bastando esse conceito com a mera diminuição temporária da amplitude dos efeitos a produzir pela referida decisão - enquadrando-se a declaração de insolvência num destes últimos casos.

H. A manutenção dos presentes autos e a respectiva apreciação não bulem, de modo algum, com o princípio da igualdade entre credores, que vige [sic] no processo de insolvência - tanto o Português como o Luxemburguês - na medida em que não traduz um tratamento diferenciado do ora Recorrente no âmbito desse processo, mas apenas consubstancia a sua legítima pretensão a ver o seu direito declarado judicialmente, com as consequências daí decorrentes, tanto jurídicas como probatórias.

I. Apesar de o artigo 85.º do CIRE não fazer uma “diferenciação positiva” de casos como o que aqui é descrito, tão pouco essa diferenciação seria cabível nessa sede, pois que a norma presente naquele preceito não visa, nem tem a virtualidade, de ser aplicada a um processo de insolvência pendente em país estrangeiro - o que é dizer que a apensação do presente processo aos autos de insolvência (pendente no Luxemburgo) não poderia sequer ser feita ao abrigo desse artigo.

J. Uma decisão que interprete artigo 85.º do CIRE - e, conexamente, a jurisprudência uniformizada pelo Supremo Tribunal de Justiça de 8/5/2013, proferido no âmbito do processo n.º 170/8.0TTALM.L1.S1 - em sentido contrário ao defendido, não reconhecendo as diferenças entre o caso sub judice e aquele de que se ocupou o referido acórdão (bem como os demais processos a que o mesmo seria generalizável), sempre será inconstitucional, na medida em que violaria o princípio da igualdade, previsto no artigo 13.º da CRP - inconstitucionalidade que aqui se argui para todos os efeitos.

K. O próprio contrato de prestação de serviços (junto como documento n.º 1 à Petição Inicial) que está na base do crédito do Recorrente, dita na sua cláusula 12.º que o foro judicial competente, em caso de litígio, é o da Comarca de … - por isso, a "remessa" que o Tribunal a quo parece querer fazer deste litígio para o Tribunal do Luxemburgo, em sede de reclamação de crédito, sempre viria a causar, essa sim, uma desigualdade derivada da incompetência daquela instância judicial.

L. Relevando o facto do processo de insolvência da R. correr termos perante Tribunal estrangeiro, a reclamação de créditos pelo Recorrente junto desse processo não seria, por si só, eficaz e exequível em Portugal, pelo que só uma decisão proferida pelo Tribunal a quo seria de molde a permitir uma efectivação coerciva do seu direito de crédito em Portugal, através da execução dos bens da R. neste país em momento posterior ao termo do processo de insolvência acima referido - e tão pouco isso resulta dos artigos 16.º e 17.º do Regulamento, ao contrário que é defendido no acórdão recorrido.

M. A decisão a proferir pelo Tribunal a quo será a única forma de não tornar inúteis, em clara desproporcionalidade, as demoradas, trabalhosas e dispendiosas diligências de prova (incluindo inquirições de testemunhas residentes no estrangeiro através dos mecanismos de cooperação internacional, e a tradução para português e certificação de inúmeros documentos de suporte a factos constitutivos do direito do R.) com vista ao proferimento de uma decisão devidamente instruída, face à inviabilidade de carrear a prova produzida nestes autos para o processo de insolvência pendente no Luxemburgo.

N. O processo de insolvência - tanto o Português como o Luxemburguês – não implicam a necessária extinção da pessoa colectiva insolvente, mas apenas a liquidação do seu património até ao pagamento da totalidade dos créditos aí reclamados, pelo que, se a exequibilidade da decisão condenatória a proferir nestes autos está temporariamente tolhida pela pendência daquele processo, esse impedimento não é definitivo, o que revele[a] a plena utilidade da continuação da presente lide e respectiva apreciação de mérito.

O. Ainda que aquele processo de insolvência determinasse a extinção da R., por dissolução, sempre a presente instância manteria plena utilidade, porquanto essa vicissitude determinaria a automática substituição da R. nestes autos pelos respectivos sócios, representados pelos competentes liquidatários, sem qualquer perturbação do andamento do processo, nos termos do disposto no artigo 162.º do Código das Sociedades Comerciais.

P. A sentença condenatória da Recorrida proferir nos presentes autos constituiria um elemento probatório pleno, com força de documento autêntico, junto do Tribunal Luxemburguês (perante o qual incumbe ao Recorrente reclamar o seu crédito) condensando e conglobando todas as morosas diligências de prova produzidas nos presentes autos, o que, só por si, atesta a utilidade da continuação dos mesmos -sobretudo quando os mesmos já correm termos desde 2007 e se encontra já concluída a instrução da causa, cabendo apenas ao Tribunal proferir a cabível sentença.

Q. De resto, as evidenciadas vantagens decorrentes da continuação dos presentes autos e do proferimento da competente sentença condenatória implicam, necessária e suficientemente, que os mesmos revestem ainda plena utilidade, não obstante a declaração de insolvência da R. e a pendência do respectivo processo falimentar perante o Tribunal Luxemburguês, nesse sentido militando a melhor jurisprudência.

R. Na mesma senda, o artigo 277.º alínea e) do CPC, se interpretado no sentido de que a declaração de insolvência da R. num processo pendente, por decisão de Tribunal estrangeiro, implica a extinção do dito processo por inutilidade superveniente da lide, ignorando os benefícios que adviriam do proferimento de uma sentença condenatória e as demais medidas processuais mais ténues, eventualmente cabíveis, é manifestamente inconstitucional por violação do direito fundamental de acesso ao Direito e à tutela jurisdicional efectiva previsto no artigo 20.º n.º 1da CRP, conjugado com o princípio da proporcionalidade das restrições a direitos fundamental, previsto no artigo 18.º n.º 2 da CRP, inconstitucionalidade que se argui.

Termos em que deverá ser dado provimento à presente Revista

e, em consequência:

i) Revogado o acórdão recorrida[o], e substituído por outro que determine a continuação dos autos, em virtude de erro judiciário decorrente da aplicação da Lei (e jurisprudência) Portuguesa aos efeitos a surtir pela decisão de declaração de insolvência da R., em violação do disposto no artigo 4.º do Regulamento; ou, concebendo sem conceder que tal entendimento não venha a proceder,

ii) Revogado o acórdão recorrido, e substituído por outro que determine a continuação dos autos, em virtude de erro judiciário decorrente da errada interpretação e aplicação do instituto da inutilidade superveniente da lide, previsto no artigo 277.º alínea e) do CPC.”


A Massa Insolvente da BB, S.A.. contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão do acórdão recorrido, invocando, designadamente, o seguinte: quanto à questão principal, o artigo 15º do Regulamento nº 1346/2000 deve ser interpretado no sentido da aplicação da lei portuguesa à presente acção, o que conduz à extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, de acordo com a orientação fixada pelo AUJ nº 1/2014; quanto à questão subsidiária, são de refutar todos os argumentos do Recorrente relativos à inaplicabilidade da orientação daquele AUJ ao caso dos autos.


Cumpre decidir.


4. Os factos e ocorrências processuais relevantes constam do antecedente relatório, a que se acrescenta o seguinte:

- Em 10/10/2014, o Tribunal do Comércio do Luxemburgo, proferiu a sentença comercial II n.º 1…3/2014, declarando “[a] insolvência da sociedade anónima BB, S.A.., estabelecida e com sede social em L…. Luxemburgo, …; estabelece provisoriamente a data da cessão dos pagamentos em 10 de Abril de 2014 (…) ordena aos credores que entreguem na secretaria do tribunal de comércio o requerimento com o montante dos seus créditos antes de 27 de Outubro de 2014; estabelece o local, o dia e a hora para o encerramento da ata de verificação dos créditos em 11 de Novembro de 2014 às 9.00 da manhã (…), em relação aos debates de contestação resultantes desta verificação fica marcado o dia 28 de Novembro de 2014 às 9.00 da manhã (…).” - documento traduzido a fls. 4203-4204.


5. Tendo em conta o disposto no nº 4, do artigo 635º, do Código de Processo Civil, o objecto do recurso delimita-se pelas conclusões do mesmo. Assim, no presente recurso, estão em causa as seguintes questões:

- Determinar qual o direito nacional aplicável aos efeitos da declaração de insolvência da R., decretada por Tribunal de um Estado-Membro estrangeiro (in casu, do Luxemburgo), sobre a acção dos autos, pendente aquando daquela declaração de insolvência;

- Subsidiariamente, saber se a declaração de insolvência da R. produz o efeito da inutilidade superveniente da presente lide, tendo em conta que a mesma foi decretada em tribunal não português.


6. Relativamente à questão da determinação do direito nacional aplicável aos efeitos da declaração de insolvência da R., decretada por Tribunal do Luxemburgo, sobre a acção dos autos, pendente aquando daquela declaração de insolvência, o acórdão recorrido, convocando o Regulamento nº 1346/2000, do Conselho, de 29 de Maio de 2000, concluiu ser aplicável o direito português, em resultado do disposto no respectivo artigo 15º, cujo teor aqui se reproduz:

“Os efeitos do processo de insolvência numa acção pendente relativa a um bem ou um direito de cuja administração ou disposição o devedor está inibido regem-se exclusivamente pela lei do Estado-Membro em que a referida acção se encontra pendente.”

O Regulamento (CE) nº 1346/2000 entrou em vigor em 31 de Maio de 2002 (artigo 47º), sendo aplicável aos processos de insolvência abertos posteriormente a esta data (artigo 43º). O regime deste Regulamento foi, entretanto, sujeito a um processo de revisão, em resultado do qual foi aprovado o Regulamento (EU) nº 848/2015, do Parlamento e do Conselho, de 20 de Maio de 2015, que entrou em vigor em 26 de Junho de 2017 (artigo 92º), sendo aplicável apenas aos processos de insolvência abertos após 26 de Junho de 2017 (artigo 84º, nº 1).  

Assim, o Regulamento nº 1346/2000 continua a ser aplicável aos processos de insolvência que tenham sido abertos antes de 26 de Junho de 2017 (artigo 84º, nº 2, do Regulamento nº 848/2015), como é o caso do processo de insolvência da aqui R.


6.1. Para melhor se compreender os problemas que somos chamados a apreciar, justifica-se apresentar a seguinte explicação introdutória deste regime de direito comunitário/direito da União Europeia:  

“Os regimes gerais europeus constam do Reg. (CE) nº 1346/2000 Relativo aos Processos de Insolvência (doravante designado Regulamento CE sobre insolvência) e do Reg. (EU) nº 848/2015 Relativo aos Processos de Insolvência (doravante designado Regulamento EU sobre insolvências). Contrariamente ao que a sua designação poderia sugerir, estes diplomas não regulam o processo de insolvência, não estabelecem um Direito Europeu da Insolvência. Os tribunais de cada Estado-Membro continuam a aplicar o Direito processual interno às insolvências internacionais. Os Regulamentos sobre insolvência regulam principalmente a competência internacional, a determinação do Direito aplicável e o reconhecimento de decisões estrangeiras. Trata-se, portanto, de fontes europeias de Direito Internacional Privado.

     Isto não obsta a que os Regulamentos contenham um conjunto de normas materiais unificadas, que visam, entre outros aspectos, a coordenação entre processos instaurados em vários Estados-Membros, a informação dos credores e a reclamação dos respectivos créditos, a adoção de medidas de publicidade e ainda, no caso do Regulamento EU, a cooperação e a coordenação em processos de insolvência relativos a membros de grupos de sociedades.

    Assim, os Regulamentos europeus sobre insolvência não prejudicam, em princípio, a aplicação pelos tribunais portugueses do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. Em caso de conflito, prevalecem as normas dos Regulamentos, que são fontes do Direito hierarquicamente superiores à lei ordinária na ordem jurídica interna.” (Luís Lima Pinheiro, Direito Internacional Privado, Vol. II, Almedina, Coimbra, 2015, págs. 551 e seg.). [negritos nossos]


Tendo presente que o Regulamento nº 1346/2000 contém essencialmente normas de Direito Internacional Privado, o que está em causa no presente recurso é determinar qual o regime jurídico nacional aplicável à presente acção, interposta em 25/07/2008, tendo em conta que, na sua pendência, foi aberto processo de insolvência da R. em Tribunal do Luxemburgo, no qual foi decretada a insolvência por sentença de 10/10/2014.

      Dispõe o artigo 4º do Regulamento nº 1346/2000:

“1. Salvo disposição em contrário do presente regulamento, a lei aplicável ao processo de insolvência e aos seus efeitos é a lei do Estado-Membro em cujo território é aberto o processo, a seguir designado ‘Estado de abertura do processo’.

2. A lei do Estado de abertura do processo determina as condições de abertura, tramitação e encerramento do processo de insolvência. A lei do Estado de abertura do processo determina, nomeadamente:

a) Os devedores que podem ser sujeitos a um processo de insolvência em razão da qualidade dos mesmos;

b) Os bens de cuja administração ou disposição o devedor está inibido e o destino a dar aos bens adquiridos pelo devedor após a abertura do processo de insolvência;

c) Os poderes respectivos do devedor e do síndico;

d) As condições de oponibilidade de uma compensação;

e) Os efeitos do processo de insolvência nos contratos em vigor nos quais o devedor seja parte;

f) Os efeitos do processo de insolvência nas acções individuais, com excepção dos processos pendentes;

g) Os créditos a reclamar no passivo do devedor e o destino a dar aos créditos nascidos após a abertura do processo de insolvência;

h) As regras relativas à reclamação, verificação e aprovação dos créditos;

(…)”


     Se a regra geral, consagrada no artigo 4º supra transcrito, é a de que o processo de insolvência e os seus efeitos se regem pela lex fori concursus, o Regulamento prevê excepções nos respectivos artigos 5º a 15º. No presente recurso deve convocar-se o regime do artigo 15º, que determina que os efeitos do processo de insolvência numa acção pendente relativa a um bem ou um direito de cuja administração ou disposição o devedor está inibido se regem exclusivamente pela lei do Estado-Membro em que a referida acção se encontra pendente.

     Está em causa uma norma especial, que prevê que os efeitos do processo de insolvência sobre as acções pendentes (à data da abertura do processo de insolvência) são aqueles que forem determinados pela lei do Estado-Membro (lex fori processus) no qual decorre a acção pendente. Torna-se necessário conjugar esta norma especial com a regra geral, designadamente com o disposto no citado artigo 4º, nº 2, alínea f), do Regulamento, que prevê a aplicação da lei do local de abertura do concurso aos “efeitos do processo de insolvência nas acções individuais”, mas “com excepção dos processos pendentes”, que são precisamente os previstos no artigo 15º.

     Seguindo de perto o teor do denominado Relatório Miguel Virgòs/Etienne Schmidt (cfr. nº 142 do Relatório Explicativo sobre a “Convenção relativa aos Processos de Insolvência do Conselho da União Europeia” - DOC. 6500/96 DRS 8 (CFC), 1996, documento que esteve na origem do Regulamento nº 1346/2000), Luís Lima Pinheiro (ob. cit., págs. 591 e seg.) pronuncia-se nos seguintes termos:

     “O Regulamento CE estabelece uma distinção entre os efeitos do processo de insolvência sobre as ações individuais de execução e sobre as ações declarativas pendentes. Os efeitos sobre as ações individuais de execução são regidos pela lei do Estado de abertura (art. 4º/2/f), os efeitos sobre outras acções pendentes relativas a bens ou direitos do património do insolvente são regidos exclusivamente pela lei do Estado-Membro em que a referida ação se encontra pendente (art. 15º).

      Assim, a lei processual do Estado em que a ação está pendente determina se o processo deve ou não ser suspenso, a forma sob a qual deve prosseguir e as alterações processuais adequadas para refletir a perda ou limitação do poder de disposição e administração do devedor e a intervenção do síndico em seu lugar.” [negritos nossos]


       Quanto à justificação para esta diferença quanto à lei aplicável às “acções individuais de execução” e às “outras acções pendentes”, Lima Pinheiro adere às razões invocadas por Miguel Virgòs/Francisco Garcimartín afirmando: “Esta exceção à competência da lei reguladora da insolvência é justificada fundamentalmente por duas razões. Por um lado, nas ações declarativas não está em causa o princípio da ação coletiva aplicável aos processos de insolvência. Por outro, a estreita vinculação dessas ações com o regime processual do Estado em que estão pendentes.”[1]


Conclui-se, assim, que a norma do artigo 15º, do Regulamento nº 1346/2000, ao mandar aplicar o direito processual do Estado no qual a acção (não executiva) se encontra pendente, admite como possível que, em consequência da declaração de insolvência de devedor, na referida acção pendente seja decretada a extinção da instância, ou a suspensão da instância, ou ainda que seja admitida a prossecução da instância com medidas limitativas do poder do devedor.


6.2. Contudo, a redacção do artigo 15º do Regulamento nº 1346/2000, ao referir-se a "acção pendente relativa a um bem ou um direito de cuja administração ou disposição o devedor está inibido", suscitou a dúvida de saber se no seu âmbito se inclui acção pendente, como a dos autos, num tribunal de um Estado-Membro para reconhecimento de obrigação de pagamento de quantia pecuniária devida por contrato de prestação de serviços e para condenação ao pagamento de indemnização pecuniária por incumprimento da mesma obrigação.

    Defendeu o Recorrente uma interpretação restritiva do âmbito de aplicação do artigo 15º do Regulamento nº 1346/2000, no sentido de nele se incluírem apenas as acções pendentes em tribunal de Estado-Membro distinto do Estado-Membro no qual foi decretada a insolvência do devedor, desde que a acção pendente tenha como objecto bem ou direito determinado de que o insolvente não possa dispor. Por esta interpretação, a presente acção não estaria incluída no âmbito do artigo 15º do Regulamento, mas antes no âmbito da regra geral do artigo 4º do mesmo Regulamento, em resultado do que seria aplicável ao caso o direito luxemburguês.

      Inversamente defendeu a Recorrida uma interpretação ampla do âmbito de aplicação do artigo 15º do Regulamento nº 1346/2000, no sentido de nele se incluírem todas as acções pendentes em tribunal de Estado-Membro, distinto do Estado-Membro no qual foi decretada a insolvência do devedor, quer tenham como objecto bens ou direitos determinados quer tenham como objecto bens ou direitos indeterminados, desde que, em qualquer caso, o devedor deles não possa dispor. Por esta interpretação, a presente acção para reconhecimento da obrigação de pagamento de quantia pecuniária, devida por contrato de prestação de serviços, e condenação ao pagamento de indemnização pecuniária por incumprimento da mesma obrigação, estaria incluída no âmbito do artigo 15º do Regulamento.     

    Tendo em conta que: (i) a resolução desta dúvida interpretativa se apresenta como essencial para o conhecimento do presente recurso; (ii) que os escassos elementos disponíveis (tanto doutrinais como jurisprudenciais, como ainda relativos ao processo de elaboração do Regulamento nº 1346/2000 e do Regulamento nº 848/2015) não permitem resolvê-la; (iii) e que as diversas versões em diferentes línguas do Regulamento nº 1346/2000 mais acentuam essa dúvida,

após notificação das partes,

decidiu-se, por despacho da relatora de fls. 4732:


a) “Suscitar perante o Tribunal de Justiça da União Europeia, nos termos do artigo 267º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, a seguinte questão prejudicial:

Deve a regra do artigo 15º do Regulamento (CE) nº 1346/2000, de 29 de Maio, ser interpretada no sentido de incluir na sua previsão uma acção pendente num tribunal de um Estado-Membro para condenação de devedor na obrigação de pagamento de quantia pecuniária, devida por contrato de prestação de serviços, e condenação ao pagamento de indemnização pecuniária por incumprimento da mesma obrigação, tendo em conta que: (i) o devedor foi declarado insolvente em processo aberto num tribunal de outro Estado-Membro; e (ii) a declaração de insolvência abrange todo o património do devedor?

b) Declarar a suspensão da instância, nos termos do artigo 269º, nº 1, alínea c), e do artigo 272º, ambos do Código de Processo Civil, até à resolução da questão prejudicial enunciada.”


6.3. Em resposta a esta questão prejudicial, o Tribunal de Justiça da União Europeia proferiu acórdão, em 06/06/2018 (no processo C-250/17), com a seguinte decisão:

“O artigo 15.° do Regulamento (CE) n.° 1346/2000 do Conselho, de 29 de maio de 2000, relativo aos processos de insolvência, deve ser interpretado no sentido de que se aplica a uma ação pendente num órgão jurisdicional de um Estado-Membro que tenha por objeto a condenação de um devedor no pagamento de uma quantia pecuniária, devida por força de um contrato de prestação de serviços, e de uma indemnização pecuniária por incumprimento da mesma obrigação contratual, no caso de este devedor ter sido declarado insolvente num processo de insolvência aberto noutro Estado-Membro e de esta declaração de insolvência abranger todo o património do referido devedor.”


Para além da decisão, há que ter presente a advertência feita no ponto 34 da fundamentação do Acórdão do Tribunal de Justiça (para cuja compreensão importa transcrever também os pontos 28 a 33 da mesma):

“28    Resulta das considerações precedentes que o âmbito de aplicação do artigo 15.° do Regulamento n.° 1346/2000 não pode ser circunscrito apenas às ações pendentes que tenham por objeto um bem ou um direito determinado de cuja administração ou disposição o devedor esteja inibido.

29      No entanto, importa precisar que este artigo não pode ser indistintamente aplicado a todas as ações pendentes que tenham por objeto um bem ou um direito que integra a massa insolvente.

30     Como já foi salientado pelo Tribunal de Justiça, seria contraditório interpretar o artigo 15.° do Regulamento n.° 1346/2000 no sentido de que abrange igualmente os processos de execução, com a consequência de que os efeitos da abertura de um processo de insolvência ficariam sob a alçada da lei do Estado‑Membro em que esse processo de execução está pendente, ao passo que, em paralelo, o artigo 20.°, n.° 1, deste regulamento, ao impor expressamente a restituição ao síndico daquilo que tiver sido obtido «com caráter executório», retiraria, assim, ao artigo 15.° o seu efeito útil (Acórdão de 9 de novembro de 2016, ENEFI, C‑212/15, EU:C:2016:841, n.° 34).

31     Além disso, o Regulamento n.° 1346/2000 assenta no princípio segundo o qual a exigência de igualdade de tratamento dos credores, que está subjacente, mutatis mutandis, a qualquer processo de insolvência, se opõe, regra geral, às ações singulares através de processos de execução, desencadeados e tramitados na pendência de um processo de insolvência contra o devedor (Acórdão de 9 de novembro de 2016, ENEFI, C‑212/15, EU:C:2016:841, n.° 33).

32      Consequentemente, há que considerar que os processos de execução não estão abrangidos pelo âmbito de aplicação do artigo 15.° do Regulamento n.° 1346/2000 (Acórdão de 9 de novembro de 2016, ENEFI, C‑212/15, EU:C:2016:841, n.° 35).

33       No entanto, as ações declarativas de obrigações pecuniárias que se limitem a determinar os direitos e as obrigações do devedor, sem implicar a sua realização, e que, por conseguinte, contrariamente às ações individuais de execução, não são suscetíveis de pôr em causa o princípio da igualdade de tratamento dos credores nem a resolução coletiva do processo de insolvência, estão abrangidas pelo âmbito de aplicação do referido artigo 15.º

34       Assim, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar, antes de aplicar o artigo 15.° do Regulamento n.° 1346/2000, se a ação de AA é uma ação sobre o mérito que tem precisamente por objeto um pedido de pagamento de um crédito e se a mesma se distingue, enquanto tal, do processo que visa a cobrança coerciva deste crédito.” [negrito nosso]


Dando cumprimento a esta advertência, confirma-se que, tendo a presente acção natureza declarativa, nela não está em causa a cobrança coerciva do crédito invocado pelo A., mas apenas a pretensão de reconhecimento deste direito do A. (pedido a)), com a consequente pretensão de condenação da R. devedora no pagamento de indemnização pelo não cumprimento da obrigação a que se encontra adstrita (pedidos b) e c)).  

Deste modo, conclui-se ser aplicável ao caso dos autos o regime do artigo 15º do Regulamento nº 1346/2000, que determina que os efeitos da declaração de insolvência da R. devedora se regem pelo direito do Estado-Membro em que a referida acção se encontra pendente, isto é, pelo direito português.


7. Tendo-se concluído pela aplicação do direito português, importa conhecer da questão subsidiária de saber se, à luz deste direito, a declaração de insolvência da R. deve produzir o efeito da inutilidade superveniente da presente lide, tendo em conta que a mesma foi decretada por Tribunal do Luxemburgo.

O acórdão da Relação apreciou a questão nos seguintes termos desenvolvidos, que se subscrevem:

Vejamos, agora, a questão da inutilidade superveniente da lide.

A remissão para a lei portuguesa implica a aplicação do regime da insolvência inserto no CIRE, nos artigos 275.º a 296.º.

Destacando-se, desde logo, o artigo 275.º, donde resulta a prevalência do Regulamento sobre as normas internas, prescrevendo expressamente o artigo 285.º do CIRE quanto às ações pendentes de modo idêntico ao artigo 15.º do Regulamento (“Os efeitos da declaração de insolvência sobre as acção pendente relativa a um bem ou um direito integrante da massa insolvente regem-se exclusivamente pela lei do Estado em que a referida acção corra os eus termos.”).

O CIRE estabelece nos artigos 85.º a 89.º os efeitos processuais da declaração de insolvência.

O artigo 85.º regula os efeitos da declaração de insolvência sobre as ações pendentes, mas apenas na perspetiva da sua apensação ao processo de insolvência (em que situações ocorre a apensação e como se despoleta a ordem de apensação), prescrevendo, ainda, que quer as ações sejam apensadas ou não ao processo de insolvência, nas mesmas, o insolvente é substituído pelo administrador da insolvência (n.º 3 do preceito).

     O que significa que o preceito não regula diretamente o destino das ações pendentes que não sejam apensadas ao processo de insolvência, por não se encontrarem preenchidos os pressupostos da apensação.

Quanto tal situação se verificar (tenha a insolvência sido decretada por um tribunal português ou por um tribunal de algum dos Estados-Membros), coloca-se efetivamente a questão da inutilidade superveniente da lide relativamente a essas ações.

Esta questão foi motivo de controvérsia jurisprudencial e foi objeto de uniformização de jurisprudência através do acórdão uniformizador n.º 1/2014, lavrado em 08/05/2013, aplicado na decisão recorrida, nos seguintes termos: “Transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do art. 287.º do C.P.C.”

Os fundamentos subjacentes a tal uniformização reconduzem-se, no essencial, à aplicação do regime que emerge dos artigos 1.º, 46.º, n.º1, 47.º, n.º 1, 90.º, 128.º, n.ºs 1 e 3, 129.º, 130.º,n.º 1 e 139.º, todos do CIRE, do qual resulta o princípio que rege esta matéria – o da plenitude da instância falimentar.

Assim, declarada a insolvência, todos os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração, são considerados credores da insolvência, aí exercendo os seus direitos em conformidade com as referidas normas falimentares, carecendo de ali reclamarem os seus créditos independentemente dos mesmos estarem reconhecidos judicialmente noutro processo, razão pela qual os processos onde se discutem questões relativas a dívidas do insolvente, perdem a sua utilidade.

A obtenção de uma decisão condenatória no processo declarativo, com consequente obtenção de título executivo, só forma caso julgado material quanto às partes da ação declarativa, donde resulta que, não obstante tenha havido reconhecimento judicial do crédito, sempre carece de ser reclamado no processo de insolvência se nele o credor quiser obter pagamento (artigo 128.º, n.º 3, do CIRE), podendo sempre ser impugnado por qualquer interessado, conforme decorre do artigo 130.º do CIRE.

A jurisprudência uniformizadora reporta-se apenas às ações destinadas a obter o reconhecimento de créditos, isto é, aquelas em que se discutem direitos de natureza patrimonial sobre o insolvente.

A natureza da insolvência como processo universal, o princípio da universalidade (todos os créditos são reclamados na insolvência por todos os credores), o princípio par conditio creditorium, como emanação do princípio da igualdade, em conexão com o princípio do contraditório vigente no processo insolvencial, visto na perspetiva de processo-liquidação, determinam a solução acolhida, conduzindo à inutilidade superveniente da lide dos processos declarativos pendentes à data da declaração de insolvência.

A inutilidade superveniente da lide, conforme tem sido assinalado pela doutrina, verifica-se quando circunstâncias acidentais/anormais determinem o desinteresse na solução do litígio pendente, ou seja, “[q]uando em virtude de novos factos ocorridos na pendência do processo, a decisão a proferir já não possa ter qualquer efeito útil, ou porque não é possível dar satisfação à pretensão que o demandante quer fazer valer no processo, ou porque o escopo visado com a acção foi atingido por outro meio.” [negritos nossos]


Contra a aplicação da orientação do AUJ nº 1/2014 ao caso dos autos, por estar em causa uma insolvência decretada por tribunal não português, se insurge o A. Recorrente, invocando, em síntese, os seguintes argumentos: o artigo 85º do CIRE não regula directamente situações como a dos autos, mas, de qualquer forma, nunca poderia ser aplicável a uma insolvência decretada em tribunal estrangeiro; a interpretação do artigo 85º do CIRE, conjugada com a orientação do AUJ nº 1/2014, aplicando-se esta orientação ao caso dos autos, seria inconstitucional por violação do princípio da igualdade (artigo 13º da Constituição da República Portuguesa); o contrato de prestação de serviços dos autos tem uma cláusula de foro, que não seria respeitada se o crédito tivesse de ser reclamado no tribunal do Luxemburgo; a decisão tem de ser proferida por tribunal português para garantir a efectividade da execução dos bens da R. devedora em Portugal; a extinção da instância determinaria a inutilização de toda a prova feita nos autos; o processo de insolvência não implica necessariamente a extinção da pessoa colectiva, mas apenas a liquidação do seu património até ao pagamento da totalidade dos créditos; mesmo que o processo de insolvência termine com a dissolução da sociedade R., a presente acção sempre terá a utilidade de determinar a sua substituição automática pelos sócios (cfr. artigo 162º do Código das Sociedades Comerciais); a sentença a proferir na presente lide constituiria documento autêntico, com força probatória plena, junto do tribunal luxemburguês; por último, a interpretação do artigo 277º, alínea e), do CPC, no sentido de ser aplicável ao caso dos autos, é inconstitucional, por violação do artigo 20º, nº 1, da CRP, conjugado com o princípio da proporcionalidade do artigo 18º, nº 2, da CRP.


    De toda a argumentação invocada pelo Recorrente, resulta, em última análise, que este não se conforma com a orientação do AUJ nº 1/2014, ou, pelo menos, com a aplicabilidade de tal orientação a situações, como a dos autos, em que a declaração de insolvência do devedor que é parte na acção pendente, foi decretada por tribunal de outro Estado-Membro.

     Os argumentos relativos à não aplicabilidade do AUJ nº 1/2014 quando a insolvência tenha sido decretada em tribunal estrangeiro, fundam-se no pressuposto de que a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide prejudicaria irremediavelmente a satisfação do interesse do credor, que não poderia ser tutelado com a reclamação do respectivo crédito junto do tribunal do outro Estado-Membro onde a insolvência foi decretada; e, ainda, de que tal extinção da instância inviabilizaria qualquer possibilidade de efectiva satisfação do interesse do credor, designadamente pela via coerciva.

      O acórdão da Relação apreciou tais argumentos em termos que aqui se reproduzem e que merecem a nossa inteira concordância:

 “Resta saber se esta conclusão igualmente se aplica quando a insolvência foi decretada por um tribunal estrangeiro.           

A conclusão a que se chegou não pode deixar de ser afirmativa, pelas razões que passamos a concretizar.

A norma de conflitos do artigo 15.º do Regulamento ao remeter para a lei do Estado-Membro, exclui qualquer remissão para as normas de DIP desse Estado-Membro, como acima se disse, pelo que é aplicável aos processos pendentes o mesmo regime legal, seja a insolvência decretada por um tribunal nacional ou por um tribunal estrangeiro.

O CIRE não faz qualquer diferenciação positiva, pelo que a tratar-se de forma diferente as duas situações, geraria, face à lei portuguesa, uma violação do princípio da igualdade, potencialmente inconstitucional (artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa).

Assim, a uniformização jurisprudencial relativa à interpretação do CIRE, em princípio, é aplicável quer a insolvência tenha sido decretada por um tribunal português ou por um tribunal estrangeiro membro da UE.

Por sua vez, como acima referido, a lei do Estado de abertura do processo de insolvência aplica-se à abertura, tramitação e encerramento do processo de insolvência, mormente ao reconhecimento e à graduação dos créditos, participação dos credores e liquidação e repartição dos créditos (artigo 4.º do Regulamento (CE) n.º 1346/2000).

O regime da insolvência aplicado aos comerciantes, vigente no …  Luxemburgo, é um regime de liquidação, onde vigoram os princípios da universalidade e da igualdade dos credores, sendo a declaração de falência da competência do Tribunal do Comércio (cfr., nomeadamente, os artigos 437.º, 444.º/1.º/22.º, 448.º, 452.º/1.º, do Código de Comércio, na tradução junta aos autos).

É este tribunal que pronuncia a falência, determina a data da cessação de pagamentos, nomeia os diferentes intervenientes (administrador – que administra os bens, realiza os bens do devedor e reparte o produto dessa realização pelos credores de acordo com as garantias que tenham – e um juiz-comissário, que controla o exercício de funções do administrador – artigo 455.º e ss do Código de Comércio), fixa a data de declaração de créditos e a data para o encerramento da ata de verificação dos créditos e pronuncia o encerramento do processo de insolvência.

O falido fica inibido de pleno direito de administrar os seus bens, independentemente do país onde se encontrem (artigo 444.º/1.º, do Código de Comércio).

Todos os credores são chamados à insolvência para ali reclamarem os seus créditos, apresentando com a reclamação os respetivos títulos (artigos 496.º e ss do Código de Comércio).

Os créditos reclamados são verificados pelo administrador na presença do juiz-secretário. O crédito pode ser aprovado ou contestado, o que, em último caso, determina a remessa dessas contestações para o tribunal de comércio ou civil competente para as julgar, sendo atribuída natureza urgente a esse julgamento (cfr. artigos 500.º, 501.º, 504.º e 505.º do Código de Comércio).

O artigo 540.º/1.º deste Código prevê expressamente que caso esteja em julgamento num tribunal estrangeiro um litígio com reflexos sobre o passivo da falência, a decisão que aprecia a contestação do crédito reclamado no processo de falência, não pode sofrer atrasos por essa razão, evidenciando que a decisão estrangeira não interfere, nem é imprescindível para a resolução da contestação do crédito reclamado.

Este preceito indicia claramente que não se prevê no regime da insolvência luxemburguês a possibilidade do credor com crédito reconhecido por decisão judicial estrangeira, beneficiar de qualquer direito a ver automaticamente o seu crédito reconhecido ou a dispensá-lo de o reclamar no âmbito do processo de falência.

Por outro lado, o regime falimentar luxemburguês prevê a possibilidade de prolongamento dos prazos para os credores que residam ou estejam domiciliados fora do … Luxemburgo reclamarem os seus créditos (artigo 497.º do Código de Comércio), e prescreve de modo a prevenir a distribuição entre os credores que tenham visto tais prazos alongados, não os prejudicando por essa razão (artigo 562.º do mesmo diploma).

Acresce ainda referir que resulta do artigo 452.º do Código de Comércio Luxemburguês que, após a sentença declaratória de falência, só podem ser interpostas ou prosseguidas ações reais ou pedidos de execução sobre móveis ou imóveis contra os administradores da insolvência, donde decorre que não podem ser interpostas ou prosseguidas ações onde se discutem questões de natureza obrigacional. O artigo 444.º, 9.º, aliás, prescreve em termos de princípio geral que os credores só podem intentar ações após terminarem as operações relativas à liquidação.

Resulta, assim, do regime de falência luxemburguês trazido aos autos, semelhanças com o regime insolvencial português, no que concerne ao princípio da universalidade, da igualdade de credores, da obrigatoriedade de reclamação dos créditos no âmbito da insolvência e das reclamações sobre as mesmas serem decididas no âmbito da mesma, de forma urgente, com contraditório, sem que a existência de reconhecimento do crédito por decisão anterior, incluindo a proferida por um tribunal estrangeiro, influa de modo automático e definitivo na decisão que julgue a contestação oposta à reclamação do crédito, impondo, consequentemente, a produção de prova no âmbito do processo que julga aquela contestação.

Donde decorre que, no caso, os fundamentos que subjazem à interpretação uniformizadora à luz do direito da insolvência portuguesa não deixam de ter um contraponto em tudo semelhante no regime do Estado de abertura do processo de insolvência, ou seja, o regime de falência vigente do … Luxemburgo.

Conclui-se, assim, que não existe fundamento legal que justifique a não aplicação daquela jurisprudência uniformizadora quando a declaração de insolvência foi proferida por um tribunal luxemburguês.

Defende, porém, o recorrente que pelo facto de terem as partes convencionado o foro da Comarca de Lisboa para decidir os litígios emergentes do contrato de prestação de serviços, lhe causa uma desigualdade derivada da incompetência da instância judicial luxemburguesa.

Não assiste razão ao recorrente, porquanto o tribunal da abertura do processo tem competência para decidir a reclamação de créditos que ali seja apresentada, incluindo a contestação oposta à mesma, independentemente do convencionado pelas partes quando à resolução do litígio fora do contexto da falência, por tal resultar diretamente do artigo 4.º, n.º 1 e 2, alíneas g), h) e i), do Regulamento.

Alega também o recorrente que a utilidade da continuação da lide no tribunal português decorre da possibilidade de executar bens da falida que se encontrem neste país, em momento posterior ao termo do processo de insolvência.

Não tem qualquer razão o recorrente, uma vez que a decisão proferida no Estado de abertura do processo de falência sobre a reclamação de créditos ali apresentada é reconhecida imediata e automaticamente em todos os outros Estados-membros (artigos 16.º e 17.º do Regulamento (CE) n.º 1346/2000. O mesmo se aplica a todas as demais decisões ali tomadas quanto ao pagamento do passivo e encerramento do processo. Donde decorre que a futura execução que o recorrente pretende prevenir com a obtenção de uma sentença nestes autos não prevalece sobre as decisões tomadas naquele processo de falência.

E em relação a futuras ações contra a falida ou sócios têm de ser sempre enquadradas no âmbito da responsabilidade do falido após ser decretado o encerramento da falência e das responsabilidades próprias daqueles sócios, questões que não são objeto de decisão da sentença a proferir no âmbito da presente ação, não resultando evidente qual a relevância jurídica do prosseguimento da presente lide com o fundamento invocado.

No que concerne ao desaproveitamento da prova já produzida nestes autos, o que se pode dizer é tal objeção só teria pertinência se o reconhecimento do crédito em litígio nestes autos fosse automaticamente reconhecido na falência com base nesse título, o que não resulta das normas do Código de Comércio luxemburguês, nem o autor alega nada de concreto nesse sentido.

Aliás, nem sequer alega que já tenha reclamado o crédito na falência e se o mesmo foi ou não verificado ou contestado, não obstante há muito se encontrarem esgotado os prazos referidos na sentença declaratória da falência para a reclamação e encerramento dos debates relativos à contestação da verificação dos créditos.

Por fim, invoca o apelante que a aplicação do artigo 277.º, alínea c), do CPC, interpretado no sentido em que o foi no despacho recorrido, é manifestamente inconstitucional por violação dos artigos 18.º, n.º 2 e artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República (violação do direito de acesso ao Direito e à tutela jurisdicional efetiva).         

Cabe referir que o Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre a não inconstitucionalidade do acórdão uniformizador n.º 1/2014 supra referido, por não se verificar, nem a violação do princípio da igualdade, nem o do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva (artigos 13.º e 20.º, n.ºs 1 a 5, da Constituição da República Portuguesa).

O recorrente não equaciona qualquer contra-argumentação válida que ponha tal entendimento em crise no que concerne à aplicação da jurisprudência uniformizadora em relação às decisões proferidas nos processos pendentes, cujos réus sejam alvo de uma declaração de insolvência proferida por um tribunal nacional ou por um tribunal estrangeiro.

Coloca a questão na perspetiva de ser inconstitucional “ignorar os benefícios que adviriam do proferimento de uma sentença condenatória”. Só que os alegados “benefícios” não se enquadram no regime da insolvência previsto no CIRE, nem no regime da falência vigente no … Luxemburgo, como supra analisado.

Acrescentando-se ademais que resultando das regras do processo de falência vigentes no Estado de abertura do processo de insolvência, que é facultado ao ora recorrente o direito de reclamar o seu crédito no âmbito do processo de falência, sujeitando-se às regras aplicáveis a todos os demais credores, em igualdade de circunstâncias e com observação do princípio par conditio creditorium, em conexão com o princípio da igualdade e do contraditório, tendo como finalidade obter satisfação da obrigação que diz incumprida pelo falido, em tempo útil e dentro de um prazo razoável, não se verifica qualquer restrição ou violação do direito fundamental do acesso ao Direito e à tutela jurisdicional efetiva consagrados nos artigos 18.º, n.º 2 e 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa. [negritos nossos]


Acompanha-se a fundamentação do acórdão recorrido na rejeição de toda a argumentação do Recorrente contra a validade da aplicação da orientação do AUJ nº 1/2014 ao caso dos autos. Com efeito, tal argumentação apenas teria alguma hipótese de ser considerada se tivesse sido alegado e provado que o regime jurídico luxemburguês da insolvência, aplicável à insolvência da R. em virtude de ser “a lei do Estado-Membro em cujo território é aberto o processo” (artigo 4º do Regulamento nº 1346/2000), carecia de garantias quanto à possibilidade de reclamação e quanto à tutela do crédito do aqui A. Tendo sido provado precisamente o contrário, valem para o caso dos autos as razões justificativas do AUJ nº 1/2014, que determinam que, “Transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do art. 287.º do C.P.C.”


8. Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, confirmando-se a decisão do acórdão recorrido.


Custas pelo Recorrente.


Lisboa, 12 de Julho de 2018


Maria da Graça Trigo (Relatora)

Maria Rosa Tching

Rosa Maria Ribeiro Coelho

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[1] Além destas razões, Miguel Virgòs/Francisco Garcimartín (The European Insolvency Regulation: Law and Practice, Kluwer, 2004, pág. 140), aduzem ainda a seguinte:“The difference between subjecting individual enforcements to the lex fori concursus and subjecting ordinary processes to the lex fori processus is sufficiently explained if we consider the different consequences of each on the insolvent debtor’s estate. In first case, the creditor satisfies his interest directly. In the second case, he obtains a decision on the merits which does no more than to allow him to join the body of creditors with an established claim.”